domingo, 23 de junho de 2013

O Ser de Deus

O fato de pensar o Ser como um valor coloca o Ser como se fosse algo dispensável, desnecessário, acessório, ou que algumas pessoas poderiam ou não ser [o Ser]. "Todas as perguntas relativas ao Ser se tornariam e permaneceriam supérfluas", diz ele. 1 E esse processo dá um pouco de liberdade de movimento para quem vai pensar o Ser. Na argumentação heideggeriana, se pensarmos os termos relativos ao Ser mesmo como “valores”, vamos cair sempre no niilismo à maneira proposta por Nietzsche, ou seja, da ideia de revalorização de todos os valores – numa tentativa de transformar esses valores postos. Então, se esse processo acontecer dessa maneira, as interpretações de Deus como o máximo valor não é feita, não é pensada fora do Ser. Em outras palavras, com o niilismo nietzschiano, em que o homem traz para si mesmo a interpretação dos valores, o pensamento em um Deus não é opressor, ao contrário, vem de "dentro". Nas palavras de Heidegger, está no Ser.

Porque o homem, nesse caso, consegue ter a possibilidade de dar o valor que quiser para qualquer elemento. Logo, ele pode escolher quem vai ser mais importante para si. O processo niilista de Nietzsche traz para o homem a possibilidade de reinterpretar cada um dos termos dados, cada uma das ideias que existiam antes de si. O niilismo nietzschiano, como já se viu, é a proposta de revalorização, pelo meio do filtro pessoal (do Ser, diria Heidegger) de todos os valores.

O que vem acontecendo, porém, é algo ligeiramente diferente. É um caminho que se baseia em argumentos pré-determinados, quase “racionais” no sentido cartesiano do termo. "O último golpe contra Deus e contra um mundo suprassensorial consiste no fato de que Deus, o Ser entre os Seres, é degradado do máximo valor", escreve Heidegger. E ele argumenta que este golpe final contra Deus não é dado por ateus ou descrentes, mas pelos próprios seguidores das religiões e os teólogos. São eles que não pensam no Ser do mais-Ser-dos-Seres [uma das alcunhas de Heidegger para Deus]. São eles que tentam se tornar consciente, tentam racionalizar o processo, como se quisessem descrever o indescritível, prender o que não é apreensível. Talvez para propor uma comunicação, tentam evitar que visto de fora da fé, seus pensamentos sejam encarados como pura blasfêmia, tentam transformar em palavras, em comunicação, algo que não é capaz de ser comunicado. Acabam misturando teologia com a fé. Ao não encararem o Ser de Deus, ou Deus-em-si, eles acabam não falando de Deus nenhum. Falam apenas de uma situação acessória, não essencial – novamente, supérflua. Falam de uma ideia de Deus – não apenas no sentido platônico, de idealização, mas no sentido de elencar vários elementos que estariam ligados ao elemento Deus, como o que seria necessário para ter Deus. Como se juntasse em um boneco todas as características para Deus tornasse esse objeto Deus. Sempre vai faltar o Ser de Deus, que não pode ser descrito, apreendido, comunicado, mas apenas sentido.

É dessa forma que Heidegger interpreta a passagem "Der tolle Mensch", “O louco”, na "Gaia ciência" de Nietzsche, em que o personagem principal diz que foi o homem quem matou Deus. Porque foi o homem – esse homem, que pode ou não ser religioso – que O teria matado, quando deixou de se preocupar com o Ser das coisas, explica Heidegger. Quando se ateve apenas ao seu exterior, às firulas que criariam esse Deus, sem se preocupar com o seu “interior”, com o seu Ser. Mas Heidegger ressalta: deve-se deixar claro que o homem não seria capaz de "matar" Deus de uma hora para outra. Foi uma morte relativamente lenta, que durou 350 anos, tendo começado exatamente com Descartes, o homem que ligou sua existência à sua razão. O primeiro homem que teria não valorizado, em primeiro lugar, o Ser das coisas, mas as suas explicações, as suas formas, os seus resultados, às suas razões.

Quando Deus é racionalizado, quando se tenta explicá-Lo, não se fala mais sobre Deus, mas sobre os elementos que estão em volta dele. Quando se tenta levantar argumentos que envolvem Deus, se está apenas codificando, transferindo o Ser de Deus, para uma linguagem que pode ser falada, entendida por mais pessoas. Deus não é, ou não deveria ser, traduzível, comunicável. No momento que Deus é imposto a outro, ou passado adiante, esse outro, esse adiante já não capta o Ser do Deus e, portanto, o enxerga como elemento que não é exatamente essencial.

1Heidegger, 1977 / 105, em tradução livre

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