quarta-feira, 16 de abril de 2003

independência e solidão

Vi Alex pela primeira vez há tanto tempo atrás que nem sei ao certo quando foi. A minha primeira impressão foi de que ele era uma pessoa sozinha. Não sabia os motivos de eu pensar nisso nem os porquês dele ser desse jeito, foi apenas uma sensação que eu tive. E, pude comprovar recentemente, não estava enganada.

Foi numa reuniãozinha íntima na casa de um primo meu que mora no Rio que o conheci. Os dois trabalhavam na mesma agência e, acredito hoje, num misto de pena com coleguismo, meu primo o chamou para a festa.

Em termos sociais, Alex fugia do estereótipo do isolado. Conversava com várias pessoas, estava sempre amparado por grupos e parecia se divertir. Entretanto, algo nele me chamou a atenção. Parecia que para alcançar essa diversão que tanto demonstrava, ele deveria agir de maneira superior a todos a sua volta.

No dia seguinte, meu primo me disse que eles dividiram um apartamento por poucos meses quando ele resolveu sair de casa. E confirmou para mim que o seu comportamento era extremamente individualista. Quando chegava em casa do trabalho sentava no sofá e só levantava para ir ao banheiro ou dormir. Às vezes nem para isso. Raramente trocavam palavras e quando precisavam de algum tipo de comunicação, Alex optava por bilhetes nas geladeiras ou indiretas para o meu primo.

Na festa, ele veio conversar comigo. Fiquei um pouco intrigada com aquele homem de quase dois metros de altura, louro com olhos claros. Disse algo banal sobre o trabalho e logo quis saber sobre mim, quem eu era, por que estava ali, quem eu conhecia.

Então percebi que o seu jeito de se mostrar superior não vinha de tentativas de enumerar suas próprias qualidades, mas de ignorar completamente todas as pessoas que estavam fora de um círculo de relacionamento que ele mesmo elegia.

Escutei alguns comentários preconceituosos sobre a menina que aprontava os canapés e várias falas desdenhando o trabalho de pessoas da própria agência. Insistia em dizer que no dia que fosse o dono, nenhum incompetente trabalharia lá.

Para minha sorte, ele nutria uma certa admiração pelo meu primo e ficou bastante interessado quando disse que era de Porto Alegre. Disse que havia nascido lá, mas se mudara para o Rio para ter mais oportunidade de trabalho. Mas sua irmã ainda morava lá.

Não voltei ao assunto, nem ele falou mais sobre a sua família. Certa hora mandou uma direta sobre eu ir embora com ele para o apartamento dele. Agradeci o convite e recusei. Ele não mudou a fisionomia com isso, se colocava distante dali como se não fosse ele quem tivesse fazendo o convite e recebido uma negativa. Nada parecia o atingir.

Em poucos dias, voltei para Porto. Mas sempre pedia alguma notícia de Alex para o meu primo. Sentia uma mistura de ojeriza com pena dele. Meu primo me disse onde e como me comunicar com a irmã dele e eu liguei para ela. Expliquei minha curiosidade e marcamos de nos encontrar num café.

Cheguei um pouco na frente dela, sentei e a esperei. Luana não demorou e tomamos algumas cervejas para acompanhar o papo. No primeiro encontro já percebi como os dois eram diferentes. Ela era delicada, humana, carinhosa. Marcamos de nos encontrar novamente e nos tornarmos um pouco mais que amigas desde então.

Contudo, foi só depois de algumas semanas que eu comecei a fazer perguntas mais diretas sobre o Alex. Desde a primeira vez que mencionei o nome dele de uma forma mais inquisitiva, percebi sua sobrancelha levantar como dissesse que não havia muito para onde correr, ela deveria aceitar o irmão que tinha.

Ela confirmou a história de que Alex tinha ido para o Rio para procurar trabalho. Só que ela completou dizendo que ele não tinha ido para a casa da mãe deles, que morava com o novo marido em Copacabana. Alex fora morar com o meu primo. As duas pontas da história se encaixavam.

Perguntei o motivo disso e ela relutou em dizer, mas disse, que ele não falava com a mãe porque ela tinha abandonado a casa depois da morte do pai, para ir morar com o novo marido, deixando os dois, ele com dezoito, ela com vinte e um, sozinhos em Porto Alegre.

Foi nessa época que meu primo me disse que Alex tinha se casado, com uma menina do atendimento da agência e, logo depois, promovido a gerente de conta.

Fiquei pensando quem é que tinha aceito se casar com Alex, com todas as suas manias e seu desprezo pelos outros. Mas meu primo me garantiu que ele só tinha olhos para a menina agora. Não saía com mais ninguém, vivia em função dela, confia o rumo de sua própria vida a ela.

Cada vez mais entendia o comportamento de Alex. Voltei para o Rio mais uma vez para passar seis meses, e fiquei na casa do meu primo, por insistência dele. Pude ver com os meus próprios olhos como se dera a mudança no comportamento de Alex. Desde que sua mãe o tinha abandonado, vivia preso, estritamente fechado no seu mundo interior que, para ele, era a única forma de não depender de nenhuma pessoa. A menina tinha soltado essas amarras de Alex. Ele realmente parecia mudado.

Voltei para Porto com uma certa sensação de desconforto em relação ao Alex, mas decidi deixar para lá. Nesses seis meses nossos laços de amizade tinham se tornado mais sólidos e, agora, recebia notícias do Rio pelo meu primo e por ele, além de Luana.

De vez em quando ele me telefonava para dizer que tinha sido promovido mais uma vez, ou contratado por uma outra empresa num cargo melhor. Afirmava que o seu plano de ter uma agência sua estava cada vez mais próximo, precisava ultrapassar só mais uns poucos obstáculos. Essa sede de dinheiro me assustava, mas parecia alimentá-lo. Meu primo confirmava que ele fazia de tudo, de tudo mesmo, para subir no trabalho. Talvez ele não tivesse mudado tanto assim, pensei, talvez só tivesse mudado o foco das suas ações.

Quando finalmente conseguiu montar uma assessoria de marketing só para ele, deu uma festa no Pão-de-açúcar e enviou uma passagem para mim e uma para sua irmã. Viajamos para prestigiá-lo, mas na minha cabeça eu ficava imaginando qual seria a meta que ele se proporia. Agora, com menos de 40 anos, o que é que ele almejaria já que todos os seus sonhos tinham se realizado?

A festa foi impecável, com show de uma banda famosa ao vivo, com bebidas e comidas para saciar qualquer glutão, com gente famosa, cobertura da imprensa e Alex rodeado. Certa hora, ele se aproximou de mim e pediu para irmos para um canto conversarmos. Minhas expectativas se confirmavam.

Ele se apoiou no pára-peito, com aquela vista linda da Baia de Guanabara lá embaixo. Fiquei um tempo impressionada com o que via, quando ele começou a falar. Disse que não confiava em mais ninguém para dizer aquilo e, por mais que eu morasse longe, me considerava uma amiga. Sorri para agradecer, apesar de parecer que ele estava cego demais para enxergar qualquer coisa. Minha mulher está me largando, disse ele. Meu rosto caiu. Abracei-o, e ele se segurou para não chorar. Comecei a acariciá-lo nos ombros, na cabeça e pedia baixinho para ele se soltar, mas ele se segurava e me empurrou. Fungou uma, duas vezes, colocou a mão no nariz, agradeceu com o corpo trêmulo por eu o ter escutado e saiu na direção do banheiro.

Fiquei anestesiada todo o resto da festa. Alex não voltou a falar comigo, mas pude observá-lo em outros momentos. Estava cada vez mais agitado a medida que a festa passava. De vez em quando, voltava ao banheiro e meu primo só veio confirmar a minha suspeita.

Há mais ou menos oito meses, consegui um emprego estável no Rio e me mudei, junto com Luana, de vez para a cidade que sempre admirei. Pude, então, acompanhar a evolução da desgraça de Alex de perto. Porém, só contemplar. Por mais que eu quisesse ampará-lo, ele se isolava de todo mundo que tentava se aproximar.

Ele aparece freqüentemente nas colunas sociais como um dos grandes empresários do Rio de Janeiro. Elegeu o trabalho como sua única função no mundo. Mas sei que sua realidade é bem diferente dessa imagem de ser bem resolvido que ele tenta passar.

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