terça-feira, 29 de abril de 2014

O fundamento de toda a vida para Heidegger: a morte

Em uma possível interpretação, o que foi chamado por Heidegger na palestra que se transformou no livro "O conceito de tempo" de "trânsito" - mas que a tradutora Irene Borges-Duarte lembra que é um tipo de sinônimo de passamento, do porvir - seria a única certeza dentro da completa incerteza que é a vida. Incerteza porque incapaz de a partir dele determinar um caminho a se seguir. Mas, mesmo com essa impossibilidade, temos, ao menos, uma certeza, ou algo que nos une, um mínimo, um chão em que todos pisamos: a morte. Como se dissesse o óbvio com palavras rebuscadas: todos seguimos para o passamento, para a morte, mas até lá, ninguém sabe ao certo o que acontece.

[Safranski na biografia do Heidegger diz que o filósofo de Meßkirch começou a criar neologismos e retrabalhar a língua para falar sobre coisas simples de maneira difícil. O curioso é que o plano funciona - para mim, ao menos. De tão novo que é essa língua, que é muito alemã, com toda a sua lógica matemática, me faz prestar muito a atenção, me deslocando de onde estou para dentro dela.]

De posse desse fundamento mais fundamental, a base que compartilhamos entre os seres viventes, fica a questão, a única questão: seria possível construir uma ontologia a partir dele? Ou seria frágil demais isso? Ou, teria sido exatamente isso que Heidegger fez e eu, que ainda não li "Ser e tempo", não saquei ainda? Suspeito dessa última proposta principalmente pelo fato de ele dizer que não havia mais nada que pudesse nos salvar [lembrai da famosa última entrevista dele], e como a filosofia, dentro desta interpretação, teria tido fim com Nietzsche. Seria por isso que Hannah Arendt teria optado, então, por ser qualificada como cientista política, em vez de filósofa? Ela, assim, ainda proporia uma participação no mundo.

De toda forma, esse "primeiro Heidegger" ainda está imbuído da vontade, da paixão, que seduziu Hannah Arendt e tantos outros alunos - e alunas. Ele não se mostra derrotado [nunca se mostrou], nem blasé, ao se afirmar em um mundo sem qualquer parâmetro fixo. O epílogo escrito pelo editor alemão Hartmut Tietjen defende que este curto texto de 1924 conseguiu já apontar os grandes temas que Heidegger iria expor em toda a vida, argumentando, inclusive, que conteria os assuntos que Heidegger teria prometido escrever em seu "Ser e tempo" e não tinha conseguido colocar nas suas cerca de 600 páginas.

O que Heidegger defende não é nada macabro, pessimista, muito menos niilista - nem existencialista no sentido sartriano, parece. Ele mesmo lembra em vários momentos que o pessimismo não faria sentido, já que seria uma fantasia da realidade. O que ele estabelece é a nossa única certeza, de onde sabemos que não podemos escapar. Lembra que essa certeza nos dá parâmetros, nos dá uma medida para saber qual é a importância dos detalhes do cotidiano, de uma maneira que lembra de leve o que eu chamo ironicamente de ideal categórico amoral do eterno retorno nietzschiano. Faça aquilo que lhe é verdadeiro, se possível.

Sugere que não nos guiemos por qualquer tipo de obrigação moral, de ser algo imposto de fora para dentro, já que a sociedade, que ele apelida com um palavrão "Miteinandersein", que foi traduzido por "ser-uns-com-os-outros", seria impessoal. Antes de citar [para dar um piscadela que pode soar pedante, mas não é a intenção], uma pequena explicação: Heidegger chama o ser humano de Dasein, que numa tradução comum seria ser-aí - "aí", no sentido de sermos dentro da temporalidade. Em outras palavras: somos, existimos, em todos os instantes [outro palavrão heideggeriano: respectivamente-em-cada-momento]. Finalmente, de posse dessas informações, vamos ao momento citação [não tenham medo e encarem]:
O ser-aí, determinado como ser-uns-com-os-outros, quer, simultaneamente, dizer: ser conduzido pela interpretação dominante, que o ser-aí dá de si mesmo, daquilo que se diz, pela moda, pelas correntes, pelo que dá que falar: as correntes não são ninguém; aquilo que é moda - ninguém. Na quotidianeidade [a tradução é portuguesa!], o ser-aí não é o ser que eu sou; antes, pelo contrário: a quotidianeidade do ser-aí é esse ser que se é. E, por conseguinte, o ser-aí é o tempo em que se é uns-com-os-outros: o tempo-impessoal. O relógio, que se tem, cada relógio mostra o tempo do ser-uns-com-os-outros no mundo.
Numa tradução da tradução, mastigando para só engolir [o que não é aconselhável, mas vamos relevar hoje]: O ser humano, quando agindo de acordo com a opinião de outros, é conduzido pela interpretação, que o ser humano acredita existir, do que ele ouve, pela moda, pelas correntes, pelo que dá o que falar. Mas esses elementos são impessoais: não há ninguém por trás da moda, das correntes, do hype. No dia-a-dia, no cotidiano, o ser humano não é ele mesmo, não é autêntico, não se mostra claramente. Daí a impessoalidade desse tempo. E, claro, o relógio é a marca desse tempo, que não respeita as vontades, os tempos de cada um.

Hoje, esse tipo de raciocínio pode ser interpretado como extremamente egocêntrico, individualista, distante do mundo real. Considerando que vivemos em um tempo em que essas qualificações se transformaram em hegemônicas, pode parecer contraproducentes pensarmos em adentrar ainda mais esse aspecto, pode parecer que queremos aumentar a ferida que já sangra em borbotões. Se for esse o caminho da sua interpretação, vou parafrasear Chico e dizer que "Para um coração mesquinho / Contra a solidão agreste", além de todos os músicos citados em "Paratodos", Hannah Arendt, e o seu conceito de político, "é tiro certo". Mas nem acho que o caso é esse.

Talvez ele interpretasse que a onda individualista atual é exatamente isso: uma onda. Uma moda, uma corrente. Que devemos ter a noção do nosso fundamento mais fundamental em todos os momentos: vamos morrer. Não sabemos quando, não sabemos como. E, de posse dessa informação, que estaria conosco, hum, respectivamente-em-cada-momento, viver. Até a morte, o que nos resta não é - necessariamente - nos isolar, sair do mundo, nos transformar em misantropos, se assim não for o chamado da sua [minha, nossa] autenticidade. Devemos apenas, não tentar responder "o que é a vida?", mas "como é a vida?".

quinta-feira, 24 de abril de 2014

'Esqueça', por Czeslaw Milosz

Esqueça
Esqueça o sofrimento
Que você causou.
Esqueça o sofrimento
Que te causaram.
As águas rolam e rolam,
Fontes faíscam e logo secam,
Você anda na terra e a esquece.
Ouve às vezes um refrão lá longe.
O que ele quer dizer, quem o canta?
Um solzinho infantil aquece.
Um neto e um bisneto nascem.
Você volta a ser levado pela mão.
Os nomes dos rios restam com você.
Como esses rios parecem sem fim!
Os campos permanecem selvagens,
As torres urbanas perecem.
Você permanece mudo no limiar.

Czeslaw Milosz

[da coluna de M. S. Conti, hoje.]

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Caricaturas da esquerda e da direita

Quando eu comecei a nadar, com poucos meses de idade, havia dois tipos de técnicos no clube onde eu, bebê, era levado [Claro que eu não me lembro de nada disso, mas a história me foi contada várias vezes depois, sem nenhuma interpretação incluída, só a história pura]: Um priorizava a equipe; o outro só queria treinar quem quisesse treinar com ele. O primeiro criou uma equipe que ganhou não sei quantas vezes o campeonato mais importante que o clube participava, o segundo treinou campeões e recordistas brasileiros.

O primeiro pensava no todo, e às vezes não conseguia lapidar melhor um ou outro talento que escapasse para o lado de cima da média desse grupo. O treino em geral era fraco para esse subgrupo que sobrava. O outro não se esforçava para mandar os mais preguiçosos fazer as séries mais bizarras. Não queria treinar, tudo bem - todo mundo é livre para fazer o que quiser. O primeiro era paciente, o segundo, prático.

O primeiro deixava de explorar as potencialidades de meninos e meninas que poderiam ser grandes atletas. O segundo deixava de explorar as potencialidades de meninos e meninas que poderiam ser atletas. O primeiro acreditava que todos somos iguais. O segundo, que todos somos diferentes.

Hoje, após já ter parado de nadar competitivamente há mais da metade da minha vida, me pergunto várias coisas sobre essa anedota: será que só existiam dois tipos de treinadores? Será que não haveria um terceiro tipo de treinador, que conseguisse lidar com essas duas questões? Aliás, só havia essas duas questões? Inclusive: por que os dois treinadores não poderiam trabalhar juntos? Quem era mais injusto, o primeiro ou o segundo treinador?

[Claro que usar o esporte competitivo como metáfora já tem um problema em sua estrutura: a própria competição. Mas considerando que na vida cotidiana é muito difícil - mas não impossível - escapar de alguma versão de competição, sugiro relevar. Além disso, qualquer paralelo é imperfeito - então, por favor...]

sábado, 19 de abril de 2014

A genial banalidade de Jonathan Franzen

Muito já foi dito sobre "Freedom", a obra-prima de Jonathan Franzen, e talvez eu não acrescente nada. Mas, ao terminar de lê-lo, há pouco, fiquei com um sabor diferente na boca. Não pelas qualidades do livro - é um livraço, gostei de um jeito que eu não esperava, mexeu comigo profundamente - mas por quase uma trama colateral. Ou melhor dizendo: a escolha de assuntos que beiram o cotidiano. Como ele tenta achar a poesia, a tragédia, o lirismo, o drama, a dor, a alegria, em temas que, para olhos menos acostumados, seriam simplesmente banais.

Não sei se é uma coincidência ou uma relação que se pode estabelecer entre os países de língua inglesa, mas foi a mesma sensação que eu tive quando, em 2012, eu assisti à abertura das Olimpíadas de Londres, no momento da homenagem aos sistema de saúde pública da ilha. Como é possível fazer brilhar um assunto tão sem brilho? Não tiro a importância do National Health Service - ele realmente é incrível, um modelo para o mundo - mas não é algo a que estamos acostumados a festejar. Homenageamos os grandes heróis, as grandes conquistas mais factuais, as grandes vitórias. O NHS é uma grande vitória, sem dúvida, mas sua luta é no âmbito do dia-a-dia. Faz muito mais parte da dura realidade das pessoas que, sei lá, as bandas de rock inglesas, ou a revolução industrial, que também foram parte da mesma festa de abertura. É algo de hoje, que mexe com a vida das pessoas agora, não em seus sonhos.

O principal tema de "Freedom" - e do seu anterior, "As correções" - é a estrutura familiar. E esse argumento, por si só, já seria o máximo do cotidiano do mundo. Em que lugar não se formaram estruturas nucleares, entre dois ou mais indivíduos que, por algum tempo, mesmo que escasso, compartilharam o mesmo teto? Por outro lado, há já uma tradição na ficção de se tentar explorar as entranhas dessa organização entre os indivíduos que passa por uma acelerada transformação, para acompanhar o ritmo do mundo. Principalmente na ficção americana. Veja o que foi a produção cinematográfica alternativa deles nos últimos 20, 30 anos. Mas não é só isso que Franzen faz.

Assim como a abertura de Londres, ele usou como assuntos de fundo, as matérias mais "apoéticas" que encontrou, que não carregariam nenhuma ou pouca carga de elementos que são considerados essencialmente objetos do fazer poético, e escreve sobre eles. Neste "Freedom", ele coloca um protagonista - Walter Berglund - como um amante da natureza que gosta de observar pássaros [passatempo do próprio Franzen, aliás]. Não pode haver assunto mais aparentemente entendiante que esse. Além disso, ele fala sobre a construção de fábricas de armas, sobre remoções de famílias por grandes corporações, a tentativa de se preservar uma ave específica, a crise [ou catástrofe] ecológica, o aumento da população mundial,  etc. etc. etc.

Não só de pequenas tramas vive "Freedom", claro. Há um astro do rock, uma família envolvida em política, pessoas tentando expressar seus sentimentos pela criação de algo com intuito artístico, uma ligação direta com figuras importantes da administração do país, críticas ao envolvimento com a guerra do Iraque e Afeganistão e, novamente, um segundo e longo etc. Mas mesmo nesses assuntos que seriam grandes, que brilhariam só de os expor, ele tenta mostrar o lado mais comezinho das suas relações. O que interessa Franzen é o detalhe. Ele torna maior o pormenor.

O moço que foi chamado pela "Time" como "O grande escritor americano" - ou seja, quem melhor conseguiu captar o Zeitgeist -, por conta exatamente desta obra, encara assuntos muito atuais, matérias que não assentaram ainda no fundo do fluxo do tempo, não foram comprovadamente aceitas pela História como relevantes. Ele enxerga esses tópicos como aqueles que devemos, necessariamente, tratar. Tenta construir uma poética própria a partir deles, uma nova forma de falar sobre objetos que não são comumente abordados - mesmo que de uma maneira igual ao que já foi feito. Contribui assim para colocar seus temas em pauta e fazer com que as pessoas pensem sobre esses assuntos, mesmo que colateralmente, sem fazer propaganda ou campanha deles. Manda uma mensagem subliminar para a cabeça dos seus leitores, sem que eles percebam. Participa ativamente do mundo.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

A arte como utilidade

Um homem não deve confessar que é um artista. O fato lhe confere de alguma forma superioridade, causando imediata inveja ou outra reação violenta do tipo. Um amigo meu tem QI altíssimo esconde isso, como quem esconde a chave do cofre. Ninguém pode saber. É um segredo entre os artistas, mas eles sabem quem são, reconhecem sua turma. A palavra “arte” devia ser abolida, está gasta. Nunca conseguiu desvencilhar-se da aristocracia. Corroída pelos que sem entendê-la, odeiam-na. Perdeu o vigor. Um “filme de arte” é um palavrão. Recomendo trocar por “filme útil”. Por que isso que a arte é, acima de tudo: útil.   Único bisturi que alcança a esperança de resgate do mundo. Atualmente, por falar nisso, há uma certa ideia constrangedora de que o cinema, por exemplo, deve dar ao seu espectador o que ele quer e não o que ele precisa. Certamente não é uma coisa que se diga alto, nem que se possa defender. Qualquer ser pensante sabe da importância social da arte e sua privilegiada contundência na formação e no caráter das pessoas. Todo problema social é na verdade cultural. No aprimoramento das pessoas reside a chance única de evitar o caos iminente. O mercado é o caos. O cinema pode ser um bom negócio, tomara que seja. Mas não pode ser apenas um negócio. Sem arte é a barbárie, embora a obviedade da ideia, muitos não entendem, não tem esse compromisso.
Digam o que quiserem de Domingos de Oliveira, menos que ele não é um grande frasista. Essa entrevista é toda ótima.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

A imaginação

Qual é a vantagem de se escrever mal? Poder escrever o que quiser, sem se importar com os eventuais e exigentes leitores. Aproveito essa minha sorte para recomeçar a contar uma ficção, que foi iniciada há quase dois anos, ou muito antes disso, porque eu preciso terminá-la. Esse trecho abaixo é um capítulo chamado "Imaginação". Para ler outros trechos, clique aqui.

***

A imaginação usa traços da memória? É possível imaginar algo que não tenha qualquer relação com a memória? Algo que não tenha raízes em algo vivido, experimentado antes? Algo que simplesmente aparece, do nada? Sem qualquer ligação com o que já tenha sido estabelecido? Como os índios enxergaram as caravelas quando os primeiros europeus aportaram? Como traduziram em suas línguas? Como criaram os códigos para compreender o absurdo? Misturaram o que já existia ou inventaram um novo som para falar sobre a nova visão? Como seria para nós ter contato físico e doloroso com uma quarta dimensão além das três mais tradicionais? Como enfrentar o horror que nos emudece? Como nomear o inominável?

A imaginação só pode trabalhar a partir da memória, mesmo que residual. Mesmo que seja apenas no formato da linguagem. A memória é quem dá as ferramentas para a imaginação criar algo que não havia antes. E cria por meio do pensamento, que retrabalha a memória, a coloca fora da ordem, a mistura aleatoriamente, como um sorteio de cartas e, assim, alcançar algo que até pode ser sem uma lógica cotidiana, comum, que as pessoas não conseguem reconhecer facilmente. Isso é o novo. Não necessariamente acontece. Às vezes, tentamos esconder algo e esse algo aparece, como um convidado indesejado em uma festa, que faz de tudo para chamar a atenção para si, contra a vontade dos anfitriões. De toda forma, a imaginação, seguindo esse raciocínio, seria tão real quanto qualquer relato que se propõe preso aos fatos. Essa ideia é totalmente possível ou é apenas uma utopia? Talvez, no caso da imaginação, não haja correspondências diretas, mas se pegarmos caminhos não-óbvios, os atalhos-pelo-contrário – aqueles que demoram mais tempo, mais longos, mas que são tão mais bonitos – vamos perceber que está tudo fundado na nossa vivência, no que nos construímos, ou fomos des-construídos.

E se a memória falha, se ela não aparece quando precisamos dela? Quando queremos usá-la para recontar um momento da História em que fomos testemunhas, ativas e passivas? O relato pode ser feito sem memória? Ou ela aparece, de alguma maneira, mesmo que misturando os canais de origem? O que foi vivido na pele, diretamente, sem intermediários, se envolve com o que foi escutado, com o que foi lido, com o que foi presenciado, com o que foi percebido, com o que foi sentido, como tintas diferentes que vão dar a cor da vida, de como nos lembramos da vida que vivemos. Não há nada original, porque já partimos de um porto conhecido e caminhamos sobre as línguas dos mortos.

Os acontecimentos estão cada vez mais no fundo da minha memória, perdidos, escondidos, encobertos por anos de poeira, de uma poeira que resiste até a água, e eu tenho que ser um escafandrista que mergulha em apneia para buscar esse tesouro perdido, sem poder usar nem  mapa.

Percebi que esse problema da memória não é só meu, mas generalizado. Perdemos a capacidade de armazenar nossos próprios dados. Terceirizamos os nossos registros, deixamos de exercitar esse músculo que deve ser exercitado sempre, senão atrofia. Foi o que aconteceu, desde a geração da minha filha, que utiliza tipos de discos rígidos externos para guardar o que acham que é importante. Discos rígidos, no início, já há bastante tempo é o que eles chamam de nuvem, esse éter que veio para substituir o paraíso bíblico e nos trouxe bastante conforto, sim, claro, de ter acesso a qualquer informação a um clique, mas também dor de cabeça, principalmente porque não conseguimos mais lembrar coisas tão simples, como o nome de um escritor, de um livro, um poema, um verso. Perguntamos ao oráculo internético sobre o passado, como antigamente os gregos perguntavam sobre o futuro.

Fico olhando para a janela aqui de casa, sem enxergar nada, tentando afundar mais e mais na minha memória, como o escafandrista, prendo o ar, perco o ar, fico confuso, e volto à tona para tentar respirar um pouco, perdendo o fio, que some, como uma cobra ao ser descoberta em seu habitat. Volto, afundo, prendo de novo a respiração, procuro uma referência, deixo o meu pensamento ser carregado pela corrente, vem à minha frente uma suspeita, libero o meu corpo, tento relaxar novamente, começo a visualizar um rosto, o contorno de uma cabeça, os traços sendo desenhados automaticamente, como mágica, como num computador sem cursor, o corpo começa a se materializar, tomar uma forma, mesmo que esfumaçada, como um personagem de um filme que ganha uma nova vida, e então me sinto enjoado, sem oxigênio, e perco novamente as pistas, os detalhes, as referências e o corpo se desmaterializa, some, evapora, puf! Pronto, não tenho mais qualquer imagem. Dói a minha cabeça e fico cansado, como se tivesse corrido quilômetros.

Tenho que aceitar os meus limites, perceber que, mesmo que não consiga alcançar tudo, lembrar de todas as coisas, de todos os detalhes, isso não é o fim do meu mundo. Sem a memória não se tem elementos para se comparar, para ter parâmetros, para descobrir uma outra forma de viver, mas a lembrança, além de ser construída e editada por nós mesmos – é possível se lembrar de tudo? – a memória não deixa de ser um jogo que nós jogamos conosco mesmo, de adivinha, em que viramos cartas com conexões e fazemos uma linha de um lado para outro.


Lembrar-se de tudo é perder a capacidade de abstração. E abstrair é indispensável para formular conceitos que não estavam dados antes. Talvez por isso que eu consiga escrever tanto sobre absolutamente nada.

Joana I

Qual é a vantagem de se escrever mal? Poder escrever o que quiser, sem se importar com os eventuais e exigentes leitores. Aproveito essa minha sorte para recomeçar a contar uma ficção, que foi iniciada há quase dois anos, ou muito antes disso, porque eu preciso terminá-la. Esse trecho abaixo é um capítulo chamado "Joana I". Para ler outros trechos, clique aqui.

***

Mesmo depois de tantos anos, mesmo depois de tanta coisa que passamos, tanta briga, tantas verdades momentâneas cortantes que ela me falou, depois de tudo o que ela deixou bem claro para mim, não consigo lembrar das coisas ruins que Joana me fez, de toda a dor que ela me proporcionou. Consigo, mas tenho que fazer um esforço enorme. Joana praticamente não sai da minha cabeça, por vários e vários motivos. Para odiá-la, ou melhor, para não amá-la, ainda melhor, para simplesmente não desejá-la, não querer sua presença física, quente, reconfortável, não querer revisitar, reviver, repetir todas as nossas lembranças mais profundas, íntimas, nossas e mais de ninguém, não querer ouvir sua voz macia, não querer tocar em sua pele terrena, terrosa, não querer sentir o gosto do seu gosto, o cheiro do seu cheiro, tenho que me policiar, tenho que me controlar, soltar a minha razão, que busca os nossos piores momentos de uma caixa esquecida no fim do quarto, abre o baú e sacode as frases mal ditas como se fossem talismãs que afastam os maus espíritos.

Não estou sendo claro, nem consigo nesse momento. Há várias Joanas.  Essa de quem sinto falta é uma mistura da primeira, daquela que eu primeiramente conheci, com uma imaginação minha, que exagera suas qualidades corpóreas e diminui seus choros convulsivos no meio da madrugada, sua passividade excessiva, sua dependência exagerada, sua demonstração clara que não era comigo que ela queria estar, mas com qualquer um que compusesse esse papel, o papel do homem que a abraçaria, daria um beijo em sua testa e diria que ela estava protegida.

Joana é perigosa. Inconscientemente perigosa. De tão bonita, dá um poder enorme para quem ela elege. Ela se deixou ser dominada, se objetalizou, e eu me senti o maior dos homens, querendo expandir indefinidamente. Não há expansão infinita e esse processo logo encontrou um limite, que nos trouxe, me trouxe para uma realidade, para o meu verdadeiro tamanho, minúsculo. E ela, sem os limites que eu a impunha, pensando que estava fazendo o melhor para ela, para nós, pensando que estava agradando, pensando que tinha apenas que seguir o caminho já estabelecido, ela cresceu. Ficou enorme. E eu não cabia mais dentro de sua vida, apesar de querer, novamente, me encaixar.

Houve uma segunda Joana, e uma terceira, e talvez uma quarta. Mas essas já não eram ligadas desta maneira comigo. Nos ligamos de outras tantas maneiras que eu me envergonho, que eu não tenho coragem de contar, ao menos não agora. Só queria lembrar tanto das verdades como me lembro das mentiras que ela me contou. Só isso.

terça-feira, 15 de abril de 2014

O Heidegger canalha

Em algum momento de seu longo casamento, Martin Heidegger diz para a sua esposa, Elfrid: Hannah Arendt, e não ela, é a paixão de sua vida. Rüdiger Safranski não explica, na biografia que ele escreveu sobre o homem de Messkirch, em que situação exatamente o filósofo contou de sua paixão pela judia, para a antissemita. Mas o que sabemos, nas sete parcas páginas do extenso livro dedicadas ao relacionamento dos dois, era que Arendt foi a inspiração para a obra mais conhecida de Heidegger, "Ser e tempo", e que ele foi extremamente injusto e egoísta com ela.

A relação dos dois sempre foi desigual. Ela tinha 18 anos quando, em 1924, vai para Marburg estudar com o salvador da filosofia, como ele estava sendo incensado na época. Ele tinha 35 anos, era casado e tinha dois filhos. E era visto como a grande aposta para revolucionar o pensamento da época. O primeiro grande a se atrever a falar numa época pós-metafísica, após a morte de Deus. Suas aulas eram superconcorridas. Aparentemente só precisava de uma grande obra para ter o reconhecimento que lhe estavam reservando. E essa obra foi "Ser e tempo".

Com esse desequilíbrio entre os dois, Heidegger impunha a Arendt as condições em que eles deveriam se encontrar. Havia uma série de esquemas, com luzes sendo acesas e apagadas numa determinada ordem, para que ninguém na pequena cidade, muito menos sua esposa, desconfiasse dessa relação. O professor visitou sua pupila por dois semestres no pequeno quarto que ela mantinha. Durante um bom tempo, ela aceitou esse estratagema humilhante, por amor, e para não deixar as coisas piorarem. Após um tempo, porém, ela começou a exigir mais.

Pensou em sair da cidade e ficou revoltada quando o próprio Heidegger sugeriu isso antes dela. Mudou-se, mas não conseguiu se afastar do, então, ex-professor. Tentou se relacionar com outros homens, para tentar esquecê-lo, mas, ao contar para ele, ele disse que não tinha importância, porque o amor dele por ela era maior que essas pequenezas. Ela desaparecia, não respondia suas cartas, mas bastava um convite, uma promessa, uma declaração de amor dele para ela se derreter de volta.

Os dois continuaram a se encontrar até o fim da década de 1920. Foi só com o envolvimento de Heidegger com o partido nacional-socialista, no início da década seguinte, que eles se afastaram. Só voltam a se reencontrar em 1949, quando Heidegger admite o quanto ela tinha sido importante para a sua vida, e toda a sua vergonha de como se comportou no passado. Eles iriam se encontrar, de tempos em tempos, até o fim da vida, numa relação forte de lealdade. Apesar de todo o passado de privações, Hannah Arendt para sempre iria defender Heidegger, mesmo de seus momentos mais indefensáveis.

Ela só vai se permitir discordar publicamente do seu ex-professor em seu último livro, "Life of the mind", aquele cuja terceira parte ela estava escrevendo no momento em que morreu, quando Heidegger já tinha 85 anos de vida. Para Celso Lafer, ex-aluno de Hannah Arendt e sempre chamado para escrever prefácios e posfácios de suas obras, Arendt discordava frontalmente do chamado segundo Heidegger, "cuja rejeição da vontade, no entender de Hannah Arendt, o impedia de perceber as possibilidade da política e da ação" dois dos seus temas preferidos [in "Homens em tempos sombrios", Arendt H., SP, 2010, p. 297].

Certamente a melhor maneira de demonstrar a complementariedade entre os dois é exemplificar o quanto Hannah Arendt compreendeu Heidegger - melhor até que ele próprio, defende Safranski. Além disso, o biógrafo acrescenta, ela o complementou, trouxe uma realidade que lhe faltava e contribuiu para a relevância da obra do alemão, com a sua chancela.
To his "running ahead into death' she will reply with a philosophy of being born; to his existential solipsism of Jemeinigkeit [each-one-ness] she will reply with a philosophy of plurality; to his critique of Verfallenheit [helpless addition] to the world of Man [One / They] she will reply with her amor mundi. To Heidegger's Lichtung [clearing] she will respond by philophically ennobling the 'public'. Only thus does Heidegger's philosophy become an entity - but he will not notice it. He will not read Arent's books, or only very cursorily, and what he does read will offend him. [Safranski, p. 140.]
***

Para saber mais sobre a relação dos dois, o próprio Safranski cita o livro da professora Elzbieta Ettinger, do MIT, que também biografou Rosa Luxemburgo.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Recalque

Qual é a vantagem de se escrever mal? Poder escrever o que quiser, sem se importar com os eventuais e exigentes leitores. Aproveito essa minha sorte para recomeçar a contar uma ficção, que foi iniciada há quase dois anos, ou muito antes disso, porque eu preciso terminá-la. Esse trecho abaixo é um capítulo chamado "Recalque". Para ler outros trechos, clique aqui.

***

Será que eu estou escondendo, ou tentando esconder aquela cena, aquela sequência de cenas que permanecem dentro de mim, e que não vão embora? Será que ao não falar sobre isso, eu não estou apenas me enganando, fingindo que está tudo bem? Devo mudar de foco ou focar totalmente nisso? Pensar no assunto também não é uma forma de masoquismo? Não somos feitos de outros assuntos, de outras questões que nos formam? Mesmo quando o trauma é grande, quando a dor é imensa, quando a culpa nos destroça, será que temos o direito de viver outra vida, de continuar a viver? Ou devemos revisitar o assunto de maneira eterna, de forma que ele não passe, não fique para trás? Será que devemos pagar essa conta eternamente? Será que quando admitimos que fizemos algo grave, que acabamos com a vida de quem mais gostávamos, por pura vaidade, será que não devemos algum tipo de homenagem? Não devemos oferecer nossa vida em sacrifício?

Os deuses trágicos parecem insaciáveis, porém. Não adianta oferecer algo que eles não querem. Não adianta dar a minha vida em troca de outra vida, não é assim que funciona. Eles não se importam com a minha vida nem com a de ninguém. As vidas e as mortes para eles são inevitáveis, amorais. O que eles querem é que eu siga, enfrente o meu destino, e não adianta eu desviar do caminho, eles vão dar um jeito de me avisar que eu não estou onde eu deveria estar. Eles avisam que é impossível fugir de mim mesmo. O mais longe que eu for, ainda estarei comigo.

Como enfrentar esse destino, então? Como mostrar essa fraqueza, essa humanidade diante de um mundo que não admite essas hesitações? Saindo do mundo para ficar consigo mesmo? Mas como sobreviver, na prática? O mundo exige uma série de obrigações, o mundo é maior que eu e você, e minhas memórias, o mundo, essa criação dos deuses, é voraz, vai em frente, sem pensar nos seus habitantes. Não há bom ou mau, há o movimento, que continua e que não podemos fazer nada, além de tentar nos adaptar a ele.
Isso é muito difícil e não sei como vou conseguir. Ou se vou conseguir. Não há um manual, não há uma forma de viver, o destino não está sinalizado, e as estradas, todas, parecem cheias de espinhos, que não nos deixam ficar parados, nem descansar.

Será que temos que descobrir algo em si, algo dentro de nós mesmos em que acreditamos? Algo que pode ser pequeno, algo que não necessariamente é uma verdade para os outros, algo que nos faz ver além de nós mesmos, de nossa carne, que nos expande, que nos torna maiores? Uma atitude cuja consequência imediata é o oposto daquela que você queria, e que você vai encarar diariamente e de maneira sempre dolorosa suas possibilidades. Uma decisão, que não deve ser fácil tomar, não é, não é simples, e que também traz muito sofrimento, que, só de pensar em seus resultados, de agora e de sempre, já nos arrasa de uma maneira inigualável, porque somos medrosos, sou um medroso, nos leva para baixo, desce a ladeira, mostra que o fim não tem fim, que podemos descer eternamente, mas que, ao menos, ao tomar essa decisão, ao saber que essa decisão é sua, e de mais ninguém, isso dá um pouco de confiança, uma confiança que não é comum, ao menos para mim, que nos dá esperança, que parece que, mesmo que essa situação, essa sensação seja a do fundo, a do fim, a pior derrota que se passou, que nada pode ser mais doloroso, parece, por outro lado e de maneira muito estranha, que não será eterna, porque foi você quem decidiu. Porque a vida é minha. Porque eu não posso fugir dela.

Vou morder mais forte o ar até que o meu maxilar fique com câimbras. Vou escrever esse livro.

domingo, 13 de abril de 2014

Meu Deus

Qual é a vantagem de se escrever mal? Poder escrever o que quiser, sem se importar com os eventuais e exigentes leitores. Aproveito essa minha sorte para recomeçar a contar uma ficção, que foi iniciada há quase dois anos, ou muito antes disso, porque eu preciso terminá-la. Esse trecho abaixo é um capítulo chamado "Deus". Para ler outros trechos, clique aqui.

***

Eu tenho esse costume de buscar segurança. Talvez seja o resquício dessa ausência na minha família. Por mais incrédulo, cético, ateu que eu seja, o tema de deus sempre me fascinou. Ter contato com o chão, a base, o alicerce, o fundamento mais fundamental. Algo onde todas as outras coisas se apoiam, vivem, são construídas. Algo que dê um ordenamento ao caos que é a vida. Mas isso é claramente um recurso colateral, um artifício para se enganar um pouco. É um corrimão falso onde se apoiar, quando se vai subir a escada. Um corrimão imaginário.

Seria possível viver sem qualquer tipo de certeza externa? Claro que sim. Quando produzimos tão bem nossos seres, confiamos seguramente em nós mesmos, nossas vontades se apresentam com mais clareza. Então seguimos adiante, guiados por esse pequeno deus interno, esse sentimento de onipotência. Passamos por todos em prol do que queremos.

E quando nos importamos muito com os outros? Quando não queremos machucar ninguém, quando pensamos sempre em causar o menor mal possível – já que viver, por si só, já é causar o mal a alguém? Aí, fica bem mais complicado. Talvez seja daí que nasça a minha crença em deus. Minha crença torta num deus exótico, que nunca atendeu por nenhum nome, que sempre foi falho, que sempre se mostrou com pés de barro.

Ou talvez esse deus seja uma conclusão que engolimos, ou somos forçados a engolir, goela abaixo. Quando não nos resta mais nenhum tipo de possibilidade, quando estamos desenganados, desesperançados, aceitamos uma certeza, seguramos em uma boia para sobrevivência, para poder, simplesmente, não afundar completamente.

É verdade também que nunca consegui aceitar um deus que me era oferecido. Parecia sempre falho demais, sem lógica. Eu tinha – e tenho – que encontrar os meus próprios deuses, que servem para eventuais e pontuais problemas. Às vezes, demoro a encontrá-lo. E até descobri-lo, até que ele apareça para mim, me sinto dentro de um maremoto. É como se o mundo se transformasse em líquido, todos os sólidos entrassem em ebulição, e estivessem balançando ao sabor de um Netuno enraivecido. Então, quando todas as esperanças são perdidas, algo em mim ainda pulsa, algo em mim ainda se apresenta com vida, se mostra como uma possibilidade de existência. Estou dilacerado, estou com a carne viva morrendo, estou em tiras, jogadas ao chão, mas aí algo acontece. Uma vontade de vida, algo que não me permite afundar, me afogar.

Já na faculdade, li o Upanishad, uma das partes mais famosas do Vedas, o livro sagrado do hinduísmo, que é também usado no budismo e no jainismo. Uma tradução para o português, não sei se boa, dos principais textos. Coisa curta, com uma linguagem poética, com imagens que não compartilham de um mesmo passado que o nosso. Éramos todos um pouco hippies, como já disse. Lá dizia algo que talvez se encaixe com isso aqui. Brahma, a principal entidade da trimúrti, a santíssima trindade hindu, o deus da criação, estaria em todos os lugares, e dentro de cada uma das pessoas. Como se dissesse de outra maneira o que Spinoza, muitos anos depois, chamaria de “Deus sive Natura”, ou seja, deus, como a soma de tudo o que há. Portanto, nós também somos, de alguma maneira, deus. Temos uma individualidade para criarmos, como deus, mas sabemos que não podemos criar nada além de deus. Deus é o nosso início, nosso meio e o nosso fim. Não há como escapar dele. Somos deus, mas tudo é deus – isso não é um diferencial, não há algo melhor ou pior.

É muito bom quando aceitamos a humildade de sermos ao mesmo tempo singulares e perfeitamente banais.

terça-feira, 8 de abril de 2014

E o tempo enquanto História tiver de todo desaparecido



Esse texto, segundo li, está dentro do livro "Introdução à metafísica", de Heidegger, aula proferida em 1935, e publicado só na década de 1950, quando da saída de uma nova versão de "Ser e tempo" [curioso que em algumas edições em inglês, a tradução é "Existence and time"]. A versão para o inglês é somewhat diferente. Mas a intenção é basicamente a mesma. Dá um confere:
“When the farthest corner of the globe has been conquered technologically and can be exploited economically; when any incident you like, in any place you like, at any time you like, becomes accessible as fast as you like; when you can simultaneously “experience” an assassination attempt against a king in France and a symphony concert in Tokyo; when time is nothing but speed, instantaneity, and simultaneity, and time as history has vanished from all Dasein of all peoples; when a boxer counts as the great man of a people; when the tallies of millions at mass meetings are a triumph; then, yes then, there still looms like a specter over all this uproar the question: what for?—where to?—and what then? The spiritual decline of the earth has progressed so far that peoples are in danger of losing their last spiritual strength, the strength that makes it possible even to see the decline [which is meant in relation to the fate of "Being"] and to appraise it as such. This simple observation has nothing to do with cultural pessimism—nor with any optimism either, of course; for the darkening of the world, the flight of the gods, the destruction of the earth, the reduction of human beings to a mass, the hatred and mistrust of everything creative and free has already reached such proportions throughout the whole earth that such childish categories as pessimism and optimism have long become laughable.”
Uma outra versão em português, ligeiramente diferente e um pouco maior, está aqui. Todas as essas informações eu tirei daqui

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Prólogo, 'desironia'

Qual é a vantagem de se escrever mal? Poder escrever o que quiser, sem se importar com os eventuais e exigentes leitores. Aproveito essa minha sorte para recomeçar a contar uma ficção, que foi iniciada há quase dois anos, ou muito antes disso, porque eu preciso terminá-la. Esse trecho abaixo é o Prólogo. Para ler outros trechos, clique aqui.

***

Como fazer com que uma culpa suma de dentro da gente? Dividindo ela em pequenos pedaços? Distribuindo a quem quiser gracejar toda a minha desgraça? Todo o resultado de uma escolha errada – errada nem chega perto de alcançar o que aconteceu verdadeiramente? Se eu ao menos pudesse voltar no tempo, se pudesse consertar, se pudesse mudar o que eu disse, trocar os sentidos, inverter as ordens... eu talvez ainda tivesse culpa, mas não tanta culpa. Se eu pudesse voltar no tempo e ficar quieto! Se não tivesse falado nada... eu... eu não teria culpa. Eu não estaria aqui para contar essa história. Não haveria história.

O deus do tempo me colocou dentro de um círculo fechado, aprisionado para sempre em um globo da morte. Eu ando em volta de mim mesmo, vivendo tudo, como sempre foi, sem conseguir parar essa engrenagem, que não me deixa respirar. Eu existo de maneira igual ao meu passado que não passa e se faz presente. Eu me prosto, meus dentes rangem. Não consigo me livrar.

Como um só acontecimento pode marcar tão profundamente e para sempre uma vida? Como um instante, que poderia ser tão fortuito, vai se desenrolando, sem que se perceba, rumo a uma tragédia? Por que eu agi num moto contínuo, sem parar para meditar sobre o assunto, sem duvidar o suficiente de mim mesmo? Por que, então, e só então, eu quis acreditar em algo? Não era inevitável? Em algum momento eu poderia ter caído fora? Em que momento, além do inicial sim ou não, que admite a possibilidade dos dados serem arremessados para o alto, eu poderia ter interrompido a descida da pedra que empurrava morro acima? Eu mirei lá no alto, roubei o fogo dos deuses, e sofro fisicamente suas consequências.

Eu carrego minha história nas costas. Minha coluna envergou e está para quebrar. Como salvar a minha alma? Será que um dia eu vou voltar a dormir? Tomo remédios como se fossem balas açucaradas, sem efeito. Será que um dia vou parar de escutar os gritos, meus próprios gritos, e o grito inaudito do mundo? Eu deveria ter gritado até perder a voz. Quero estampar esses gritos, torná-los sólidos, palpáveis. Afogar seu som em papel sem celulose. Dar à luz, tirar de dentro de mim. Entregar o fogo aos homens para que eles me queimem em praça pública.

Não adiantou falar. Frequento o divã há já duas décadas. Mudei de psicanalista para terapeuta experimental. Esse exercício é a mais nova tentativa, sugerida pela mais recente, que se intitula esquizopsicóloga, de ordenar esse meu passado, torná-lo algo com um pouco mais de sentido. Colocar esses eventos que pipocam como fungos no meu inconsciente dentro de uma cronologia. Olhar para as cenas mais duras e perceber que fechar os olhos não vai fazer com elas sumam. Ao contrário. Continuam acontecendo na escuridão.


Essa é a história de uma verdadeira mentira.

domingo, 6 de abril de 2014

'Serenidade', para Heidegger

Podemos dizer "sim" para o inevitável uso dos objetos técnicos e também dizer "não", impedindo-os de reivindicar exclusividade sobre nós, com o que distorceriam, confundiriam e, finamente, desertificariam nosso ser. 
Mas se dissermos igualmente "sim" e "não" para os objetos técnicos, será que a nossa relação com o mundo técnico não se tornará ambivalente e incerta? Ao contrário. Nossa relação com o mundo técnico se tornará maravilhosamente simples e calma. Deixaremos os objetos técnicos entrar em nosso mundo diário e, ao mesmo tempo, os deixaremos fora, isto é, os deixaremos entregues a si mesmos como coisas que não são absolutas, mas que dependem de algo superior. Eu gostaria de chamar essa atitude de um simultâneo Sim e Não para com o mundo técnico através de uma velha palavra: serenidade para com as coisas. Neste comportamento não mais vemos as coisas de um modo meramente técnico. Atingimos uma visão lúcida e percebemos que a produção e o uso de máquinas demanda de nós uma outra relação com as coisas, relação que não é desprovida de sentido.
[...]
A atitude, a força pela qual podemos nos manter abertos para o mistério oculto do mundo técnico, denomino-a: abertura para o mistério. Serenidade para com as coisas e abertura para o mistério pertencem-se mutuamente. Elas nos garantem a possibilidade de habitarmos o mundo de um modo completamente diferente. Elas nos prometem um novo solo, um novo terreno, sobre o qual podermos permanecer e perdurar no mundo da técnica sem sermos colocados em perigo por ele.
[...]
Nessa era atômica, que ainda está em seu início, um perigo bem maior ameaça – precisamente quando o perigo de uma terceira guerra mundial for removido. Uma afirmação paradoxal. Paradoxal, mas apenas enquanto não meditarmos sobre ela. Em que sentido é a afirmação feita agora válida? Ela é válida no sentido de que a revolução que se inicia na era atômica poderia de tal modo nos cativar, enfeitiçar, impressionar e seduzir o homem, que o pensamento calculativo poderia chegar a ser aceito e praticado como o único modo de pensamento.
[...]
Mas – a serenidade para com as coisas e a abertura para o mistério nunca acontecem por si mesmos. Eles não acontecem acidentalmente. Ambos florescem unicamente através de um pensamento persistente e corajoso.
Este discurso de Heidegger, proferido em 1955 na comemoração dos 175 anos de nascimento do compositor alemão Conradin Kreutzer, é uma pequena obra-prima. Curto e de fácil acesso, dá para sacar bem alguns temas do seu Martin, como a questão da técnica e a do pensamento, e mostrar que precisamos guiar nossas próprias vidas, na medida do possível. O texto foi apelidado de "Serenidade" - nome, no mínimo, curioso - e pode ser lido, numa versão um pouco diferente da que eu li, aqui.

Liberdade limitada

Rachel Sheherazade
Qual é o limite da liberdade? Fiquei pensando sobre isso quando soube do afastamento da apresentadora Rachel Sheherazade do SBT. Parece que não é oficial, e, se acreditarmos nessa versão dos fatos, o ato foi uma resposta à pressão de grupos ligados ao governo, que ficaram muito incomodados com as constantes declarações da apresentadora; declarações que lhe renderam o cognome "Rachel Cheira-a-nazi". Volto à questão: Qual é o limite da liberdade que podemos suportar?

Bem, a resposta óbvia é: a lei. Ou seja, enquanto estivermos dentro da lei podemos fazer qualquer coisa. Mas, e novamente, não é o suficiente. A própria lei é interpretativa - e assim deve ser. Se seguirmos a informação da notícia citada acima, haveria uma intenção de apresentar queixa contra a apresentadora, alegando que ela teria feito uma apologia ao crime, o que é contra a lei, ao elogiar o grupo que prendeu o menino negro no poste no Flamengo. Portanto, ela teria cometido um crime, logo não poderia mais estar no ar. Mas quem vai dizer que isso é apologia ao crime é um juiz, ou seja, não é algo matemático, infalível. É sujeito a interpretações, preconceitos, juízos, erros. O juiz é humano, felizmente.

Ouvi dizer que a retirada dela do ar seria um ato de censura. O governo não poderia se meter na liberdade que a TV teria de transmitir o que quisesse. Seguindo esse raciocínio, as TVs poderiam exibir o que quisessem, na hora que quisessem. A cena de estupro de "Irreversível" no café-da-manhã, por exemplo. Caberia ao indivíduo, de posse de suas faculdades mentais, decidir se quer ou não ver tal filme, e a hora que ele quer ver. Em caso de crianças, essa autorização caberia aos pais, ou tutores.

A segunda afirmação parece a mais enobrecedora: parece que dá uma dignidade ao ser humano, a ponto de ele ser livre a ponto de fazer o que quiser. Lembra, por exemplo, o argumento a favor do casamento gay: as pessoas fazem o que quiserem com os seus próprios corpos, ninguém tem nada a ver com isso. Querer regular o comportamento privado dos indivíduos é apenas um dos traços do moralismo vigente.

Por que, então, não dá certo? Bem, porque, como diz lá dona Hannah Arendt em "A condição humana", não somos o Homem, mas os homens. Para algumas pessoas, o simples pensamento de um homem transar com outro homem é uma agressão. Existir isso no mundo, uma afronta. Essa pessoa, de posse de sua liberdade de ação, se acha no direito de vir a público reclamar da liberdade de outras pessoas em usarem suas liberdades.

Pode-se argumentar: o sujeito tem o direito de vir a público reclamar das liberdades privadas dos outros. OK. Mas e se ele não apenas reclamar, e se ele quiser agredir fisicamente casais gays? Ele não teria direito? Já escuto: não, isso não. Mas e quando se usa palavras muito duras, isso não seria também uma forma de agressão? Quem consegue regular qual é o limite da agressão das palavras? Palavras podem ser usadas, punhos, não? E outras agressões? Há limite para isso?

Suspeito que as liberdades ilimitadas sejam conflitantes.

sábado, 5 de abril de 2014

Arcade Fire in Rio

Não foi catártico. Não foi de chorar. Mas não por culpa dos nem tão meninos nem tão meninas do Arcade Fire. Mas as circunstâncias foram muito diferentes das de quase dez anos atrás. De qualquer forma, você sabe que foi um grande show. E o set list aí debaixo não me deixa mentir.


Arcade Fire in Rio, 4/4/14 by ronaldo pelli on Grooveshark