domingo, 13 de abril de 2014

Meu Deus

Qual é a vantagem de se escrever mal? Poder escrever o que quiser, sem se importar com os eventuais e exigentes leitores. Aproveito essa minha sorte para recomeçar a contar uma ficção, que foi iniciada há quase dois anos, ou muito antes disso, porque eu preciso terminá-la. Esse trecho abaixo é um capítulo chamado "Deus". Para ler outros trechos, clique aqui.

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Eu tenho esse costume de buscar segurança. Talvez seja o resquício dessa ausência na minha família. Por mais incrédulo, cético, ateu que eu seja, o tema de deus sempre me fascinou. Ter contato com o chão, a base, o alicerce, o fundamento mais fundamental. Algo onde todas as outras coisas se apoiam, vivem, são construídas. Algo que dê um ordenamento ao caos que é a vida. Mas isso é claramente um recurso colateral, um artifício para se enganar um pouco. É um corrimão falso onde se apoiar, quando se vai subir a escada. Um corrimão imaginário.

Seria possível viver sem qualquer tipo de certeza externa? Claro que sim. Quando produzimos tão bem nossos seres, confiamos seguramente em nós mesmos, nossas vontades se apresentam com mais clareza. Então seguimos adiante, guiados por esse pequeno deus interno, esse sentimento de onipotência. Passamos por todos em prol do que queremos.

E quando nos importamos muito com os outros? Quando não queremos machucar ninguém, quando pensamos sempre em causar o menor mal possível – já que viver, por si só, já é causar o mal a alguém? Aí, fica bem mais complicado. Talvez seja daí que nasça a minha crença em deus. Minha crença torta num deus exótico, que nunca atendeu por nenhum nome, que sempre foi falho, que sempre se mostrou com pés de barro.

Ou talvez esse deus seja uma conclusão que engolimos, ou somos forçados a engolir, goela abaixo. Quando não nos resta mais nenhum tipo de possibilidade, quando estamos desenganados, desesperançados, aceitamos uma certeza, seguramos em uma boia para sobrevivência, para poder, simplesmente, não afundar completamente.

É verdade também que nunca consegui aceitar um deus que me era oferecido. Parecia sempre falho demais, sem lógica. Eu tinha – e tenho – que encontrar os meus próprios deuses, que servem para eventuais e pontuais problemas. Às vezes, demoro a encontrá-lo. E até descobri-lo, até que ele apareça para mim, me sinto dentro de um maremoto. É como se o mundo se transformasse em líquido, todos os sólidos entrassem em ebulição, e estivessem balançando ao sabor de um Netuno enraivecido. Então, quando todas as esperanças são perdidas, algo em mim ainda pulsa, algo em mim ainda se apresenta com vida, se mostra como uma possibilidade de existência. Estou dilacerado, estou com a carne viva morrendo, estou em tiras, jogadas ao chão, mas aí algo acontece. Uma vontade de vida, algo que não me permite afundar, me afogar.

Já na faculdade, li o Upanishad, uma das partes mais famosas do Vedas, o livro sagrado do hinduísmo, que é também usado no budismo e no jainismo. Uma tradução para o português, não sei se boa, dos principais textos. Coisa curta, com uma linguagem poética, com imagens que não compartilham de um mesmo passado que o nosso. Éramos todos um pouco hippies, como já disse. Lá dizia algo que talvez se encaixe com isso aqui. Brahma, a principal entidade da trimúrti, a santíssima trindade hindu, o deus da criação, estaria em todos os lugares, e dentro de cada uma das pessoas. Como se dissesse de outra maneira o que Spinoza, muitos anos depois, chamaria de “Deus sive Natura”, ou seja, deus, como a soma de tudo o que há. Portanto, nós também somos, de alguma maneira, deus. Temos uma individualidade para criarmos, como deus, mas sabemos que não podemos criar nada além de deus. Deus é o nosso início, nosso meio e o nosso fim. Não há como escapar dele. Somos deus, mas tudo é deus – isso não é um diferencial, não há algo melhor ou pior.

É muito bom quando aceitamos a humildade de sermos ao mesmo tempo singulares e perfeitamente banais.

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