sexta-feira, 25 de abril de 2003

escrevi esse conto há muito tempo atrás. apenas dei uma retocada.


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gaivota

1

Ele estava sentado na cama segurando o revólver com a mão direita, limpando o cano com uma flanela antiga. Vestia apenas uma camiseta e uma cueca samba-canção de algodão amarelada pelo tempo.

O quarto de pensão antiga. Móveis com superfície arredondada de madeira escura. A cama com lençóis brancos hemerticamente dobrados. O travesseiro intocado. A fumaça sobe até encontrar com o ventilador.

Ele estava sentado na cama de frente para a cômoda de duas gavetas pequenas e mais três grandes onde guardou a pouca roupa que tem. No armário, a sua esquerda, deixa seu terno. Seu único e preto terno.

Em cima do móvel duas fotos, um cinzeiro parcialmente cheio, o cigarro aceso, um maço pela metade e sete balas de calibre 38. Fotos de uma mulher e de uma família. Ele os conhecia bem, tão bem que evitava olhar para os retratos, com medo de desabar sem nenhum tipo de segurança.

Ele estava sentado na cama. Alisava o cano do revólver como se quisesse purificá-lo. Os cabelos cuidadosamente penteados com gomalina, repartidos da esquerda para a direita. Cabelos curtos e extremamente pretos.

O banheiro ficava atrás dele. Azulejo branco encardido, cortina transparente e fosca na saída do box. A porta do quarto à sua direita, com maçaneta fina e alongada com traços arredondados. Escutava o barulho frenético do ventilador.

Ele não costumava fumar quando estava sentado na cama, mas a fumaça inundava o quarto. Olhava, agora, as fotos com olhos fundos e sem vida e acariciava o revólver prata com cabo preto de borracha dura para fazer o tempo passar.

Há pouco comprou o revólver. Há pouco tempo morava naquele quarto, vivia essa vida, há pouco pensou em resolver definitivamente o seu problema.

Ele estava sentado na cama quando pegou o cigarro e o levou na boca para sentir mais uma vez a mistura de alcatrão com nicotina. Deixou cair cinza no chão. Não reparou nem quis. Colocou a arma de lado. Devolveu o cigarro para o cinzeiro. Levantou-se em direção ao armário. Abriu a porta e se olhou no espelho.

2

Mais magro, mais branco, mais triste. Não tinha bigodes, não tinha esses traços na testa, essas rugas ao lado dos olhos. Ficou parado. Olhava os olhos sem nenhum brilho. Tentava olhar no fundo da sua alma. A verdade de dentro dos olhos, apenas a verdade.

Abriu a outra porta do armário para pegar o terno. A porta gritou de dor. Tirou o cabide com o terno. Colocou na cama sem amassá-lo. Procurou o cinto em uma das gavetas, retirou as meias, a camisa branca.

Voltou para a cama. Enrolou o revólver na flanela bege desbotada e o deixou em cima da cama. Contornou a cama em direção ao banheiro e ligou o chuveiro. Foi tirando a roupa e dobrando-a cuidadosamente em cima da privada branca. O barulho baixo do ventilador o deixava quase hipnotizado.

Entrou na banheira antiga e encardida, como a pensão. Muitas pessoas com muitas vidas haviam passado pela aquela banheira. Ele sem nem ao menos perceber isso. Ligou a água fria na tentativa de despertar. Em vão.

Deixou a água escorrer pelo corpo sem fazer nenhum esforço. Apenas pensava e lembrava, imagens povoavam sua mente e a razão cada vez mais caduca. Tomou o banho mais demorado de sua vida. Girou vagarosamente a torneira e desligou o chuveiro, olhando para os azulejos da sua frente. Abriu a cortina sem vontade. Pegou a toalha branca e a deixou cair sobre o corpo.

Saiu numa espécie de transe da banheira velha, com os cabelos molhados e desgrenhados, com a água ainda descendo pelo corpo. Olhou-se mais uma vez no espelho do banheiro. Procurava algo ou alguém, ou apenas coragem ou só a verdade. Olhava com olhares tristes, sem esperança, mas decididos.

Encaminhou-se para a cama onde ficara sua roupa. Pegou sistematicamente peças limpas de roupas íntimas de um branco extremo. Começou a se vestir. As meias, a calça, a camisa branca, o cinto, o sapato, a gravata, com nó, e o paletó. Abriu mais uma vez o armário. Ignorou o choro da porta. Pegou um pente. Olhou-se no espelho para delimitar o cabelo, com cuidado com todos os detalhes permitidos.

Voltou-se para a cama. Arrastou a mão direita entre o lençol e a flanela com a palma da mão voltada para cima para sentir o algodão do lençol misturar com a sua mão. Mas não sentiu nenhuma emoção, estava oco. A mão esquerda fechou por cima e ele levantou a arma protegida pelo pano. Colocou-a dentro de uma pasta. Encaminhou-se para a porta. E girou levemente a maçaneta para baixo. A porta rangeu nervosa.

3

Avistou o restaurante. O único que ele queria era aquele. Ele havia procurado por um restaurante deste em todos os dias dos últimos meses. Era bem modesto, com janelas de vidros grandes, porta de madeira, um pequeno corredor, mesas separadas e razoável espaço interno.

O restaurante ficava numa área bem discreta da cidade. Era freqüentado principalmente por turistas que circulavam perto do porto da cidade. Não era um restaurante ruim. Havia algumas especialidades que só ele se propunha a fazer. Como o prato de gaivota.

Ele tomou coragem. Nunca encontrara outro além deste que servisse gaivota. Demorou ainda um mês para tomar coragem e entrar no restaurante. Ele havia comprado o revólver logo após o acidente. Não sabia se o que ele acreditava como verdade era exatamente isso, a verdade.

Entrou no restaurante pela porta da frente. O mâitre veio recebê-lo. Ele pediu uma mesa discreta para duas pessoas. Uma no canto do restaurante, bem atrás da coluna de sustentação. Ficaria sozinho e impedia quem quer que fosse de avistá-lo de qualquer ponto de dentro do restaurante.

Sentou-se. Água mineral sem gás. O garçom não demorou e trouxe o menu. Pediu, apontando com o indicador direito, sem ao menos olhar o cardápio, o prato de gaivota. Gaivota ao molho de alcaparras. O garçom anotou o pedido e retirou-se.

A água chegou às 20 horas e treze minutos. Olhou o relógio. O garçom serviu em um copo com gelo. Levantou o copo. Bebeu um gole. Olhou o copo longo de vidro transparente. O restaurante era mal iluminado. A luz passava através do copo e tornava o ambiente mais claro. Olhou para a lâmpada. Olhou para o relógio. Vinte e vinte. Tomou outro gole demorado. Deitou o copo na mesa. Colocou os braços estendidos sobre a mesa com que para meditar. Olhou para o nada a sua frente e em sua volta.

Vinte e quarenta e sete chegou o prato de gaivota ao molho de alcaparras, fumegante. Tinha contado cada segundo que havia passado sozinho. A cada instante imaginava cenas diferentes uma das outras. Bom apetite. Pegou o garfo com a mão direita, a faca com a mão esquerda. Tirou o molho e as alcaparras de cima da carne, limpando-a com o maior cuidado possível para que não ficasse nenhum vestígio. Deu um corte generoso. Espetou com o garfo. Olhou aquela carne branca cozida presa na sua frente com a fumaça e o cheiro que via espalhar-se. Sabia que a chave de todas as suas perguntas se resumia a algo tão banal, tão próximo, tão indecifrável. Levou vagarosamente à boca e fechou os olhos. Sentiu o gosto forte das alcaparras e salivou inconscientemente. Começou a triturar a carne. Uma mastigada. Duas mastigadas. Três. Quatro. Cinco. Seis. Sete. Oito. Deixou aquele pedaço disforme repousar por alguns instantes em cima da língua. Abriu os olhos e a engoliu.

Respirou fundo. Esperou o corpo voltar a uma posição de repouso, sentiu o peito dilatar com a entrada do ar e diminuir de volume quando ele saiu. Olhava para frente, mas não via nada ali. Assistia a cena de meses atrás. Girou o corpo até pegar a bolsa. Abriu. Tirou a flanela. Desembrulhou e uma luz brilhou no cano prata. Segurou no cabo preto. A mão firme, o braço tenso, a cabeça distante, o gesto automático. Puxou o cão. Levou à cabeça. O cano espetado na fronte. Puxou o gatilho. Fumegante.

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