quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Existências

A primeira vez que vi "eXistenZ" foi numa - talvez a primeira - maratona cinematográfica que acontecia no Odeon. Fiquei impressionadíssimo. Menos com as suas esquisitices, mais com a abordagem em tom de videogame para o problema da realidade. Era uma época que eu lia "O mundo como vontade e representação". Revê-lo agora me chamou atenção para dois outros aspectos, parecidos. E para a tosqueira de filme B, que Cronenberg gosta de impor em alguns de seus filmes mais gores.


Essa é, provavelmente, a minha cena preferida. Dá para ver o filme todo aqui.

Um dos aspectos mais relevantes, para mim, é a opção de Cronenberg em imaginar que nosso futuro híbrido com máquinas, nossa "androidização", nossa transformação em ciborgues não será feitas com metais, objetos duros, uma robótica parecida com a do Robocop. Mas orgânica, simbiótica, com objetos moles, interligados ao nosso organismo como se fossem parte dele. Em vez da empregada dos Jetsons, nossa musa de beleza será algo mais de carne e osso, e glândulas e líquidos, e cordões que ora parecem umbilicais, ora, intestinos.

De certa forma, ele apenas atualiza e projeta a nossa atual relação com objetos externos que nós introduzimos ao nosso corpo. Tudo bem que usamos uma máquina, dura, de metal, quadrada, para nos locomover em longas distâncias. Mas é um componente orgânico, biológico, mole, quase farinhento que as mulheres tomam desde a década de 1950 para evitar ter filhos. E, mais recentemente, também é com medicamentos igualmente "orgânicos" [portanto dentro da minha categoria "mole"] que controlamos nossos humores, nossa vontade de dormir, nossos apetites. Os nossos botões de liga-desliga não são como os interruptores, mas pequenas pastilhas possíveis de ingerir. Estamos nos transformando em além-de-humanos por meio de medicamentos.

O segundo aspecto é ainda mais óbvio. Principalmente hoje em dia. Como Cronenberg já percebia, em 1999, a importância que os videogames teriam em nossa sociedade. Os indicadores já deveriam existir, provavelmente. Aumento de vendas, consolidação de uma indústria, aparecimento de ícones.  O videogame é o meio de se entreter preferido de diversas pessoas ao meu redor. O PS3 foi o presente de natal - de alguns natais atrás - de vários amigos. E do meu sobrinho. Ele apenas levou as questões que eram embrionárias à época alguns anos à frente.

Por onde anda Jennifer Jason Leigh?
Mas não pode ser a questão da realidade virtual - assunto que Philip K. Dick, entre outros, já tinha desenvolvido, por exemplo, no "We can remember it for you wholesale", um desses contos com nomes horríveis que inspiram filmes de ficção-científica incríveis como "Total recall" [me recuso a usar a tradução do filme] - o grande mérito de Cronenberg. Suspeito que tenha sido mostrar adultos jogando, como se fosse a parte do seu tempo mais precioso. No momento em que seu console [pod, em inglês] morre, Allegra [ao lado] quase morre junto. Não é mais uma questão de realidade em que vivemos outras vidas, muito mais interessantes que a nossa, mas de dependência. Será que estamos muito longe disso?

Por uma questão de precaução, eu continuo a evitar o aumento do meu hall de entretenimento viciantes. 

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