O conservadorismo oferece a esse jovem uma aura de transgressão. Nesse meio, o consenso é incomodar e agredir os discursos das minorias, minimizando denúncias de machismo, racismo e homofobia que aparecem na grande imprensa. Para esse jovem recém-radicalizado e com vontade de chocar, é importante pronunciar-se contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo, opor-se às leis que caracterizam o feminicídio ou defender a proibição do aborto em qualquer circunstância. Sua tática não é o debate, mas o constrangimento. Como certos políticos, buscam palanque com suas provocações.
quinta-feira, 29 de novembro de 2018
Rebeldes com causas conservadoras
quarta-feira, 7 de novembro de 2018
Imprevisão
O texto contou com a colaboração de Maria Valéria Rezende, Adriana Lisboa, Ivone Benedetti, Guiomar de Grammont, Euridice Figueiredo, Bernardo Kucinski e grande elenco de leitura.
Um trechinho abaixo
"Talvez seja melhor escrever sobre os nossos fantasmas que tentar esquecê-los, não enfrentá-los. De outra forma, talvez se escreva para produzir uma outra memória (coletiva?), que equilibre as forças e permita aos fantasmas sossegar, em vez de, mesmo que involuntariamente, colaborar para escondê-los, corroborando sem intenção com uma pseudo-conciliação, uma abertura unilateral, em que um dos termos vive sossegadamente apesar das barbaridades que cometeu, e o outro paga por todos os pecados sozinho – como aconteceu com a anistia em 1979, quando torturadores e assassinos não foram julgados, corpos de guerrilheiros desaparecidos, nunca retornados. Talvez se escreva para dar materialidade e concretude às palavras, mesmo as mais duras, como desaparecimento, tortura, morte. É importante enfrentarmos a dor, juntos, em vez de evitá-la. É melhor fazer com que esses fantasmas sejam ouvidos – dar voz a eles, isto é, escrever junto com eles, em consonância. “Fantasmas”, aqui, não são espectros que assustam apenas indivíduos. O escritor é um meio que amplifica a voz de uma coletividade, de uma temporalidade, que infiltra histórias na História grande, oficial, para desestabilizar a versão dos vencedores."
Para ler tudo, aqui.
quarta-feira, 3 de outubro de 2018
Monólogo final de "O ovo da serpente" (de I. Bergman)
talvez amanhã de manhã,
o exército da Alemanha do Sul
começará uma revolta,
comandados por um demente
chamado Adolf Hitler.
Será um fiasco descomunal.
Herr Hitler carece de capacidade
intelectual e de técnica.
e não sabe as
forças tremendas
com as que se enfrentará.
Será arrasado como
um grande fiasco
no dia em que desatar
esta tormenta.
Observe esta imagem.
Observe toda esta gente.
São incapazes
de uma revolução.
Estão muito humilhados,
muito temerosos,
muito oprimidos.
Mas em dez anos...
Para então...
os de 10 anos terão 20,
os de 15 anos terão 25.
Eles terão herdado
o ódio de seus pais,
mas com a adição de seu
idealismo e impaciência.
Alguém se adiantará e colocará
seus sentimentos sem palavras.
Alguém prometerá um futuro.
Alguém fará suas exigências.
Alguém falará
de grandeza e sacrificio.
Os jovens e inexperientes
brindarão seu valor e sua fé
aos cansados e indecisos.
E então haverá
uma revolução,
e nosso mundo se fundirá
em sangue e fogo.
Em dez anos, não mais,
eles criarão uma sociedade
sem igual na historia mundial.
A antiga sociedade se baseava
em ideias muito românticas
sobre a bondade do homem.
Muito complicado, já que as ideias
não concordam com a realidade.
A nova sociedade
se baseará em um juízo real
dos potenciais
e limitações do homem.
O homem é uma deformidade,
uma perversão da natureza.
Então nossos
experimentos tomam lugar.
Lidamos com a forma básica
e logo a moldamos.
Liberamos as forças produtivas
e controlamos as destrutivas
Exterminamos o inferior
e aumentamos o útil.
segunda-feira, 1 de outubro de 2018
'anódino' (Ficção): capítulo 0
Eu matei um menino hoje. Matei um menino, matei... Era um menino pequeno... Não esqueço o som do corpo, daquele corpo pequeno – quantos anos ele tinha? – batendo contra a frente do ônibus. Plac, pum, toc. O som, o som, o barulho... Nossa... o barulho foi assustador. Um esporro. Foi rápido, a cena foi rápida, quase instantânea. Menino na frente do ônibus, corpo no chão, ônibus por cima. Mas o barulho, eu me lembro do barulho. Não me esqueço. Eu me lembro, sim, eu me lembro. Eu arremessei aquele menino, aquele menino que vivia aqui na rua, aqui perto de casa... Eu nunca tinha visto esse menino na vida. Nunca. Era um fantasma, um espectro, que devia passar por dentro de mim, e que de repente apareceu, na hora mais imprópria, da pior maneira possível, e eu o arremessei. O arremessei na frente de um ônibus e o ônibus, plac, pum, toc. Um esporro. Fui eu o responsável, fui eu, só eu, ninguém além de mim. Sozinho, só eu. Só eu quem o matou, que o matei. Agi sem pensar, impulsivamente e as cenas agora se repetem, uma e outra e outra e logo outra, um trecho em looping, até eu perceber o óbvio. Quem mata alguém é assassino. Eu sou um assassino. Assassino. Tudo aconteceu ali, perto do túnel, ao lado do cemitério, embaixo de uma favela, na zona dos esquecidos, onde ninguém sabe nada e jamais alguém vê coisa com coisa. Ele era um personagem desse filme mudo e sem imagens. Um dos protagonistas, junto com todas as outras pessoas. O ônibus não parou, o motorista nem percebeu. Um esporro. Depois vai ver que atropelou alguma coisa e dar de ombros. Ossos do ofício. Ossos quebrados.
Esmigalhados. O corpo do menino estendido na rua, no chão, na sarjeta. Os carros passando por cima dele, zum, zum, zum – nenhum parou. Aos poucos, o menino foi diluindo, se transformando em asfalto, sumindo novamente dos olhos de quem passa por ali. Voltou a ser fantasma, espectro, transparente. Ninguém parou. Ninguém se arriscaria nessa vizinhança, na minha vizinhança. O garoto que nunca existiu voltou para onde não deveria ter saído. Eu fui embora, correndo, logo após jogar o menino. Estava com medo. Estava apavorado. E se me pegassem? E se me vissem? Não acompanhei o garoto sumir, desaparecer, se desmilinguir. Não escutei os motoristas reclamarem sobre o buraco novo, o paralelepípedo fora do lugar, o quebra-mola de ossos e carne e órgãos e sangue, sangue que se esparrama pelo asfalto e se enegrece. Não assisti ao espetáculo deprimente da sua desgraça. Em casa, fechei a porta atrás de mim e pude respirar. Sentia o meu peito arfando, subindo e descendo, subindo e descendo, como se tivesse fugido. Eu tinha fugido. Eu estava morto de medo. A chuva começava lá fora e eu continuava a olhar a parede branca que servia de tela para o mesmo filme, o mesmo filme que passava na minha cabeça. Plac, pum, tom. Pela primeira vez consegui parar. Respirei fundo uma, duas vezes e foi então que aconteceu. Como um estalo que não se escuta, como um pisca que não se vê, como uma dor que não se sente. De repente, como quem recebe uma notícia aleatória, mas contagiante como uma revelação fantástica. Sem perceber ou esperar, senti um prazer narcotizante aproveitar toda a minha capilaridade e subir pelas minhas extremidades, pés, batatas, coxas, sexo, barriga, peito, cabeça. Minha vista se enubleceu e o corpo ficou mole. A chuva caía lá fora na forma de um temporal, escutava os pingos grossos limpando a carga que trazia sobre os meus ombros, e percebi que, em poucos instantes, eu não tinha peso algum. Pelo contrário. Estava leve, totalmente liberto. E senti algo que foi difícil, a princípio, admitir. Gostei. Estava, naquele momento, sentindo um prazer inenarrável, experimentando uma sensação divina, única, empolgante, eterna. Após o medo, senti o meu corpo se encher de alguma substância química e tinha que admitir: foi bom, foi ótimo. Foi ótimo o que eu fiz. Estava me sentindo pleno. Sem perceber, um sorriso brotou no meu rosto, no meio da minha cara, dessa cara que eu tenho, a única, que não posso esconder. Parado, de frente para a parede, tive a certeza de que queria fazer isso de novo, que queria sentir isso novamente. Pela primeira vez, depois de muito tempo, estava feliz.
'anódino' (Ficção): Nota introdutória
Em 2006, quando Sérgio Cabral Filho foi eleito governador do Rio de Janeiro, eu trabalhava em uma redação de um grande portal jornalístico de internet. Uma das propostas do então queridinho dos principais grupos de comunicação do estado era promover uma limpeza étnica nas favelas e periferias da capital, seguindo sua promessa de engrossar o tom das respostas contra os grupos organizados fora da lei. Ele, junto com o seu primeiro-tenente, José Mariano Beltrame, queria “recuperar os territórios” (termos usados com frequência) das mãos dos traficantes (essa alcunha genérica que se usa exageradamente como sinônimo de criminoso), para montar Unidades de Polícia Pacificadoras (sic), e proteger a maravilhosa cidade para os eventos que ocorreriam aqui (do Pan, em 2007, passando pela Copa do Mundo, em 2014, até as Olimpíadas, em 2016).
Uma das táticas da polícia sob o comando de Cabral (mas sem ser invenção dele) foi fazer incursões cotidianas em favelas de diferentes tamanhos. O resultado era um dia a dia de mortes no varejo e, frequentemente, nada menos que chacinas patrocinadas por quem deveria evitá-las: o Estado. Todos os dias, eu, como um dos primeiros filtros do site, recebia informações do assassinato de dois, três homens – sempre suspeitos, sempre armados, invariavelmente pretos – em uma operação policial. Eu tinha que decidir se essas mortes de homens de pele escura, pobres e favelados, em confronto com agentes da (in)segurança, eram passíveis de virar notícia, e entrar numa montanha de informação bastante caótica; ou não: deveríamos ignorar sua história e nem mesmo relegá-los a se tornar letras virtuais num ambiente igualmente imaterial. Opções, ambas, excepcionalmente destrutivas, para mim.
Era um exercício diário de morte, de um outro tipo de morte, que me matava aos poucos, com a desculpa de que me fornecia as possibilidades para poder sobreviver. Até que não mais.
Esse livro, escrito entre os anos de 2007 e 2008, foi a tentativa de imaginar – de um modo que, à época, pensava ser caricatural – as possíveis implicações, ou últimas consequências, da euforia coletiva em relação às decisões da política institucional, euforia que se mostrava profundamente insensível com a situação daqueles sobre quem tal política brutalmente incidia. A história descreve a gênese de uma moral perversa, psicopata, fascista até, que está sempre à espreita, principalmente quando optamos por soluções aparentemente fáceis e, por isso, inexoravelmente violentas.
quarta-feira, 19 de setembro de 2018
Futurologia
segunda-feira, 17 de setembro de 2018
Bolsonaro é fascista
Claro que isso não garante absolutamente nada - nem que eles vão ler. O tipo de diálogo [se é que podemos chamar as brigas de facebook assim] que eu tenho visto recentemente é geralmente igual: de um lado, quem apoia o absurdo Bolsonero vociferando palavras de ordem e xingamentos, sem se importar com o que lhes é dito; do outro, eleitores dos mais diferentes espectros políticos pacientemente [e perdendo a paciência] tentando mostrar o óbvio: o quanto o ex-capitão é antidemocrático, tem apenas propostas contra o povo mais marginalizado e periférico, e só quer aumentar a violência num país já flagelado - além de ser um corrupto que recebe dinheiro da JBS em campanha e desvia verba de gabinete em benefício próprio.
Mas esse texto também é um desabafo, e serve para lembrar os partidários da democracia que, apesar de barulhentos, os apoiadores do Bolsonaro são comparativamente poucos e, claro, têm todo o direito de expor suas posições e, inclusive, votar nele. O texto não quer convencer ninguém a mudar de posição: apenas dar mais elementos para não dizer que foram enganados.
Se querem votar num candidato elitista (sim, Bolsonaro é elitista), que persegue a população mais pobre e carente, que disse em entrevista para o JN quer entrar com uma metralhadora .50 em favelas, sem se importar com a imensa maioria de moradores que vive lá por falta de opção, que quer aumentar ainda mais o número de homicídios num país que já é o campeão mundial nesse assunto, que entende ainda menos de economia, de gestão, de administração pública e terceiriza todas as suas decisões para economistas que querem repetir e aprofundar o plano do atual presidente Temer, ou para militares que querem manter seus privilégios, tudo bem. É direito de todo mundo fazer o que quiser com o voto.
Também não quero dizer que todas as pessoas que votam no Bolsonaro são fascistas todo o tempo [sim, algumas pessoas são]. Muita gente apenas está assustada com o caos institucional que o país mergulhou nos últimos anos, com a espiral de violência que parece grassar nos centros urbanos em todo o país, na esculhambação em geral da política, e querem apenas um nome que parece ser a exata antítese desse movimento. Ou seja, estão acreditando, esperançosos, numa solução rápida, instantânea, mágica. Mas não: já está bem claro, com as constantes declarações de sua incompetência, que Bolsonaro vai apenas afundar, ainda mais, o país. E uma das razões é simples: Bolsonaro é fascista.
O fascismo é um movimento político de extrema-direita nascido de início e meio do século XX, prioritariamente na Europa, que prezava pelo nacionalismo profundo, a militarização acima de outras formas de socialização e a perseguição a grupos periféricos e marginalizados [como judeus, gays, comunistas...]. Um grupo que se acreditava "superior", "puro", "limpo", "melhor" que os demais componentes das sociedades. Um tipo de comportamento que só valoriza o reflexo no espelho, e qualquer tipo diferente é rechaçado com violência - e até a morte, em escalas industriais, como foi o caso do Shoá (mais conhecido como Holocausto judeu). Duas das suas vertentes mais conhecidas dessa ideologia de extrema-direita foram o fascismo propriamente dito de Mussolini, na Itália, e o nazismo alemão, de Hitler.
Há diversos estudos de gente que passou a vida se debruçando sobre o assunto. Mas, pela praticidade, vamos pegar uma lista de características formulada pelo pensador, escritor, professor Umberto Eco. Ele citou, em um texto chamado Ur-fascismo ou o fascismo persistente, para a New York Review of Books, em 1995, 14 características que identificariam práticas fascistas. Mesmo que qualquer definição mais esquemática assim seja falha, porque não abarca todas as possibilidades de um ente ser na sua totalidade, é um ótimo passo de entrada na questão: as aproximações são bastante precisas. A elas:
1 - culto da tradição.
2 - rechaço do modernismo.
3 - culto da ação pela ação.
4 - rechaço do pensamento crítico.
5 - medo ao diferente.
6 - apelo às classes médias frustradas.
7 - nacionalismo e xenofobia.
8 - Inveja e medo do "inimigo".
9 - Princípio de guerra permanente.
10 - Elitismo e desprezo pelos fracos
11 - Heroísmo.
12 - Transferência da vontade de poder a questões sexuais.
13 - Populismo qualitativo.
Devemos ficar atentos para que o sentido dessas palavras [“liberdade”, “ditadura”] não seja esquecido de novo. O Ur-Fascismo ainda está ao nosso redor, às vezes em trajes civis. Seria muito confortável para nós se alguém surgisse na boca de cena do mundo para dizer: “Quero reabrir Auschwitz, quero que os camisas-negras desfilem outra vez pelas praças italianas!”. Ai de mim, a vida não é fácil assim! O Ur-Fascismo pode voltar sob as vestes mais inocentes. Nosso dever é desmascará-lo e apontar o indicador para cada uma de suas novas formas — a cada dia, em cada lugar do mundo.
quinta-feira, 13 de setembro de 2018
Churchill, o fascismo e as alianças
Ninguém, em sã consciência, diria que Churchill era de esquerda (hoje em dia, em tempos de "nazismo é de esquerda", temos que fazer essa ressalva). Membro do partido conservador inglês, militar, a favor de guerras, colonialista, monarquista, nacionalista, violento anti-comunista e anti-socialista, anti, enfim, esquerdista, defensor da Inglaterra acima de todas as outras nações, responsável pela morte de pelo menos 3 milhões de indianos em 1943, por conta do desvio de arroz para abastecer a nação europeia no meio da Segunda Guerra (entre outros atos controversos), Churchill facilmente poderia ser o ídolo de vários daqueles que querem acabar com a "confusão" que está "aí".
Churchill é, ainda, de uma direita vistosa, elegante, daqueles que dá até para apresentar para a mãe. Excepcional frasista, imenso orador, com um humor que é quase a síntese da verve inglesa, escritor de mão cheia, grande historiador, chegou a ser até laureado com Prêmio Nobel - de literatura (em 1953). Isso mesmo, de literatura, junto com vários do grandes escritores, filósofos e poetas do século XX, em vez de ganhar um prêmio na sua "categoria", como o Nobel da paz. Tudo o que FHC queria ter sido quando crescesse, mas não teve metade do talento.
A Alemanha invade a Polônia, o primeiro-ministro Neville Chamberlain, outro político do partido Conservador, que defendia uma neutralidade da ilha, se vê obrigado a sair (colaborou o fato, claro, de ele estar muito doente - morreu no mesmo ano; mas enfim), e Churchill, a única voz que nunca se calou, que era vista como aquele chato que repete sempre as mesmas ladainhas, se tornou, de uma hora para outra, o principal nome para assumir o governo inglês. O resto é História.
Há, contudo, um detalhe curioso nessas movimentações.
Em 1941, Hitler invade a a comunista, socialista, esquerdista União Soviética, de Josef Stalin - outro monstro do século XX. O que o conservador, tradicional, pela família, os bons costumes, e anti-esquerdista Churchill faz? Com a palavra, o próprio:
Ninguém foi um oponente mais consistente ao Comunismo nos últimos 25 anos. Eu não vou desdizer nenhuma palavra que eu falei sobre isso. Mas isso tudo desaparece ante o espetáculo que está agora se desdobrando. O passado, com os seus crimes, suas loucuras, suas tragédias, desaparecem... O perigo russo é portanto o nosso perigo, e o perigo dos Estados Unidos igualmente, assim como a causa de qualquer lutador russo por terra e casa é a causa de homens livres e povos livres em todo os quarteirões do globo.Em inglês é ainda mais bonito:
No one has been a more consistent opponent of Communism for the last twenty-five years. I will unsay no word I have spoken about it. But all this fades away before the spectacle which is now unfolding. The past, with its crimes, its follies, its tragedies, flashes away.… The Russian danger is therefore our danger, and the danger of the United States, just as the cause of any Russian fighting for earth and house is the cause of free men and free peoples in every quarter of the globe.No dia anterior à invasão, Churchill já tinha demonstrado a sua inclinação contra Hitler, não importa quem, em uma das suas frases mais famosas e repetidas: "If Hitler invaded Hell, I would make at least a favourable reference to the devil in the House of Commons" (Se Hitler invadir o inferno, eu faria ao menos uma declaração favorável ao diabo no Parlamento).
Há momentos em que mesmo o mais conservador entre os conservadores percebe que entre o "perigo vermelho" e o fascismo, não há dúvida sobre qual lado devemos tomar. Há momentos extremos em que ou se é nazista ou se é judeu - não há terceira alternativa.
sábado, 8 de setembro de 2018
O fenômeno Bolsonaro e a iconoclastia dos tempos
quarta-feira, 5 de setembro de 2018
Sampa
São Paulo parece o retrato do fim do capitalismo.
hotel chique no centro
Rua Ipiranga, quase esquina com São João
quarto com banheira e os caralho
do lado tem um Mcdonald
do outro, um habib
ao lado do habib, aquelas cabines de vídeo pornô particulares
em seguida, uma lanchonete com um sanduíche de pernil excelente e suco de cupuaçu, cujo banheiro é frequentado por gente que cheira de tarde
um garçom é boliviano
os demais são paulistas filhos de nordestinos
dobrando a esquina, outros restaurantes populares
sendo um do Senegal
em frente, uma bandeira do Peru
o céu, cinza
a garoa frequente
o ambiente degradado
como se o capitalismo tivesse dado "certo" aqui
o capitalismo no seu último estágio - em que todos são zumbis, o céu é cinza, a chuva ácida, as comidas são bem servidas, e tem dinheiro para todo mundo
eu to numa relação tão em desarmonia com o Rio
que até isso, até esse encontro, está me fascinando
quarta-feira, 29 de agosto de 2018
Talvez 'precisemos' de mais autoridade
A animosidade contra a Globo é tão grande, [auto]cavada durante tantos anos, construída de tantas formas, que mesmo um candidato fascistoide criando um curto circuito na organização de perguntas e respostas e réplicas e tréplicas do Bonner &cia. nos causa um certo prazer - um prazer culpadíssimo, que evitamos admitir, mas que aparece, sem que percebamos, nesse sorriso estranho.
Uma das razões é, inclusive e exatamente, o apoio em 1964 das Organizações Globo ao golpe militar - golpe que o Bolsonaro chama de revolução, repetindo um coro que foi engrossado exatamente pela Globo desde antes mesmo do primeiro momento, ou do primeiro de abril.
Ter admitido por meio de um editorial, há apenas cinco anos, no meio da efervescência das ruas de 2013, portanto cerca de 50 anos depois do início do apoio, que essa base de sustentação foi um equívoco, é muito pouco. Parece que não aprenderam a lição.
Quando repetimos a platitude que nós, como projeto de país, não gostamos de olhar para a História, poderíamos usar esse exemplo para nos apoiar. Não adianta simplesmente "pedir desculpas", se continuar a repetir as mesmas táticas, meio século depois. Vide o caso do apoio à derrubada da presidenta eleita sem qualquer motivo que justificasse essa virada de mesa completa. Essa ferida tem também seu preço, e estamos vivendo as consequências dele, até hoje - e vamos viver por muito tempo.
O Bolsonaro é, também, fruto de uma mentalidade que não extirpou a possibilidade do retorno a um governo profundamente autoritário, que não acabou com o ranço absolutista e feudal, que mora na psiquê da nossa pseudo-elite, que tem como uma única tática de governança propor [mais] violência para acabar com a violência. O que foi nossa lei de anistia? O que foi a nossa Comissão da Verdade?
E a Globo é parte integrante desse esquema. Não é fácil assistir ao Bonner falar do problema das balas perdidas sem quase rir de escárnio, lembrando do apoio que as OGs em geral deram à limpeza étnica promovida pelo Cabral nas favelas e periferias cariocas, na sua sanha de implantar UPPs para os "grandes eventos". Isso para citar um único exemplo.
Talvez "precisemos", nós, esse projeto de nação, retornar a um governo autoritário e sem qualquer traquejo social, para, como acontece na psicanálise, experimentar novamente os horrores da nossa mais profunda pulsão de morte. Não adianta que os iluminados e esclarecidos acendam as tochas e digam qual é o caminho, se os demais preferem seguir em direção à fogueira.
Não há nada para "ensinar" uns aos outros - temos que todos perceber o quanto é pior viver num país com suas liberdades democráticas diminuídas. Enquanto isso não for uma realidade, carnal, dolorida, para todos, inclusive aí para o Grupo Globo, nada vai mudar, mesmo.
Ou talvez para a grandessíssima maioria da população não houve, assim, significativas mudanças desde que voltamos a ir de quatro em quatro anos a uma urna escolher um entre outros nomes. Por isso, voltar ou não voltar para uma ditadura [escancarada ou envergonhada] não faria tanta diferença.
Apenas [e outro talvez aqui] por apenas um curto período de tempo, os mais pobres se sentiram olhados, cuidados, apenas em um curto período eles sentiram que havia um projeto de país que incluía eles, também. Não à toa que há um candidato com 40% das intenções de voto. E não à toa, para mostrar o quanto não aprendemos nada, que esse candidato esteja preso.
ps. Essa não é uma declaração de voto, nem um bater de ombros cínico, mas uma tentativa de pensar a política institucional além das próprias questões eleitoreiras, para evitar em mim esse sentimento generalizado de incapacidade. É lembrar de todas as nossas responsabilidades no jogo, além do simples apertar botões num computador com os números de candidatos virtuais.
sexta-feira, 3 de agosto de 2018
O espelho do homem-hétero-branco-cis
Provavelmente todos os homens não se enxergam nesse espelho a todo o momento.
Provavelmente, todos os homens se enxergam nesse espelho em algum momento.
Alguns, quando não se enxergam, fecham os olhos e pensam que estão vendo alucinações. Buscam qualquer disfarce que encontram para tapar as próprias vergonhas. Vasculham na memória outros valores em desuso para colocar no lugar dos atuais, que acabaram de sumir. Esperam o tempo passar, e conferem de tempos em tempos a imagem até que ela volte a tremular - assim espera - formando novamente a tal imagem que ele já estava acostumado a fazer de si mesmo. Ou outra imagem correspondente aos seus maiores medos.
Essa imagem é um algoritmo que catalisa todas as ações do mundo, para quem quer acreditar nela, que funciona como uma resposta pronta, datada e parada no espaço, para diversos problemas que se apresentam ao longo do curso da própria vida e história. Como se comportar diante das questões, quais caminhos tomar nas encruzilhadas, o que fazer entre o "certo" e o "errado", o "certo" e o "duvidoso".
É tão sólida essa imagem auto-refletida que quase não há qualquer margem para manobra, para movimentação, para ajustes. É uma torre alta, firme, de mármore, mas que qualquer vento mais suave a faz tremelicar. É uma torre frágil, no sentido de poder ser derrubada a qualquer momento, por qualquer ato, mesmo que ligeiramente menos ortodoxo.
Não há quem estabeleça seus padrões, um culpado, é um consenso sem rosto, que muda de acordo com o tempo histórico e a localização geográfica. É estabelecido pela força, pela cobrança, pela competitividade, pela tentativa de se destacar, se tornar mais topo que os outros topos, nessa demografia sentimental triste.
Outros homens, quando não se enxergam no tal espelho, caem no próprio buraco que eles encontram ali, no vidro vazado e infinito. São sugados, como num vácuo, e ficam navegando a esmo, culpando o mundo ao seu redor por conta das mentiras que contaram para ele desde a infância, por conta do sofrimento de não ter qualquer identidade onde se apoiar mais firmemente, um em-si anterior que eles podiam acreditar que existiria como um fundamento, um solo, ao longo da sua vida inteira. Eles não têm mais resposta e, tal um garoto mimado, vivem pelos cantos, reclamando da má sorte que tiveram, como se eles fossem pobres-coitados que perderam a alma, vagando sem rumo, porque não há razão de ser, o mundo não faz sentido e blablablá.
Há aqueles que tomam um susto quando percebem que o reflexo no espelho sumiu, fugiu, ou mesmo nunca existiu, era uma alucinação coletiva, bancada por vozes uníssonas que repetem obviedades já cristalizadas, em um estado de coisas antigo, mofado, doente e triste. Uma espécie de máquina de moer gente, uma hereditariedade não-genética tóxica. Buscam o corrimão, a tradição, a história e quase caem do caminho - porque não há nada, não há qualquer parâmetro. Apagaram a linha do horizonte. Vale tudo - para todos os lados - mas não é uma vale-tudo, e nem tudo vale.
Depois do baque, de espernear, de se sentir abandonado por uma figura paterna no meio do deserto sem nem mesmo um sol para dizer onde é o Norte, alguns, alguns conseguem finalmente se tornar, de se deixar ser, se aceitar como - por um instante, numa fração de segundo, ou por mais tempo - mulher. Devir mulher, gay, trans, preta, animal, pedra. Se perceber não como uma rocha, mas como o que for a cada instante, criando os solos apenas nos exatos momentos em que o passo precisar de um chão.
A única possibilidade de sair dessa posição de carregador de peso do estado - do Estado -, de tirar o passado de sobre as costas, mesmo que momentaneamente, é aceitar o vazio como constituinte, o vazio como a nossa única certeza, e nos pensar a partir de então. Mas uma certeza capenga, que só existe aqui como um sinônimo incompleto e aproximado. Uma certeza instantânea, apenas para efeito de comparação, de comunicação.
Só o homem-branco-hétero-cis, esse sujeito oculto, inexistente, ficcional, tem, desde o início, um projeto já fechado, que ele é obrigado comprar com as portas fechadas e não pode mudar um centímetro. Mas esse projeto não existe - é uma ficção, uma ilusão, uma mentira como um espelho que só reflete a mesma imagem sempre, independentemente de quem a olhar.
Todas as (outras) figuras translúcidas da diferença precisam construir a própria vida, ao longo da própria vida - nada é garantido, nada é certeza, sempre há alguém te olhando de cima para baixo, te cobrando ser igual ao modelo. Elas devem descobrir quais são os próprios desejos, dentro dessa fumaça impalpável e disforme, ou das encruzilhadas de vetores tão diferentes entre si, que são as fontes dos desejos - e, se corajosas, segui-los.
Se com o século XX descobrimos o "vazio da existência" (eca), podemos nesse tempo que ainda nos resta, antes que o deserto avance totalmente, nos preencher com alegria. Não uma euforia efêmera, que passa com o virar das páginas do calendário, mas com uma alegria que não nos deixe dobrar debaixo de qualquer obrigação, qualquer formato já pré-estabelecido. Uma alegria que aceite as variações do tempo, que saiba que a tristeza é sua própria constituinte, que perceba que só há diferença, diferenças, nunca formatos fechados. Uma alegria que tenha verdadeira noção de como não há saída, de que sempre nos pegaremos procurando alguma imagem no espelho, nos momentos mais complicados, de que as lembranças de outras imagens antigas vão ressoar e acionar gatilhos já condicionados, e que podemos no máximo criar contra-gatilhos, e apenas vagarosamente reconfigurar nossos próprios sistemas internos. Uma alegria que saiba que qualquer prescrição de método - como esse texto mesmo - é fadado ao fracasso, exatamente porque não há qualquer modelo a se seguir. Uma alegria que aposte mais em exemplos, que conte as histórias entre as identidades [homem-inter-mulher, branco-pardo-mestiço, gay-bi-hétero etc.], mais que sobre as identidades. Uma alegria que não se queira verdade.
quarta-feira, 1 de agosto de 2018
A felicidade que vence o medo
Política não pode ser o futebol dos escolarizados, dos "intelectuais", com suas disputas ferrenhas e debates acalorados sobre única e exclusivamente o "vencedor", o "melhor". Nada contra o futebol - ao contrário - mas os dois seguem caminhos diferentes. E não estou me referindo à batida disputa metafísica entre coração x mente - porque nesse aspecto futebol e política são muito parecidos: ambos são "quentes", absolutamente "emotivos". Aliás, como todos os problemas que enfrentamos cotidianamente e que nos [co]movem.
Mas não podemos pensar que a vitória ou a derrota do nosso candidato tem alguma coisa a ver conosco - seja por nossa influência, seja nos influenciando. Em outras palavras, a política institucional é apenas um dos formatos da política - pensada aqui como a arte de dividirmos o mesmo espaço público-comunitário. Não nos deixemos aprisionar pelo ideal de que a política é apenas votar de dois em dois anos. É desse tipo de pensamento que nossos medos se nutrem. Ficamos presos apenas no voto e se o perdemos não temos mais nada. Não pode ser assim. Não deve ser assim. É melhor não ser assim.
Além disso, seria bom admitir de cara: o tal candidato fascistoide já levou. Não estou dizendo a eleição, porque previsão do tempo é algo que nem meteorologista nem feiticeiro acerta com precisão - e só alguns homens, achando ter razão acima de tudo, se arriscam. E não quero repetir o erro de sugerir uma série de atitudes como profilaxia para nos salvar - não tenho qualquer sugestão relevante para o assunto, nem se devemos atacar os indecisos, nem uma lista de perguntas possíveis para o tal candidato [cujo nome evito por pura superstição]. Mas pensando em como está cada vez mais presente em nosso cotidiano a pauta de a violência ser combatida por apenas mais violência; ou como o moralismo explícito tentou, com frequência crescente, censurar movimentos de alargamento de horizontes; ou como se alastrou a epidemia de medo, mesmo em classes sociais bem seguras, economicamente falando.
Lembremos, para comprovar, de como a intervenção militar foi usada também para abocanhar um naco dos eleitores do deputado ex-capitão, ou do endurecimento [ainda maior] do discurso do candidato sabor chuchu; ou como o MBL surfa em guerras contra exposições de artes plásticas; ou como os telejornais sangram diariamente, parecendo que vamos ser atacados ao cruzar a esquina mesmo das ruas mais ricas do país.
Também podemos pensar em nossa "derrota" em todas as vezes que esse senhor povoa nossas conversas, sequestra nossas atenções. Ele representa tudo o que "nós" - esquerdistas, esclarecidos, liberais - mais abominamos. Não é, então, de se espantar o susto. Mas o medo, o pavor, o desespero? Não exageremos, não exageremos muito. O que ele pode fazer de tão assustadoramente mortífero - que outros já não fazem, não fizeram - para nos paralisar assim? Vide, inclusive, os exemplos para mostrar como ele já ganhou.
Por que não virar a chave, então? Sair das cordas e partir para o ataque?
Não seria esse espanto uma ótima oportunidade para nós pensarmos em outras soluções políticas que não incluam o caminho da política institucional? Evitarmos focar todas as nossas forças nesse processo de voto para que evitemos depositar numa urna todas as nossas esperanças? Para não termos pavor de um sujeito claramente incapaz de ocupar qualquer cargo eletivo - vide a sua incapacidade de aprovar projetos em seu nome, nas quase três décadas de congresso?
O que nós podemos fazer para nos nutrir de sentimentos opostos ao pavor? Como sair da posição de acuado e ser mais dono da própria vida? Como redescobrir, não o que nos deixe eufórico e some, mas aquilo que nos torna mais felizes, mais autônomos, mais independentes?
Bolsonaro não é um fenômeno isolado. Ele não apareceu ontem. É produto de uma série de sentimentos tristes que se encontraram em uma encruzilhada histórica, que vão desde a crônica política de insegurança pública, passando pelas fobias e ódios generalizados, que ficaram fermentando debaixo do tecido social por gerações e puderam sair do armário recentemente, chegando à desagregação geral pela política institucional, cujo cume foi a destituição política de uma presidenta eleita sem que ela tenha cometido um crime digno do nome. Ele é um símbolo de nossa época. Mas não é o único. Podemos nos alimentar de outros caminhos.
Deixar que ele colonize nossos pensamentos, drene nossas forças, nos acue no canto é perder o jogo - o verdadeiro jogo - antes mesmo de ele começar.
segunda-feira, 9 de julho de 2018
ERRO (conto)
Por que, então, por que ele sentia esse desconforto, que ele nem sabia identificar de onde vinha, como saía, nem por quê? Era um achatamento, uma força ao mesmo tempo de cima para baixo, e de baixo para cima, espremendo, diminuindo os espaços, tornando-o uma massa sem muita diferença entre ele e qualquer outro. Era igual, apenas com detalhes em outra cor, torcendo por outro time de futebol, ou nem gostando de esporte – no máximo. Às vezes, faltava-lhe ar. Queria respirar, abria os pulmões, criava artificialmente um vácuo... e o oxigênio não entrava. Um sufocamento. Precisava ter um horizonte mais largo, mais profundo, precisava se desamarrar.
Precisava fazer algo errado. Precisava se tornar diferente, corromper essa beleza que se apresentava como inquebrantável. Fissurá-la. Precisava escapar, fugir da perfeição. Precisava sair da média, essa média que estabilizava e o prendia dentro de um formato, com um rótulo na testa, fazendo com que as pessoas esperassem por suas ações e aplaudissem até mesmo suas excentricidades como se fossem parte do pacote, está incluído no ingresso, senhor, nesse mundo em que todos se tornam compulsoriamente personagens de uma novela infinita, com diferentes tramas concomitantes, transmitidas ininterruptamente em qualquer tela que caiba no bolso. Precisava fazer algo errado.
Quando foram dormir, pijama de manga comprida, camisola branca-champanhe, as boas-noites, luz apagada, beijo, abraço, aconchego, Eduardo se levantou. Não abruptamente. Mesmo que não tivesse planejado isso, ele imaginou que se se movimentasse muito rapidamente, chamaria a atenção de Luana. Ele precisava apenas ir ao banheiro. Explicou, ela entendeu, ele levou o celular. Ter que dar satisfação. Por que não apenas fazer? Ele era feliz. Era uma escolha. Havia um solo, algo onde se apoiar. Mas não era infinito o mundo. Tinha que escolher, tinha que optar. Viver é viver em falta, falta de algo, mas não pode ser o essencial – e não era. Ele era feliz. Enquanto vale a pena, vale a pena. Mas admitira para si: precisava sair. Por um instante. Só hoje. Como? E para onde? Fazer o quê? E falar a verdade? Tinha recebido uma ligação, uma mensagem, uma ligação, na verdade. Do Fábio, isso. Avisou. Ele, Fábio precisava conversar. Luana não entendeu. Achou estranho, porém não novo: Eduardo estava agitado, de um jeito que ela já tinha visto anteriormente – e se sentiu em um poço escuro, sozinha. Eduardo não deixou espaço para conversa. Trocou de roupa e saiu de casa imediatamente.
Ao volante, luz mercurial refletindo no para-brisa, ele pensa que estava fugindo de uma prisão. A felicidade, ele imagina, talvez não seja um estado inalterado, mas um fundo, em que outros gostos, menos doces, poderiam aparecer, como lâminas acres. Tinha medo de repetir os erros do passado. De ser tão autodestrutivo – ou simplesmente destrutivo – como em outras épocas. Mas ele deveria fazer de novo – não era possível não fazer. Precisava. Algo. Quebrar a rotina, a certeza, alguma coisa, por favor, agora, só mais uma dose, ao menos. Não queria ser igual a todo mundo. Algo inaceitável – era isso. Precisava. Algo que destruísse essa estabilidade. De novo. Não uma superioridade, mas uma diferenciação, que o tornasse único, mesmo se sabendo igual, igualzinho a todo mundo. Se imaginava caminhando no meio de um trilha, bem centralizado, sem conhecer os extremos da estrada. Não aguentava representar eternamente o papel do bom moço – não era bem representação, ele era, também, bom moço, mas não apenas. Esse detalhe, esse detalhe fazia toda a diferença. Não podia ser estanque. Por que não reinvestia, não criava dentro do sistema já determinado, do mundo que ele compartilhava, das relações onde ele se sentia feliz – e ele se sentia feliz! –, da sua família, ora!, por que não imaginava saídas dentro desse próprio formato em que ele já estava desde o início inserido? Não havia lado de fora. Não era possível escapar.
Ele sabia, mas não sabia. O equilíbrio entre um lado e outro, fino, tenso, delicado. Tinha dentro de si, como um mantra, que toda decisão carrega em si o seu inverso. Não há éden, um mundo sem sofrimento ou dúvida. Não há limpeza completa, há sempre uma dor, mesmo que latente, como possibilidade. A chave é o positivo ser mais forte que o negativo. Aceitar o destino, imaginar que foi o melhor que se poderia ter tomado naquele momento, diante daquela questão, com as informações que se tinha, e com a coragem que apareceu no instante decisivo. Mas como não se arrepender? Engole sem saliva: lembrar, sempre, que se é feliz. Uma estrutura, algo onde o restante do corpo se encaixa. A felicidade como abertura, como o modo de operação principal, a linha mestra em que outros afetos poderiam atravessar, como atravessam – mas sem atravancar; a felicidade como a segurança, a certeza nos momentos mais difíceis. Como agora.
Mas o que de tão em baixa passou por ali para ele estar sentindo esse buraco dentro de si? Essa ausência sem nome, essa saudade de ser a miragem que ele diz para si que construiu, na sua cabeça, fantasiosamente? Essa vontade de apenas ser diferente da média, de escapar da massificação, de colocar a cabeça para fora, de não respeitar os limites estabelecidos? Nada, verdadeiramente. Ele gosta da vida pequeno burguesa, família classe média, trabalho de 9 às 18h, casa de praia nos fins de semana, crianças crescendo, vinhozinho, comidinhas, uma mulher linda... o que mais ele quer? Por que essa vontade incontrolável de rasgar a própria pele e se mostrar completamente? Por que esse desespero de sair de casa, de madrugada, e fazer o que ele estava tentando – e conseguindo – evitar havia tanto tempo, esse desejo que ele escondeu, porque ele sabia que era incompatível com a vida que ele vive, com a vida que ele gosta de viver, mas por que essa vontade agora pareceu tão incontrolável? Não havia uma resposta boa, além do fato de ele estar com uma vida boa, agora, estável, sem qualquer sobressalto, qualquer desafio. Era sólido demais.
Ele encosta o carro. A moça se aproxima. Ele abaixa o vidro. Ela está extremamente maquiada, com pouquíssima roupa. Maxilares proeminentes, rosto ossudo, pescoço musculoso, pomo de Adão avantajado, voz grossa fina. Ele não sabe o que dizer. Ela conduz todo o diálogo, sozinha. A participação dele se resume a abrir a porta. Ela entra. Já havia um quarto ali por perto. Ele queria ser o oposto do que ele era sempre.
No quarto, meia luz vinda do poste da rua, o rosto sombreado, ela vai tirando a roupa rapidamente. Ele não tem pressa, não tem tranquilidade, não tem nada, está perdido, observando como uma paisagem. Ela quer voltar à rua. Era apenas mais um da noite. Para ele, era especial: a possibilidade de visitar o outro lado, de atravessar a ponte, de descer ao subterrâneo, de encontrar o engano, a negatividade que ele negava há tanto tempo. Era a sujeira, o mundo real, quente, úmido, sangrento, dolorido, extremo, que ele tanto ansiava. Era o feio, o errado, onde ele queria mergulhar e emergir molhado, com vísceras escorrendo pelo seu rosto, destruído, despedaçado. Primeiro aparece o silicone, o corpo esculpido com doses iguais de dificuldade e criatividade. Era delicada, ou tentava. O que ele queria ali? Observá-la, para começo. O corpo ambíguo, o corpo duplo, o corpo que possuía duas metades, divididas e coladas, mescladas uma na outra, o corpo que era feminino e masculino ao mesmo tempo. Ela era ela e outro, ao mesmo tempo. Era um passado, um nascimento e um renascimento. Dois nomes, um sobre o outro, uma sobra e outro. Ele queria se refletir nela. Se levanta em direção a ela, se aproxima, ela, apenas de calcinha, o volume no púbis destoando, ele segura os braços dela, os abre, e tenta encostar o corpo no dela, com os braços abertos, num abraço sem abraçar por completo, queria adentrar por completo, queria ser ela, se transformar nela, atravessar o espelho. Os rostos se encostam, rostos pelados, ele, barba aparada em barbeiro, ela, hormônios que impedem pêlos, as respirações se adéquam, um com a outra, uma depois do outro. Era o suficiente? Ele se pergunta, sem conseguir desligar a obsessão. Será que o demônio que se alimenta de suas compulsões se daria por satisfeito? Onde fica a linha de segurança? Ela está com pressa, quer voltar para a rua. O programa tem tempo. Iria terminar ou não? Ele quer continuar? Como ele quer continuar? Ele paga, o dobro, coloca as notas sobre a cadeira velha. Pede mais tempo. Ele quer se escutar, voltar a se ouvir. Aproveitar o quarto sujo e silencioso. Ela fica mais tranquila. Coloca a cabeça dele no ombro dela, acaricia os fartos cabelos já prateando. Ele queria ser ele e ser ela. Queria ser, a cada momento, um, uma. Por que estacionar, de maneira tão profunda, em apenas um estado? Por que não fluir de uma forma para outra? Mais flexível, adaptável ao ambiente? Era o suficiente? Ele se pergunta, novamente. Já tinha se envergonhado o necessário? Ele quer ser dominado, domado, penetrado, invadido, possuído, ele quer ser invertido. Deita-se, de costas, ela entende. Se abaixa e beija o pescoço dele, tirando a roupa, primeiro a camisa, beija as costas, ele se arrepia, se sentia fragilizado, vulnerável, se sentia dependente dela, deixou seu destino na mão de uma desconhecida, de alguém que ele encontrou na rua. Ela tira as calças e continua a beijá-lo, descendo as costas, na bunda, nas coxas, períneo, no meio da bunda, ele se prende todo, ela o abraça por trás, ele sente o volume, ela o beija, e pede para ele relaxar, ele vai se soltando, se soltando, até que ela, com cuidado, devagar, começa a entrar, aos poucos. Ele fica vermelho, tenso, o pescoço teso, sem respirar, tentando aguentar o movimento, tentando relaxar, ao mesmo tempo que impedir o progresso dela o fazia ter ainda algum domínio, ela dizendo para ele se soltar, ficar calmo, perder o controle, que ela não faria nada, nada além do que ele queria, nada além do que já estava fazendo, e ele se sentia invadido, destruído, despedaçado, descarnado, exposto em ferida sangrenta. Ela continua, se empolgando, subindo de tom, e ele vai diminuindo, sumindo, desaparecendo, começa a chorar baixinho, como se o dique tivesse rompido, desaguando, primeiro aos poucos, depois, quando ela acaba, ele chora leve. Se encolhe como um inseto ferido, e não tem forças para se perguntar se queria mais, se era o suficiente, se deveria continuar. Ela se levanta, se veste, pega o dinheiro, abre a porta, olha para dentro, para por um instante e fala tchau. Ele continua enrolado em volta de um centro imaginário, sentindo a pressão diminuir, desabafando, desinflando. Soluça uma, duas vezes, respira fundo, e para. Tinha gostado. Da mecânica, do encontro, de se perder. Tinha gostado.
Da janela era possível ver um pedaço muito restrito da rua. Uma maneira tão diferente de viver. Como ele estava encastelado, como ele tinha criado um paraíso artificial que, como todo paraíso, não era suficiente. Tinha descarregado, estava vazio. Era ainda feliz porque sabia que não era mais feliz o tempo todo.
quarta-feira, 4 de julho de 2018
A Inglaterra, a Copa e a cagação de regra
- laugh
- smile
- simper [sorrir afetadamente]
- smirk [sorrir maliciosamente]
- sneer [sorrir desdenhosamente]
- snicker (us), snigger (uk) [rir dissimuladamente, entredentes]
- whicker [rir entredentes]
- giggle [dar risadinhas, riso tolo]
- titter [uma risadinha nervosa]
- cackle [cacarejar]
- grin [sorrir amplamente]
- LOL [rsrsrs, kkkk, hahahaha]
- chortle [cachinar, gargalhar de modo ruidoso]
- chuckle [rir discretamente]
- guffaw [gaitada, risada ruidosa]
- howl [uivar, mas também gargalhar]
- roar [rugido, mas também gargalhar]
- crack up [morrer de rir]
- horselaugh [risada áspera]
- derision [riso de chacota]
- buckle up [rolar de rir, se dobrar de tanto rir]
- bust a gut [rachar o bico]
- kill, slay [matar de rir]
- tee-hee [rir de alguém, zombar]
...
Mesmo que tenhamos palavras bem específicas em português para esse ato de demonstrar o humor que nos atravessa [como as recém descobertas "cachinar" e "gaitada"], aparentemente o inglês se esforçou para criar mais palavras para esse afeto. Se seguirmos a lógica de que criamos as palavras a partir das nossas necessidades de nomeá-las, talvez podemos perceber que os ingleses e os seus descendentes encontraram mais áreas cinzas entre o riso, o sorriso e a gargalhada.
Ou eles são mais desdenhosos, dissimulados, maliciosos [como mostra a tradução de algumas das palavras listadas]. Ou simplesmente irônicos, para usar uma única palavra. Mas irônicos no sentido de se sentirem numa posição de superioridade, planando acima dos demais seres, sem vontade de se dignar a tratar com os outros, simples mortais. Isto é, ironia como arma retórica de distanciamento, frieza e, como se dizia lá em Nova Iguaçu, mascaramento.
Quando eles refletem essa ironia sobre si, o resultado é geralmente um humor de alta octanagem - mas que, talvez, no fundo, demonstre apenas que eles não são perfeitos como eles imaginavam que eles deveriam ser. Uma decepção consigo mesmos.
Sei lá, pensei nessas coisas após o jogo da Inglaterra e Colômbia, em que os ingleses [e os colombianos] catimbaram, simularam, fingiram, atuaram, mentiram, interpretaram, mesmo após cagarem uma regra imensa sobre os exageros do Neymar.
Um dia ainda hei de escrever que o pior problema da atualidade, em qualquer latitude e longitude, é o proselitismo.
terça-feira, 26 de junho de 2018
DISTÂNCIAS (conto)
Era uma sala de espelhos, isso, com vários espelhos. Diferentes “eus” nos inúmeros, mas não infinitos, vidros. “Eus” com formatos diversos: pequeno, magro, pêra, ampulheta, todos, qualquer. Sou todos, a cada momento, ao mesmo tempo, sou um. Somos somados. Se afastando, me aproximando. Especulação, tentativa, suposição, previsão, aposta com o futuro, mirada que nunca ou pode se concretizar, mas só depois, no porvir – esta utopia, esse não-lugar. A cada momento, não sou apreendido em nenhum eu. Passo de um a outro, num movimento constante, que raramente se estabiliza. Só momentos fotografia, flash, um instante.
O intervalo entre um e outro, entre eu e eu e eu, é (pode ser) grande, e não é possível medi-lo. Somos muitos, muito diferentes entre si – uma constelação. Posso ser quase antagônico a mim mesmo, dependendo do ângulo que se olha, e do recorte que se faz. Identidade é apenas estimativa, conjectura.
O pensamento, um pensamento qualquer nasce como lava que brota no fundo do mar e vai criando novos relevos incógnitos maleáveis enquanto não se solidificam. A solidez é a luz que ultrapassa as nuvens pesadas e não pode ser aprisionada na palma das mãos em concha: já começa a sua próxima translação. Como uma câmera que entra em foco no momento exato, para logo em seguida sair, numa velocidade constantemente variável. Piscou, perdeu.
As imagens contrastantes, complementares, não se anulam, ao contrário. Funcionam como polos antagônicos que criam uma estática, jamais parada. Campos magnéticos. Imãs aproximados. Energia em potência. Pode explodir (será?), a qualquer instante. Ao menor desequilíbrio, caminha, escorrega, segue a gravidade para o lado da comporta aberta. Desequilíbrio é movimento. O lado mais forte, pesado, se direciona para o lado mais fraco, leve, como escotilhas que vão se abrindo para equalizar turbilhões de água. Dualidades como pares mitológicos. A tendência é o equilíbrio entre os extremos, mas nunca se o alcança, porque não há linha reta, isolada, sem influência externa. Vivemos já dentro de uma multidão de outros eus que nos atropelam, esbarram, pedem desculpas pelo tropeção. Temos que encontrar os nossos, montar um grupo, cuidar deles, dos nossos. Esquecer o universal, pensar pequeno, do tamanho do meu abraço. Democracia é diferença.
Em outras oportunidades, as forças juntam vetores numa mesma direção, a imagem fica mais visível, clara, com os segundos planos se afastando, como numa aproximação de câmera, ao mesmo tempo em que a lente faz zoom out. Há momentos, ainda, em que as imagens esmaecidas, fracas, criam sombras umas sobre as outras, reforçando determinados perfis e sentidos, ou mesmo cacoetes, difíceis de sumirem.
É possível, nessa sala de espelhos, jogar com os reflexos, criar imagens fantásticas. São brincadeiras, invenções: eu (nós) sem os pés no chão, dançando, mesmo sem música – levitando. Vários braços balançando, dando tchaus consecutivos, uns para os outros, para todos, para ninguém, em forma de cobras amestradas para sambar numa velocidade miudinha. São formas impossíveis, só criadas a partir de artefatos inventados, ilusões de ótica, diversões diversas. Arte, ficção, essas coisas.
Não estou preso, não vejo qualquer âncora. Tenho receio de me perder de mim mesmo e não me encontrar, não mais – mas já alguma vez? Ir, indo, sabe?, e não saber como voltar. Me ver, aos frangalhos, arrependido, num canto, fim de mundo, por que fui? O reflexo estraçalhado, em vários pedaços perfurocortantes, e a jugular ali, tão perto. Mas: sem dramas piscianos. Exorcizamos, temporariamente definitivo. Esquisito, eu sei, mas é isso: seguir, seguir, e acreditar – isso é tão difícil – acreditar que o chão vai estar embaixo do pé antes de andar. Duração. Nunca por segurança, mas coragem, não é? É precisamente imprecisa. Ainda: quero.
Diálogos animados entre as variadas vertentes. Algumas vezes, saio da completa ignorância para o domínio razoável da matéria – material. Não por milagre, elaborando. Carregamos ferramentas que abrem cofres reforçados. Aprendemos a fabricar esse instrumental complexo com lascas de pedras, tocos de galhos encontrados de relance, passando por nós no meio da brisa poluída, maré mareada. Com sorte, somos apadrinhados pela elite da periferia, a realeza da ralé, e ganhamos afagos sobre o couro quente. Se mais excluídos, temos que catar em lixo, buscar os descartes e criar sozinhos nossa própria baixa cultura. Chafurdar em bazares chineses de todas as nacionalidades, qualidade duvidosa e preços convidativos. Desenvolvemos apenas com tutoriais, fóruns desprotegidos, internet discada e broken english.
Só há imagens, nada além da superfície. Sem alma, só dúvidas, que vão batendo bola, entre uma perna e outra, na direção do gol. Às vezes alguma coisa repentinamente fica, se torna chave, se encaixa no segredo, na fechadura, roda, destranca, alavanca, catalisa, abre, e se torna solo, segura, apoia, horizonte, responde, funciona, atua em vários cenários, até que, até que... Não mais. E começa tudo de novo. Rodando, rodando. Rolando. Paciência, maior sabedoria. Somos apenas a antena que capta e codifica. Podemos apenas ficar abertos para sermos atravessados pelos acontecimentos. Nos apresentar, produzir o desejo, na falta. Nos encaixamos desencaixados, sem forma, ou formalismos. Manipular fios desencapados, mesmo na contracorrente, por sobrevivência, para respirar e não sufocar. Tem que, deve ser assim. Parar por muito tempo necrosa. M’entedio facilmente.
Eu sou do contra – rio.
(E eu – olho no olho – vejo você. Um reflexo, uma reflexão. Você em frente a mim, ao meu lado, debaixo de mim, sobre, em volta, dentro, você. Você é outro, outra, outrem mas há áreas de conjunto interseção, entre nós, eu – eu, todos – e você e seus eus. Não sombreamos, nossas fibras se entrelaçam a cada dobra, bailam para se encaixar, animais marinhos das profundezas em ritmo de cópulas. Somos casal, somos indivíduos divisíveis. Meu corpo procura o seu quando as máquinas neuróticas estão desligadas – as máquinas que tentam encontrar o que eu sou – o que é “eu”. Máquinas paranóicas fascistas, em vez de máquinas esquizóides libertárias. Quando elas se esquecem de si, quando elas andam, nós caminhamos sozinhos, e eu esbarro em você, porque você está sempre onde quero devir.)
sexta-feira, 1 de junho de 2018
Contra uma esquerda
Isso não quer dizer, porém, que eu ache a absurda discrepância entre os modos de vida e as formas e privilégios de uns [poucos] sobre outros [muitos] - ou muitas outras - aceitável. Ao contrário. É óbvio, para mim, que há algo absolutamente errado com os fatos cotidianos do país e do mundo - e os exemplos são muitos e repetidos ao cansaço. É só lembrar o fato de que apenas seis pessoas - todos homens - possuem o mesmo patrimônio de metade da população brasileira, ou seja de 100 milhões de pessoas. Talvez escrever o número com todos os seus zeros possa dar melhor a discrepância da situação: 100.000.000.
Essa informação me agride como um soco na cara. Isso, entretanto, não me credencia, no meu ver, a ser considerado de esquerda. Ou a uma esquerda que se mantém atrelada a determinados dogmas, ou que nasce apenas querendo mudar o crupiê do cassino de cartas marcadas em que estamos sempre sendo roubados. Eu não sou de esquerda se isso for um qualificativo, uma posição de superioridade, um atestado de isenção moral, em que se há uma linha clara que separa os bons dos ruins. Ou quando se tenta pensar numa sociedade absolutamente igualitária, e se nivela, ou melhor, se estabelece um teto por baixo, fazendo com que todos tenham a mesma característica. Para mim, democracia é diferença, ou não pode ser chamada assim.
Eu me importo com igualdades de solos e não de tetos. E isso não quer dizer uma competição irrefreada por ser "melhor", para subir o sarrafo, ao contrário. Isso também não quer dizer uma liberdade absoluta, ou uma autorização insana por gastar todos os recursos que temos acesso. Diria que é quase o inverso: um mergulho em si, para tentar se descobrir, em todas as suas potencialidades. Já é óbvio, ou deveria ser, que a Terra não mais suporta ser explorada e estragada, os animais não aguentam mais ficar acuados, serem favelizados, as matas não toleram mais serem arrasadas, o solo, espoliado, os rios, os mares, assoreados com venenos plásticos.
Para mim, não é possível pensar numa sociedade em que negros são assassinados industrialmente, com o requinte cruel de o motivo das mortes ser apenas por serem negros. Ou em que as mulheres são vistas apenas como apêndices para as decisões masculinas. Em que os indígenas são encarados apenas como exóticos seres que colorem o folclore. Que os animais se tornem apenas alimentos matáveis ou seres aprisionados como troféus, dignos unicamente de pena. Que os ecossistemas são pensados como vazios demográficos que se precisa explorar. Que a única lógica para a grande maioria do planeta seja extrativista, de exploração até o esgotamento e, consequentemente, o abandono. Não é possível que a única forma de viver é compartilhar uma cidade suja e barulhenta, a bordo de um carro sujo e barulhento, enquanto construo minha carreira como um empresário de mim mesmo, e me vendo como produto descartável em redes de contatos antissociais. Não é possível viver feliz em um mundo em que o dinheiro é o único indexador de todas as outras coisas. Que a arte seja encarada como um escapismo, uma terapia ocupacional, ou um verniz de relevância social, um selo de superioridade no grupo, acessível a apenas alguns divinamente escolhidos. Que apenas uns e outros tenham acesso a bens de saúde, de educação, de segurança, de, enfim, condições mínimas que os colocam em clara vantagem em relação à imensa maioria da população, no jogo que compartilhamos as regras compulsoriamente. É um absurdo que se julgue o caráter de pessoas por suas preferências - sexuais, religiosas, futebolística, política. É bizarro que se tente convencer os outros que as suas próprias opiniões são as únicas que importam.
Mas essas atitudes não me fazem ser de esquerda. Ou não deveriam fazer. É apenas respeitar a dignidade ontológica de cada um dos seres de serem o que desejarem ser, a cada momento.
sexta-feira, 20 de abril de 2018
MAR (conto)
Ao piscar os olhos uma segunda vez, eu estava ali, no meio de um oceano imenso de areia amarela esbranquiçada, com um horizonte infinito e absolutamente indistinto em todas as direções, o céu sem linha se confundindo com o chão, em tons opacos, uma visão translúcida – tudo era translúcido – o sol, inexistente, nuvens embaçadas, borradas, como pinceladas impressionistas. Sem conseguir me lembrar o que tinha acontecido antes, sem qualquer memória, história ou passado: era como se eu tivesse aparecido no meio de um deserto, automaticamente, como se isso fosse o que deveria acontecer. Não fazia sentido, mas o que faz sentido?
Não me preocupava em saber como eu chegara ali, apenas queria sair dali, numa angústia despropositada, sem origem. Eu buscava um rosto familiar, mas não sabia quais poderiam ser suas feições. Olhava ao meu redor e todo o ambiente era exatamente igual: areia. Grãos finos de silício – ou do que quer que fosse sua composição, não tinha certeza, não me importei. Abaixei, peguei um punhadinho e deixei escapulir entre os dedos. Era areia. Parecia areia. Acho que era areia. Tanto faz – não era isso, não era essa dúvida que me olhava de frente, no meio dos meus olhos. Quando me ergui, levantei a pesada gravidade da coluna de ar. Fiquei mareado. A pergunta me caiu sobre a cabeça como uma tormenta: para onde?
Olhei novamente ao redor para ter certeza. Nenhuma pegada, nenhuma sombra, nenhuma mudança de cor em determinado ângulo... Estava indiscriminadamente perdido. Minha caixa torácica ressoou a essa conclusão com uma síncope negativa, e depois acelerou, me incentivando a chegar a algum lugar que eu não sabia qual era. Meus foles inchavam e esvaziavam com a tentativa de queimar o carvão que abasteceria o medo indesejado, porém certo, para mim, como a morte. Uma insegurança pegajosa subia no corpo como múltiplas algas microscópicas, contaminando dos pés, canelas, joelhos, coxas, sexo, cintura, braços, barriga, tórax, pescoço, à cabeça.
Andei para o lado direito: quatro ansiosos passos, até ter certeza de que era para o outro lado que eu deveria ir, voltei os quatro e acrescentei mais alguns outros, mas não foi exatamente em linha reta, fiquei confuso, tentei regressar ao ponto inicial, mas as pegadas haviam sumido, como que absorvidas pela própria areia, decidi seguir em frente, para onde o meu nariz estava apontando, mas pensei que nada me garantiria chegar lá – onde quer que lá fosse. Imaginei que tinha visto um oásis, mas nem o calor estava forte o suficiente para se delirar. Não sentia nem frio – nada era exatamente desconfortável. Não sentia. Era-me tudo basicamente indiferente. Só queria chegar a um lugar menos árido, menos deserto. Para onde eu estava olhando quando abri os olhos pela primeira vez? Talvez essa fosse uma explicação, uma indicação. Ou seria o inverso? Essa informação estava ali apenas para me enganar? Estava me tornando supersticioso, querendo encontrar relações causais onde não há mais que aleatoriedade.
Para aumentar minha instabilidade, percebi meus pés afundarem quando ficava parado por qualquer tempo. Eu tinha que me movimentar, mesmo que contra a minha vontade. Minha tendência, nesse tipo de situação, é empacar, como um touro teimoso e pesado, que não sente o vento da pura vontade abertamente soprar nos ouvidos uma direção qualquer. O movimento me era obrigatório, como o mal e o medo e a insegurança, onipresentes, cheguei a pensar rapidamente. Lembrei, em seguida, do subtítulo da autobiografia de Nietzsche, “wie man wird, was man ist”, e lhe acrescentei uma interrogação ao fim. Ser alguém é um destino que nunca se completa, pensei. O tornar-se, sim, era um devir.
Pisquei os olhos rapidamente incontáveis vezes processando material bruto, dando formas para os caos que me rodeavam. Reparei no meu corpo feminino, passei as mãos pela minha cintura, meu quadril, meu cabelo. Minha respiração se acalmou: eu entrara em casa. Observei o cenário imóvel, com as mesmas cores, numa paleta pastel indiferente a mim e aos meus desejos. Não sabia das coisas da vida, mas percebi uma ligeira e sutil brisa passar por mim. Era um sopro difuso, que eu não tinha certeza de direção, menos de sentido, mas me deu um aconchego, como dormitar sob uma palmeira à beira do mar ameno. Minha vida começava e recomeçava, ao mesmo tempo, ali – percebi na hora. A aragem me tocava o rosto na direção contrária dos meus passos, era claro!, claro como o mundo à minha volta. Caminhar, mesmo enfrentando dunas e miragens, ainda me dava algum prazer. Segui.
domingo, 15 de abril de 2018
De ser contra a ironia
"O método geométrico, na Ética, opõe-se ao que Espinosa chama de sátira; e sátira é tudo aquilo que se deleita com a impotência e com a pena dos homens, tudo o que exprime o desprezo e o escárnio, tudo o que se nutre de acusações, malevolências, depreciações, baixas interpretações, tudo o que despedaça as almas (o tirano necessita de almas despedaçadas, como as almas despedaçadas necessitam de um tirano)".Deleuze, na p. 19 do Espinosa e a filosofia prática.
terça-feira, 10 de abril de 2018
Palpites para a eleição de 2018
Já aqueles que o odeiam abertamente não conseguiram disfarçar muito bem como estavam afetados: tentaram de todas as formas minimizar ou desdenhar do evento - numa tática tão banal que já foi imortalizada até em ditados populares. Apenas alguns poucos se disseram indiferentes, mas mesmo assim fizeram questão de se colocarem numa posição de racionalidade que beirava a superioridade, como se somente estes tivessem acesso a uma espécie de verdade anterior. Foi difícil passar incólume dessa semana.
Esse é um dos motivos pelos quais não se chega a qualquer conclusão tentando "convencer" racionalmente um sujeito do outro lado do espectro político que você. Seus argumentos são completamente inócuos para ele. Ele é afetado por motivos absolutamente diferentes dos seus. Ele enxerga a mesma cena de um ângulo totalmente outro. E se fecha para discursos que não confirmem o seu ponto, porque seus afetos estão direcionados muito concretamente para si próprio.
Outro motivo, derivado do primeiro, é o ressentimento [alô, Nietzsche!]: lutar contra o outro sempre coloca sua força numa espécie de inferioridade em relação a quem está dando as cartas. Em vez disso, se continuássemos a pensar junto com o bigode, o melhor seria se manter firme nos seus próprios projetos, reafirmando a própria potência, seguindo em frente, tentando aumentar o alcance do seu próprio poder, e deixar que esse poder seduza os demais, talvez, quem sabe, como uma lâmpada faz com insetos no verão.
[Numa História utópica, poderíamos pensar em territórios em que os afetos parecidos se encontrassem, numa materialização das bolhas de afinidades, e fôssemos obrigados a nos mover para lá e para cá, de acordo com o formato das nossas convicções. Assim, a cidade seria reorganizada, de acordo com as nossas opções políticas. Seria uma maneira de aceitar a fragmentação dessas megacidades, cada vez mais ingovernáveis. No fundo, portanto, estaríamos pensando apenas em uma guerra territorial: quem vai ter melhores benefícios, mais confortos, em suma, quem vai morar perto da praia.]
Voltando para a realidade em que devemos votar nas próximas eleições: considerando a alta carga emocional do momento, não me espanta que diversos candidatos estejam engrossando a voz para tentar gritar mais alto que o adversário. Uma das maneiras de aparecer mais é aumentar o volume. Lembrar de um determinado governador com gosto de chuchu que tentou apimentar seu discurso sugerindo que Lula era o culpado pelo atentado a si mesmo - e depois, percebendo que isso podia estragar sua postura de bom-moço cristão, mudou de opinião. Também não é de espantar que vários intelectuais que opinam sobre a política tentem resfriar o jogo, apelando para um ideal de racionalidade. Funciona como se eles estivessem puxando a corda desesperadamente para o outro lado, numa tentativa de diminuir o fogo [suspeito que não dá mais].
Não é também coincidência que o principal ponto da agenda para a próxima eleição majoritária seja exatamente a segurança pública. Para comprovar isso, basta pensar que o único candidato, além de Lula, que emergiu do bolo intermediário nas pesquisas de opinião foi aquele, à extrema-direita, que se vende como o salvador da pátria em relação à violência urbana. Não deve ser visto como um movimento despretensioso, portanto, a intervenção militar no Rio [área de influência do tal candidato], e os recente elogios do atual ocupante da cadeira de presidente ao golpe de 1964. Foi uma maneira do ex-vice-presidente-golpista tentar vampirizar a agenda do falso messias, golpear o poder de persuasão do dito-cujo, e angariar capital político para si mesmo, já que sua aprovação está nos calcanhares.
A violência (urbana, rural, em ambientes mistos ou inclassificáveis) mexe diretamente com os afetos porque, primeiro e óbvio, tem a ver com a própria sobrevivência, a própria integridade física. A própria e a dos próximos. É comum ter vivido ou ser testemunha de crimes bizarros. Segundo, porque os números de violência das grandes cidades brasileiras são, comparativamente com cidades do Norte rico, inegavelmente assustadores. Terceiro, porque há uma repercussão imensa, uma reverberação fora do ordinário em diversos meios de comunicação. Há jornais e programas de TV exclusivamente dedicados ao assunto, em todo o território nacional. Isso além dos telejornais tradicionais explorarem o tema à exaustão, quase de maneira a nos anestesiar. Por consequência, os meios de comunicação tendem a aumentar cotidianamente a carga, sobrecarregando nossos órgãos receptores. Funciona. O medo é um combustível muito produtivo para a indústria da ansiedade. Maus afetos ainda são afetos.
Como, então, entrar numa pauta tão espinhosa, sem cair no discurso do recrudescimento - e ainda se fazendo ouvir? Como falar para quem está convivendo diariamente com violências de todas as formas, que é assoberbado de relatos tristes e vê uma banalização de tragédias, que não adianta matar o traficante? Que a violência só tende a aumentar com a liberação das armas? Que a pena de morte vai afetar principalmente criminosos de baixa voltagem, que não tiveram dinheiro para protelar seu julgamento? Que o problema não é a comercialização de drogas, já que há tráfico em todas as cidades do mundo, mas o arcabouço histórico-social - esse nosso barril de pólvora eterno - em que ele está inserido? E, por outro lado: que o policial é apenas uma peça - consciente, autônoma, mas ainda assim uma peça - dessa imensa engrenagem? Que nem o próprio policial quer ser militar? Que há sádicos nas forças, mas que esse comportamento reflete a mentalidade do lado de fora dos quartéis?
A violência é um nó górdio brasileiro, antigo, o mais antigo, talvez, que, acho, poucos estão capacitados para enfrentar. Espero que um destes se apresente para o trabalho, seja eleito e consiga exercer seu mandato até o fim.