terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Ser e / ou não ser

Ouvi dizer que o paradigma dessa nossa atual modernidade esgarçada - exagerada e, ao mesmo tempo, gasta - não seria mais o complexo de Édipo, ou Electra, dependendo do sexo, em que devemos "superar" os nossos grandes "marcos regulatórios". Seria uma espécie de complexo de Hamlet, em que ficamos na dúvida sobre ser ou não ser. Eu, debaixo da minha ignorância, adicionaria que há uma solução para essa questão. Podemos simplesmente ser e não ser. O famoso trecho da peça:
Ser ou não ser... Eis a questão. Que é mais nobre para a alma: suportar os dardos e arremessos do fado sempre adverso, ou armar-se contra um mar de desventuras e dar-lhes fim tentando resistir-lhes? Morrer... dormir... mais nada... Imaginar que um sono põe remate aos sofrimentos do coração e aos golpes infinitos que constituem a natural herança da carne, é solução para almejar-se. Morrer.., dormir... dormir... Talvez sonhar... É aí que bate o ponto. O não sabermos que sonhos poderá trazer o sono da morte, quando alfim desenrolarmos toda a meada mortal, nos põe suspensos. É essa ideia que torna verdadeira calamidade a vida assim tão longa! Pois quem suportaria o escárnio e os golpes do mundo, as injustiças dos mais fortes, os maus-tratos dos tolos, a agonia do amor não retribuído, as leis amorosas, a implicância dos chefes e o desprezo da inépcia contra o mérito paciente, se estivesse em suas mãos obter sossego com um punhal? Que fardos levaria nesta vida cansada, a suar, gemendo, se não por temer algo após a morte - terra desconhecida de cujo âmbito jamais ninguém voltou - que nos inibe a vontade, fazendo que aceitemos os males conhecidos, sem buscarmos refúgio noutros males ignorados? De todos faz covardes a consciência. Desta arte o natural frescor de nossa resolução definha sob a máscara do pensamento, e empresas momentosas se desviam da meta diante dessas reflexões, e até o nome de ação perdem.
Qualquer um percebe que Shakespeare, pela boca do príncipe dinamarquês Hamlet, está falando sobre a questão da existência, que seria, séculos depois, ecoado por Camus na sua famosa primeira frase de "O mito de Sísifo" ["o suicídio é a única questão filosófica verdadeira"]. Ele já sugere que, diante do duro destino que nos é reservado, ou do "fado [que é] sempre adverso", por que deveríamos continuar?, respondendo que é a consciência, o refletir, o pensamento quem "definha" essa "resolução" via punhal, já que os males do outro lado, do lado da morte, não são conhecidos.

A questão existencial, porém, não é a única forma de pensar esse assunto, entre ser e não ser. Temos a tradição, via pensamento ocidental-judaico-cristão, de imaginar nossa existência como algo parado, estático, imóvel. Seríamos sempre a mesma pessoa independentemente do "escárnio" e dos "golpes do mundo" que temos que suportar diariamente. Quando, na verdade, isso não ocorre, já que as "empresas momentosas se desviam da meta diante dessas reflexões". Temos, sim, uma identidade a que recorremos para sabermos quem razoavelmente somos, mas essa identidade é bem mais flexível do que supõe nossa vã filosofia.

Esse papo de flexibilidade, de "modernidade líquida" [que eu não li] é muito criticado hoje em dia em que termos como "pós-modernidade" são vistos como, quase, uma chacota. Na verdade, na minha mais que humilde opinião, realmente não viveríamos nada muito diferente da modernidade, ou o que tradicionalmente associamos à modernidade, apenas que essa modernidade, como dito lá em cima, estaria muito gasta. Após anos explorando os mesmos critérios, os mesmos ideais, chegamos a um ápice, que ao mesmo tempo é a maior representação da modernidade e, por outro, já demonstra a fragilidade do argumento. Momento, arrisco, de uma grande transformação.

Essa "modernidade esgarçada" nos deu, no entanto, a capacidade de trafegar entre grandes paradigmas identitários, sem que isso nos marque profundamente a alma. Vejamos um exemplo prático, para não ficar apenas na teorização. Imagine que você more fora do país. Num lugar tipo a Dinamarca, terra de Hamlet, por um tempo específico, para estudar, fazer um mestrado. Você nasceu brasileiro, mas não está brasileiro. Você está estrangeiro, igual a muitos outros lá. Naquele momento, você se identifica, sua identidade, é a do outro, daquele que não é dinamarquês. Ou seja, apesar de "ser" brasileiro, neste momento específico, você "não é" brasileiro.

Há outros casos, um pouco mais complexos, mas que eu gosto muito, e que têm me acompanhado recentemente. Se acompanharmos o pêndulo que vai de Nietzsche a Heidegger, podemos ver que, se um lado afirma a vontade de potência como princípio fundamental da vida, o outro demonstra a nossa forte dificuldade de interagir no mundo sem objetificá-lo, sem torná-lo objeto de nossas vontades.

Interpreto esses dois pensamentos, junto com a ideia de ser e não ser, como a necessidade de em alguns momentos você se impor, tentar colocar sua vontade em prática, torná-la real, factível - que é quando nós batalhamos para completar nossos sonhos, nossas vontades. Que é quando deixamo-nos existir.

Mas insistir em completar a sua vontade, dentro de uma sociedade complexa, e sem levar em conta a vontade do outro, é uma das formas de tirania que existem. É o praticar d'"as injustiças dos mais fortes, [d]os maus-tratos dos tolos". Temos que, sim, tentar tornar verdade, fato nossas vontades, mas saber que o outro também tem sua individualidade e que ele tem todo o direito de ignorar as nossas próprias vontades. Só nos resta, nesses casos, sofrer a "a agonia do amor não retribuído", e torcer para que isso passe o mais rápido possível. Há momentos em que é necessário o "não ser". O esperar, o exercício do "mérito paciente".

A opção entre ser e não ser, essa escolha entre o existir ou não, entre o colocar em prática sua vontade, ou recolher-se até a tempestade passar, pode resolver muito dos nossos problemas atuais, em que acreditamos ser, sempre, o centro das atenções - ou, no mínimo, deveríamos ser, por uma questão de justiça. Não resolveríamos todos os problemas, certamente, nem, ao menos, nos livraríamos da sina de criar novos problemas, que nem imaginávamos possível [questões de identidade, neuroses aflitivas, etc.]. Mas temos que errar sempre erros diferentes, não é mesmo?

De qualquer forma, é bom deixarmos claro, para nós mesmos, que dentro de uma sociedade conturbada como a nossa, temos limites, nebulosos limites que não se apresentam como tal. Com o passar do tempo e aos poucos, conseguimos vislumbrar suas características e podemos agir com o fim de o evitarmos ou simplesmente o aceitarmos. Com a convivência com o outro, criamos essa inteligência emocional, que nos demonstra quando, exatamente, podemos ser, e quando devemos não ser. Estou, neste momento, de fins de ano, suspeitando fortemente que esta é a verdadeira sapiência do homem. A única que não se aprende.

***

ps. Eu sempre achei curioso algumas línguas não terem a diferenciação entre "ser" e "estar". Acontece ao menos no inglês, francês e alemão - entre as que eu tenho alguma noção. Já escrevi isso inúmeras vezes, e repito agora: Borges sempre lembrava desta diferença, entre o "existencial" [ser] e o "circunstancial" [estar], entre aquilo que nós éramos, que nos definia, e aquilo que nós poderíamos, de acordo com outros fatores, ser, ou não. Daí, eu sempre imaginei como seria a tradução do mais famoso dos versos de Shakespeare não por "ser ou não ser", mas por "estar ou não estar". Heidegger poderia entrar na roda, com uma nova versão do agora chamado "Estar e tempo". Combinaria bem com esse período de modernidade esgarçada.

sábado, 21 de dezembro de 2013

O autorretrato do ano

A foto correu o mundo via redes sociais. Três das pessoas mais importantes do mundo, no meio de um enterro de um dos maiores ícones do século XX, se juntaram, sacaram um celular potente, fizeram uma pose descontraída, falaram xis, e se autofotografaram. Ou, em inglês, fizeram um “selfie”. A história seria apenas exótica, caso os homens e a mulher em questão não fossem o presidente dos EUA, Barack Obama, a primeira-ministra da Dinamarca, Helle Thorning-Schmidt, e o primeiro-ministro do Reino Unido, David Cameron – no velório do ex-presidente sul-africano Nelson Mandela.

 Acho que a Michelle não gostou de não ser chamada [flagra de Roberto Schmidt/AFP]
Muito já se criticou a postura dos três líderes mundiais, que teriam desrespeitado a memória do sul-africano. Outros fizeram questão de defender a descontração do trio, lembrando que a cerimônia fúnebre não era necessariamente triste, mas uma celebração da vida do homem que representou, pessoalmente, o fim do regime do Apartheid. Não importa quem tem a razão nesta discussão. A foto dos três juntos se tornou um dos principais fatos do ano. Ou o autorretrato de 2013.

Não que tenha tido a relevância política das manifestações que abalaram Turquia, Brasil e outros países do mundo. Nem que tenha estremecido as relações multilaterais, como os escândalos da espionagem patrocinada pelos EUA. Ou o impacto da mudança de um papa taciturno, para um que abraça as pessoas nas ruas naturalmente (Aliás, que ano foi esse 2013, hein?). Mas o “selfie”, esse hábito de registrar a própria imagem com o celular ou uma câmera digital e, em seguida, compartilhar em uma mídia da internet, mostra muito como nos comportamos, no âmbito privado – ou o que restou dele – neste ciclo que agora se encerra.

Esta não é uma conclusão deste texto ou deste que vos escreve, mas uma constatação geral. “Selfie”, o diminutivo carinhoso de “Self”, que por sua vez quer dizer algo como “a si mesmo”, foi escolhida a palavra do ano pelo tradicional dicionário Oxford. A frequência com que ela foi usada na internet subiu 17.000% neste ano, se comparado com o ano anterior. O dicionário ainda conseguiu traçar a primeira aparição da palavra com essa acepção: foi em um fórum de internet na Austrália em 2002. De lá para cá, a palavra, e o hábito de se autofotografar, explodiram. Mas o que isso representa?

Muita gente tentou pegar o caminho do narcisismo exacerbado na interpretação do fenômeno. Inclusive uma capa do tabloide New York Post, em que mostrava como uma turista, ao perceber que havia um fulano tentando pular da ponte do Brooklyn, sacou o celular e se enquadrou junto ao suicida em potencial para registrar o momento (em tempo: o rapaz não se jogou). O título da reportagem foi um trocadilho intraduzível: “Selfie-ish”, sendo que “selfish” é visto normalmente como “egoísta”.

É claro que vivemos um momento em que nos desacostumamos a sair do centro das atenções. Compartilhamos todos os nossos passos na tentativa de mostrar o quanto merecemos receber os olhares dos outros. Queremos ser as celebridades cotidianas da vida social que se estabelece ao nosso redor. O “selfie” representa bem esse período, claro, já que você vira o paparazzi de si mesmo. Mas há ainda uma outra forma de interpretar que talvez seja complementar a essa.

Desde que a fotografia foi inventada – ou mesmo antes, quando a ideia de “retrato” entrou na pintura – sempre houve quem gostasse de deixar registrado sua imagem para a posteridade. E outros que não, que fogem de momentos assim, que abaixam a cabeça, jogam o cabelo na frente do rosto. Os motivos dessa diferença de comportamento entre os “exibidos” e os “envergonhados” podem variar enormemente, e esse texto não vai tentar elencá-los. Parece óbvio, também, que o número de exibidos subiu, proporcionalmente, enquanto o de envergonhados teria diminuído. Mas há um detalhe que, numa leitura superficial, tem ficado de fora: como, agora, o retrato é feito pela própria pessoa, sem o auxílio, ou a participação de ninguém mais.

Como dito, autorretratos não são novidades no mundo estabelecido das artes. Rembrandt e Van Gogh, para ficar em exemplos fáceis, são artistas que gostavam de se usar como modelos. Se no caso do misterioso Rembrandt, podemos supor que era uma forma de autoinvestigação, estudo, e facilidade – já que o modelo está disponível ao mesmo tempo que o pintor –, no de Van Gogh, além desses mesmos motivos, também havia um outro componente que se encontra nos atualmente famosos selfies: o isolamento social. Rembrandt pintou seus mais de 60 autorretratos ao longo de toda vida, Van Gogh concentrou o grosso da sua produção autorreferencial em apenas dois anos – os dois mais conturbados anos de sua vida.

Assim, o selfie representaria a ausência de um outro, que compusesse a relação criada no retrato. Imaginemos o exemplo de um modelo-fotógrafo que, agora, viaja sozinho, e quer deixar marcado que ele visitou – ou consumiu – tais e tais lugares. Não precisa de ninguém para sair, se divertir, conhecer o mundo. É independente, totalmente livre, e ainda um cidadão cosmopolita. Mas esse raciocínio não se sustenta tão facilmente. Principalmente num mundo em que a virtualidade se confunde com a realidade.

Este autorretrato mostra, em vez dessa completa independência, uma incapacidade de se relacionar dentro de uma sociedade factível, imperfeita, cheia de arestas solas. Uma inabilidade social, em tempos de redes sociais. Não é que nosso modelo-fotógrafo tenha preferido viajar sozinho – ele simplesmente não teve ninguém para viajar com ele. Isso não é um problema em si. Apenas se torna um problema quando se encara dessa maneira. E o selfie teria um componente que desnudaria essa farsa de autossuficiência.

Com o autorretrato o modelo-fotógrafo tenta, de uma maneira virtual, arranjar companhia para si. Porque um selfie só é um selfie se o retrato for postado. O selfie, em seguida, cruza os dedos para que a sua foto seja curtida, comentada, compartilhada. Que ele se transforme, por uma questão de segundos, no foco das atenções, desse mundo em que o déficit de atenção se tornou a resposta para todos os problemas das crianças, e a ritalina, que combate o problema, se tornou uma droga tomada no café-da-manhã.

Em vez de liberdade, o selfie demonstra uma dependência absurda do outro. É uma aposta no individualismo, num “eu me basto”, mas num individualismo desesperado, que precisa que alguém, por favor, o observe para existir. Uma tentativa de roubar o olhar do outro para que, só assim, a sua individualidade pudesse ser notada. Um pedido de socorro.

Há um exercício no teatro em que os atores, sentados em uma roda, devem tentar chamar a atenção de quem está à sua esquerda. Vale qualquer ação: falar, gritar, chorar, puxar, levantar... Mas como cada um se vira à esquerda para realizar o seu próprio objetivo, o processo parece impossível. O selfie é assim. Escancara a nossa privacidade para demonstrar toda a nossa inabilidade de lidar com o público. É um exemplo, um ótimo exemplo, de um tempo em que todos querem falar e ninguém escutar, a maioria quer ser escritor, a minoria, leitor.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Nietzsche cristão?

É claro que em O anticristo, livro de 1888 bastante anticlerical, Nietzsche continua usando do seu vocabulário ácido para martelar as grandes verdades estabelecidas e livrar o homem de uma tutela dada a priori. Mas sua atitude perante o Cristo, em si, é bem mais dúbia. Não que ele chegue a ter uma admiração irrestrita pela figura imponente que, de tão importante na História, dividiu a maneira como contamos os anos. É mais como se ele aceitasse as posições de Cristo, e o interpretasse como um igual, deixando na conta de seus seguidores, principalmente Paulo, o crime de ter deturpado seus ensinamentos.

Nesta obra, Nietzsche reforça uma ideia sua de que o grande objetivo do ser humano é não ser sujeitado por nenhuma ordem, não obedecer cegamente, sem contestação, qualquer obrigação moral. Daí ser contra a ideia de um Deus que fale o que é certo ou errado – para ele, Nietzsche, é importante que o homem descubra sozinho, da maneira que lhe for possível, o que lhe é bom ou mau. Para ele, o princípio supremo das religiões está inscrito na passagem de que “Deus perdoa a todo o que faz penitência”. Como não temos acesso a Deus diretamente, essa frase quer dizer, na interpretação do alemão, que devemos obedecer ao sacerdote, que vai nos dizer quantas e quais penitências devemos tomar.

Cristo – Nietzsche prefere chamá-lo de “Redentor”, ou “Jesus de Nazaré” – agrada ao alemão à medida em que é um personagem que lutou contra a forma institucionalizada de religião que existia à sua época. Não é possível saber se Jesus tenha negado a igreja judaica, explica Nietzsche, ou se posicionado contra uma ideia maior de igreja, como bastião da cultura e do comportamento. “Era uma insurreição contra ‘os bons e os justos’, contra os ‘santos de Israel’, contra a hierarquia da sociedade – não contra a sua corrupção, mas contra a casta, o privilégio, a ordem, a fórmula; era a descrença nos ‘homens superiores’, o não pronunciado contra tudo o que era sacerdote e teólogo”, escreve ele, carregando na ironia nas expressões entre aspas.

Nietzsche chega a chamar Jesus de “santo anarquista” e de “criminoso político”, num elogio ambíguo, por intimar o “povo mais baixo” à “resistência contra a ordem dominante”, sugerindo que se fosse em seu tempo, fins do século XIX, era capaz de ser deportado para a Sibéria. Como homem completamente ateu, retira do personagem bíblico sua santidade e afirma que, sim, Jesus morreu pelo pecado, mas pelo seu próprio, não tendo qualquer razão, em se confiando na Escritura, de se afirmar que ele quis, no fundo, expiar os pecados dos outros.

Mas é complicado confiar na Bíblia, diz Nietzsche, já que o texto foi muito “mutilado ou sobrecarregado” com “traços estranhos” de outras pessoas que podem, inclusive, ter criado ou aumentado santos providenciais para resolver problemas pontuais. De qualquer forma, a figura do Redentor sofreu uma desfiguração do meio em que viveu e da História, que o irá interpretar à luz de cada tempo. “As tentativas que conheço de, a partir dos Evangelhos, extrair a história de uma ‘alma’, parecem-me prova de uma detestável frivolidade psicológica”, exclama, mostrando que, se Jesus não escreveu uma única linha conhecida sequer, fica praticamente impossível confiar em seus intérpretes. “Os primeiros discípulos, em particular, traduziram primeiro para a sua crueza própria um ser flutuando em símbolos e incompreensibilidades para dele compreenderem em geral alguma coisa”, diz em outro momento.

O problema aqui é o do início de sua argumentação. Se Nietzsche é contra a tutela, qualquer que seja, não poderá aceitar a opinião de quem se deixou ser tutelado. Se qualquer frase direta a partir de uma fonte primária já não é de todo confiável, dadas as grandes dificuldades de se comunicar o óbvio, uma opinião de segunda mão torna essas afirmações ainda mais fracas.

“Fazer de Jesus um herói! E que mal-entendido não é a palavra ‘gênio’! Todo o nosso conceito, o nosso conceito cultural de ‘espírito’ não tem nenhum sentido no mundo em que Jesus vive. Com a linguagem rigorosa do fisiólogo, estaria aqui melhor no seu lugar uma palavra de todo diferente: a palavra idiota.”

Numa primeira leitura, o trecho anterior pode chocar pela crueza e pela tentativa de tornar Jesus um homem, de carne e osso, sem qualquer diferença dos demais homens. Ao fim, ainda há uma expressão que, nos nossos tempos, poderia ser considerado uma blasfêmia: chamar Jesus de idiota. Sobre isso, é possível tentar fugir do raciocínio óbvio. O caminho proposto aqui é lembrar que Nietzsche era leitor de Dostoiévski, que, por sua vez, escreveu um livro chamado O idiota. A obra narra a história do príncipe Míchkin, que, sendo superior aos seus conterrâneos, não consegue se adaptar e é considerado um idiota. Idiota, aqui, tem o sentido de ser a exceção, de ser o diferente do que se propõe, do fugir, novamente, de tutelas.

Outro exemplo de como essa frase não necessariamente é um xingamento, mas uma dificuldade de se adequar à sociedade em que estamos inseridos aparece no filme húngaro O cavalo de Turim. Logo no início do longa, o diretor Béla Tarr coloca o narrador para descrever a famosa cena de Nietzsche abraçando o quadrúpede na praça pública da cidade italiana. Tarr lembra que, após todo o imbróglio, Nietzsche teve uma crise nervosa que o deixou sem se comunicar direito até a sua morte, 11 anos depois. As últimas palavras do alemão teriam sido, segundo Tarr: "Mutter, Ich bin Dumm", ou algo como "Mãe, eu sou um idiota". Mesmo que não haja qualquer comprovação dessa frase, é uma forma de dizer que ser “idiota”, dentro de um universo nietzschiano, não carrega junto de si um conteúdo apenas negativo.

No entanto, é de outra forma que Nietzsche faz o maior elogio a Jesus. O alemão afirma que “com alguma tolerância na expressão”, poderia chamar Jesus de “espírito livre”. Dentro dos textos de Nietzsche isso pode ser interpretado como o homem que não precisa de um parâmetro anterior para viver, que vive a partir de sua própria consciência, com a coragem de enfrentar o mundo, sem cair numa dicotomia entre erros e acertos. Alguém que se opõe “a toda a espécie de palavra, fórmula, lei, fé, dogma. Fala simplesmente a partir do mais íntimo – tudo o mais, a realidade integral, a natureza inteira, a própria linguagem tem para ele somente o valor de um sinal, de uma parábola”.

Sua morte, de acordo com os textos sagrados, comprovaria essa liberdade, já que o Salvador não usou “nem de fórmulas, nem de ritos, para a sua comunhão com Deus – nem sequer da oração”. “Este ‘alegre mensageiro’ morreu como viveu, como ensinara – não para ‘redimir os homens’, mas para mostrar como se deve viver”, escreve Nietzsche lembrando que Jesus bateu de frente com juízes, com verdugos, com os acusadores, e, já na cruz, enfrentou calúnias e ultrajes. “Não resiste, não defende o seu direito, não dá passo algum que afaste dele o fim; mais ainda, provoca-o... E suplica, sofre, ama com aqueles, por aqueles que lhe fazem mal...”

A partir de então, seus seguidores teriam deturpado sua mensagem. “A história do Cristianismo – e, claro está, desde a morte na cruz – é a história da incompreensão cada vez mais grosseira de um simbolismo originário”, argumenta lembrando que foram criados ritos e doutrinas por uma Igreja que gostaria, segundo Nietzsche, de ter apenas poder sobre os seus fiéis. Para o alemão, “já a palavra ‘Cristianismo’ é um equívoco – no fundo, existiu apenas um único cristão, e esse morreu na cruz.”

O que o libertário pensador alemão admira em Jesus de Nazaré é essa capacidade de afirmar suas vontades, de lutar contra o que está estabelecido, mesmo que isso lhe custe a própria vida. É essa habilidade de combater os dogmas criados, os deuses castradores, as morais que determinam um bem e um mal para todas as pessoas, sem considerar as particularidades de cada um. Nietzsche, curiosamente, acredita ser possível, sim, ter uma prática cristã, portanto. Mas só haveria uma única forma de ser cristão. Seguir de perto o exemplo do Cristo. Mas deste Cristo combativo, que ele admirava. Ou seja, para começar, não repetindo seus passos, mas inventando os seus próprios caminhos. Não obedecendo regras desnecessárias, mas discutindo, com razão e força, a validade delas. Ao fim, Nietzsche parece exoticamente otimista: “Hoje, uma tal vida é ainda possível e até necessária para certos homens: o Cristianismo autêntico, originário, será possível em todas as épocas...”

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Campanha que vale a pena: não eleger o Cabral

Aparentemente já perdemos a batalha para a eleição de governador no próximo ano. Qualquer que seja a alternativa não vai mudar muito o que está em jogo, agora. Vamos ao segundo turno e votamos no menos pior - como tem sido nos últimos muitos anos. Mas há uma campanha que podemos e devemos nos engajar e que vale a pena: não deixar Sérgio Cabral se eleger para o Senado.

Se para governador o virtual vencedor é Lindblergh - já que é o que tem menos rejeição numa disputa que tem os campeões no quesito Garotinho, Crivella e Cesar Maia, além do poste chamado Pezão - para senador, não sabemos muito bem quem sairá candidato, além do excelentíssimo senhor governador do estado do Rio de Janeiro, Sérgio de Oliveira Cabral Santos Filho. Mas qualquer que seja o segundo candidato, devemos focar nele nossos votos.

Pode ser alguém pior que Cabral? Pode, claro. Se for o Garotinho, sugiro votarmos no terceiro colocado nas pesquisas. Mas será difícil barrar a completa antipatia que o governador fomentou contra ele. Ontem ouvi um deputado estadual, famoso por ser oposição a tudo isso que está aí, falando que Cabral deve ter algum problema psiquiátrico, de falta de noção do que é real, verdadeiro, efetivo. O motivo do comentário foi ele ter voltado a usar o helicóptero para seus deslocamentos, no momento em que todas as pessoas reclamam de dificuldades com o trânsito, com o argumento de falta de segurança - oi? O governador está se sentindo tão acima do bem e do mal que um choque de realidade vai fazer até bem a ele. E não consigo imaginar choque melhor que não conseguir se eleger nem para o Senado. Então, governador, é pensando no senhor que vamos fazer essa campanha, ok?

Vamos à prática. Nesse momento, apesar da pior avaliação dos últimos sete anos, Cabral ainda tem 20% de bom/ótimo em todo o estado. Considerando as últimas eleições, Lindblergh e Crivella foram eleitos para a casa do Congresso com 28% e 22% dos votos, respectivamente. Se toda a aprovação do Cabral fosse convertida em voto, ele teria dificuldade, neste momento, de se eleger - ainda mais considerando que em 2014 haverá apenas uma vaga, o patamar deve subir para 30-40% dos votos, num chute. Mas Cabral tem a famosa máquina governamental.

Saiu hoje no jornal: Pezão foi acusado pela sétima vez por ter promovido sua campanha para governador. Sétima vez. Só de condenação foram três vezes. O que ele teve que fazer? Pagar uma multa. A multa? R$ 25 mil. Agora, você, você aí, sentado na sua cadeira do trabalho, ou deitado na cama, ou lendo pelo celular, você mesmo, você acha que alguém que, digamos, enriqueceu bastante nesses últimos anos de grandes obras no Rio, cuja mulher é advogada das grandes empresas que mandam no estado, vai se importar de pagar R$ 25 mil? Nem que fosse por dia. Cabral vai usar - como já está usando - a máquina para se promover. E vai alavancar sua candidatura, principalmente quando ele se descompatibilizar, em março.

Daí, cabe a nós, eu e você, eleitores que não aguentamos mais Cabral e que queremos fazer um favor para ele, cabe a nós, eu dizia, usar da mais pura matemática eleitoral e simplesmente fazer voto útil. Não importa [quase] quem é o segundo colocado. Cabral deve ter uma derrota eleitoral para mostrar que a carreira política dele acabou. Para mostrar, até para o próximo governador, que quem fizer um governo ruim, antissocial, antipopular, vai  ter o mesmo destino. No máximo, vai se eleger para cargos em que não precisa de uma votação majoritária, como para deputados e vereadores - caso, inclusive, de Cesar Maia, outro que cavou sua própria cova. Síndico do prédio? Esquece.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Quem se aproxima demais de Deus, acaba queimado

Em várias tradições, aconteceu o mesmo: quem tentou chegar perto de Deus, de uma maneira ou de outra, acabou se dando mal. Os casos mais famosos são a Torre de Babel e o conto de Ícaro. Não deve ser coincidência que o mesmo mito tenha se perpetuado.

O caso de Babel aparece em apenas nove versículos do capítulo 11 do "Gênesis". Todos sabemos a história: "homens do Oriente encontraram uma planície em Sine­ar" e resolveram "construir uma cidade, com uma torre que alcance os céus", com a intenção de tornar o nome deles "famoso" ­e também para não serem "espalhados pela face da terra". Além da vaidade [e é bom lembrar sempre da famosa última frase de "Advogado do Diabo", quando Milton, o coisa-ruim-em-si, admite que é o seu pecado favorito], há um sentimento de união, que Deus, demonstrando todo o seu ciúme, acaba por acabar - exatamente, confundindo as línguas que eles falavam. "Assim o Senhor os dispersou dali por toda a terra, e pararam de construir a cidade", diz o oitavo versículo. Não poderia ser mais cruel - como, aliás, toda vida é.

Já o de Ícaro é menos conhecido. Seu pai, Dédalo [o que só me faz lembrar de Stephen Dedalus, alter-ego de James Joyce], era um grande criador de artefatos. Mas, humano, demasiado humano, sente inveja do sobrinho Talos, que tinha intuído uma serra a partir das espinhas de um peixe, e o tenta matar. Como pena, os deuses o degredaram a Creta, onde foi o responsável por construir o famoso labirinto, onde o igualmente famoso Minotauro ficaria preso. Após a morte do monstro antropomórfico por Teseu [outra história, outra história...], Dédalo e Ícaro foram presos no labirinto. Para tentar fugir de lá, Dédalo criou as famosíssimas asas de cera com penas de gaivota, uma para ele, outra para Ícaro, e aconselhou o filho: não chegue próximo do Sol, nem do Mar. Ícaro ignorou a sugestão do pai e foi em direção a Hélio, que derreteu suas asas, fazendo com que ele caísse no Mar Egeu.

Toda essa contextualização é para dizer que uma das críticas, a meu ver, de Heidegger a Nietzsche segue masomeno esse caminho. Heidegger, que era um gentleman ao criticar seu predecessor, enxergava um dos grandes temas do Bigode, a vontade de potência, como uma questão "relativa". Em outras palavras: para que a vontade existisse, era necessário que houvesse outra vontade para se apoiar, para ultrapassar, para vencer. A vontade não era sozinha, por si só, mas estava determinada a partir de outras vontades. Era competitiva, portanto. E, também, individualista, excludente. Também aristocrática [uns são melhores que outros] e elitista. Para Heidegger, Nietzsche acredita que o seu além-do-homem [outro dos temas favoritos do Bigode] era uma espécie de Deus.

Não concordo que Nietzsche tenha dito exatamente isso, mas o raciocínio de Heidegger é límpido. Além disso, o fim da vida de Nietzsche, em que ele assinava as cartas como Zaratustra ou Dionísio, seus deuses que substituiriam o deus cristão, é exemplar nesse sentido. E não vamos culpar a doença que, alega-se, ele tinha. Ou não vamos culpá-la totalmente. Havia, sim, um sentimento de superioridade, de não querer fazer parte da humanidade, como ela era, no senhor Bigode. Nietzsche queria ser tirado para o novo Cristo.

O problema desse raciocínio, se eu entendi bem Heidegger - o que eu duvido -, é perceber como as relações são sempre fracas para manter qualquer tipo de afirmação peremptória. Melhor explicando: Se Nietzsche criticava tanto a humanidade, por que ele ainda precisaria dela para se elevar, para exercer sua vontade? Apesar de ele esnobar as relações humanas, parecia que ele era o que estava mais ligado aos homens - daí, inclusive, o início do seu Zaratustra, quando o profeta desce de seu isolamento para pregar entre os homens.

Porque, seguindo o argumento de Heidegger, se essa vontade de potência depende tanto da humanidade para poder existir, para poder se destacar, no momento que essa humanidade simplesmente ignorar o além-do-homem, ele não terá mais parâmetro algum por que lutar e viver. E, novamente, basta ver o fim da vida de Nietzsche para saber que a história não terminou bem. Quando o homem se torna sujeito, ele está necessariamente objetivando algo ou alguém. E, certamente, dependendo desse algo ou desse alguém. Sem esse algo ou alguém, ele cai, se estabaca no chão redondamente, e fica um tempo ali, com dificuldade de se levantar, sem entender bem o que aconteceu. Porque todo e qualquer Deus precisa de fiéis para existir. Já o homem pode viver, simplesmente, diluído na humanidade.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

As últimas palavras de Nietzsche

No filme húngaro "O cavalo de Turim", o diretor Béla Tarr coloca o narrador para descrever a famosa cena de Nietzsche abraçando o quadrúpede na praça pública da cidade italiana [já comentei essa cena aqui]. Ele lembra que, após todo o imbróglio, o Bigode teria entrado em parafuso. As últimas palavras do alemão teriam sido, segundo Tarr: "Mutter, Ich bin Dumm", ou algo como "Mãe, eu sou um idiota".

Não encontrei qualquer outra fonte, na internet, que confirmasse essa frase. Se diz muito sobre a cena de Nietzsche abraçando o cavalo, e se fala sobre o momento em que, nu, dentro do quarto, ele dançou, para o desespero da dona do estabelecimento em que ele estava hospedado, que assistiu a tudo pelo buraco da fechadura. Também é possível encontrar outras frases finais, como "Christ, or Dionysius, do you understand me? Take your choice", mostrando a tara que Nietzsche tinha ao fim da vida com Cristo e com Dionísio, e ecoando a informação de como ele, já meio tantã da cabeça, assinava suas cartas ora como Dionísio, ora como Anticristo. Ou, em um livro sobre a estranhíssima relação de Nietzsche com a família Wagner, já no manicômio alemão, como ele teria dito para os guardas: ""It was my wife Cosima Wagner who brought me here."

A verdade é que não dá para saber exatamente qual teria sido as últimas palavras de Nietzsche, principalmente porque ele ficou cerca de dez anos fora do ar, após o colapso de 1889. E, mesmo antes, ele já não estava regulando bem, conforme mostram as tais cartas, entre outros documentos. Além disso, suas últimas palavras também não podem / não precisam ser as mais representativas de toda a sua vida, apenas demonstrariam sua passagem final, o momento em que não seria mais necessário jogar o jogo da vida, interpretar o papel que escolhemos. Mas Nietzsche não era um sujeito que estava dentro da moralidade, que representava, que tentava agradar. Era, inclusive, o oposto disso, e esse comportamento baseado apenas na sua vontade, sem levar em conta os outros, em sua volta, foi, inclusive, um dos motivos que o deixou isolado.

Daí é curiosa a escolha das palavras do diretor Tarr para Nietzsche. Primeiro, que ele se refere a mãe, com quem Nietzsche não teve uma boa relação, chegando a afirmar que o principal empecilho para se acreditar na doutrina do Eterno retorno seria pensar que ele viveria novamente com a mãe e com a irmã. Mas, de toda forma, a mãe é um desses firmamentos que sempre teremos. É uma constante que nos acompanha. A frase seguinte, "Eu sou um idiota", quer dizer, na primeira leitura, que ele tinha feito tudo errado na vida. Tinha optado pelos caminhos que levaram a esse isolamento, que não tinha acertado.

Mas não consigo deixar de pensar, novamente, em Dostoiévski, especificamente em "O idiota", uma de suas obras-primas. Saca a minúscula sinopse que a Wikipedia em português dedica para o livro:
O príncipe Míchkin tem 27 anos de idade quando retorna a Petesburgo, após permanecer vários anos em um sanatório na Suíça para tratar da sua epilepsia. Tem-se então o desenrolar da trama cujo tema central recai na problemática do indivíduo puro, superior, que acaba sendo para os demais, numa sociedade corrompida, um idiota, um inadaptado.
O herói do romance, o humanista e epilético Míchkin, é uma mescla de Cristo e Dom Quixote, cuja compaixão sem limites vai se chocar com o desregramento mundano de Rogójin e a beleza enlouquecedoura de Nastácia Filíppovna. Sua bondade e o impacto da sua sinceridade irá revelar ao leitor de forma trágica como em um mundo obcecado por dinheiro, poder e conquistas, o sanatório acaba sendo o único lugar para um santo.
"[P]roblemática do indivíduo puro, superior, que acaba sendo para os demais, numa sociedade corrompida, um idiota, um inadaptado"? "O herói do romance, o humanista e epilético Míchkin, é uma mescla de Cristo e Dom Quixote"? "Sua bondade e o impacto da sua sinceridade irá revelar ao leitor de forma trágica como em um mundo obcecado por dinheiro, poder e conquistas, o sanatório acaba sendo o único lugar para um santo"? Poderíamos, sem fazer esforço, estar falando sobre Nietzsche.

O homem que quis criar um super-homem, que não se acanhava de falar o que pensava, que gostava do Cristo histórico, mas o via como um inadaptado, e que acabou se isolando, ou sendo isolado, em um sanatório, por dificuldade de se relacionar com as outras pessoas. O livro de Dostoiévski, para aumentar as coincidências, foi escrito na italiana Florença.

Tarr talvez tenha inventado a frase final de Nietzsche, mas não é uma sentença aleatória. Está dentro de um contexto, de um mundo que melhor explica quem foi o que quis ser o Bigodudo. Um idiota dostoievskiano completo.

domingo, 8 de dezembro de 2013

Baixo, gordo e careca

Há uma lenda que Júlio César, após voltar vitorioso das batalhas para ampliar os domínios de Roma, sempre ia conversar com um dos seus conselheiros mais íntimos, que lhe dizia: César, não se esqueça que é baixo, gordo e careca.

Não sei a veracidade dessa história, mas ela representa bem mais que o óbvio. Na volta para Roma, César estava num céu, em que não tinha iguais a ele. Era um ser imbatível, mortífero, um semideus. Mas quanto maior o ego, maior a queda. Por isso, ele precisava de um conselheiro para apontar para as suas características mais humanas, aquelas partes que poderiam ser vistas como "defeitos", que o "diminuíam", dentro de um padrão pré-estabelecido do que seria bom ou grande.

César não foi o único a sentir o gosto da divindade. Basta pensar nas celebridades atuais e como eles são idolatrados. Muitas vezes, sem qualquer justificativa - vide o caso dos fãs dos ex-BBBs, por exemplo.

Vou mais longe: há casos que nós, seres humanos normais, que devemos pagar nossas contas, trabalhar de segunda a sexta [às vezes mais], juntar uma grana para tomar uma cervejinha de vez em quando, também temos a bola tão cheia, que nos esquecemos também que somos baixos, gordos e carecas. O excesso de sorte, por exemplo, é, por si só, um azar já que não te prepara para o fracasso a que todos estamos condenados - cedo ou tarde. Não quer dizer que somos fracassados, mas que passaremos por momentos de revés. E do alto do Olimpo fica difícil enxergar a planície.

Há ainda uma outra forma de se pensar, para tornar esse raciocínio um tiquinho mais complexo. Quando temos sucesso, geralmente nos esquecemos que há outras pessoas ao nosso redor. É a nossa vontade que nos guia à frente, e que vai avançando, avançando, derrubando os entraves que aparecerem, até que encontra um que se mostra intransponível - ao menos, da maneira como você estava acostumado a galgar. Diante dessa negativa, se vê perdido porque não percebia o entorno, a humanidade que lhe envolve, lhe abraça, existe além e apesar de você. É grande o desespero.

Nesses momentos, se percebe que as vontades são importantes para nos levar à frente, para nos fazer viver, sempre, e cada vez mais, mas que elas não são, não podem ser, a única forma de vivência. Apenas sob a égide da vontade, é capaz de você se isolar do restante da humanidade, se tornar uma espécie de ermitão, mesmo dentro da mais populosa cidade. A vontade é individualista, exclusivista.

É necessário, de alguma maneira, também equilibrar a vontade com o momento em que não se faz nada, apenas se deixa levar pela maré, para algum porto qualquer. Esperar a grande tempestade passar porque, dentro dela, não se pode guiar muito bem o destino do barco. Na emergência, a tática é a do menor prejuízo. É o momento de se usar a razão, para tentar controlar o desespero que simplesmente quer abandonar o navio e afundar mar adentro.

Mas também não pode exagerar no assunto, com o perigo de se tornar alguém muito pré-programado. A grande sapiência, a única, talvez, e que não se aprende em nenhum lugar, e talvez nunca se aprenda, é saber em que momento se deve liberar a vontade e em quais a única coisa que se pode fazer é esperar, e se diluir no meio de toda a humanidade. Porque até César tinha seus momentos de humano, demasiado humano.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

O mimado Nietzsche, o vazio Heidegger

Exatamente isso, que Lou se libertasse dele seguindo seus caminhos, foi o que o feriu profundamente. Sentiu-se usado, desperdiçado. Uma discípula lhe dá a entender que o compreende, e depois vai procurar outros mestres. Nietzsche sofreu isso como uma ofensa inaudita. Ele se largara em suas mãos e depois ela o largara de mão - Safranski, R.: Nietzsche - Biografia de uma tragédia, página 235, na tradução de Lya Luft.
Curiosamente, essa passagem sobre a relação de Nietzsche com Lou Andreas-Salomé - a mulher que passou ainda pelas vidas de Rainer Maria Rilke, como musa, e Freud, como colega e amiga - exemplifica mais que a personalidade de Nietzsche, aponta também para a sua obra. Além disso, mostra como as duas - vida e escrita - estavam bastante conectadas no caso do Bigode.

Uma das principais críticas de Heidegger para Nietzsche cai mais ou menos por aí. O Bigode tinha dito que era o cara que acabaria com a metafísica, ou seja, com esta separação do mundo em que vivemos em dois grandes submundos, que poderiam ser o céu e a terra, ou o mundo das ideias e o mundo real, ou ainda, e mais genericamente, o mundo suprassensível x mundo sensível. Ou seja, dois mundos, um melhor que o outro - e adivinha em qual nós viveríamos? No pior, é claro.

Tal separação teria começado lá com o Sócrates de Platão [já que Sócrates não escreveu nada], no famoso mito da caverna. Porém, o Bigode diz que esse outro mundo superior era invenção da carochinha para não aproveitarmos o mundo daqui, esse mesmo, que tem primeiros beijos, cineminha no fim de tarde, chope com os amigos, mas também engarrafamento, falta de grana, ressaca no dia seguinte e pé na bunda. Ele sugeriu que ficássemos com esse aqui que estaria de bom tamanho e não nos preocupássemos com o outro, porque ninguém tinha voltado para contar se ele existia realmente. Assim, de acordo com o próprio, a metafísica teria acabado.

O que não é exatamente o que Heidegger falaria. Ou melhor, Heidegger estava pensando de outro jeito completamente diferente. Para o sósia do Cony, não havia tanta importância sobre o fim deste tipo de metafísica, que fala sobre a separação de mundos, e todo esse blablablá. Ele acreditava que, em vez disso, deveríamos nos preocupar com a posição do sujeito-homem nessa equação. Melhor explicando: para ele, desde há muito, o homem teria começado a se sentir o rei da cocada-preta. Só porque ele percebeu que pensava logo existia, o homem se colocou no centro das decisões de todas as coisas.

A partir de então, o homem foi deslocando Deus - ou quem quer que fosse - dos holofotes para assumir o posto, com direito a plumas e paetês, meio Clóvis Bornay. Porém, o homem jamais teria a envergadura moral [por favor, com trocadilho] para ficar em Seu lugar. Mesmo o além-do-homem, quiçá o super-homem. O homem deveria se aceitar como um imenso e vazio pouco-importante, aleatório em relação a qualquer sentido ou direção. Não existiria nada que o homem pudesse ou conseguisse, a princípio. E quem pensasse de outro jeito estaria ainda seguindo a mesma tradição, que teria tido o início da época Moderna com Descartes, mas que teria se iniciado exatamente com... Sócrates de Platão.

Em outras palavras, apesar de respeitar e gostar muito de Nietzsche, Heidegger insinuou que o seu predecessor era uma criança mimada, que não aceitava ficar de fora da brincadeira, e que achava que o mundo girava em torno de seu umbigo. E que quando era contrariado, criticava o mundo, em vez de aceitar que, bem, ele não é o Rei Sol, e nós não aceitamos a teoria heliocêntrica para explicar o mundo há muito tempo.

O mais legal, porém, é perceber a indispensabilidade dessa impertinência do Bigode, até para sacolejar o mundo - esse mundo aleatório, perdido, sem razões e motivos. Mas é bom sempre ressaltar que [vontade de] potência sem controle é [quase] nada - como diria o comercial. Do outro lado, saber-nos tão insignificantes também pode ser libertador, já que, se unirmos com a impetuosidade irresponsável e infantil, poderemos ir para qualquer lado ou direção que quisermos. No fim, talvez valha raciocinar com a criança diante da caixa de bombom: se podemos ficar com os dois, por que precisaríamos escolher um só e apenas?

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

A voz da vontade

O grande problema de qualquer pensador mais voltado para a filosofia pós-Nietzsche foi responder à questão: e agora? Como viver num mundo sem qualquer parâmetro? Como não cair num imenso e intenso niilismo? Como não ficar deprimido ante o tamanho do mundo e a sua [nossa] infinita insignificância? Enfim, como viver sem Deus?

Daí que Camus anuncia, logo no início de seu ensaio "O mito de Sísifo", que "o suicídio é a única questão filosófica verdadeira". Porque, se não temos um motivo a priori - aliás, se não temos nem um a priori - temos que encontrar dentro de nós uma razão por que viver. Mas e se não a encontrarmos? Ou se, ao a encontrarmos, a perdemos em seguida? Ou se simplesmente não quisermos procurar? O ponto é: os motivos e as motivações não brotam do nada.

Todo esse raciocínio começa ficar meio deprê, mas não é essa a intenção. Porque, repare, se fosse também difícil encontrar um motivo por que viver, teríamos uma epidemia de suicídio. Tudo bem que as taxas de suicídio estão aumentando no mundo como um todo, em média - mas os motivos, especulo, são outros. E, mesmo que seja a maior causa de morte por atos violentos, nós não agimos como os lêmures suicidas da lenda, que se jogam do penhasco, em grupo.

O ponto aqui é outro: por que, então, sem esse deus, sem esse parâmetro primário, por que, então, continuamos? Suspeito que a resposta está, novamente, com Nietzsche, mas numa interpretação do que Nietzsche de certa forma disse. É a tal da vontade.

Exemplo hipotético que tenta comprovar: Um rapaz está deprimido porque perdeu algo que lhe era muito caro e não consegue lidar com essa perda. Depois de tentar todas as outras alternativas, ele decide ir à praia, nadar no mar, para fazer com que o sangue, ao menos, corra nas veias. Consegue, a muito esforço, se levantar e caminhar até a praia. Chegando lá, entra na água e percebe que está muito, muito fria. Ele, tão deprimido, pensa em apenas deixar que o corpo perca a sua força, o seu viço, e afunde. Mas a água está tão gelada que aquilo começa a incomodá-lo de uma maneira estranha. Se ele não quer mais viver, por que estaria incomodado com a água gelada? Não sabe, mas algo simplesmente o empurra para fora da água. Não quer viver no gelo, quer o conforto da areia quentinha, onde bate o sol. Tenta ainda dar umas braçadas, mas o corpo, novamente, toma conta e deixa que as ondas o empurrem para a arrebentação. Sai da água, se senta na areia, e espera o corpo secar, antes de ir para casa.

Claro que isso não acontece com todas as pessoas. Nem sempre a vontade aparece. Há casos em que estamos tão anestesiados, tão numb, que não importa o frio de fora, porque o corpo está muitos graus abaixo. Mas, acredito - e é uma crença, que não tem qualquer comprovação - que se apurarmos nossa audição, sempre vamos ouvir nossa própria voz, a voz da vontade.

domingo, 24 de novembro de 2013

A privataria como solução?

É extremamente comum que encontremos reportagens citando a privatização da empresa de telecomunicações brasileira no governo Éfe Agá Cê como exemplo de sucesso, como aconteceu de novo, agora, com o leilão de concessão do Aeroporto Galeão, no Rio. Eu sou, por princípio, contrário à privatização, de uma maneira geral. Acho que é um atestado de incapacidade: não gosto de desistir da luta e terceirizar meus problemas. Mas, no caso das empresas de telecomunicação, eu acho até meio patética essa defesa.

Claro que a Embratel, e as suas subsidiárias, como a Telerj, eram horríveis. Lembro que para fazer uma ligação devia se esperar dar sinal, o que poderia demorar literalmente horas. Quando assistia a filmes americanos, ficava impressionado com a ligação automática: as pessoas sacavam o telefone, geralmente sem fio, não o colocavam no ouvido, e já teclavam o número correspondente. Que inveja. A telefonia era tão ruim que ter uma linha em casa era sinal de status. Você se tornava, também, acionário da empresa. Celular? Coisa de gente rica. Um período tão estranho para o mundo atual quanto a ideia de "discar" um número.

É claro, também, que, comparativamente, as novas empresas de telecomunicação são melhores que a Embratel. Houve uma imensa popularização dos aparelhos, principalmente celulares. Há muito mais celulares que pessoas no Brasil. Mas essa "democratização" dos telefoninhos não refletiu em melhores serviços. Nem de longe. No top 10 do ranking de empresas mais reclamadas, OITO são telecoms.

Além disso, o serviço, em si, é péssimo. A internet no Brasil é mais lenta que no Haiti ou na Etiópia. Nada contra esses países, mas o país que enche a boca para se dizer a sétima economia do mundo deve [ou deveria] ter os serviços compatíveis com o seu tamanho, d'accord?

A privatização também não barateou os serviços. Se antes era difícil adquirir a linha e comprar um aparelho celular, agora, o assalto chega mensalmente, via conta. Para comprovar, o brasileiro pagava a segunda mais alta tarifa do setor no mundo em 2010. Isso mesmo, a segunda. Só "perdia" para o sul-africano, nosso irmão dessa desigual classe-média do mundo. Perdia, porque agora o Brasil pode orgulhosamente dizer que paga o minuto mais alto de todo o globo [sem trocadilho]. Na minha mais que humilde opinião, isso não é exemplo de sucesso, mas de exploração completa e irrestrita dos cidadãos, transformados em apenas consumidores.

Daí, fica difícil acreditar nas maravilhas que se está vendendo com a venda do Galeão para a controladora do aeroporto de Cingapura, considerado o melhor do mundo, junto com a Odebrecht. Muito provavelmente a situação do aeroporto vai melhorar - como melhorou, sensivelmente a da telefonia. Mas isso me faz crer que há mais uma má vontade pré-leilões, um sucateamento forçado para mostrar como o serviço público seria, por definição, ruim, quando na verdade se você pensar que há inúmeras carreiras públicas que são referência - como as universidades ou a Petrobras - esse argumento não se sustenta. Não nego que haja um vício no funcionalismo público, mas suspeito que deva ser muito mais saudável para o país mudar essa mentalidade que trocar o controle sobre os seus problemas. 

Coincidência: geralmente, o mesmo cara que é a favor da privatização, é contra as cotas nas universidades, ou a vinda de médicos estrangeiros, exatamente porque essa seria uma medida paliativa. E, não, não me venha falar em agência reguladoras, por favor. Se não dá para confiar no governo para fazer, daria para confiar para cobrar?

Se todos os argumentos listados até agora não serviram para comprovar o meu descrédito com uma verdadeira melhora com o aeroporto, basta lembrar que o conglomerado brasileiro Odebrecht é o responsável pelo novo Maracanã e, para ficar no ramo dos transportes, pela SuperVia. Nada mais a declarar.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Os arrastões e a infância na violência

O caso de arrastões nas praias do Rio demonstra dois aspectos que ainda não tinham sido nomeados - e ainda não foram, oficialmente, mas cuja urgência fica cada vez mais difícil de ser escondida. Ambos, claro, têm a ver com a sensação de insegurança, e uma questão é como uma consequência da outra. Em primeiro lugar, esses assaltos e furtos ao atacado mostram como o combate apenas policialesco ao crime não soluciona o problema, apenas o espalha, o modifica, o torna, em alguns casos, mais cruel. O outro é a cruel readaptação da questão inicial: como de uns tempos para cá tenho a impressão de um aumento significativo de crianças e adolescente vivendo na e da rua.

Sempre me impressionou na cena final de "Cidade de deus" a idade dos meninos que assumem o crime na favela

Não há estatísticas que comprovem esse aumento apenas uma percepção de quem vê vários grupinhos, de dez, 15 moleques sujos andando em andrajos, segurando garrafas de plástico transparente e aspirando algum tipo de solvente. Invariavelmente são negros. No Centro, após o horário de expediente, são extremamente comuns, principalmente perto da Carioca, e descendo em direção à Uruguaiana. Em Botafogo, ficam na praia, e em acessos. Sempre se escondendo, se esquivando, sofrendo o processo de marginalização. São presenças constantes, e ausentes da sociedade.

Se não há estatística, ao menos temos um fato que joga luz para essa situação: no arrastão, foram apreendidos tantos garotos - alguns de 10 anos! - que o secretário Beltrame falou que vai penalizar os pais por abandono de incapaz, além de pedir a ajuda do conselho tutelar para resolver o problema. Exatamente porque não é apenas colocando mais policiais na praia que vamos acabar com os arrastões. E não estou dizendo isso por uma impressão esquerdista, do tudo pelo social - não apenas - mas por uma incapacidade generalizada de a polícia dar conta de um problema que é sempre pulverizado. Como estar em todos os lugares ao mesmo tempo? Enquanto a polícia estiver no Arpoador, os meninos vão estar arrastando o posto 9. Quando a polícia estiver no Leblon, eles atacam no 6.

Daí que o Beltrame sempre falou - e não somente ele, mas vários outras pessoas ligadas a área de segurança - que as UPPs não poderiam ser as únicas armas contra a violência. Porque é como se apenas estivéssemos espalhando o problema. Ou espremendo. Se prendemos os cabeças das quadrilhas, outros, geralmente mais novos, vão assumir os lugares. Ou vão arranjar outras formas de ganhar dinheiro, que não vendendo drogas. Ou vão sair das favelas com UPPs porque lá agora há uma certa ordem. Aliás não é incomum de ouvir diversos jovens moradores de favelas com UPPs reclamando das políticas públicas impostas pelos poliças. A ordenação - o viver em sociedade - requer abrir mão de alguns quereres. E eles não estão acostumados.

Todas as vezes que eu vejo esses meninos e meninas nas ruas, com seus corpos sujos e franzinos, me lembro de uma frase que eu ouvi não sei onde, não sei de quem, mas que representa bem esse nosso problema. Pobre é o país que tem medo de suas próprias crianças. #Ficaadica para o próximo lema da nação.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

A próxima revolução: o vegetarianismo

Até o século XIX, homens e mulheres africanos e seus descendentes não tinham os mesmos direitos que os de origem portuguesa ou europeia - no Brasil e em outros cantos das Américas. Não que hoje em dia haja uma igualdade de relações entre esses dois grupos, e os números de assassinatos de jovens negros, muito maiores que os de brancos, está aí para não me desmentir, mas que as diferenças diminuíram bastante nesses mais de cem anos de abolição da escravidão, não dá para negar. Hoje, já não pensamos em questões de raças, mas de culturas, por exemplo. O racismo, mesmo que negado por alguns componentes da nossa elite, é crime. Há ações que tentam, às vezes timidamente, às vezes com mais urgência, diminuir esse monstruosa separação. Ou seja, melhorou.

Na virada do século XX para o XXI, lembro de uma crônica do Verissimo em que ele dizia que os anos de 1900s tinham sido o tempo das mulheres. Elas tinham saído de uma condição de Zimbábue [ou outro país bastante pobre], não para a da Bélgica ou Suíça, mas para uma Argentina, uma Tailândia, uma Turquia - esses países, como o Brasil, classe-média. Novamente, como se vê, ainda não há igualdade de condições, mas houve uma diminuição entre esses pontos extremos.

Recentemente, a discussão sobre a regulamentação da situação jurídica de casais do mesmo sexo vem causando discussão entre países com alto índice de desenvolvimento humano, como é o exemplo da França. Isso é reflexo do tratamento dado por certas instituições erradas que por milênios condenam as relações que fogem do que havia se estabelecido como regra, mesmo que a relação homoerótica seja tão natural quanto a heterossexual. É o momento da luta do pessoal LGBT, luta que começou há já quase meio século.

A próxima grande revolução comportamental, tenho o atrevimento de sugerir [e após a indicação de amigos sobre o assunto], será a do vegetarianismo. A recente polêmica com o resgate do beagles lá no laboratório São Roque é, para mim, a prova de que já começamos o combate. Exemplo disso foi dado pela colunista de um jornal carioca, ligada fortemente ao movimento de defesa dos direitos animais, que chegou a reproduzir uma opinião de uma médica e professora aposentada da UFRJ, em que se defende a utilização de presos em testes científicos, com a contrapartida de diminuição de pena, em vez de se utilizar animais. Em tempo: a colunista se disse contra a sugestão, argumentando, não em favor dos seres humanos, mas da Justiça, que poderia ser afetada caso um criminoso optasse por um teste que não fosse suficientemente cruel em relação ao seu crime.

Eu não sou contra o vegetarianismo, quiçá contra animais: bichinhos fofinhos, oncinha pintada, zebrinha listrada, coelhinho peludo, pelo contrário. São todos ótimos. Acho apenas que a tendência ao vegetarianismo, ou ao fim da morte de outros animais com o fim de nos alimentar, é inevitável, principalmente depois que começaram a fazer hambúrgueres de célula tronco. Mas o que me leva a escrever aqui é o que estaria por trás dessa ligação tão íntima - e cada vez maior - entre homens e animais. Por que só agora resolvemos reconhecer, no nosso âmago, que o cão é o melhor amigo do homem, e não nossa comida?

Na minha mais que humilde opinião, tem a ver com o nosso momento histórico. O homem [o ser humano] tem entre as suas necessidades a de amar. Por mais estranha que essa afirmação soe, a verdade é que o homem precisa amar - e isso inclui, claro, um pouco do passivo "ser amado". Como vivemos tempos em que o amor virou artigo de propaganda de refrigerante, insípido, anódino, limpinho, as pessoas estavam caindo num buraco niilista, que culminava numa sociedade cheia de cinismo, ironia, do blasé como ideal de viver.

Os bichos de estimação vêm resgatar essa capacidade do humano de sentir, de querer bem, de lutar por outra coisa que não si mesmo. Não me espanta a relação de alguns donos de cachorro que tratam seu cão como se fosse filho - há até disputa judicial em caso de separação. Não me assusta a fascinação de donos de gatos, que dizem que, na verdade, são os gatos que os possuem. Os bichos preenchem, em parte, esse vazio que os homens normalmente sentiriam se não compartilhassem de sua presença.

Eu talvez ainda me choque com a declaração da médica e ex-professora da UFRJ, que foi quase corroborada pela colunista. Mas talvez eu que esteja deslocado no tempo. No futuro, vão olhar para os meus textos e achar que eu me comportava como um desses escritores machistas, preconceituosos, homofóbicos, que nossa - e todas as - literaturas do passado estão cheios. Isso, claro, se ainda se ler no futuro.

domingo, 17 de novembro de 2013

'Anticristo', aforismo 39 - Nietzsche

Volto atrás, e vou contar a autêntica história do Cristianismo. Já a palavra «Cristianismo» é um equívoco – no fundo, existiu apenas um único cristão, e esse morreu na cruz. O «Evangelho» morreu na cruz. O que desde esse instante se chamou «Evangelho» era já o contrário do que Cristo vivera: uma «má nova», um dysangelium. É falso até ao contra-senso ver numa «fé», por exemplo a fé na salvação por Cristo, a insígnia do cristão: unicamente a prática cristã, uma vida como a viveu aquele que morreu na cruz, tem algo de cristão... Hoje, uma tal vida é ainda possível e até necessária para certos homens: o Cristianismo autêntico, originário, será possível em todas as épocas... Não uma fé, mas uma acção, um não fazer certas coisas, sobretudo um diferente ser... Estados de consciência, uma fé qualquer, um ter algo por verdadeiro, por exemplo – todo o psicólogo sabe isso –, são de todo indiferentes e de quinta classe perante o valor dos instintos: em teros mais estritos, todo o conceito de causalidade espiritual é falso. Reduzir o ser-cristão, a cristianidade a um ter por verdadeiro, a uma simples fenomenalidade de consciência significa negar a cristianidade. De facto, nunca houve cristão algum. O «cristão», o que desde há dois mil anos se chama cristão, é unicamente uma auto-incompreensão psicológica. Se indagarmos com maior rigor, dominavam nele, apesar de toda a «fé», apenas os instintos. E que instintos! A «fé» foi em todas as épocas, por exemplo em Lutero, apenas uma capa, um pretexto, um véu, por detrás do qual os instintos realizavam o seu jogo – uma sagaz cegueira perante a dominação de certos instintos... A «fé» – já lhe chamei a genuína sagacidade cristã. Falou-se sempre de «fé», mas agiu-se sempre apenas por instinto... No mundo imaginário do cristão, nada ocorre que toque sequer a realidade efectiva: pelo contrário, reconhecemos no ódio instintivo a toda a realidade o elemento impulsor, o elemento unicamente propulsor, na raiz do Cristianismo. Que se segue daí? Que também in psychologicis o erro é aqui radical, isto é, determina a essência, ou seja, é a substância. Retire-se daqui um só conceito, ponha-se no seu lugar uma só realidade – e todo o Cristianismo voltará ao nada! Visto de longe, permanece o mais estranho de todos os factos, uma religião não só condicionada por erros, mas inventiva e até genial unicamente em erros perniciosos, apenas em erros que envenenam a vida e o coração – um espectáculo para os deuses, para essas divindades que são ao mesmo tempo filósofas e com que deparei nos famosos diálogos de Naxos. No instante em que a náusea se afasta delas (e de nós!) – tornam-se gratas pelo espectáculo que o cristão lhes proporciona: o pequeno astro miserável, que se chama Terra, merece talvez, só por causa deste caso curioso, um olhar divino, uma simpatia divina... Mas não subestimemos o cristão: o cristão, falso até à inocência, está multo acima do macaco – uma conhecida teoria das origens torna-se, relativamente aos cristãos, uma simples cortesia... 
[Leio esse aforismo, após escrever 'Nietzschianismo'.]

'Anticristo', aforismo 16, Nietzsche

Uma crítica do conceito cristão de Deus compele à mesma conclusão. Um povo que ainda acredita em si tem também ainda o seu Deus próprio. Nele venera as condições que o tornam vitorioso, as suas virtudes – projecta o prazer que tem em si, o seu sentimento de poder, num Ser a quem por isso pode dar graças. Quem é rico quer dar; um povo orgulhoso precisa de um Deus a quem sacrificar... A religião é, nestas condições, uma forma de agradecimento. É um agradecimento a si mesmo: eis para que se precisa de um Deus. Semelhante Deus deve poder ser útil e prejudicar, deve poder ser amigo e inimigo – é admirado tanto no bem como no mal. A castração antinatural de um Deus para dele fazer um Deus unicamente do bem ficaria aqui fora de toda a esfera do desejo. Tanto se precisa do Deus mau como do bom: não é justamente à tolerância, à filantropia que se deve a própria existência... Que haveria num Deus que não conhecesse nem a cólera, nem a vingança, nem a inveja, nem o desdém, nem a astúcia, nem a violência, que ignorasse porventura os cativantes ardeurs da vitória e da destruição? Semelhante Deus não se compreenderia: então, para que o ter? Sem dúvida, quando um povo entra em colapso; quando sente esvair-se para sempre a fé no futuro, a sua esperança na liberdade; quando a submissão se lhe afigura de primeira utilidade e as virtudes dos servos se insinuam na consciência como condições de sobrevivência, então há também que mudar o seu Deus. Torna-se agora sonso, medroso, humilde, aconselha a «paz de alma», a ausência do ódio, a indulgência, até o «amor» aos amigos e aos inimigos. Moraliza constantemente, rasteja para a caverna de cada virtude privada, faz-se o Deus de toda a gente, torna-se simples particular, cosmopolita... Outrora, representava um povo, a força de um povo, tudo o que de agressivo e sedento de poder existe na alma de um povo: agora é simplesmente o Deus bom... De facto, não há para os deuses outra alternativa: ou são a vontade do poder – e enquanto o forem serão deuses de um povo – ou são a impotência do poder – e então tornam-se forçosamente bons...
[e eu reli esse aforismo DEPOIS de escrever o texto anterior.]

O amor e a revolta à Coca-cola

Ontem vi uma pichação sobre um anúncio da Coca-cola. O [a] interventor [a] rabiscava o "Amor", da campanha "Mais amor", e escrevia por cima, numa participação bastante autorreferencial, "Revolta". Várias interpretações começaram, a partir dessa interferência, a pipocar na minha cabeça. A primeira, é claro, fica para o fato de a mais emblemática empresa do que poderíamos chamar de capitalismo comportamental se aproveitar de um remake de ideologia hippie, adaptada aos nossos tempos, em que se afirmaria "all we need is love".

A campanha da Coca-cola mira na associação da sua marca com uma ideia de felicidade, de "viver positivamente", com a ideia de pensar só em "coisas boas". Mostra em seu site casos de superação, como se desse uma força para a grande transformação do mundo. Isso me lembra do professor de economia que eu tive na faculdade, um cínico neoliberal num mundo de estudantes idealistas de esquerda, que adorava falar que não concebia um mundo - ou um país - em que não houvesse Coca-cola, para desdenhar de qualquer possível avanço dentro do regime cubano. Mostra também como até o capitalismo virou - ou finge ter virado - de esquerda. Parece, assim, que até os maiores banqueiros devem querer uma sociedade mais igualitária. Só nos basta, então, esperar que o capitalismo, um dia, chegue ao Brasil.

De toda forma, a resposta do [a] nosso [a] revoltado [a] pichador [a] mostra que sempre haverá quem vigie o vigia. Ou seja, a contracultura sempre escapa das armas da hegemonia. Enquanto alguém estiver pedindo amor, outra voz - talvez menor, mais baixa, mas ainda assim insistente - vai pedir revolta. E vice-versa. É dessas dicotomias que, já dizia o velho Aristóteles, vivemos.

Porém ["ah, porém"], essa intervenção mostra bastante como vivemos em um mundo asséptico em que se pensa que é possível viver apenas uma face das moedas, sem querer encarar o seu oposto. Ou, em outras palavras, como se fosse possível viver o "amor" sem a "revolta". Como se um não fosse conectado diretamente ao outro, e a muitos outros sentimentos.

Tenho problemas com a palavra "amor". Acho que ficou desgastada por anos e anos de frases vazias, em que as pessoas repetiam como se fossem uma forma de entrar num mundo cor-de-rosa, em que tudo fosse feito de algodão-doce, e que as pessoas viveriam mergulhadas em MDMA. Não que esteja sugerindo que o "amor" seja algo sério, ao contrário. Sou partidário de Oswald de Andrade, que em sua pílula pescou que "Amor = humor". Mas, como diria outro poeta, se você "mora na filosofia / para que rimar / amor e dor?".

"Amor" é um sentimento guarda-chuva - para usar uma expressão do marketing, já que estamos falando sobre. Abaixo de suas varetas, há diversos outros sentimentos, que o compõem, inclusive a "dor", citado no verso do Caetano. Mesmo que ele, no provável momento de muita dor [lembrai do "Tristeza não tem fim / felicidade sim"], se pergunta como um filósofo, isto é, como esse cara que se diz tão inteligente, pode cair no conto do "amor", e, ainda pior, como ele se permitiu sentir a "dor" desse "amor", a verdade é que um e outro são inseparáveis, indissociáveis. E Caetano, que seria ferido pelas garras da ferina tigresa, entre outras garras, sabe disso.

Não estou propondo que as pessoas se encaminhem para trituradores de carne, como aqueles personagens do filme "The wall", sobre o disco homônimo do Pink Floyd, mas que aceitem toda a complexidade e a dimensão do "amor", ou desse sentimento imenso que existe e que vem recebendo o nome de "amor". Nele cabem a raiva, a revolta, o ódio, o tédio, a ansiedade, o nervosismo, mas também, a felicidade, a plenitude, a tranquilidade, a calmaria. Não é possível ter um sem ter o outro. É capaz de termos mais alguns sentimentos que outros, mas não dá para escolher, como num supermercado o que levaremos para casa. A "revolta" não é a Coca-cola tradicional que deixamos para trás porque engorda muito, para escolhermos a light.

Talvez fosse melhor substituir, momentaneamente, a palavra "amor", por uma outra, para dar um refresco a ela. E "amor" ou o que ela representa é tão grandioso que em seu lugar eu só consigo pensar em uma outra, também imensa, e também multifacetada: "vida". Então, na próxima vez que eu falar "eu vivo você", já sabe, não tem nada a ver com telefonia celular.

sábado, 16 de novembro de 2013

Coeficiente de emoção

Em um evento na PUC-Rio, há uma semana, assisti a uma palestra de Javier Toret, da Universitat Oberta de Catalunya, a mesma do Manuel Castells, e um dos grandes midiativistas [essa nova posição] do grupo Indignados, ou, como eles gostam de se autodefinir, 15-M, em referência ao 15 de maio de 2011 em que eles se instalaram na puerta del Sol, uma espécie de Cinelândia madrilenha.

Os indignados, para quem dormiu nos últimos anos, continuaram e impulsionaram o movimento internacional de contestação da forma como a política é feita em todo mundo. Aliás, se há algo em comum em todas as manifestações que atravessam, em menor ou maior escala, o globo [sem trocadilho] é essa insatisfação. Não, meu amigo brasileiro, você não é o único que reclama dos seus políticos. Pode ficar tranquilo, ou se sentir despreocupado de viver no pior lugar entre todos, que isso é comum. Mais comum, infelizmente, do que se pode imaginar.

O evento consistiu em uma série de palestras que tinham o gancho de mostrar que havia uma organização, sim, entre os aparentemente desorganizados que participavam de protestos como os que acontecem no Brasil desde junho. Só não era uma organização formal, ou uma organização como nós a conhecemos, reconhecemos.

Houve vários momentos curiosos e interessantes, como quando Tiago Pimentel, um sujeito de dreadlocks louros e forte sotaque paulista, dos coletivos de mídia Interagentes e Casa de Cultura Digital, citou uma das frases mais assustadoras - e verdadeiras - que se pode dizer sobre política: Segundo Deleuze, ele disse, não seria possível haver um governo de esquerda, apenas um governo mais permeado aos ideais da esquerda. É fácil entender o conceito, se levarmos em conta a proposta de mudança, revolução, transformação que estaria incluída dentro do conceito de esquerda, o que é totalmente diferente da imobilidade de um Estado. É de assustar, às vezes, escutar o óbvio.

Mas o momento mais assustador [para mim, ao menos] foi quando, durante a apresentação de Toret ele falou de uma das métricas que eles, do 15-M, estavam usando para aferir o impacto das manifestações durante os protestos em 2011 [aliás, esse é um detalhe que devemos levar conosco: estão há dois anos estudando as manifestações, já]: uma espécie de coeficiente de emoção das interações dentro das redes sociais.

O processo era o seguinte, se eu entendi direito: eles criaram um robozinho que vasculhava a internet para saber como as manifestações foram comentadas, que tipo de emoção estava sendo associada a ela. Se o cara dizia: "Odiei a manifestação", era catalogado como "ódio". Se o cara dizia "Adorei o protesto", como "amor" ou algo do gênero. E assim por diante. O primeiro e principal problema nessa metodologia é óbvio. A linguagem não consegue refletir de maneira correta todos os tons da nossa emoção. Um exemplo tosco e banal: se o cara escreve "A passeata foi foda!", qual é a emoção que está implícita aí?

Além disso, uma frase não quer dizer exatamente o que a pessoa estava sentindo. O fato de ter escrito que odiava a manifestação não demonstra que o seu autor realmente a odiou, pode ter exagerado no tom. Também não quer dizer que o que ele considera ódio é o mesmo que outra pessoa considera. Como, então, igualar essas duas frases dentro de um mesmo conceito totalmente abstrato?

Eu gosto bastante de discussões políticas, mas, para mim, este não é o fundamento do humano - apenas o fundamento da vida em sociedade. Para mim, haveria algo ainda anterior à política, que identificaria o humano, que eu estou chamando muito amplamente de humanidade, ou o pensamento sinuoso, e que, na minha mais que humilde opinião, não seria possível matematizar, i.e., transformar em dados, códigos para uma análise numérica quantitativa.

Naquele momento, eu percebi que aqueles homens à frente da sala razoavelmente cheia, que seriam uma nova esquerda do mundo, uma nova forma de se organizar politicamente, já não compartilhavam a mesma humanidade, ou o mesmo conceito de humanidade, que eu. Eles estão tão integrados com as máquinas que aparentemente perdem toda a eternidade que existe entre o 0 e o 1. Não é de assustar que, e novamente eu vou citar a mais que famosa e derradeira entrevista de Heidegger, o filósofo de Meßkirch tenha afirmado - na década de 1960 - que a filosofia tinha acabado e que o que ficaria no lugar dela era a cibernética. Se sempre fomos homens-máquinas, homens-tecnológicos, agora, estamos virando máquina-homem.

Eu sei que isso é um problema da metodologia, e que a filosofia tende a se afastar disso, ainda bem, mas não consigo ficar satisfeito, mesmo, com essa tendência de transformar o mundo em um código binário. O homem, ou o homem-humano, não pode ser reproduzido numa impressora 3-D.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Nietzschianismo

Buda não seria budista, Cristo não seria cristão, Nietzsche não seria nietzschiano. Os três tiveram suas obras extremamente reinterpretadas por seguidores, fieis, estudiosos, que, após a morte dos patronos, disputaram a hegemonia de ser o portador desta ou daquela verdade. E, acredito, nos três casos, eles jamais seguiriam um guru, ou uma receita de bolo que dissesse o que seria bom, qual seria o caminho a trilhar. Mas a verdade é que eles criaram formas de pensar que influenciaram  - e influenciam - gerações, séculos, milênios.

O caso de Nietzsche é o de menor impacto, obviamente. Mas é curioso que uma leitura, não necessariamente uma leitura no sentido mais estrito do termo, mas uma leitura de suas propostas seja a voz dominante no momento atual. Muitíssimo resumidamente, ele foi o cara que pendurou a placa na parede dizendo que Deus tinha morrido. E que, com isso, se inaugurava a era do além-do-homem, que seguia simplesmente a sua vontade de potência, e não mais um código de condutas. Ou seja, numa interpretação canhestra, ele inaugurou [ou anunciou, ou percebeu] a era da individualidade extrema.

Reparem, não foi Nietzsche quem matou Deus. O bigodudo apenas percebeu que Ele tinha sido morto, e quem o havia matado foram os homens."O louco então gritou: 'Para onde foi Deus? o que vos direi! Nós o matamos! Vós e eu! Somos nós, nós todos, os assassinos!'", como o próprio escreve lá no mais que citado aforismo d'"A Gaia ciência". Mas, como se vê no texto, o louco fica, com o perdão da redundância, louco com a morte de Deus. Como assim? Como matamos o Cara? Ou seja, Nietzsche não era a favor, em tese, da morte de Deus, ele era a favor da destruição completa da forma de pensar que se estabeleceu a partir do Deus judaico-cristão. Ou seja, Nietzsche, além de não ser nietzschiano, não era também cristão.

O alemão percebe, porém, que, com a morte do Cara, ou seja, com a perda de importância que esses códigos criados a partir de um ser invisível que sabe tudo, está em todos os lugares e pode tudo, seria provável que a humanidade, tão acostumada a ser mandada, caísse num imenso buraco, num vazio extremo, num luto. Era o que ele chamava de niilismo. E ele imaginava que alguns, entre todos, conseguiriam sair do buraco, exatamente porque seguiriam as suas vontades, os seu quereres, à medida do possível. Era a vontade de potência.

O que se deu com isso, porém? Com a morte de um grande ícone, que unia a todos, um grande fundo, que ultrapassava os limites da pessoa física, algo que nos fazia, de alguma maneira, iguais, apesar de todas as nossas diferenças, outros elementos iriam entrar no lugar Dele para substituí-lo. Daí, as paixões avassaladoras dos ingênuos, o capitalismo selvagem dos inescrupulosos, as utopias igualitárias dos idealistas. A lista é grande, mas o raciocínio é o mesmo: não há mais um sentimento, algo que envolva toda a humanidade em conjunto. Ou melhor, até pode haver, mas ninguém consegue enxergar o óbvio.

O caminho seguiu e esses deuses menores foram se fragmentando, mais e mais, à medida que o tempo passou, em direção ao que se vê hoje: uma sociedade inteira de indivíduos que quase não dividem qualquer sentimento em comum. Isso é um problema em si? Não, não necessariamente, mas o que se viu, como consequência dessa individualização extrema foi um processo de perda da capacidade humana. Nos tornamos, cada vez mais, outra coisa que não o humano que, talvez, nunca fomos, mas sempre imaginamos. Humanos são aqueles que se emocionam, ficam verdadeiramente felizes, tristes, chateados, ansiosos. Somos anestesiados por uma série de medicamentos, não só os de tarja preta, e perdemos a vontade. Exatamente a vontade. Ironia do destino, que nos levou a um destino irônico.

Daí, talvez, se encaixe o raciocínio de Heidegger, quando ele fala que só um Deus pode nos salvar. Claro que não um Deus cristão, alguém que manda e desmanda. Mas um sentimento que nos ultrapassasse e nos unisse. Que demonstrasse que, de alguma maneira, por mais que temos vontades individuais, que explodem a todos os momentos, nos direcionando para lugares em que nem sempre somos convidados, temos algo que nos faz igual. Humanidade? O fato de termos vontade? O que será? 

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Felicidades e tristezas em 'Orfeu Negro'

[Publicado originalmente aqui.]

É bastante representativo que a música mais conhecida fora da peça Orfeu da Conceição, de Vinicius de Moraes, seja a que canta “tristeza não tem fim / felicidade sim”. Em todas as suas estrofes, a canção mostra como a felicidade é efêmera: gota de orvalho numa pétala de flor, pluma que o vento vai levando pelo ar. Curiosamente a música se chama "Felicidade", e é representativa porque resumiria o caráter da tragédia, que virou filme pelas mãos do francês Marcel Camus (sem parentesco aparente com o outro Camus, o Albert), com a trilha sonora assinada por Tom Jobim. Mas será que toda tragédia mostra que a tristeza não tem fim, apenas, no caso, a felicidade?

O filme de Camus, Orfeu negro, é falado em português e situado no morro da Babilônia, como se fosse uma espécie de Olimpo carioca, com o Pão de Açúcar de um lado, a praia do Leme do outro. Vinicius percebe isso e escreve na introdução da peça: “O morro, a cavaleiro da cidade, cujas luzes brilham ao longe”. Ele traz o mito trácio de Orfeu para a realidade dos negros e das favelas do Rio de Janeiro no fim da década de 1950, com direito a samba, carnaval e sensualidade. Novamente para comprovar isso, na introdução da peça, Vinicius sugere que “todas as personagens da tragédia devem ser normalmente representadas por atores da raça negra, não importando isto em que não possa ser, eventualmente, encenada com atores brancos”. Ou seja, não era uma cota, mas uma indicação de como o seu autor, o branco mais preto do Brasil, ficaria satisfeito. E, comprovando o nosso racismo velado, teria sido, segundo o site oficial de Orfeu, apenas na primeira montagem da peça, em 25 de setembro de 1956, com quase meio século de existência, que o Theatro Municipal recebeu um ator negro em seu palco. No caso, um elenco inteiro.

Para perceber a importância do herói Orfeu para a mitologia dos trácios – um povo que ficava exatamente na ligação entre o que hoje chamaríamos de Grécia, Bulgária e Turquia –, Voltaire, em seu Dicionário filosófico, o compara a Abraão, entre judeus, cristão e muçulmanos, a “Tot entre os egípcios, o primeiro Zoroastro na Pérsia, Hércules na Grécia” e “Odin nas nações setentrionais”. Sua história, diferente de outros mitos, não tem uma versão “oficial”, não aparecendo em Homero ou Hesíodo, por exemplo, mas já era conhecido no tempo de Ibicus (c. 530 a.C. ) e Pindar (522 – 442 a.C.), que o chamava de “pais das canções”. Em algumas fontes, se diz que Orfeu seria filho de Apolo e da musa Calíope (como a própria peça de Vinicius, que coloca como sua mãe Clio, a musa da História), em outras, esse parentesco não é citado. Há muitas referências a Dionísio, inclusive chegando a dizer que ele seria a hipóstase do deus grego, ou seja, sua realidade concreta, sua substância, sua “encarnação”. De qualquer forma, é curiosa a ligação com esses dois deuses (Apolo e Dionísio), principalmente após Nietzsche, em O nascimento da tragédia, os ter colocado em posições quase antagônicas, de um lado o belo, o perfeito, a verdade, a razão, do outro o instinto de força, de luta, de desequilíbrio. No meio, entre os dois, a música. É aí que Orfeu, o herói, se situa. É o ponto de convergência entre Apolo e Dionísio.

Morto por mulheres
Se não temos a certeza do texto oficial, podemos perceber que em todas as versões que se contam sobre o mito, há uma coincidência: Eurídice. É por ela que Orfeu se encanta, se apaixona, e é por ela que ele vai até o Hades, o reino dos mortos. Os dois estão juntos quando Eurídice foge da perseguição do pastor Aristeu, e, na fuga, pisa em uma serpente que a pica, e a mata.  Desesperado, Orfeu resolve usar a sua arte para trazê-la de volta à vida. Desce ao submundo, e encontra Hades que fica sensibilizado com a sua música, e com o seu sofrimento, e faz-lhe a proposta de trazer Eurídice ao mundo debaixo do sol. Hades aceita mas impõe uma condição: desde que, na trajetória, Orfeu não olhasse para sua amada. Mas o amor nem sempre é paciente. O desespero, a ansiedade e a insegurança foram maiores e Orfeu, antes de chegar de volta ao mundo dos vivos, se vira e a encara. Assim, desrespeitando a ordem de Hades, a perde para sempre. De volta ao mundo dos vivos, Orfeu foi morto – as assassinas variam, mas sempre mulheres – por aquelas que se sentiram desdenhadas e invejavam o amor de Orfeu por Eurídice. “Mas as Musas, a quem o músico tão fielmente servira, recolheram seus despojos e os sepultaram ao pé do Olimpo. Sua cabeça e sua lira, que haviam sido atiradas ao rio, a correnteza jogou-as na praia da Ilha de Lesbos, de onde foram piedosamente recolhidas e guardadas ” – explica La leyenda dorada de los dioses y de los héroes, da autoria do helenista Mario Meunier, citado na apresentação da peça de Vinicius.

O filme de Camus, que venceu a Palma de Ouro do festival de Cannes, além de ganhar o Oscar de melhor filme falado em língua estrangeira, segue esse mito. Orfeu (Breno Mello) é um motorneiro e um grande músico, um dos principais componentes da fictícia escola de samba do morro da Babilônia. Segundo a lenda em torno de si, é ele quem faz, com o seu violão, o sol se levantar todos os dias de manhã. É um sujeito alegre, simpático, por quem as mulheres do morro vivem suspirando, enquanto os homens o consideram um grande camarada. Mais atirada que as demais, Mira (Lourdes de Oliveira) consegue levá-lo a um cartório para que fiquem noivos. Mas o homem que os atende, como um oráculo, já vaticina: Orfeu sempre ficou, fica e ficará com Eurídice. E Eurídice (Marpessa Dawn) já estava lá. Tinha acabado de chegar ao morro da Babilônia, vinda do Nordeste, fugindo de um homem, fazendo as vezes do pastor Aristeu, que ela diz que lhe quer mal. Chega no início do carnaval e vai ficar na casa da alegre Serafina (Léa Garcia), que vai proteger o casal e criar situações para que Mira não perceba a aproximação dos dois. A partir daí, a história segue até o seu esperado fim.

O que Vinicius de Moraes (e depois Camus) fez com Orfeu foi seguir uma tradição da modernidade, a mesma que o irlandês James Joyce já tinha seguido ao visitar a Odisseia em seu clássico Ulysses. Eles trazem o mito grego para os dias de então, mostrando como eles são eternos, e adaptar determinadas passagens para cenários e situações da cidade em questão. Joyce com Dublin, Vinicius com o Rio, mas o Rio mais pobre que há. Além disso, Joyce também usou da linguagem que era mais cara aos anglo-saxões, a literatura, enquanto Vinicius quis misturar palavra, som e gestos no teatro, mostrando o caráter menos letrado do nosso povo, mas não menor em nenhum aspecto, por conta disso.

Na ida ao reino dos mortos, por exemplo, Camus teve a brilhante ideia de adaptar um dos principais símbolos que há no Brasil de ligação entre os vivos e os não-vivos. Após a morte de Eurídice, Orfeu fica vagando pela cidade cheia por causa do carnaval. Em seguida, é levado por um faxineiro que se apieda de seu desespero para um terreiro de uma religião afrodescente, onde acompanha um ritual de evocação de espíritos. O seu acompanhante sugere que ele cante, para chamar Eurídice de volta, e Orfeu obedece. O clima da cena aumenta, com som de atabaques crescendo de volume, várias mulheres vestidas de branco andando em círculos, como se quisessem entrar em transe, até que uma delas recebe um santo. Orfeu fica assustado, mas continua cantando, até que se ouve uma voz, a voz de Eurídice, vinda de trás de Orfeu. Ele fica ainda mais surpreso, não esperava conseguir encontrá-la. Eurídice diz que eles poderiam conversar, mas que nunca mais se veriam. Ele jamais poderia se virar para vê-la. Se fizesse isso, ela desapareceria para sempre. Desesperado e sem aguentar ficar longe da mulher que ama, Orfeu se vira e vê não Eurídice, mas uma mulher mais velha, que não tinha aparecido até então, e que logo depois, sai do transe. O espírito de Eurídice já tinha ido embora.

Ao voltar para o morro, depois de já ter encontrado, ao menos, o corpo de Eurídice, Orfeu, carregando o cadáver nos braços, é recebido por uma ensandecida Mira, que havia descoberto que estava sendo enganada. Ela ataca Orfeu que morre, ao cair de uma ribanceira, junto com Eurídice. O herói, na morte, se une à sua amada.

Além da felicidade
A história de Orfeu, como a grande maioria das tragédias gregas, mostra que não podemos escapar do nosso destino último, que é a morte.  Mas mostra também que até lá, até o suspiro final, podemos navegar nessas águas nem sempre calmas da maneira como conseguirmos. Nem sempre os ventos são a favor, mas podemos nos adaptar para tirar o melhor proveito disso. O que Vinicius e Camus fazem, com essa adaptação do mito trágico, é jogar luz ao caráter melancólico, além do galhofento, da cultura nacional.

Mostram que, além da felicidade, também é do nosso caráter, até por sermos humanos, a tristeza. Não dá para escapar dela. Essa afirmação pode parecer até estranha num momento como os tempos presentes, em que se busca o prazer de maneira desesperadora, como se viver sem prazer já fosse um sofrimento em si. Mas tristeza e felicidade são, de uma maneira misteriosa, interligadas. Assim como Apolo e Dionísio.

Certamente há momentos em que é complicado pensar que haverá outro carnaval, quando a quarta-feira de cinzas chega, como mostra uma das estrofes da música “Felicidade”, de Vinicius: “A felicidade do pobre parece / A grande ilusão do carnaval / A gente trabalha o ano inteiro/ Por um momento de sonho/ Pra fazer a fantasia / De rei ou de pirata ou jardineira/ Pra tudo se acabar na quarta-feira”. Falta um ano inteiro de tristezas, que parecem não ter fim.

Porém, é também certo que o próximo carnaval é mais aguardado e saboreado quanto mais cinzenta for a quarta-feira. É essa dualidade que faz com que ambos os lados tenham sabor. Se só tivermos contato com um deles, ele acaba se autodeprimindo, ficando sem forças, já que não haverá felicidade o suficiente para se manter para sempre alegre, ou para livrar de uma tristeza profunda. E basta-nos estar na vida para saber que ela sempre se movimenta. Como se a felicidade tivesse fim, sim, mas a tristeza também. Apenas não conseguimos enxergar esse fim, quando estavamos vivenciado um ou outro sentimento. Mas o simples fato de os sentimentos existirem, mostra essa dinâmica de um lado para o outro, como se fosse um pêndulo.

Apesar da grande tragédia, o fim do longa deixa uma pista para essa conclusão. Os dois meninos que acompanham Orfeu e Eurídice durante todo o filme, correm para tocar o violão de Orfeu e assim fazer o sol nascer – como o herói sempre fazia. O sol, de maneira completamente independente das nossas vidas, continua a se levantar. Mas nós podemos dar um sentido para ele – no caso, tocando a música que o fará despertar. Ao se levantar, o sol também nos mostra mais que uma indiferença para com todas as tragédias debaixo dele. Nos aponta uma proposta de vida: de que precisamos seguir, sempre. Mesmo nos momentos mais tristes.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

O início e o fim da era de Nietzsche

Já ouvi acusarem Nietzsche de ser um sujeito que queria apenas complicar em vez de explicar. Que queria arrumar confusão. Cujas ideias não se aplicam à sociedade. Um adolescente, imaturo. Alguém que não sabe ser contrariado. Em suma, um mimado. Porém curiosamente Nietzsche, talvez mais que a maioria dos filósofos, deve ser entendido dentro de um contexto histórico. Para percebermos que, talvez, não seja nada disso, é aconselhável colocar esse mesmo Nietzsche, que dizia que a História servia para muita coisa, além de criar culpa e remorso, dentro de um momento da passagem do tempo.

Assim podemos ver que ele estava lutando contra uma série de pretensas verdades que travavam os músculos das pessoas que queriam simplesmente viver. Ele queria libertá-las, e se sacrificou - sem o pedido de ninguém - por isso. Propôs novas formas de se acreditar na vida, que ele sustentava que eram melhores, mas que não dá para garantir mesmo que são, ou que funcionem para todo mundo. Criou uma nova forma de pensar que, sob um forte filtro interpretativo, contaminou totalmente as gerações seguintes, a ponto de agora, ser complicado concordar com ele. Ou seja, em outro contexto histórico, Nietzsche, que dizia que já nasceu póstumo, está fadado a desaparecer. E assim a roda da vida gira novamente.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Shiva, o deus de Nietzsche

Sempre me deixou encafifado aquela frase que Nietzsche atribui a seu Zaratustra no fragmento "Ler e escrever": "Eu só poderia crer num Deus que soubesse dançar". Principalmente porque antes disso, antes de sua obra-mor, ele já tinha anunciado a morte de Deus, na anterior, Gaia Ciência. Claro que o conceito de deus, que tinha morrido na Gaia Ciência não era o mesmo que Zaratustra-Nietzsche citou em seguida.

Se no livro anterior, ele estava abordando toda a falência de um modo de viver e pensar, que tinha sido baseado na moral judaico-cristã, que nos tinha dado os parâmetros do certo-errado, na frase de seu herói, ele está, muito provavelmente, fazendo uma citação. Está dizendo, não que ele gosta de dançar e está propondo que a dança se torne o parâmetro da vida, mas que, em primeiro lugar, a dança é sinal da vitalidade, de uma proposta da sensualização da vida, de um mundo em que o corpo está em primeiro plano, não atrás; e em segundo lugar, ele está falando de Shiva.

Shiva dançarino, em seu avatar Nataraja
Não é curioso que o homem que implicou com as religiões que ele encontrou - judaísmo, cristianismo, budismo - tenha falado essa frase no meio de seu livro mais famoso? Não há uma referência direta ao hinduísmo nesta passagem, nem a Shiva, mas Rüdiger Safranski, o cara que biografou apenas Schopenhauer, Nietzsche e Heidegger, escreve assim na página 212 da edição brasileira do livro sobre o bigodudo:
Para Nietzsche, com a morte de Deus se evidenciam a audácia e o caráter lúdico da existência humana. E um além-do-homem será então aquele que tiver a força e a leveza para penetrar no jogo sempre igual do mundo. O transcender de Nietzsche vai nessa direção: para o jogo como fundamento do Ser. O Zaratustra de Nietzsche dança quando atingiu esse fundo; dança como o deus hindu do mundo, Shiva. E o próprio Nietzsche também haverá de dançar nu em seu quarto, pouco antes do colapso mental, nos últimos dias em Turim. Isso a dona da casa observou pelo buraco da fechadura.
Nietzsche, seguindo essa hipótese, diz que acreditaria num deus apenas se ele fosse Shiva. Mas quem é Shiva, na mitologia hindu? É um dos deuses da Trimurti, a principal trindade do hinduísmo. Um dos seus principais atributos, um dos seus ícones mais famosos, é o lingam, uma representação do falo. Shiva também é o deus das artes e da yoga. Mas Shiva é principalmente o deus da destruição, na trindade. Brahma é o criador, Vishnu o mantenedor, e Shiva aquele que destrói. Não soa algo muito parecido com o cara que dizia filosofar com o martelo?

Para os hindus, a ideia de um deus que destrói não soa despropositada, ou pessimista, ou ainda desesperadora: eles pensam que é necessária a destruição para que a roda da vida gire, para que se possa, novamente, construir e se manter. Shiva é aquele que dá a chance para as novidades acontecerem. É aquele que deteriora a matéria orgânica para adubar a terra e deixá-la apta para produzir novas vidas. Não seria possível pensar novas existências sem cogitar as formas de outas existências para montar essa nova.

Na Índia, apesar de existir uma civilização culta e milenar, era muito difícil encontrar um prédio muito antigo. Mesmo em Varnasi, considerada pelos indianos a cidade mais antiga ainda existente, os prédios são velhos mais por causa da falta de cuidado que pela idade. As construções de séculos de existência são normalmente de origem muçulmana. Porque, para os seguidores de Shiva, Brahma e Vishnu, o importante é sempre renovar, recriar, reconstruir.