segunda-feira, 31 de março de 2014

Big data do cotidiano

Há uma expressão da informática que é, provavelmente, uma das melhores formas de se entender um dos mais assustadores aspectos do cotidiano no momento atual: big data. Se você não souber o que ela quer dizer, tudo bem, provavelmente só está sofrendo as consequências da própria expressão. Está soterrado com trocentas outras informações de algum outro assunto que, para você, é mais relevante. Mas qual assunto é o mais relevante para nos tomar a atenção?

Nos últimos dias, fomos informados, se a pesquisa está correta, que 65% dos brasileiros concordam ao menos parcialmente que "mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas". Quase ninguém reparou, entretanto, que a maioria das vítimas desse crime vive próximo dos criminosos, e 70% são crianças ou adolescentes. Nem que o número de estupros supera o de homicídios dolosos no Brasil. Só ficou discutindo o tamanho da saia da mulher, como se isso fosse o primordial.

Na semana anterior, tivemos nossa discussão sobre a votação na Câmara dos Deputados sobre o marco civil da internet, em que foram decididas, em primeira instância, as regras da rede. Nos últimos meses, o debate sobre os 50 anos do golpe militar foi pauta em todos os cantos. Coincidência, ou não, nesse fim de semana, militares voltaram a ocupar um espaço civil no Rio, com o argumento da segurança pública. Hoje, saiu o segundo capítulo do novo relatório do IPCC, sobre o aquecimento global, e as conclusões são - ainda mais - assustadoras.

Isso sem falar nos acidentes de carro, ônibus etc, que colocam o trânsito numa das principais causas de morte do Brasil. No problema de transportes públicos, em geral - sucateados e caros. No atraso das obras para a Copa. Na própria Copa. Na poluição das praias. Nos preços exorbitantes para a vida nas grandes cidades. No baixo crescimento da economia. No escândalo da compra da refinaria pela Petrobras. Nas próximas eleições. Na falta de bons candidatos... Na... Aaaaaaah.

Como sobreviver diante de tanta informação? Como saber quais são os assuntos realmente essenciais para que possamos prestar a atenção? Em que devemos nos aprofundar, para evitar tecer apenas platitudes? Como fazer uma hierarquia da coleção de desgraças que nos assolam?

Uma vez ouvi dizer que o Brasil vive pulando de crise em crise. Que não chegamos a resolver nenhum problema, apenas vamos mudando de preocupação, num exercício de ansiedade constante, que não deixa que passemos da superfície das questões. Não sei se é um problema nacional - mais um para a lista - ou do nosso tempo histórico. Certo é que nossa baixa confiança na representatividade oficial, que foi totalmente exposta nas jornadas de junho, piora nossa situação. Em quem confiar para resolver nossos problemas?

Também é certo que se eximir do debate público sobre esses e muitos outros assuntos só agrava a depressão em que nos metemos. Escondemos a realidade debaixo de uma fantasia de que não precisamos pensar sobre nada desses casos, até que a tsunami invade nosso condomínio fechado. Não vivemos fora do mundo. E é esse o mundo, cada vez mais complexo, que temos. Como lidar?

sábado, 29 de março de 2014

Protestos, Olimpíadas e violência... no México

De la misma manera que las epidemias medievales no respetaban ni las fronteras religiosas ni las jerarquías sociales, la rebelión juvenil anuló las clasificaciones ideológicas. A esta espontánea universalidad de la protesta correspondió una reacción no menos espontánea y universal: invariablemente los gobiernos atribuyeron los desórdenes a una conspiración del exterior. Aunque los supuestos y secretos inspiradores fueron casi los mismos en todas partes, en cada país se barajaron sus nombres de manera distinta.
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El sentido profundo de la protesta juvenil —sin ignorar ni sus razones ni sus objetivos inmediatos y circunstanciales— consiste en haber opuesto al fantasma implacable del futuro la realidad espontánea del ahora. La irrupción del ahora significa la aparición, en el centro de la vida contemporánea, de la palabra prohibida, la palabra maldita: placer, una palabra no menos explosiva y no menos hermosa que la palabra justicia. Cuando digo placer no pienso en la elaboración de un nuevo hedonismo ni en el regreso a la antigua sabiduría sensual —aunque lo primero no sea desdeñable y lo segundo sea deseable— sino en la revelación de esa mitad oscura del hombre que ha sido humillada y sepultada por las morales del progreso: esa mitad que se revela en las imágenes del arte y del amor. La definición del hombre como un ser que trabaja debe cambiarse por la del hombre como un ser que desea. Ésa es la tradición que va de Blake a los poetas surrealistas y que los jóvenes recogen: la tradición profética de la poesía de Occidente desde el romanticismo alemán.
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¿cuál es el verdadero tiempo del hombre, en dónde está su reino? Y si su reino es el presente, ¿cómo insertar el ahora, por naturaleza explosivo y orgiástico, en el tiempo histórico? La sociedad moderna ha de contestar a estas preguntas sobre el ahora —ahora mismo—.
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Desde hace cuarenta años, y especialmente en las dos últimas décadas, la economía del país ha hecho tales progresos que los economistas y sociólogos citan el caso de México como un ejemplo para los otros países subdesarrollados. En efecto, las estadísticas son impresionantes, sobre todo si se tiene en cuenta el estado en que se encontraba la nación en 1910 y las destrucciones materiales y humanas que sufrió durante cerca de veinte años de guerras civiles. Como una suerte de reconocimiento internacional a su transformación en un país moderno o semimoderno, México solicitó y obtuvo que su capital fuese la sede de los Juegos Olímpicos en 1968.
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Pero dentro del contexto de la rebelión juvenil y de la represión que la siguió, estas celebraciones parecieron gestos espectaculares con los que se quería ocultar la realidad de un país conmovido y aterrado por la  violencia gubernamental. Así, en el momento en que el gobierno tenía el reconocimiento internacional de cuarenta años de estabilidad política y de progreso económico, una mancha de sangre disipaba el optimismo oficial y provocaba en los espíritus una duda sobre el sentido de ese progreso.
[...]
El movimiento estudiantil se inició como una querella callejera entre bandas rivales de adolescentes. La brutalidad policiaca unió a los muchachos. Después, a medida que aumentaban los rigores de la represión y hostilidad de la prensa, la radio y la televisión, en su totalidad entregadas al gobierno, el movimiento se robusteció, se extendió y adquirió conciencia de sí. En el transcurso de unas cuantas semanas apareció claramente que los estudiantes, sin habérselo propuesto expresamente, eran los voceros del pueblo. Subrayo: no los voceros de esta o aquella clase, sino de la conciencia general. Desde el principio se intentó aislar el movimiento tendiendo un cordón sanitario que lo aislase e impidiese el contagio ideológico.
Los dirigentes y funcionarios de los sindicatos obreros se apresuraron a condenar, en términos amenazadores, a los estudiantes; lo mismo hicieron, aunque con menos violencia, los partidos políticos de la izquierda y la derecha oficiales. No obstante la movilización de todos estos medios de propaganda y de coacción moral, para no hablar de la violencia física de la policía y el ejército, el pueblo engrosó espontáneamente las manifestaciones juveniles y una de ellas, la célebre “manifestación silenciosa”, agrupó a cerca de cuatrocientas mil personas, algo nunca visto en México.
O texto de Octavio Paz sobre o massacre na praça Tlatelolco, "Olimpíada e Tlatelolco", em que morreram - extraoficialmente - 325 pessoas, é tão bom que dá vontade de copiar todas as seis páginas. De uma atualidade às vezes desconcertante, como se não restasse nada para nós, para sermos um pouquinho originais. Principalmente se considerarmos as semelhanças entre a situação político-econômica do México em fins da década de 1960 e o Brasil do início dos 2000s. E que o México, assim como o Brasil, foi escolhido para sediar os dois principais eventos esportivos do mundo, em um intervalo de apenas dois anos. A diferença, talvez, fique no fato de que aqui as mortes policiais vêm no varejo, quase nunca no atacado.

sexta-feira, 28 de março de 2014

O fim do senso comum

No livro "Entre o passado e o futuro", dona Hannah Arendt diz, lá no "A crise da educação", que a ausência do senso comum é uma das maiores provas da nossa crise atual - ou da época, fim da década de 1950. Isso fica fácil de enxergar quando vemos qualquer discussão sobre assuntos bipolares, como é o caso do golpe de 1964, para usar um exemplo exagerado, ou mesmo, para ficar no assunto educação, a liberdade ou segurança na hora de transmitir conteúdos para as crianças. Devemos falar o que e quando e como para os pequenos?

Como não há mais parâmetros óbvios, ficamos na dúvida em relação aos limites que podemos impor - em todos os aspectos. Será que devemos dar o máximo de liberdade para os cidadãos? Mas o máximo de liberdade não afeta ao outro, necessariamente? Se eu tenho, por exemplo, a liberdade de ouvir música alta até a hora que eu quiser, eu não atrapalho o meu camarada que gosta de dormir mais cedo? Qual é a solução - o limite - para isso? Qual é o sinal que se acende quando vou ultrapassar a fronteira da minha liberdade para a do outro?

Todas as vezes que eu vejo pessoas defendendo a "mão invisível do mercado", para falar mal do governo e defender o liberalismo extremo, eu penso no trânsito. Será que conseguiríamos sobreviver muito tempo sem o ente superior - no caso, representado pelos sinais de trânsito? Não é bastante óbvio que, neste exemplo, o ato de ignorar o Leviatã mais atrapalha que ajuda? E, se admitirmos que, neste caso,  precisamos de alguma regulação superior, de algum código de conduta, de algo que podemos determinar como o certo, o melhor para todos, como determinaríamos quais são os outros assuntos que precisamos de regulamentação e quais não?

Por outro lado... Se escolhermos sermos regulamentados a todo o momento, se tivermos todos os nossos passos legislados... isso resolveria os nossos problemas? Para começar, as pessoas são presas, no Brasil, a grosso modo, por meia dúzia de crimes. O restante da legislatura parece ser feita - o que já virou até cotidiano - para inglês, mesmo que nascido no Brasil, ver.

E não estou defendendo aplicar totalmente as leis: somos o quarto país que mais encarcera no mundo - mas não somos, nem de longe, o quarto mais seguro. Como se sabe, nossas prisões não ajudam na transformação dos homens e mulheres que lá entram - ao contrário. Além disso, você, você aí que está sentado na sua confortável cadeira / sofá, você conseguiria passar um dia sem quebrar alguma regra, alguma lei, algum tipo de regulamentação? Lembre-se que, no Rio, é passível de punição até quem portar mochila às costas nos elevadores. A verdade é que não temos noção do que é legal ou ilegal, no nosso cotidiano, e ficamos à mercê dos preconceitos dos homens que são a ponta do aparato jurídico: os poliça.

Além disso, mesmo que soubéssemos todos os nossos direitos e nossos deveres, todos, sem tirar nem pôr, isso seria o suficiente? Porque abundam na história casos em que os regimes de exceção, de terror, foram apoiados, ou melhor dizendo, se basearam em uma legislação vigente, ou que se construiu para dar-lhe suporte. Se quiserem um exemplo, podemos dar o regime militar - que foi apoiado por uma boa parte da sociedade, e principalmente da elite - instaurado em 1964.

Devemos ainda nos lembrar que há casos em que há um arcabouço teórico onde os donos do poder buscam auxílio para respaldar suas atitudes. Ou se cria algo para dar o apoio. Ou muda-se a interpretação - caso clássico de Nietzsche e o nazismo. Não é a letra fria da lei - ou da teoria - que devemos levar em consideração. Ela pode envelhecer, perder importância, ou ser criada, modificada, reapropriada apenas com o fim de legitimar algo que pareceria ilegítimo.

Mas se não podemos confiar no indivíduo, isolado, fora da sociedade, que nos diz que a liberdade é o fim de todos, homens-e-mulheres, já que é difícil saber onde a liberdade de um acaba para a do outro começar, nem na presença de um ente superior - que foi Deus, depois [sem ordem] a ciência, o Estado, a Justiça, etc. - o que nos sobra? O senso comum. Mas o que seria isso? E, como apontou Hannah Arendt, como sobreviver sem ele?

Em primeiro lugar, seria interessante levantar a hipótese: será que já houve em algum momento da História algo como o senso comum? Ou seja, será que houve um tempo em que homens-e-mulheres dividiram um conjunto de códigos e regras que não precisavam ser ditas, mas que eram compartilhadas por todos-todas? Bem provavelmente não. Mas já houve regras não escritas em que a grandiosa maioria respeitava. Pense na moda, por exemplo, e somente para dar um exemplo colateral, que conseguimos enxergar isso. Como a moda era uníssona há 100, 150 anos, e como ela se transforma, cada vez mais, em algo difuso, difícil de ser apreendido dentro de uma única explicação. A própria moral cristã era uma regra que não precisava ser imposta - apesar de ser imposta - para as pessoas [hipocritamente] respeitarem - ou arranjarem um jeitinho de burlarem.

Hum. Pensando melhor, talvez a ideia de senso comum não se aplique ao Brasil. Nunca tivemos uma ideia do pertencer a algo maior que nós mesmos, a uma ideia de comum, de comunidade. O Estado sempre foi visto como aquele que atrapalha, pelos ricos, ou que persegue, pelos pobres. Estamos há 200, 300, 500 anos tentando descobrir uma forma de lidar com o outro, desde que o outro não não invada nossa individualidade. Aqui, parece que sempre foi um cada um por si. E deus contra todos.

Talvez devêssemos alçar aquela música do Chico a nosso verdadeiro hino nacional: "Mesmo com o todavia, com todo dia / Com todo ia, todo não ia / A gente vai levando, a gente vai levando, a gente vai levando / A gente vai levando essa guia".

Ou descobrir que nem só a liberdade, nem só a segurança resolveriam nossos problemas. Mas atitudes que fossem permeadas pelos dois parâmetros, à medida da necessidade, do possível. Ou melhor, do bom senso comum.

terça-feira, 25 de março de 2014

Foucault, Manet e os espelhos

Foucault deu uma série de palestras sobre a pintura de Manet, na segunda metade de 1960, o apontando, talvez conscientemente, talvez instintivamente, como uma resposta ao Velázquez, ou melhor dizendo, como se fossem artistas gêmeos, perdidos no tempo, e nascidos em outro espaço - se eu entendi bem [o que eu duvido]. Para Foucault, o que Manet faz é aceitar o quadro como um objeto que existe, não um ente que quase milagrosamente está em determinado lugar, reproduzindo determinada imagem. Foucault levanta dois [ou três] aspectos para comprovar esse argumento.

"Manet réinvente, ou peut-être invente-t-il, le  tableau-objet, le tableau comme matérialité, comme chose colorée que vient éclairer une lumière extérieure et devant lequel ou autour duquel vient tourner le spectateur."

O primeiro é a tentativa de inserir em seus quadros linhas verticais e horizontais, em elementos pictóricos, para representar, ou ecoar as próprias dimensões da tela. Como se ele apontasse, com esses elementos, os limites entre o pintado e o não pintado, como se mostrasse consciência sobre ser este um quadro, portanto criado por alguém, com algum tipo de intenção, e não um objeto que simplesmente apareceu completamente sem referência anterior.

O segundo tem a ver com a luz, e o primeiro exemplo que Foucault dá é o quadro intitulado "Le fifre", o pífano. A iluminação - que desde o quattrocento italiano sempre seria, segundo o francês, indicada dentro da própria tela - aparece do lado de fora do quadro, na posição em que o espectador está, como se apontasse para a continuação, ou o início da pintura ainda fora dela.

Em "Le déjeuner sur l'herbe", há ainda a posição da mão do personagem central, que indica as direções de onde viriam os dois pontos de luz. Há uma artificialidade, para reforçar o caráter de produção, não de mero acaso, ou de algo "natural", da arte. A pintura, assim, se distancia de uma tentativa de cópia do mundo para uma tentativa de re-produção.

Além disso, Foucault também faz questão de lembrar da posição de determinados personagens nos quadros de Manet, que observam sempre o lado de fora da tela, mas em ambos os lados, seja na direção do espectador, seja para trás do quadro. É o caso, por exemplo, de "La serveuse de bocks".

Mas o principal ponto de Foucault é sobre a posição do espectador nos quadros de Manet. O exemplo principal para ilustrar isso seria "Un bar aux Folies-Bergère" [abaixo], em que o pintor convida o espectador a ocupar dois lugares diferentes - logo em frente à garçonete, ou tentado enquadrar seu reflexo. Foucault sugere que há uma necessidade de o espectador tomar uma decisão de onde vai ver a tela, já que não haveria uma posição "correta" para isso. Isso força o espectador a um atitude mais ativa em relação ao quadro, percebendo o engenho do pintor. E adiantando uma das questões mais importantes da arte no século seguinte, a interação, cada vez mais próxima, entre o produtor e o espectador, a ponto de essas fronteiras, hoje em dia, estarem embaçadas.


Curiosa a presença de um espelho nesta obra de Manet - elemento que também aparece em "Las meninas" e que, de certa forma, pode ser uma metáfora, por si só, para a natureza da pintura. Também é curioso que o livro que aparece sua interpretação sobre o quadro de Velázquez comece com uma citação de Borges, que é conhecidamente um homem que tinha com os espelhos uma relação quase mitológica. Borges, um homem literato, com pouca participação em outras áreas - escreveu roteiros com Bioy Casares, gostava de milongas, raramente citava pintores - tinha um pavor seminal dos reflexos. Não dá para passar despercebido o fato de o argentino, entretanto, ter ficado cego muito novo. E que as pinturas são produções artísticas essencialmente visuais, como ressalta outro francês, Merleau-Ponty. Acho que deve ter alguma relação aí escondida.

sexta-feira, 21 de março de 2014

As causas das violências

Este tipo de manipulação [política] que implicou na reabertura do campo de possibilidade para o passado, impede que a História desempenhe a sua função, pois o repertório de opções é o campo do futuro e o papel da História é registrar os feitos e acontecimentos decorrentes da política a partir dos quais se entreabre a estabilidade do possível agir futuro. Esta situação gera ao ceticismo, pois a persuasão e a violência podem destruir a verdade factual, mas não a substituem, pode que os seus fluxos carreiam uma instabilidade permanente. Daí a importância de alguns mecanismos de defesa da verdade factual, criados pelas sociedades modernas, fora dos seu sistema político, mas indispensáveis para a sua sobrevivência, como a universidade autônoma e o judiciário independente. Daí também o fenômeno da violência contemporânea, sobretudo no momento atual norte-americano [1972] ou na Europa de 1968, em cuja raiz se encontra, como aponta Hannah Arendt em On Violence (1970), uma reação contra a hipocrisia da manipulação de opinião e um apetite pela ação que recoloca o problema da liberdade.
Celso Lafer, no prefácio de Entre o passado e o futuro, de Hannah Arendt. Foi escrito em 1972, como se vê acima, mas poderia ter sido ontem.

terça-feira, 18 de março de 2014

Os nossos tempos sombrios, segundo Hannah Arendt

Não encontrei uma foto dos dois juntos.
O que pode dizer bastante do caráter
da relação que compartilharam
"Martin Heidegger faz oitenta anos" [em inglês aqui], texto que fecha a versão brasileira da coletânea "Homens em tempos sombrios", de Hannah Arendt [na tradução de Denise Bottmann], é tão impressionantemente incrível que está me deixando confusas as minhas ideias. Há várias partes que valiam horas de debates e conversas, momentos que jogam luz sobre aspectos pouco claros na obra de Heidegger, mas há um, em específico, que me chamou ainda mais atenção por abordar bastante bem o momento atual: a necessidade de um certo isolamento, um distanciamento do mundo, até para se pensar - ou viver - esse mesmo mundo.

Suspeito que esse seja um problema que acompanhou toda a história da humanidade, mas que no último século, com a velocidade dos acontecimentos, com o aumento da informação, com o hedonismo se transformando em regra, em obrigação, a questão se tornou central. Essa torrente também ocasionou uma série de efeitos colaterais que estamos acompanhando sem saber muito bem como agir para evitá-los. De um lado, há uma epidemia de depressão, que assola quase metade da população; do outro, uma igualmente grave epidemia de ansiedade. Como se dissesse que quem não consegue acompanhar o ritmo desse mundo cada vez mais rápido, cai num buraco; quem consegue, não aproveita nada, vai trocando de vontade como quem troca de fantasia.

O que Hannah Arendt propõe, seguindo Heidegger por uma série de motivos que não cabem comentar aqui, para evitar o problema do exagero, é a necessidade de um distanciamento do mundo, como ele é, para podermos pensá-lo. Para podermos enxergá-lo, melhor, para podermos experimentá-lo. Acrescento: para podermos vivê-lo. Não é uma proposta inovadora a de Arendt, claro. Sempre se disse que há uma necessidade de uma perspectiva para que tenhamos uma visão melhor do problema. Em nosso tempo, porém, o que era uma sugestão para um determinado grupo de pessoas, parece que se aplica a toda a humanidade. O problema parece cada vez mais urgente.

Nas palavras de Arendt:
Para se aproximar pelo pensar de uma coisa ou, antes, de um homem, eles devem se manter distantes da percepção imediata. O pensar, diz Heidegger, é "a aproximação do distante".
Em outro momento:
Na perspectiva da morada do pensar, o que de fato reina em torno dela, na "ordem habitual do cotidiano" e dos afazeres humanos, é a "retirada" ou "o esquecimento" do ser: a retirada daquilo que é o assunto do pensar, aquilo que, por sua natureza, se sustém no contato com o ausente. A superação dessa retirada sempre é paga por uma retirada do mundo dos afazeres humanos, mesmo que o pensar medite justamente esses afazeres em sua calma retirada.
Como dito, não há novidade neste front, mas ao ler essas informações sobre a perspectiva atual, ou, como diria Agamben, sendo contemporâneo desse texto, podemos ver como estamos sendo soterrados, diariamente, por uma quantidade absurda de informação, de seduções, de possibilidades e a cada escolha parece, depressiva ou ansiosamente, que estamos perdendo todas as demais. Em vez de valorizar as nossas decisões, as acabamos enterrando, em prol de infinitos caminhos que ficam ao largo, e que, a esta distância, sob esta perspectiva, parecem - mas só parecem - mais interessantes.

O que Arendt fala, ou eu a interpreto assim, é que devemos nos isolar um pouco, sair do mundo das sensações tão epidérmicas, e tentarmos mergulhar dentro de nós mesmos. Isso quer dizer: saber que há o momento de entrar no mundo, que não conseguimos escapar do dia-a-dia, mas que até para valorizar este mundo, precisamos nos distanciarmos. Em outras palavras: Temos que sair da máquina de moer carnes que é a vida cotidiana, sair da roda de camundongos de laboratório. Temos que parar para escutar nossa própria voz. Abafar o barulho do mundo lá fora e ouvir a voz que só nós podemos escutar e que nos fala a verdade sobre nós mesmos.

domingo, 16 de março de 2014

A América já era

Todo o mundo tem uma imagem do Brasil como país preguiçoso, relaxado, laid back, onde tudo é mais devagar. E existe uma grande ambiguidade nossa em relação a essa imagem. Por um lado achamos interessante a imagem de um país easy going, por outro lado temos uma grande vergonha disso, nos queremos transformar num país performante, que vai para a frente, produtivo. A gente quer ao mesmo tempo ser sambista e grande potência mundial. Eu acho que devia continuar sendo sambista. Que a gente devia saber explorar as virtudes do não-produtivismo. A ética protestante, que nos deu o espírito do capitalismo, para falar como Weber, nunca esteve inscrita no DNA do Brasil, graças a vocês portugueses, que também não a tinham [risos]. Tiveram durante século e meio, mas depois... Então, por um milagre histórico fomos preservados dessa maldição que é a ética produtivista do capitalismo. Fomos capturados pelo capitalismo porque nos invadiu, domou. O capitalismo foi possível porque a Europa invadiu a América. Se não fosse a America, a Europa não teria deixado de ser o que era na Idade Média, um fundo de quintal. Na Idade Média, as sociedades desenvolvidas eram o Islã, a India e a China. Os europeus eram um bando de bárbaros, sujos, mal vestidos, católicos. Mas por acaso os portugueses e os espanhóis deram de cara com o novo mundo e o capitalismo tornou-se possível. Porque foi o ouro do Novo Mundo, milhares de toneladas, e tudo o que saiu da América, novas plantas, novos recursos alimentares, que permitiu a expansão do capitalismo e  depois a revolução industrial. Se não tivesse havido invasão da América, destruição da América não teria havido Europa moderna. Hoje, no mundo, as principais plantas que servem de alimentação mundial são de origem ameríndia: o milho, que se planta em toda a parte, a batata, que permitu a revolução industrial inglesa, a mandioca, da qual toda a África do Oeste hoje vive. Só que a América já era, não tem mais Novo Mundo para descobrir, a terra fechou, arredondou, além de que o pólo dinâmico do capitalismo foi para a China.
Eduardo Viveiros de Castro, em entrevista para o Público, de Portugal.

sábado, 8 de março de 2014

É possível viver sem acreditar?

Nessa semana, diversas pessoas diferentes - entre amigos próximos, distantes, colegas e gente que eu leio nos jornais - falaram sobre o mesmo assunto: "True detective". É a nova superprodução em forma de minissérie da HBO que tem Matthew McConaughey como o tal detetive verdadeiro e Woody Harrelson como seu parceiro. Todos as falas tinham algo em comum: Rust Cohle, o personagem de McConaughey. E não é para menos. É um desses protagonistas que sugam todas as atenções como se fosse um buraco negro.

McConaughey está magro e quase irreconhecível na série


Atormentado pela perda da filha de 2 anos, Cohle se torna um homem antissocial e amargo. Cético. Introspectivo. Não é fácil descrevê-lo. É como se as qualidades não se adequassem a ele, necessariamente. Ele é cético, mas não apenas isso. É amargo, mas não somente. É um personagem grande, dúbio, que foge de padrões fáceis de classificação. Vive marginalizado da sociedade, morando numa casa sem móveis, tentando arrancar forças de seu trabalho para sobreviver, porque não foi feito para o suicídio, como se defende logo no primeiro episódio.

Um aspecto que é mais fácil captar em Cohle é sua dificuldade de aceitar a individualidade humana. Para ele, somos desimportantes, enquanto seres únicos. Seríamos apenas uma máquina biológica, que caminha mesmo contra a vontade em direção a um destino certo: a morte. O caminho trilhado pode variar um pouco, mas não muito. Não somos especiais, não somos diferentes de nada do que nos envolve.

Personagens como o de Cohle são famosos nas artes narrativas, principalmente no gênero policial, ainda mais o noir. São homens durões, que não conseguem lidar facilmente com as suas perdas do passado e mergulham num isolamento misterioso da sociedade. Viram solitários, quietos, vistos como sábios por não quererem se intrometer na vida de ninguém.

Essa música de abertura do duo The handsome family é incrível

O que ele tem de diferente - e o que demonstra bem o nosso momento histórico - é um certo cacoete filosófico e ateu. É um homem que desistiu do homem, e que sugere que caminhemos em direção ao fim, de mãos dadas. Mas será que conseguimos viver realmente de maneira ateia? Quero dizer, e eu estou aqui me repetindo, será que é possível viver sem acreditar em nada?

Em uma determinada cena, Cohle e seu parceiro, o supertradicional homem do sul americano Martin Harris, vão a uma igreja itinerante. Enquanto ouvem o pastor, Cohle começa a também pregar para Harris, demonstrando como toda aquela encenação era falsa, não se atinha à realidade, científica, crua. Harris, pai de duas meninas, casado com uma mulher bonita, detetive sênior, tenta contrapor os argumentos de Cohle, mas não tem a erudição do parceiro. Ao fim, porém, dá uma cartada que fica sem resposta: para um pessimista completo, Cohle parecia se importar muito com a religião dos outros.

Os homens e mulheres - pobres, sem educação - que passavam a cestinha e depositavam dinheiro podem até estar comprando um pequeno sentido para as suas vidas - sentido que não se encaixa num mundo de pessoas que têm acesso a determinados conhecimentos - mas, ao fim, elas estavam, ali, agindo de acordo com os preceitos do próprio Cohle. Diminuindo suas próprias individualidades, vivendo em uma comunidade - como, aliás, Harris salienta - seguindo um caminho qualquer em direção ao fim comum.

Por que Cohle acredita que não acreditar em um Deus é melhor que acreditar? Porque hoje ser ateu, ser laico, ser secular, é visto como uma vantagem sobre quem segue uma religião em que um mundo é criado em seis dias para Ele descansar no sétimo. O provável - e o que eu acredito - é que apenas escolhemos no que acreditar. Não é verdadeiramente possível simplesmente não acreditar.

Os céticos geralmente argumentam usando a inteligência que os estudos lhe deram. O próprio Cohle faz isso, num exercício de superioridade. Pergunta de maneira esnobe qual seria o QI daqueles fiéis na igreja. Então há - e faço essa pergunta sem qualquer ironia - uma hierarquia entre quem é mais ou menos inteligente?

Como se acredita, os homens destituíram o Deus cristão, mas colocaram outros deuses em seu lugar - como é o caso da ciência, para ficar no exemplo mais comum. A mesma ciência que já cometeu, assim como as religiões, inúmeros absurdos, e que já justificou igualmente guerras. Não há deus sem pés de barro.

A decisão por ignorar a individualidade humana, escolhido por Cohle para lidar com a sua dor, carrega em si, provavelmente, o mal de seu problema. Não é possível que alguém negue que é diferente do seu igual - nem mesmo Cohle. Basta ele enxergar como vive de maneira radicalmente distante dos seus pares. Mesmo que ele queira se anular, o que ele consegue é só fazer com que fiquem mais óbvias as diferenças.

Talvez a saída esteja em aceitar que não somos iguais aos nossos iguais, mas também não somos diferentes. Somos os dois, ou aproveitando as vantagens que a nossa língua nos dá [quem disse que não dá para filosofar em português?], estamos, à medida que caminhamos rumo ao tal destino comum, os dois, ora um, ora outro, ora ambos, em determinados e diferentes graus. Somos individuais, únicos, mas também pertencemos a algo maior que nós, que nos torna parte de um todo - seja esse algo a humanidade, o reino animal, o planeta Terra, o universo. Optar por um dos caminhos é ignorar uma parcela considerável de nossa natureza.

Mas isso tudo que eu escrevi, claro, faz parte apenas da minha crença.

quarta-feira, 5 de março de 2014

'O andarilho' - Nietzsche

"Quem alcançou em alguma medida a liberdade da razão, não pode se sentir mais que um andarilho sobre a Terra e não um viajante que se dirige a uma meta final: pois esta não existe. Mas ele observará e terá olhos abertos para tudo quanto realmente sucede no mundo; por isso não pode atrelar o coração com muita firmeza a nada em particular; nele deve existir algo de errante, que tenha alegria na mudança e na passagem. Sem dúvida esse homem conhecerá noites ruins, em que estará cansado e encontrará fechado o portão da cidade que lhe deveria oferecer repouso; além disso, talvez o deserto, como no Oriente, chegue até o portão, animais de rapina uivem ao longe e também perto, um vento forte se levante, bandidos lhe roubem os animais de carga. Sentirá então cair a noite terrível, como um segundo deserto sobre o deserto, e o seu coração se cansará de andar. Quando surgir então para ele o sol matinal, ardente como uma divindade da ira, quando para ele se abrir a cidade, verá talvez, nos rostos que nela vivem, ainda mais deserto, sujeira, ilusão, insegurança do que no outro lado do portão - e o dia será quase pior do que a noite. Isso bem pode acontecer ao andarilho; mas depois virão, como recompensa, as venturosas manhãs de outras paragens e outros dias, quando já no alvorecer verá, na neblina dos montes, os bandos de musas passarem dançando ao seu lado, quando mais tarde, no equilíbrio de sua alma matutina, em quieto passeio entre as árvores, das copas e das folhagens lhe cairão somente coisas boas e claras, presentes daqueles espíritos livres que estão em casa na montanha, na floresta, na solidão, e que, como ele, em sua maneira ora feliz ora meditativa, são andarilhos e filósofos.Nascidos dos mistérios da alvorada, eles ponderam como é possível que o dia, entre o décimo e o décimo segundo toque do sino, tenha um semblante assim puro, assim tão luminoso, tão sereno-transfigurado: - eles buscam a filosofia da manhã”.
Aforismo 638 de "Humano, demasiadamente humano", de Nietzsche. Curioso a carga razoavelmente religiosa, quase católica, que o texto carrega, justificando o sofrimento de uma maneira muito parecida - mas não igual - à ideia de um paraíso depois da vida na terra.

Uma outra interpretação bastante interessante sobre a passagem pode ser lida aqui.

segunda-feira, 3 de março de 2014

Condições humanas

A introdução do "A condição humana", da Hannah Arendt, é tão bom que fiquei com vontade de compartilhar os trechos que mais impactam. Lembrando que o livro foi publicado originalmente em 1958, e a edição que estou citando é a de 2007, da Forense Universitária. Aí vão:

"Este evento [a ida de uma máquina feita pelo homem ao espaço], que em importância ultrapassa todos os outros, até mesmo a desintegração do átomo".

"'A humanidade não permanecerá para sempre presa à terra'". [9]

"Ninguém na história da humanidade jamais havia concebido a terra como prisão para o corpo dos homens nem demonstrado tanto desejo de ir, literalmente, daqui à Lua" - esse processo foi resultado de uma emancipação e a "secularização da era moderna, que tiveram início com um afastamento, não necessariamente de Deus, mas de um deus que era o Pai dos homens no céu, terminar com um repúdio ainda mais funesto de uma terra que era a Mãe de todos os seres vivos sob o firmamento?"

"Recentemente, a ciência vem-se esforçando por tornar 'artificial' a própria vida, por cortar o último laço que faz do homem um filho da natureza" [10]

"A questão é apenas se desejamos usar nessa direção nosso novo conhecimento científico e técnico - e esta questão não pode ser resolvida por meios científicos: é uma questão política de primeira grandeza, e portanto não deve ser decidida por cientistas profissionais nem por políticos profissionais." [11]

"O problema tem a ver com o fato de que as 'verdades' da moderna visão científica do mundo, embora possam ser demonstradas em fórmulas matemáticas e comprovadas pela tecnologia, já não se prestam à expressão normal da fala e do raciocínio." [11]

>>> "Seria como se o nosso cérebro, condição material e física do pensamento, não pudesse acompanhar o que fazemos, de modo que, de agora em diante, necessitaríamos realmente de máquinas que pensassem e falassem por nós. Se realmente for comprovado esse divórcio definitivo entre o conhecimento [no sentido moderno de know-how] e o pensamento, então passaremos, sem dúvida, à condição de escravos indefesos, não tanto de nossas máquinas quanto de nosso know-how, criaturas desprovidas de raciocínio, à mercê de qualquer engenhoca tecnicamente possível, por mais mortífera que seja" [11]. <<<

"é o discurso que faz do homem um ser político" [11]

"Atualmente as ciências são forçadas a adotar uma 'linguagem' de símbolos matemáticos que, embora originalmente destinada a abreviar afirmações enunciadas, contém agora afirmações que de modo algum podem ser reconvertidas em palavras". [11 e 12]

"[os cientistas] habitam um mundo no qual as palavras perderam o seu poder" [12]

A automação que se propôs a libertar a humanidade do trabalho apareceu junto com uma valorização do labor. [12]

"a irreflexão - a imprudência temerária ou a irremediável confusão ou a repetição complacente de 'verdades' que se tornaram triviais a vazias - parece ser uma das principais características do nosso tempo". [13]

sábado, 1 de março de 2014

Why fun is fun

To exercise one’s capacities to their fullest extent is to take pleasure in one’s own existence, and with sociable creatures, such pleasures are proportionally magnified when performed in company. From the Russian perspective, this does not need to be explained. It is simply what life is. We don’t have to explain why creatures desire to be alive. Life is an end in itself. And if what being alive actually consists of is having powers—to run, jump, fight, fly through the air—then surely the exercise of such powers as an end in itself does not have to be explained either. It’s just an extension of the same principle.
[...]
Reconsider the lobster. Lobsters have a very bad reputation among philosophers, who frequently hold them out as examples of purely unthinking, unfeeling creatures. Presumably, this is because lobsters are the only animal most philosophers have killed with their own two hands before eating. It’s unpleasant to throw a struggling creature in a pot of boiling water; one needs to be able to tell oneself that the lobster isn’t really feeling it. (The only exception to this pattern appears to be, for some reason, France, where Gérard de Nerval used to walk a pet lobster on a leash and where Jean-Paul Sartre at one point became erotically obsessed with lobsters after taking too much mescaline.) But in fact, scientific observation has revealed that even lobsters engage in some forms of play—manipulating objects, for instance, possibly just for the pleasure of doing so. If that is the case, to call such creatures “robots” would be to shear the word “robot” of its meaning. Machines don’t just fool around. But if living creatures are not robots after all, many of these apparently thorny questions instantly dissolve away.
[...]
The very fact that you felt compelled to try to beat me in an argument, and were so happy to be able to do so, shows that the premise you were arguing must be false. Since if even philosophers are motivated primarily by such pleasures, by the exercise of their highest powers simply for the sake of doing so, then surely this is a principle that exists on every level of nature—which is why I could spontaneously identify it, too, in fish.
David Graeber explains.