Pela
segunda semana consecutiva, Francisco Bosco falou sobre a sua viagem à Índia na coluna de "O Globo". Se na primeira ele narrou como foi o seu duro cotidiano - muito parecido com o que enfrentamos, quando fomos, com a diferença de que estávamos muito mais "preparados", no sentido de termos evitados alguns problemas que eles não conseguiram -, nesta ele abordou a reação dos leitores aos seus primeiros comentários. De toda forma, o que mais me chamou a atenção foi essa frase que intitula esse texto, e que ele usou para falar de sua relação com a Índia: "Eu não gosto, mas eu adoro", e fez questão de ressaltar o adversativo "mas", para reafirmar que as duas partes da frase são antagônicas.
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Delhi é uma cidade difícil, muito difícil |
Essa frase pode parecer um paradoxo à primeira vista. Como você pode, ao mesmo tempo, "não gostar" e "adorar"? São duas sensações antagônicas, que deveriam se anular, aparentemente. E ele nem está usando "adoro", no sentido mais comumente usado por, por exemplo, os franceses, de adoração, quase religiosa, mas como uma hipérbole do gostar. Ele não gosta e gosta muito. E agora?
De certa forma, eu entendi perfeitamente o que ele quis dizer na hora que ele falou - ou acho que sim. Uma das mais maneiras mais simples de se captar o sentido, na minha interpretação, é imaginar que somos seres múltiplos, que somos muitos que habitam esta carne e este osso. Um desses, ou uma parte, não gosta, a outra, adora. Mas eu prefiro uma interpretação um pouco mais inusitada.
E pego o exemplo da própria coluna dele - mas poderia ser qualquer outro. Ele diz que é um "mau viajante" "porque radicalizo, no campo do outro, aquilo que já sou em meu país". Ou seja, porque, de certa forma, se torna mais o que ele acha que ele é. Porque ele para, pensa, racionaliza, e escolhe entre vários comportamentos, aquele [ou aqueles] que ele julga ser ele. E procura - é a minha sugestão - no "campo do outro" ele mesmo, um espelho, algo que reflita, que alimente, que dialogue com esse "eu" escolhido.
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Mas que também pode ser incrível |
Porém, algumas experiências - e a Índia foi bastante isso para mim - são muito maiores que esse "eu" ou qualquer "eu". Ela arrebata, envolve, absorve, torna "ela" o que cai dentro do seu caldeirão. O viajante, para sobreviver à Índia, tem que, então, ser menos "eu", agir menos de acordo com os planos que você tinha pré-estabelecido, ser mais instintivo, mais maleável, tornar-se parte desse organismo vivo que é "ela". De repente, você percebe que você é aquele "eu" inicial, mas mais alguma coisa. Você percebe que, ao permitir ou ser invadido pelo outro, você acaba se transformando e, quase que como consequência, engrandecendo.
Como disse ali em cima, falei da Índia, mas poderia ter falado de qualquer outro exemplo que envolve, necessariamente a perda desse "eu", desse ser inicial, em prol de outro, ou outros. Acredito que o amor, no sentido mais puro da palavra, que não necessariamente tem a ver com erotismo, se não nasce daí, é retroalimentado por esse sistema.
Isso acontece com a relação de mãe e filho, por exemplo. Entre os casais, igualmente. Ou com soldados de um mesmo batalhão que foi para a guerra, para ficar em casos que vieram à memória agora. Todos, em algum momento, abrem mão do seu "eu" anterior em prol do outro. Imagine as noites sem dormir das mães com os bebês. A mudança de vida dos ex-solteiros. O perrengue compartilhado entre os combatentes. E, se essa concessão não for algo humilhante, se for ligeiramente recompensada, é criado um vínculo. Há uma união aí. Há uma história em comum. Um passado compartilhado. Uma interseção de trajetórias. E é aí que o amor reside.
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Concorda? |
Daí, é fácil entender como alguém pode "não gostar" de algo, exatamente porque nega os confortos tradicionais, os costumes já estabelecidos, e, ao mesmo tempo, "adorar" esse mesmo algo. Confrontar o que você não gosta, quando inevitável [porque senão é masoquismo], é uma das únicas formas para se mudar.
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