sábado, 27 de agosto de 2011

Profundidade rasa

Se me lembro bem - o que eu duvido - Verissimo em uma crônica sobre o Woody Allen da década de 1970 fala que o cineasta desvendou em suas produções artística que, no fundo, no fundo, só há raso. Talvez essa seja a maior característica do norte-americano, a mistura entre um assunto que se propõe complexo, elaborado, que afetaria a humanidade inteira como um todo, e algo frugal, banal, sem maiores consequências.

No livro de entrevista com o Eric Lax ["Conversas com Woody Allen"], há um momento em que o diretor se sai com uma frase que exemplifica esse raciocínio. Lax pergunta sobre o final não muito feliz de "A rosa púrpura do Cairo", e como ela refletiria a visão de vida de Allen. O cineasta responde que sim, ele acha que a vida é muito amarga, mas [e então começa a sorrir, segundo a rubrica do livro] que é o único lugar onde se pode comer comida chinesa. O sorriso de Allen demonstra que ele já imagina qual será o resultado de sua frase: como algo cômico. É nessa "assimetria" que ele se alimenta para produzir seu humor, nessa suposta antítese, nesse contraste absurdo, que beira o nonsense.

Além da questão cômica, porém, há nessa frase uma proposta de vida mais "humana", assim como propunha, talvez, sob a minha interpretação, Nietzsche. O filósofo bigodudo sempre implicou com o cristianismo por conta de sua transcendência, ou seja, pela proposta da religião cristã de que deveríamos viver uma vida asséptica na Terra para, após morrer, ter acesso ao paraíso, na verdadeira vida, a eterna. Claro que esse raciocínio ele ampliou - e foi ampliado pelos seus intérpretes - para diversos fatores. Não haveria, portanto, conteúdo, só forma. Não haveria nada além do aparente. Não haveria profundidade, só o raso.

Essa tese se torna complicada sem a sua devida contextualização nos dias de hoje, principalmente porque pode parecer ser uma defesa da "boa aparência", por exemplo, ou de uma produção em série de pessoas "bonitas". Mas a desconstrução desse argumento fica exatamente no fato de que o "belo" também é uma construção cultural e social. Correr atrás desse ideal, quando não é algo internalizado, mas importado de maneira pré-fabricada, é ter uma vida apenas reativa, que reage ante os outros, em vez de tomar as rédeas sozinho.

Voltando a Allen, e à sua frase, podemos perceber que a sua frase diz ainda muitas coisas. Ele admite que o mundo é complexo, cheio de problemas e completamente amoral. Não fecha os olhos para esses fatores, mas deixa claro a pergunta: o que ele pode fazer sobre isso? Praticamente nada. Somos bastante inofensivos dentro desses parâmetros. Não é uma proposta pessimista, como imagina os crentes e os que querem uma recompensa pelas suas boas ações. Mas de extrema realidade, que pode afetar os mais sensíveis, os que imaginam que devem agir de tal forma para alcançar algo no futuro. Ele apenas demonstra a nossa completa incapacidade de controlar o que nos arrodeia. Só isso.

O ideal é, portanto, viver os pequenos prazeres que nos é possível. É descobrir aquilo que nos agrada, e que não desagrada em demasia os demais - porque ainda vivemos em sociedade, não? -, e tentar, à medida do possível, praticá-lo. Como por exemplo, comer comida chinesa. Ou ler um texto do Verissimo, um livro do Nietzsche ou assistir a um filme do Woody Allen. Belo ideal de vida, não?

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

'Só quero ser feliz'

Todo mundo só quer ser feliz, como dizem muito bem Cidinho e Doca no "Rap da felicidade" [autores também do "Rap das armas"]. Contudo, diferentemente dos dois rappers-funkeiros, que sabem muito bem como ["andar tranquilamente na favela onde eu nasci / e poder me orgulhar / e ter a consciência que o pobre tem o seu lugar], o "mundo" não imagina exatamente o que é esse sentimento.

Para Cidinho e Doca, a felicidade é a sensação de segurança ["andar tranquilamente"] perto do lar ["onde eu nasci"]. É facílimo entender o raciocínio considerando o nível de violência em algumas regiões do Rio. A dupla chega a dizer "Com tanta violência eu tenho medo de viver", e completam: "moro na favela e sou muito desrespeitado", que remete aos segundo e terceiro versos da letra. Eles queriam ainda mostrar que o pobre não precisa ser excluído da sociedade; que não é sinônimo de bandido; e que só vive à margem porque não tem acesso, não é inserido a esses elementos que compõe o tecido social. No caso de Cidinho e Doca, a felicidade é participar dessas relações sociais sem censura, não estar a parte dela.

Mas, o que é ser feliz para as demais pessoas? Geralmente se confunde "felicidade" com "euforia", que é o estado em que estamos numa festa animada, por exemplo. Seria isso a felicidade ou, ao menos, um tipo de felicidade? Seria, aliás, possível viver em uma constante euforia, indefinidamente? Os movimentos de subida e descida não são necessários para equilibrar e, até mesmo, destacar um dos outros? Se vivemos sempre em euforia, como saberíamos que isso é algo... diferente? Não teríamos tédio com a constante euforia? Sinceramente, não tenho respostas para quase nenhuma dessas perguntas, mas eu teria bastante preguiça de viver numa 24 hours party.

Em outros momentos, há a utilização de critérios externos importados para definir a felicidade: uma família, um bom emprego [?!], uma casa confortável... Ou argumentos de cunho consumista, como um carro do ano, o último gadget lançado, ter roupas da moda. Esses casos são ainda mais clichês e já foram retratados por diversas obras ficcionais, que mostram o cara que tem tudo mas não tem nada.

Há outros mais saudosistas, nostálgicos: a realização de sonhos de criança. Ou morar numa casinha de sapê. Há os falsos-altruístas: ajudar os outros. Os religiosos: encontrar Deus, não cometer pecados, ter a vida eterna. Os dionisíacos: viver a vida ao máximo possível. Os artistas-vaidosos: produzir algo realmente memorável. Os que passam a responsabilidade adiante: ver os filhos tomar um rumo na vida. Os ideológicos: batalhar pelo que acredita. Os românticos que dizem que a "felicidade foi-se embora", com a saída do objeto amado. Os pessimistas que dizem que a "tristeza não tem fim, felicidade, sim". Os fatalistas, ou neo-hippies - dependendo do contexto -, que dizem que "felicidade é só questão de ser". Os indecisos, que não sabem direito o que é isso.

Na verdade, não há como se inventariar a felicidade. Uma lista deveria aplacar um desejo por pessoa. E novamente tocamos a mesma música. A pergunta não deve ser o que é a felicidade, mas onde ela está.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Onde mora a filosofia

Tive um professor na pós - não por acaso o meu orientador da monografia de conclusão - que afirmava que todos os aspectos poderiam e deveriam ser filosofados. Não é porque a cerveja ou o futebol são elementos mais banais que o ser e o nada que não podemos discorrer sobre esses temas. Ou mesmo não existe nenhuma razão para não utilizarmos objetos mais, digamos, frugais como exemplos ou pano-de-fundo para elucubrações, ou ainda para neles inserir raciocínios que têm interpretações em diversos graus.

Costumo dizer que a minha primeira aula de filosofia me foi dada pelo seriado "Família dinossauro" - aquele que tinha o Baby, que dizia "não é a mamãe". Claro que tinha elementos de comédia rasgada, e o próprio personagem do bebê dinossauro rosa que renega o pai, apenas para aporrinhá-lo, é uma demonstração clara disso. Mas é inegável que, em alguns episódios, eles tratavam de assuntos um pouco mais... incomuns [tentei fugir da expressão "densa" para não cair numa armadilha].

O exemplo que sempre dou é o do episódio em que Bob, o filho adolescente, ao completar certa idade deve uivar para a lua. O rapaz, intrigado, pergunta: por quê? O pai, sem saber muito bem como responder, repete a história que ouviu durante toda a vida: se não, a lua vai descer sobre nossas cabeças. Uma explicação - admitamos - para lá de religiosa.

A filosofia nasce nesse "por que" [e não no "porque"]. Quando alguém questiona uma atitude, uma ação, um pensamento, um conceito, a filosofia aparece. Quando criamos um pensamento crítico em relação ao que fazemos, ao nosso entorno, aos nossos costumes. A razão é o grande fio condutor para se indagar, mas ela não está ligada apenas a um pensamento matemático, mas também a impulsos, à criação.

Bob não uiva e a lua, claro, não cai. As pessoas percebem que não precisam mais acalmar a lua, que ela é completamente indiferente às nossas vidas. Mas, se fosse só isso, a série seria apenas uma defensora de um argumento ateísta, que não abarcaria uma visão mais aguçada sobre o homem que é, desde o início dos tempos, apegado às magias da religião.

Ao longo dos dias que se passam, as pessoas - sem uivar - começam a se engalfinhar, a brigar entre si, discutir sem razão, arranjar confusões exageradamente. Bob começa a desconfiar que um aspecto tinha ligação com o outro e incentiva, novamente, seu pai e o seu melhor amigo, Roy, que estavam sem se falar há dias, a uivarem. Os dois uivam e voltam a ser amigos. Bob percebe a importância do uivo, não para segurar a lua, mas como forma de coesão social.

Claro que a explicação é simplista - pode-se encarar o uivo como uma metáfora da religião e esta seria, nessa exposição, o "ópio do povo", no sentido de ser um relaxante social [mais marxista, impossível]. A questão não é a simplicidade do argumento, mas a exposição da sociedade como ela é, sem, por isso, renegar uma visão crítica sobre ela. Bob, que tinha se recusado a uivar, alonga o gogó e solta a voz para a lua, ao fim do capítulo.

Há vários outros episódios que tratam de temas mais complexos que os normalmente encontrados. Como o hoje épico "Dia do arremesso". Mas acho que vale colocar aqui o final da última temporada, que acabei de ver, para demonstrar que "Família Dinossauro" não era um seriado como os outros.



[Tirei esse episódio daqui.]

domingo, 21 de agosto de 2011

Design inteligente da cerveja

Relutei muito em começar a escrever sobre design inteligente. Primeiro porque não sou um especialista no caso, segundo porque, bem, dá preguiça argumentar contra a fé. O que me levou a mudar de ideia foi uma série de textos lidos em diferentes lugares, sob diferentes formatos, concomitantemente falando sobre o mesmo assunto: como há uma espécie de arquiteto maior [são todos da maçonaria?] que criou a possibilidade de vida e planejou nossas evoluções até o nosso formato atual.

Aparentemente o "design inteligente" e o argumento do "ajuste fino" servem de consolo para quem está cansado da ciência, e ainda procura respostas às questões que não contêm respostas. Tipo: "ok, aceito o big bang, mas e antes? O que havia?"

É um argumento muito mais inteligente que o simplesmente "criacionista" - que, por mais absurdo que se possa imaginar, continua a florescer grandemente em organizações como o Tea Party americano -, mas ainda assim peca por um excesso de "humanização", ou, em outros termos, de "vaidade".

Primeiro porque não aceita o aleatório. O aleatório talvez nem exista, como já disse. Talvez seja apenas a ponta de um grande sistema que nós não conseguimos ver absolutamente nada e por isso não entendemos. Mas mesmo esse raciocínio se baseia numa... crença vaidosa: acredita-se que poderemos - nós, humanos, inteligentes, dotados do polegar opositor, etc. - desvendar, um dia, esse misterioso componente aleatório.

De qualquer forma, agora, nesse momento, o aleatório continua a existir [na minha humilíssima opinião, sempre existirá o "aleatório", o "não-explicado", o "absurdo", que é para onde nossa curiosidade - científica ou banal - se moverá]. E, se não podemos entendê-lo, podemos: 1/ aceitar nossa ignorância, nossa pequeneza, nossa completa insignificância e dizer simplesmente: não sei. Não sei o que havia antes do big bang. Ou 2/ podemos dizer que, já que não temos uma explicação sobre a origem da vida, e que é tudo tão perfeito, não pode ser à toa. Isso, claro, foi obra de uma mente, ou de um ser superior, que vive no caráter do eterno [portanto mito?], que manipulou, que criou as coisas como se fossem parte integrante de um jogo de tabuleiro em que cada dado tivesse sua função devidamente inventada e aceita.

Um dos argumentos mais bizarros - não pelo exemplo em si, como se verá - que eu li foi em um livro chamado "Cerveja & filosofia". O professor assistente de filosofia da Universidade de Mississipi Neil Manson, que já escreveu sobre teologia filosófica - como aponta seu perfil no livro - afirma que nós não poderíamos apreciar a cerveja fora do esquema do "design inteligente" + "ajuste fino", porque, se formos criados - nós, Homo sapiens sapiens - há centenas de milhares de anos, a capacidade de apreciação de cerveja não teria resistido à evolução da humanidade tanto tempo até pouco mais de 8 mil anos, quando há os primeiros relatos da fabricação de cerveja, porque ela não teria razão de ser/existir até então.

Como disse, o exemplo em si não importa. Pode-se pegar qualquer outro argumento, qualquer outro caso, e ele dá um ainda mais esdrúxulo. Mas pensemos nessa questão. Pelo ponto de vista de Manson, que, no caso, representa, ou diz representar, o raciocínio do "design inteligente", a evolução eliminaria todas as nossas capacidades não utilizadas. E determinadas características seriam imanentes do homem, ou no homem.

Bem, é melhor ele dizer isso para os meus sisos, que insistiram em nascer, mesmo gerações e gerações após o fim do seu uso. Ou para as milhares de pessoas que fazem operação de apendicite. Ou para o meu dedo mindinho, que já me deu tanta dor.

Um raciocínio interessante é imaginar como a natureza [que, coincidentemente, é um dos nomes de Deus para  Spinoza, que, também coincidentemente, é um dos filósofos favoritos de Einstein] exagera em vários de seus atos. O que sempre uso de exemplo é a questão da semente. De árvores a humanos, há um "desperdício" de sementes para a tentativa de procriação. Joga-se muitas para que uma, quase em caráter aleatório, germine. A quantidade exagerada é para a probabilidade aumentar. E probabilidade é apenas uma tentativa de enquadrar o aleatório.

sábado, 20 de agosto de 2011

De memória

Schopenhauer [foi ele? foi] disse que temos uma "vontade" [ele adorava essa palavra] de viver - algo, para ele, inexplicável [foi assim que ele escreveu? Não lembro...]. A partir daí, todos os nossos movimentos são pela preservação. E como viver não basta [por quê?], procura-se a felicidade.

Mas voltando à existência. A minha tríade preferida [ou de quem fui escolhido, escolhido para empurrar suas pedras morro acima] , filosofia, história e arte, tenta, de diversas maneiras, preservar a vida. Pensei, recentemente, na questão da memória, nesse aspecto: em como ela é indispensável para nos sentirmos vivos, seguros, confortáveis. E história e arte nada mais são que formas de registro da memória, mesmo que a inventada. O historiador Fernando Novais afirmou em uma entrevista que a diferença entre história e mito não é que uma se atém à verdade, enquanto outra não. Mas que uma está presa à temporalidade e a outra à eternidade. [Escrevi essa frase de memória, depois, fui lá conferir. A frase original é: "O que distingue a narrativa histórica da narrativa mítica não é o fato da primeira ser verdadeira e a segunda falsa, mas sim, de que a primeira se ancora na temporalidade e a segunda se situa na eternidade" - nada mal, né?] [Agora, se eu me lembro ainda do que li na pós-graduação, Hannah Arendt é outra que também faz a comparação entre história e arte.]

A memória nos traz o conforto de sabermos - razoavelmente - quem somos, onde estamos, para onde vamos - as tais perguntas fundadoras da filosofia. Se não as respondemos com profundidade talvez seja porque não haja nada abaixo da superfície.

Esses processos memorialísticos são a nossa âncora, o que nos prende à "realidade", nos dá a segurança para viver e agir conforme desejarmos - ou como a "vontade" schopenhauriana quiser.

A memória nos livra de sustos diários, ou eternos - no sentido de se repetirem ininterruptamente - de não sabermos quem nós somos. Ter consciência e, ao mesmo tempo ignorar sobre a própria identidade, por exemplo, deve dar a mesma sensação de desespero que se tem quando se acorda em um lugar esquisito e diferente de sua casa e você não se lembra onde é.

A memória é condição da existência.

ps. estava escrevendo isso, num caderninho, e me veio à memória uma frase que Borges gostava de dizer sobre o italiano, o idioma: seria o primeiro a estabelecer a distinção entre o circunstancial e o existencial. Porque sabemos que o verbo "to be" tanto pode querer dizer "ser" como "estar". Imagino que temos mais liberdade para nos modificarmos durante a nossa vivência, enquanto haja mais dureza por parte dos que não sabem a diferença entre ser e estar.

pps. ao escrever a primeira versão desse texto, lembrei de uma música que acho incrível, descoberta recentemente: "Shampoo suicide", do Broken Social Scene. Incrível como o belo, às vezes, brota em lugares onde não se espera...

ppps. ela toca neste momento.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Pseudointelectuais


Essa cena do "Annie Hall" sempre foi uma das minhas preferidas. Um sujeito pedante, esnobe, que se autoaplica um verniz cultural, um pseudointelectual em suma, está discorrendo sobre diversos assuntos logo atrás do personagem de Woody Allen, Alvy Singer. Singer, claro, fica incomodado a cada frase de efeito, a cada paráfrase, a cada teoria inventada naquele momento. Nervoso, começa a discutir com Annie [Diane Keaton], até que não aguenta e pergunta ao espectador, diretamente, olhando para a câmera, como ele agiria numa situação dessas. O chato também sai do lado de sua parceira e vai discutir com Allen usando o argumento mais básico do mundo: "este é um mundo livre e eu posso me expressar do jeito que quiser" [ZZZzzz...]. Allen retruca perguntando quem era ele para dizer que sabia algo sobre Marshall Mcluhan, o último nome citado [namedropping é uma expressão em inglês que designa o fulano que fica enumerando celebridades intelectuais para mostrar, ou fingir, que os conhece]. O cara treplica informando que era professor de mídia-qualquer-coisa em Columbia e portanto era a pessoa mais indicada para falar sobre Mcluhan. Allen, furioso, diz que, em vez de falar sobre, chamaria o próprio Mcluhan para a discussão. O homem que cunhou a expressão aldeia global acaba dizendo que o tal professor não sabe nada sobre ele - Mcluhan - e acaba com o bate-boca.

Durante muito tempo Woody Allen caçoou do homem que se dizia culto em seus filmes. Talvez por ser realmente culto, em vez de querer parecer culto, talvez por perceber a completa desimportância de ser culto, talvez porque ele saiba que não exista essa história de intelectual, talvez por perceber que a cultura serve para absolutamente nada, dentro de um ponto de vista simplesmente existencial. Nessa última fase, digamos, pós-Nova York, ele caiu em várias armadilhas e se colocou no papel em questão - ou escreveu sobre esse personagem - de maneira mais condescendente. Como se percebesse que em um mundo aculturado, aquele que ao menos aparenta ter conhecimento é mais interessante que o completo ignorante. Em outras palavras: que é melhor um sujeito falar sobre Woody Allen sem nem mesmo ter visto um único filme dele, do que nem saber quem é o diretor nova-iorquino. Mas esse desvio no caminho durou pouco tempo. No último filme dele, "Midnight in Paris", novamente vemos um sujeito cheio das explicações profundas sobre a história da arte ser ridicularizado.

Verissimo - que já foi chamado, curiosamente, da versão brasileira de Allen - em uma de suas crônicas publicadas no seu primeiro livro [se eu não me engano - o que eu duvido - se chama "O popular"], faz uma brincadeira sobre quem seria os intelectuais. Como percebê-lo, como identificá-lo, como alimentá-lo, como tratá-lo, etc. Não é possível saber quem realmente tem conhecimento, ou quem finge, realmente. No fundo, como diz o próprio Verissimo em um contexto sobre Allen, só há raso.

Imagino que nem Woody Allen nem Luis Fernando Verissimo sejam contra a acumulação de cultura. As obras dos dois, as suas indagações, as suas propostas demonstram que isso seria completamente contraditório. O que eles propõem, na minha humilíssima opinião, é a quebra da sisudez da pessoa que tem acesso a esses conteúdos, mostrando que saber ou não o que Mcluhan disse ou quis dizer não torna ninguém melhor ou pior que outras pessoas. Ser ou não ser intelectual - se isso for possível - não é, ou não deveria ser, razão para dar privilégio a ninguém. É tornar a teoria do não-se-levar a sério uma prática diária.

sábado, 13 de agosto de 2011

Panic on the streets of London

"These are not hunger or bread riots. These are riots of defective and disqualified consumers." Assim começa Zygmunt Bauman o seu texto sobre as manifestações em Londres [fiquei um tempo pensando em como chamar essa série de atos violentos na capital inglesa e achei que manifestações podem abarcar uma série de significados em acordo com o que eu imagino].

Bauman - que dispensa apresentações - acredita que esse movimento foi tocado por pessoas alijadas do consumo, esse grande deus contemporâneo, que querem, de alguma maneira, ter acesso a ele. O consumo, por sua vez, seria um dos nomes atuais da felicidade. O mais falado. Ou o único falado. O acesso ao consumo, portanto, seria o acesso à felicidade. [Um dia vou escrever só sobre o que é a "felicidade", essa palavra que, junto com outras tantas, é supervalorizada.]

Fiquei alguns dias pensando se deveria escrever sobre esses riots em Londres ["riots" também é uma ótima palavra, mas, no caso, sem tradução exata]. Tenho lido tudo o que eu encontro sobre o assunto e imaginei que não poderia dar uma contribuição para a situação. Foi então, que, a partir de uma entrevista do filósofo polonês radicado na Inglaterra [por que insistem em chamá-lo de sociólogo?] n'"O Globo", que eu resolvi palpitar. Não pela entrevista em si, mas porque, após ele afirmar em alto e bom som que os problemas seriam causados por quem está distante do consumo que querem, de alguma maneira, ter acesso a ele, ou seja, repetindo os seus argumentos, ao lado há um artigo falando sobre como os ingleses tratam os seus conflitos étnicos. E na outra página, sobre como a Europa passa por um momento de depressão econômica. Três explicações para o mesmo problema.

Não sei se esse é o primeiro caso, mas para mim, é nitidamente um levante em que não há uma única causa, mas várias. É claro que você pode juntar todos os motivos acima naquela famosa frase "It's the economy, stupid", que um assessor do Clinton disse para justificar a vitória do democrata contra o Bush pai. Mas generalizar assim o processo é perder uma ótima oportunidade para se entender o caso e, por consequência, o nosso momento histórico.

As manifestações tiveram início - todo mundo sabe - com a morte pela polícia de um homem negro, pobre, de 29 anos, pai de quatro filhos, morador da periferia. Os seus vizinhos foram reclamar na delegacia, mas não foram atendidos. Após horas de negação, se revoltaram e tacaram fogo no que encontraram. Em seguida, as forças do Estado não encararam esse movimento como algo de proporções consideráveis e as manifestações cresceram. Cresceram porque outras pessoas queriam protestar contra as discriminações contra negros, contra imigrantes da Índia e adjacências, contra os cortes dos investimentos sociais nas áreas mais pobres, porque o aperto econômico não dá sinais de fim, porque queria uma nova televisão de LCD.

O que é mais importante entre todos esse fatores? O que deveria ser visto como a grande causa dos riots? O que combater primeiro? Como combater? Não sei. Mas em vez de achar que é o fim do mundo, as pessoas deveriam achar que essa é a uma ótima oportunidade para se pensar os problemas da sociedade inglesa. Perceber que há discriminação contra negros e indianos, e entre eles dois, que as classes mais pobres vão ficar ainda mais pobres, e que esse ideal de felicidade baseada apenas no novo iPhone é um problema de inclusão não mais social, mas econômica. Como sempre ouço de um amigo que fez mestrado em sociologia, as ciências humanas são sempre multifatoriais.

ps. o primeiro-ministro britânico dizendo que tem nojo dessas revoltas é de fazer o Cabral, o governador, corar.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

O centésimo e outros nomes para a coincidência

“Épico. Isto mostra que este cara não só é o maior nadador de todos os tempos e o maior olímpico também, como talvez seja o maior atleta de todos os tempos. Ele é o maior competidor de todos que andaram pelo planeta.” – Mark Spitz sobre Michael Phelps.

O homem sempre tentamos achar explicação para as coincidências. É-nos muito difícil encarar situações que normalmente não aconteceriam, mas acabam ocorrendo. Um telefone de alguém em quem estávamos pensando. Um sonho – no sentido de antônimo da vigília – que se profetiza.  Uma situação que se repete, diversas vezes, com diversos formatos... Os exemplos prosseguiriam por folhas. Com a questão aleatória, aquela que não tem qualquer razão, dentro da irracionalidade em que vivemos, nós já usamos de diversos estratagemas para nos confortar. Da religião, passando pela ciência e outros totens modernos, até a simples resignição. Mas a coincidência... a coincidência acaba com o humor do mais arraigado ateu-racional-materialista. Uns  a enquadramos como mais um traço da aleatoriedade. Outros apelamos para argumentos lógicos: defendemos que, ao sermos impressionados por determinado assunto, criamos uma espécie de filtro mental que destaca, do grande conjunto de situações em que estamos imersos, os assuntos mais afins, ressaltando, portanto, as incidências com caráter parecido e duplicado. Ou forçamos uma espécie de correlação entre os fatos, para dizer a frase redentora, um “maktub” qualquer, e demonstrar, assim, que ainda sofremos de uma mal disfarçada orfandade do deus pai que tudo vê, tudo pode, tudo sabe e ainda por cima nos protege.  Ou apenas ficamos estupefatos, boquiabertos, sem qualquer palavra. O que é mais comum.

Parece que foi Carl Gustav Jung – que cunhou o termo sincronicidade, para explicar “a ligação entre os acontecimentos, em determinadas circunstâncias, pode ser de natureza diferente da ligação causal e exige um outro princípio de explicação” (CW VIII, par. 818) – quem criou, ou identificou e registrou, essa terceira categoria das ações. Além do aleatório (tudo aquilo que acontece sem uma relação de causa e consequência), e daquilo que se presta ao jogo da causalidade, haveria uma terceira classe do que pode acontecer, que não respeitaria nenhuma dessas duas regras anteriores. Aparentemente, Jung não chega a decifrar essas situações híbridas que são, sob o ponto de vista puramente racional, injustificáveis, mas que respeitam algum tipo de lógica, mesmo que nós não alcancemos (lembremos de Pascal: “Le cœur a ses raisons que la raison ne connaît point”).  Como se houvesse um padrão que ainda não foi padronizado. Uma norma tão grandiosa e com tantas variáveis que abarcasse toda a Terra e fosse impossível, até o momento, de ser decodificada – e talvez nunca seja, mesmo. (pensemos, agora, em Shakespeare, pela boca de seu filho mais famoso: “There are more things in heaven and earth, Horatio, than are dreamt of in your philosophy”). Tal explicação foi melhor encarada quando físicos do porte de Wolfgang Pauli e Albert Einstein (portanto herdeiros da ciência, da exatidão, da tradição acadêmica que mais se sobressaiu desde a modernidade) deram o aval deles – com ressalvas – para a teoria. No macro ou no microcosmo, há partículas que respeitam algum padrão de comportamento, mas que são – ainda, ou não – imprevisíveis. Saber que algo existe, porém, não nos tira o assombro. Pelo contrário.

Um dia tem 8.640.000 centésimos. Pensar que apenas um deles possa ser decisivo na biografia de uma pessoa já seria pavimentar o caminho em direção a aceitação do fator aleatório em nossas existências. Imaginar e comprovar que dois personagens com trajetórias de vida parecidas foram afetados por um e quase o mesmo centésimo, porém com a diferença entre os dois episódios de 20 anos, faz começarmos a duvidar de nossa fé na razão e começar a abraçar a religião das coincidências. Estamos falando do hoje mundialmente famoso Michael Fred Phelps e do esquecido Matthew Nicholas Biondi. Elencar as conquistas e recordes  do primeiro se torna, em pouco tempo, tedioso, e tira o mérito e o valor dos seus triunfos. Talvez um dado consiga abarcar a importância do nadador para os esportes em todos os tempos. Ele é o maior medalhista de ouro individual dos Jogos Olímpicos modernos, com nove conquistas em duas edições. Na natação, diferentemente de outros esportes individuais, como o surfe, de outro fenômeno chamado Kelly Slater, ou o automobilismo, de Michael Schumacher, ou mesmo esportes coletivos, é possível fazer uma comparação entre gerações de maneira menos absurda. Não comparando tempos, já que isso seria anacrônico, mas resultados. Ele pode ser considerado o melhor nadador de todos os tempos não apenas por ter ganho tantas medalhas nos Jogos Olímpicos – poderia ter tido apenas sorte de ter nascido numa geração fraca –, mas por, ao ganhar essas medalhas, ter batido os recordes mundiais na quase totalidade das respectivas provas, demonstrando que os resultados positivos não eram coincidência. Aliás, se há uma coincidência no caso – como se verá mais à frente – é o fato de a única prova em que ele não bateu o recorde mundial (foi “só” o olímpico) foi os 100 metros borboleta.

O currículo de Biondi não é tão brilhante quanto o de Phelps – nem poderia ser: só pode haver um maior nadador de todos os tempos. Competiu em três Olimpíadas (1984, 1988 e 1992) quando conquistou “apenas” oito medalhas de ouro, considerando as provas individuais e coletivas, fora pratas e bronzes. Era menos versátil e competia em provas mais rápidas que Phelps, como os 50 e os 100 metros livre – provas do brasileiro Cesar Cielo, por exemplo – e foi hegemônico na segunda até o aparecimento de um outro fenômeno: Alexander Popov.  Biondi fica numa honrosa sexta colocação no ranking de medalhistas de ouro em apenas uma edição dos jogos, cinco, em 1988, em Seul. Mas a principal diferença entre os dois pode estar em apenas um centésimo.

Já o que junta ambos nadadores é um terceiro atleta das piscinas: Mark Andrew Spitz. Até Phelps, Spitz era o maior nome da natação na História. Era dele o recorde de medalhas de ouro numa mesma edição de Jogos Olímpicos, sete, em 1972, Munique – a Olimpíada que, infelizmente, ficou mais conhecida pelo sequestro e subsequente assassinato de 11 atletas israelenses. Spitz, judeu, ficou em segundo lugar. Além das sete medalhas, Spitz, mesmo com o seu famoso bigodão, também bateu os sete recordes mundiais das provas em que nadou, provando, com o mesmo argumento, de que não tinha se beneficiado de uma geração fraca. (Um exemplo de um bom nadador que teve a sorte de competir em uma Olimpíada fraca foi Gustavo Borges. Em 1996, ele foi segundo lugar com o tempo de 1’48’’08 nos 200 metros livre, que não lhe daria nem o bronze de 1992, quiçá de 1988 – medalha aliás, que ficou para Biondi.)

A história deste recorde de medalhas de Spitz começa quatro anos antes, em 1968. Assim como Phelps, Spitz foi sempre um garoto prodígio da natação. Aos dez anos já tinha um recorde mundial na categoria. (Phelps, por sua vez, bateu seu primeiro recorde adulto aos 15 anos e 9 meses, se tornando o mais jovem atleta a superar uma marca absoluta.) Na Cidade do México, Spitz chegou como uma grande expectativa de conquistar cinco medalhas douradas, considerando que já havia estabelecido, aos 18 anos, dez recordes mundias, e, um ano anos, nos jogos Pan-Americanos de Winnipeg, ele já tinha conseguido o quinteto. (Esse recorde de Spitz foi batido por um brasileiro, Thiago Pereira, no Pan de 2007.) Porém, Spitz só venceu as provas de revezamento que participou. No 200 metros borboleta, terminou em oitavo, o último colocado na bateria. Nos 100 metros livre, terminou em terceiro. E nos 100 metros borboleta, a única prova em que Spitz, Biondi e Phelps dividem, ficou em segundo, por 5 décimos de segundo. Numa época em que a divisão do tempo parava na primeira casa decimal após o segundo, num exemplo sutil da menor preocupação com a precisão do tempo, essa disparidade representava uma diferença ínfima. Talvez não como um centésimo, mas cinco.

Nunca saberemos ao certo, mas podemos imaginar que essa derrota no 100 metros borboleta – a prova favorita de Spitz – tenha doído mais que o oitavo lugar dos 200 metros do mesmo estilo. O lugar-comum assegura de maneira cruel que o segundo colocado é o primeiro perdedor. Numa sociedade competitiva,  essa proximidade com o sucesso, essa dor do quase, a síndrome do vice, machuca mais que o completo anonimato, que a lanterna, que “fechar raia”, que no jargão da natação quer dizer chegar em último. Principalmente para Spitz, cujo pai, Arnold, lhe dizia: “Swimming isn't everything; winning is”. Era vencer ou nada.

Após o triunfo em 1972, Spitz abandonou a natação, aos 22 anos. Tentaria a carreira como ator, como, aliás, outro grande nome da natação americana e mundial, Johnny Weissmuller. Além de ter sido o primeiro homem a nadar a distância abaixo do cabalístico tempo de 1’00’’ nos 100 metros livre, Weissmuller se transformou no dono do mais famoso grito de Tarzan da história do cinema. Diferentemente do homem-macaco-peixe, a vida de Spitz fora das piscinas não foi tão famosa. Ele ainda tentaria voltar às piscinas, para as Olimpíadas de 1992, com mais de 40 anos. Em 1991, competiu numa prova não-olímpica, os 50 metros borboleta, contra Tom Jager – então recordista dos 50 metros livre – e... Matt Biondi. Perdeu para ambos. Desistiu da ideia um pouco louca de tentar ir a Barcelona quando não conseguiu nem se classificar para a seletiva americana. O tempo exigido era 55’59, ele fez 58’03 – uma eternidade de diferença.

O grande triunfo de Phelps também se iniciou antes de 2008. Oito anos antes, para ser exato. Ainda com 15 anos, ele foi o mais novo atleta da natação a competir em Sidney. Nadou apenas os 200 metros borboleta – talvez a mais assustadora prova que exista para um nadador – e, mesmo com a pouca idade, ficou em quinto lugar. Cinco meses após os jogos, ele bate o recorde mundial da mesma distância. Quatro anos após Sidney, era a vez de Atenas. Phelps já é, provavelmente, o maior nadador em atividade, num período que outro fenômeno também divide as piscinas com ele, Ian Thorpe. O americano está inscrito em oito provas, claramente numa tentativa de sobrepor as sete conquistas de Spitz. No campeonato mundial de natação do ano anterior, realizado em Barcelona, ele já tinha nadado em seis provas e levado quatro ouros e duas pratas. Comparando Barcelona 2003 e Atenas 2004, podemos ver que na primeira competição ele optara por não competir exatamente na prova em que Thorpe detinha o recorde mundial, os 200 metros livre, e não fora incluído no revezamento 4 x 100 metros livre, por não ser especialista na distância. Em Atenas, porém, ele estava escalado para ambos os desafios. E foram exatamente nessas duas provas que ele “falhou”, chegando em terceiro lugar. Ele ganhou em todas as demais provas e saiu de Atenas com “apenas” seis medalhas de ouro e duas de bronze. Ficou no quase.

Matt Biondi também competira em uma Olimpíada antes da sua principal, a de 1988. Nadou o revezamento 4x100 metros nado livre, que levou o ouro em Los Angeles. Quatro anos depois, em Seul, começava a saga do primeiro homem que se propunha a igualar as sete medalhas de ouro de Mark Spitz numa mesma edição dos jogos. Suas provas eram: 50, 100 e 200 metros livre (esta, a sua aposta mais arriscada), os 100 metros borboleta e os três revezamentos, 4x100 metros livre, quatro estilos e os 4x200 metros livre. Como acontecia com bastante frequência, os EUA foram soberanos nos revezamentos: em nenhum deles a equipe norte-americana ganhou com menos de um segundo de vantagem sobre os adversários. Nos 50 e 100 metros, apesar da concorrência com Tom Jagger na primeira prova, Biondi faturou ambas. Já nos 100 metros borboleta... Antes, porém, é bom deixar explícito que Biondi, ao cair na água, já não tinha chance de igualar Spitz. Ele perdera dois dias antes a prova dos 200 metros livre para um australiano até então praticamente desconhecido: Duncan Armstrong. Ficara em terceiro, sendo, provavelmente, abalado por essa derrota.

Nem sempre as histórias seguem um roteiro com encadeamento lógico - mesmo as mais coincidentes. Se essa saga tivesse sido criada por um roteirista afeito a simetrias, certamente alguns detalhes seriam diferentes. Ou Biondi teria vencido os 200 metros livre, ou a prova teria acontecido após o desastre dos 100 metros borboleta. Porém, talvez o borboleta não tivesse sido tão catastrófico, assim, caso ele tivesse vencido o crawl. Aliás, essa derrota de Biondi pode ter, sim, uma semelhança, pelo inverso, com uma prova de Phelps, já em 2008. Uma prova que nem foi vencida por Phelps, mas que injetou nele uma certeza de que ele não poderia perder mais.

É possível apostar que quem assistiu aos jogos de Pequim não esquecerá de uma cena específica. Phelps gritando com os músculos do peito, bíceps, abdômen, todos tensionados, com os braços estendidos à frente de seu corpo, as veias dos antebraços e pescoço saltando, em uma expressão máxima da vitória. Era o fim do revezamento 4 x 100 metros livre, sua prova mais difícil, já que não é especialista em velocidade. Os EUA haviam vencidos os franceses, numa chegada extremamente improvável. O caminho estava livre e a esperança nunca havia estado em tão alto patamar. Phelps fora o primeiro a cair na água entre os norte-americanos e entregara em segundo com um tempo memorável, 47’51, recorde continental, atrás apenas do australiano Eamon Sullivan que, na ocasião, batera o recorde mundial. Para efeito de comparação, com esse tempo, Phelps seria o terceiro colocado na prova individual, à frente de César Cielo e do conterrâneo Jason Lezak, que empataram em 47’67. Lezak era o último nadador do revezamento dos EUA, o responsáel por “fechar” a prova, como se diz entre os nadadores, e cairia na água junto com o homem que tinha vencido a prova individual, o francês Alain Bernard. Para dificultar a tarefa de Lezak, além de ter que bater um atleta que havia sido melhor que ele na competição individual, seu companheiro anterior tinha nadado a distância em cerca de um segundo mais lento que o adversário francês, e entregara o revezamento com meio corpo de desvantagem. Qualquer nadador teria todo o direito de ficar intimidado com essa incumbência. Se a natação, ou mesmo a vida, fosse lógica, e se respeitasse os resultados previamente obtidos, Lezak teria se matado de nadar e, mesmo assim, Bernard teria batido na frente. Phelps teria perdido nesse momento a chance de superar Spitz no número de ouros, mas nem poderia culpar o companheiro: ele estava nadando, em desvantagem, contra o campeão olímpico! Lezak nadou, portanto, por ele, pelo seu país – o presidente dos EUA, George W. Bush, estava na plateia, segurando uma bandeirinha –, por seus companheiros, mas muito mais por Phelps. Eram a vida, a carreira, a reputação de Phelps que estavam sendo decididas a cada braçada de Lezak. Ninguém acreditava. Era uma tarefa dificílima. Se é possível usar a expressão “impossível” para algo que, depois, foi feito, essa é a situação ideal. Antes de ele cair na água, o narrador da TV americana chega a dizer: “ele vai ter que voar”. Se ainda restasse alguma esperança ao maior dos crédulos, ele a teria perdido e desistido por completo quando visse que Bernard abrira o outro meio corpo de vantagem na virada dos 50 metros. A distância entre os dois beirava os dois metros e possívelmente um segundo. Porém, a volta de Lezak foi a mais fenomenal de todos os tempos. Ninguém parecia acreditar quando ele crescia e se aproximava de Bernard até que na chegada, bateu na frente do francês. Oito centésimos à frente do oponente. Enquanto Phelps gritava e comemorava, os companheiros franceses olhavam para o placar eletrônico, atônitos, sem acreditar no que tinha acontecido. Bernard escondia o rosto, ainda na piscina, envergonhado por ter perdido. Phelps tinha passado em sua prova mais difícil, mas ainda teria uma outra prova de velocidade pela frente. E dessa vez, não poderia contar com os companheiros. Eram os 100 metros borboleta.

Vinte anos antes, a mesma prova, 100 metros borboleta. Matt Biondi chega para competir podendo se tornar, ao menos o segundo nadador de todos os tempos, com seis ouros. Quase um Spitz. Uma medalha de diferença. Ao seu lado, o nome mais conhecido é o do alemão ocidental Michael Gross, apelidado de Albatroz, por ter uma envergadura comprida. Entre os oito finalistas, nadadores das maiores potências do mundo, à época. Além dos EUA e da Alemanha Ocidental, o Canadá, a Grã-Bretanha e a URSS. E um competidor do Suriname. Anthony Nesty.  Reza a lenda que não havia nenhuma piscina olímpica no Suriname quando Nesty treinava lá. Seu país de origem tem tanta tradição na natação quanto o Zimbábue – que recentemente, aliás, teve uma nadadora  duas vezes campeã olímpica, Kirsty Coventry. Nessa época, Nesty já treinava nos EUA e não era exatamente um desconhecido. Havia batido alguns recordes menores e tinha ganho o Pan de 1987 – mas estava longe de ser uma ameaça para os planos de Biondi. Quando o locutor chama o seu nome, o norte-americano mostra um sorriso confiante, quase displicente. A câmera de TV só o acompanha. O juiz pede para todos se aproximarem dos blocos de partida e percebemos a diferença física entre os nadadores. Nesty, negro, baixo para os padrões dos nadadores (1,80 m), com pouca musculatura. Gross, imenso (2,01 m), peitoral avantajado, cabelos louros amarelados. Biondi, altíssimo (2 m) , forte, ombros largos, cabelos pretos raspados à máquina. O juiz faz o pedido tradicional, “take your marks”, e apita, todos caem. Na água, como bom velocista que era, Biondi sai na frente de todos, virando os primeiros 50 metros abaixo do recorde mundial, e abrindo quase um corpo dos demais, que vinham juntos, num segundo pelotão uniforme. Aos poucos, contudo, ele vai cansando na volta, enquanto os demais se aproximam, vagarosamente. Porém, nada parece afetar Biondi seriamente. Tudo indica que ele vai se manter inteiro na luta pelas suas seis medalhas de ouro. A cinco metros da borda, todavia, todos os competidores estão bem próximos. Nesse momento, o espectador mais especulativo poderia imaginar que se houvesse mais uns dez metros, Biondi nem subiria no pódio: sorte dele que a prova acabaria em poucos instantes. Não foi preciso mais do que outros poucos metros. No “T”, a marcação nos azulejos do chão da piscina no formato dessa letra, Biondi mede sua última braçada de maneira errada e se estica todo para tocar a borda. Na raia 3, Nesty, com sua envergadura menos avantajada, dá uma braçada menor e encosta. O tempo de Matt Biondi: 53’01. De Nesty: 53’00. Biondi deixa de ganhar a medalha de ouro por apenas um único centésimo. O sentimento de incredulidade é compartilhado por todos. Enquanto Nesty sai da água para abraçar as pessoas, Biondi fica olhando para a borda, quase imóvel.

Novamente 2008. A sétima prova de Phelps era exatamente os 100 metros borboleta. A vitória seria dupla, a derrota, infinita. Se ganhasse, igualaria o recorde Spitz e ainda seria selecionado para o revezamento 4 x 100 metros quatro estilos dos EUA, com fortes chances de ganhar a oitava medalha. Se perdesse, repetiria o êxito de quatro anos antes, e ficaria no “quase”. Seria novamente o nadador que tentou bater Spitz e ficou bem próximo, duas vezes. Duas vezes falhando. Para complicar a prova para Phelps, por ser sua sétima prova, ele já estava mais exaurido que qualquer outro nadador naquela prova. Entre eliminatórias, semifinais e finais, Phelps tinha caído dezenas de vezes na água e nadado milhares de metros, entre elas, as provas mais cansativas que a natação tem, como o 400 metros medley e o 200 metros borboleta. Ao lado dele, estava o recordista mundial da prova, seu compatriota Ian Crocker.  Se Crocker o vencesse, ele nem disputaria o revezamento e seu resultado seria ainda pior que o de quatro anos antes. Além dele, havia ainda um sérvio, nascido nos EUA, meio falastrão, chamado Milorad Čavić. Antes da competição, Čavić chegou a dizer que seria “bom” se Phelps perdesse a prova e ficasse marcado como o homem que apenas igualou o recorde de sete ouros. Phelps respondeu que quando pessoas falam coisas como essa, “it fires me up more than anything”. O norte-americano estava mordido. Queria a sétima medalha e a passagem para a eternidade.
Quando o locutor apresenta Čavić, na raia quatro, a dos favoritos, ele segura o escudo do uniforme de seu país – outro sem qualquer tradição no esporte – como quem quer demonstrar orgulho, comprovar que, mesmo tendo nascido nos EUA, é totalmente sérvio. Em seguida, é a vez de Phelps. Imóvel, completamente impassível, olhando para um ponto fixo logo acima do horizonte, escutando música, como faz sempre. Depois da apresentação obrigatória, apenas se vira e começa a tirar sua roupa. Na raia 6, Ian Crocker, já pronto para a prova, respira fundo, como se já soubesse que seria apenas o coadjuvante dessa disputa. Antes de subirem no bloco de partida, coincidentemente, Čavić e Phelps ficam frente a frente: ele decide subir por sua direita, e Phelps, pela esquerda. Eles não se encaram. Phelps apenas alonga os muito alongados braços enquanto Čavić balança os músculos. Sobem no bloco. Čavić faz o sinal da cruz, Phelps repete o seu procedimento padrão: abaixa o tronco à frente e cruza os dedos das mãos às suas costas para esticar pela última vez os braços, os soltando em seguida de maneira violenta para quase se autoabraçar, uma, duas, três vezes, como se estivesse batendo asas. Vai começar. Take your marks. Silêncio em todo o estádio. É agora. Bip. Todos mergulham e a torcida se transforma em uma plateia enlouquecida. A primeira braçada dos dois acontece concomitantemente, mas Čavić logo a seguir começa a liderar a prova com facilidade, enquanto Phelps, talvez sentido o cansaço, talvez optando por uma tática negativa – de voltas mais fortes que a ida –, está entre os últimos. Čavić passa os primeiros 50 metros em primeiro lugar, nove centésimos de segundo abaixo da parcial do recorde mundial. Ian Crocker está em segundo. Phelps continua como um dos últimos.

Além de ter uma grande “natação”, como se diz sobre os nadadores extremamente técnicos, com um estilo bonito de se ver, Phelps é uma grande especialistas também nos fundamentos: sua parte submersa da prova é, senão a melhor entre todos os competidores, uma das. Ao sair da água, após a virada, ele já é o quinto colocado, apenas meio corpo atrás de Čavić – mas o sérvio não vai entregar facilmente a prova. Aos 75 metros, Phelps já é o segundo, mas a diferença para Čavić diminui muito vagarosamente. Aos cinco metros da borda, novamente, pensamos: Phelps perdeu essa. No “T”, Čavić mergulha com a sua última braçada para bater na borda, enquanto a mão de Phelps ainda está no ar. Em seguida, filme repetido, protagonistas mudados, história já conhecida.

Phelps, 50’58. Čavić, 50’59.

Ele tenta esboçar uma comemoração: bate na água, tensiona os músculos, mas está cansado. Čavić vai cumprimentá-lo, em seguida Crocker. “Michael Phelps, você é absolutamente invencível”, diz o locutor da TV inglesa. Não há muito como discordar dele. Em outro momento, afirma: “Ele é um garoto de sorte”.
Sorte, um dos nomes da coincidência. Quando não sabemos muito bem o que acontece com nossas vidas, tentamos dar nomes para, ao menos, tornar essa situação mais familiar, nos afastar do desconhecido, nos confortar como uma figura familiar. Matt Biondi e Michael Phelps foram protagonistas de uma mesma peça em que a um foi dado um final não muito feliz, que, dentro dos padrões atuais, pode quase ser visto como ruim. Ao outro, a honra suprema. Para Biondi, estar próximo dessa coroa foi o seu maior problema. Phelps se esbaldou. O centésimo se transformou em uma moeda jogada ao ar que tinha cinquenta por cento de chance de cair para um lado ou para outro. O centésimo mudou de lado, dentro de uma história que visivelmente se repetiu, com personagens parecidos,  locais similares, resultados diversos, angularmente opostos. Biondi na condição de favorito esperou que a borda chegasse para ele, assim como fez Čavić – que caíra na água na condição de homem a impedir a devastadora vitória do oponente. Phelps e Nesty foram em direção à chegada, como se não houvesse fim a corrida. Acreditando que enquanto não atingir o alvo, não chegou à conclusão. Eternizando o instante. Confiando que em um centésimo ainda é possível vencer.

Um centésimo. O piscar de olhos do clichê dura de dez a 20 centésimos. Praticamente a definição do “quase”. Um centésimo é quase inapreensível. Inexplicável. Não há nada que se possa fazer nesse tempo. Além de perder, ou ganhar, dependendo do lado que você encara o assunto. Um centésimo é o instantâneo. E o instantâneo é aquilo que nunca se apreende, é o eterno devir, é uma eternidade pelo seu lado oposto, aquilo que se modifica a todo momento. Menos quando entramos na transcendência. Então, um centésimo pode durar uma vida inteira e nunca ser esquecido. Para o mal ou para o bem.

Não existe uma lógica entre o nível da vontade de cada um e os resultados que daí se pode tirar. Não há como medir esse “querer” das pessoas, para saber quem era o que mais queria. Não há qualquer “justiça”, nos termos de quem faz bem, leva, que se esforça mais, ganha, quem merece é o bom. Ganha, simplesmente, quem bate na frente. Qualquer um pode entender esse processo. Não existe explicação complicada, estudo, ou outra tentativa de teorizar sobre o aspecto. Leva quem chega em primeiro. O placar eletrônico é amoral: registra os tempos e a discussão tem fim. Mas é tentador pensar o que faz um ou outro vencer. Treino? Alimentação? Biotipo? Vontade? Raça? Deus? Coincidências? E é ainda mais provocante quando isso ocorre com dois episódios em que um “justifica”, “explica” ou “desfecha” o outro. Como se houvesse, primeiro, um sacrifício para a compensação final, em que um personagem é imolado aos deuses da natação para a exibição pública de sua vergonha de ter perdido por um centésimo para que, 20 anos depois, um compatriota, um igual, pudesse alcançar a glória máxima, exatamente usando o mesmo procedimento. Os três atos explícitos: a vergonha inicial, a luta pela vitória e a consagração. O mentor e o aprendiz. Protagonistas americanos, antagonistas de nações menos famosas. Não é possível assegurar se as coincidências são realmente uma terceira forma de se encarar os atos e as ações. Novamente: é difícil fugir de tentar encontrar uma explicação, algo que decifre esse código superior, que possa torná-lo algo decodificável, que demonstre que há uma lógica atrás de tudo e que, portanto, estamos a salvos – o que a colocaria dentro da categoria da causalidade. Podemos imaginar que nesse caso, as coincidências podem ensinar algo, como a atitude ativa tende a ser melhor encarada pelo destino que a passiva. E logo descobrimos que é balela. Porque destino é apenas outro dos nomes que damos à coincidência.

Legenda da revista Life para essa foto da Getty Images: "Olympic gold medalists Mark Spitz, Michael Phelps and  Matt Biondi pose on the red carpet at the Fourth Annual Golden Goggles Awards at the Beverly Hilton Hotel on November 18, 2007 in Los Angeles, California.". Daqui.

ps. esse ensaio foi escrito antes do campeonato mundial deste ano. mas não mudam muito as minhas opiniões.