Podemos dizer "sim" para o inevitável uso dos objetos técnicos e também dizer "não", impedindo-os de reivindicar exclusividade sobre nós, com o que distorceriam, confundiriam e, finamente, desertificariam nosso ser.
Mas se dissermos igualmente "sim" e "não" para os objetos técnicos, será que a nossa relação com o mundo técnico não se tornará ambivalente e incerta? Ao contrário. Nossa relação com o mundo técnico se tornará maravilhosamente simples e calma. Deixaremos os objetos técnicos entrar em nosso mundo diário e, ao mesmo tempo, os deixaremos fora, isto é, os deixaremos entregues a si mesmos como coisas que não são absolutas, mas que dependem de algo superior. Eu gostaria de chamar essa atitude de um simultâneo Sim e Não para com o mundo técnico através de uma velha palavra: serenidade para com as coisas. Neste comportamento não mais vemos as coisas de um modo meramente técnico. Atingimos uma visão lúcida e percebemos que a produção e o uso de máquinas demanda de nós uma outra relação com as coisas, relação que não é desprovida de sentido.
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A atitude, a força pela qual podemos nos manter abertos para o mistério oculto do mundo técnico, denomino-a: abertura para o mistério. Serenidade para com as coisas e abertura para o mistério pertencem-se mutuamente. Elas nos garantem a possibilidade de habitarmos o mundo de um modo completamente diferente. Elas nos prometem um novo solo, um novo terreno, sobre o qual podermos permanecer e perdurar no mundo da técnica sem sermos colocados em perigo por ele.
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Nessa era atômica, que ainda está em seu início, um perigo bem maior ameaça – precisamente quando o perigo de uma terceira guerra mundial for removido. Uma afirmação paradoxal. Paradoxal, mas apenas enquanto não meditarmos sobre ela. Em que sentido é a afirmação feita agora válida? Ela é válida no sentido de que a revolução que se inicia na era atômica poderia de tal modo nos cativar, enfeitiçar, impressionar e seduzir o homem, que o pensamento calculativo poderia chegar a ser aceito e praticado como o único modo de pensamento.
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Mas – a serenidade para com as coisas e a abertura para o mistério nunca acontecem por si mesmos. Eles não acontecem acidentalmente. Ambos florescem unicamente através de um pensamento persistente e corajoso.
Este discurso de Heidegger, proferido em 1955 na comemoração dos 175 anos de nascimento do compositor alemão Conradin Kreutzer, é uma pequena obra-prima. Curto e de fácil acesso, dá para sacar bem alguns temas do seu Martin, como a questão da técnica e a do pensamento, e mostrar que precisamos guiar nossas próprias vidas, na medida do possível. O texto foi apelidado de "Serenidade" - nome, no mínimo, curioso - e pode ser lido, numa versão um pouco diferente da que eu li,
aqui.
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