domingo, 15 de janeiro de 2012

Cortes

[Os trechos que seguem são os cortes do livro. Mas são boas frases, bons parágrafos para se jogar fora, assim. Deixo-os registrados, como uma homenagem a mortos de guerra.]

Se agora você a lê, se alguém tem contato com essa linha, com essa sentença, é porque, além de pensar, a escrevi.

Devo usar palavras não usuais como “alcunha”? “Alcunha” é uma palavra não usual?

Meu hábito de não apagar a palavra, ou o conjunto de palavras anteriores quando elas não são exatas, e apenas acrescentar a palavra, ou as palavras que são direcionadas pela minha razão logo em seguida, pode trazer algum tipo de problema no futuro.

Prefiro colchetes a parênteses, porque é mais fácil digitá-los em meu – no – computador.


Devo usar clichês e lugares comuns?

Acho uma generalização absurda – absurda a meu ver – afirmar que há uma divisão entre o viver e o pensar. Por que não podemos ter os melhores desses mundos? Ou, melhor, o suficiente para esses mundos, ou desses mundos, dessas possibilidade?

[Gosto quando destruo, sem perceber, algumas regras ortográficas. A ortografia sempre foi um problema para mim.]

Posso fazer citações? Isso ficaria pedante?

Esse meu hábito de fazer perguntas demonstra inconscientemente o meu medo?

Se eu disser que foi sem querer, alguém acredita em mim?

Será que a edição vai tirar isso tudo?

Eu não gosto muito de reler o que eu escrevo.

Posso dizer que vou almoçar e escrever na linha seguinte, logo em seguida. Dizer que almocei que a comida estava ótima, que coloquei tudo o que eu encontrei na geladeira numa frigideira, tasquei pimenta e um pouco de azeite e comi quente. Mas a verdade é só parecida com isso. A comida estava realmente excelente. Não sofro com comida, sei cozinhar, ou sei me virar na cozinha [lembro que o italiano tem uma excelente expressão com o mesmo sentido: “me la cavo” – gosto de usá-la, mas quem escuta acredita que sou pedante. Não sou. Ou não sou essencial, oficial, verdadeira e conscientemente pedante. Talvez um pouco egoísta. Mas pedante, não.]

Agora já convenci que almocei? Que eu cozinhei algo bom e comi? E se eu apenas tiver inventado isso? Se eu tiver dado um parágrafo para demonstrar que saí daqui e fui comer. Mudei de assunto e até de capítulo para exatamente o assunto comida, almoço, e aí daria a impressão de que fui comer. A verdade aqui é a que eu quiser.

[Nesse livro haverá frases que começarão com pronomes. E os verbos compostos podem usar tanto o “ter” quanto o “haver”. E evitarei a expressão “ao invés” por achar que é desnecessária – ou quase, ou eu que não sei usá-la.]

Sim. Às vezes vou usar expressões como “‘tá”. A ideia é ser o mais coloquial possível.

Esse não é um problema da literatura moderna – as pessoas tentam ser bastante coloquiais. Portanto, aqui, você não vai encontrar nenhuma novidade – se é que você vai encontrar novidade.

Antes de prosseguir, porém, talvez seja de bom tom fazer outro anúncio. Tenho que admitir um pequeno problema, uma síndrome que nunca foi catalogada. Algo, talvez, único, ou uma adaptação de um outro problema conhecido, batido, recorrente. Tenho dislexia frasal. Troco o lugar de onde as palavras deveriam aparecer nas sentenças, vez por outra.

... podemos retornar para um parágrafo anterior? Sou incapaz de escrever sem repetir? Há um problema em repetir? Em tirar significados de cada uma das palavras, das frases?

Pensei se deveria escrever a frase que abre esse texto, depois pensei o que ela queria dizer, depois pensei as intepretações inversas, a interpretação de cada palavra, de trechos.

Descobrimos, com o tempo, com a experiência, que o pensamento não é uma ação estanque, que começa e logo acaba, sem deixar vestígios ou resquícios, mas um ato vagaroso, pastoso, que se alonga indefinidamente. Indefinidamente. Não há uma regra a que o pensamento se submete – é indefinido, sem definição. É livre para retornar a um trecho, descobrir os seus significados ocultos, conjecturar os motivos, rebater, refletir, reinterpretar a sentença vezes infinitas – infinitas no sentido da eternidade, eternidade como algo que não há início ou fim, que pode ser instantânea ou durar... muito tempo. Ou o tempo que não se encerra. Porque deixo a minha cabeça livre – deixo a cabeça ir para onde ela quiser ir, sem tentar guiá-la, prendê-la, censurá-la. Como único registro, produzo esse texto. O pensamento pode ser – “conter” é melhor – o pensamento pode conter diversos raciocínios, várias possibilidades mentais levam o seu nome, “pensamento”. Deixar a minha mente flanar pode fazer com que eu perca o caminho das pedras. Ou repetir caminhos já usados. Meu pensamento é um compartimento que contém infinitas partes – porque não se pode dividi-las.

Do que eu falava? Sobre a chatice dos livros. Os livros são chatos. Não todos os livros, pelamordedeus. Não. Não acredito em deus, antes que me perguntem. Esse, aliás, é um dos temas do outro livro. Mas sem adiantar. O livro tem que ter que suspense.  Aliás, e falando nele, imaginei um início, mais ou menos assim:

[Pausa rápida para falar – escrever – que “enfado”, do último capítulo, me remete automaticamente a “fado”. Segundo o Houaiss, há diversas acepções para o termo “fado”, entre elas as mais conhecidas que remetem à música e à dança típica de Portugal, mas, como eu imaginava, assim como “ventura” – uma palavra que acho bem bonita – “fado” quer dizer “destino, sorte, estrela; o que necessariamente tem de ser; vaticínio, decreto do destino” – e isso aparece na primeira acepção da palavra. Só depois vêm a música e a dança. Em quarto, e penúltimo, aparece um regionalismo de Portugal: “Prostituição” e, por último, chutaria uma declinação dessa acepção: “vadiagem”, mas no sentindo de “desordeiro”, como na expressão “vida de fadista”. Mas gosto de pensar em “fado” como “ventura”, ambos como sinônimos de “destino”, como um “fato” a ser consumado, ou algo que, já passado, não poderia ser diferente.]

Qual é mesmo o nome do que eu quero escrever?

Não me importo – não acho que o conceito de originalidade é o único parâmetro a se avaliar em uma obra. Mas o impacto que ela tem, isso sim, é importante. Além disso, há formações e formações.

[Agora, pintou uma dúvida: em que pronome narrar? A terceira pessoa realista, como se eu fosse um deus, onisciente que editasse as cenas mais interessantes para serem reproduzidas? Ou a primeira pessoa, demonstrando que alguém que está no jogo, que está em cena, contou a história depois? Isso é uma decisão complexa porque envolve a lógica narrativa. Não posso contar algo sobre o que não vi ou soube. Acho que vou ficar com a terceira pessoa, por enquanto, já que estou carregando na primeira aqui, neste livro.]

– é tão chato ter que explicar tudo nos mínimos detalhes. É tão... melancólico.

A propósito, devo cometer algumas imprudências ortográficas – algumas de propósito, a maioria por pura ignorância. Não adiantou frequentar quatro anos da faculdade de letras. Há determinados aprendizados que estão além de você. Portanto, se não quiser ver alguém desrespeitando regras, fique à vontade para interromper o processo agora mesmo, antes que encontre um erro que machuque ouvidos mais delicados.

mas, como também havia dito, já fui. Já fui bastante melancólica, já culpei o mundo pelos meus problemas, já sofri estagnada sem saber o que fazer, triste, sozinha num canto. Mas, se eu posso me orgulhar de uma coisa, sempre achei esse posicionamento chato, cansativo, repetitivo.

Essas histórias, como disse e repeti, são uma desculpa para eu poder conversar comigo mesma, sem parecer que estou louca. É uma metáfora, para eu poder falar sobre assuntos que eu gosto, que eu acho relevante, sem que as pessoas me chamem de proselitista.

Entretanto, por mais que eu me surpreende em falar o já muito falado, até mesmo por mim, tenho que admitir que a história é viva, ganha os contornos que quiser, vai para o caminho que achar melhor – não respeita a minha vontade, ou somente a minha vontade – tem uma vontade própria. Uma gravidade única que a puxa em uma direção sem que eu possa fazer muito.

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