Considerado o melhor filme da primeira década do século XXI pelo jornal "O Globo",
Brilho eterno de uma mente sem lembranças sofre hoje por suas qualidades. Ele é o segundo e último – até agora – fruto da união do melhor diretor da época dos videoclipes [o francês Michel Gondry, que lança neste fim de semana o seu mais recente filme:
A espuma dos dias] com o melhor roteirista da atualidade [o americano Charlie Kaufman]. Ambos sozinhos, ou com outras parcerias, nunca mais produziram algo tão inventivo e impactante. Daí o seu problema. Por conta dos predicados e da aura de cool de seus realizadores, diz-se que ele se tornou uma escolha óbvia entre aqueles que precisam de um filme para poder tentar se incluir dentro do grupo dos descolados.
Não gostar dele por conta dessa sua fama [que não é exatamente grande, logo, só incentivando o clima de “clube exclusivo”] é apenas fazer o jogo oposto – e, ao mesmo tempo, igual – dos que gostam dele sem qualquer fundamento: só é bom, ou só se pode falar sobre, aquilo que ninguém mais fala ou conhece. Essa vontade de ser único, individual, jamais uma cópia, não é novo, claro. O mesmo deve ter acontecido, podemos supor, em todas as gerações. Filmes como
Laranja mecânica,
Taxi driver,
Blade runner,
Pulp fiction, só para ficar nas três décadas anteriores, são exemplos de filmes que se tornaram referência muitas vezes sem nem mesmo serem vistos. Ignorá-los é, além de perder produções excepcionais, deixar passar movimentos históricos por pura ignorância.
Feitas essas ressalvas, basta pensar que o longa-metragem, que conta com Jim Carrey e Kate Winslet nos papéis principais, mas cujos coadjuvantes [Mark Ruffalo, Elijah Wood, Kirsten Dunst, Tom Wilkinson entre outros] são provavelmente tão importantes quanto os principais, tem predicados que sustentam sua fama para entrar para a memória cinematográfica mundial. Ele representa exatamente a geração que cresceu vendo videoclipes numa recém inaugurada MTV [que está para fechar, concluindo o seu ciclo], e, após o período do grunge, ou seja, na segunda metade da década de 1990, descobriu nomes como David Fincher, Spike Jonze, Roman Coppola, Chris Cunningham e Michel Gondry, só para citar os mais famosos.
Alguns fizeram a transição para o longa-metragem outros tentaram formatos mais alternativos, como a videoarte. Mas foi o clipe, esse vídeo que acompanha a música de uma banda, o laboratório em que eles puderam trabalhar suas linguagens, sem tantas amarras de um estúdio que limitasse suas imaginações. Mexeram com o tom das narrativas, aprenderam as questões técnicas, foram ganhando experiência, e criaram seus estilos. Toda a loucura nonsense que você vai ver em um filme como
Quero ser John Malkovich, de Jonze, já estava presente no clipe
Praise you, do Fat Boy Slim. O mesmo podemos dizer de Gondry. Todo o seu clima onírico já estava em
Let forever be, dos Chemical Brothers.
Essa é a principal característica do cineasta francês, que fez depois filmes tão irregulares como
Rebobine, por favor e
Sonhar acordado: seus filmes parecem grandes passeios pelo inconsciente enquanto estamos desacordados. Sua estética, que se baseia em inventar soluções pequenas, às vezes forçosamente simples, sugere que suspendamos sempre nossa crença no que seria real, verdadeiro, físico, palpável. Nos seus filmes, tudo é possível.
Aqui entra Charlie Kaufman. O roteirista americano foi o parceiro ideal – enquanto viável – para esse grupo que vinha dos clipes. Ele é o roteirista dos primeiros filmes tanto de Jonze como de Gondry. Kaufman construía a história que seria levada à tela, no formato do diretor. Foi uma parceria, principalmente com Gondry, que rendeu ao menos duas obras-primas: além de
Brilho eterno..., o primeiro filme dos dois juntos,
Natureza quase humana. Curiosamente, quando se separaram, os dois nunca mais construíram nada relevante. Como se um precisasse do outro para se controlar e conseguir atingir o público. Como se os roteiros incomuns de Kaufman precisassem de um diretor com o apuro visual de Gondry para se fazer entender. O único filme que Kaufman dirigiu, Sinédoque, Nova York, é praticamente incompreensível. Como se a inventividade visual de Gondry necessitasse da substância de Kaufman. Com os dois juntos, forma e conteúdo, finalmente, teriam se encontrado.
Mas nem nomes conhecidos nem trajetórias de sucesso produzem, por si só, filmes [ou qualquer outra obra] relevantes. A trama de
Eternal sunshine of the spotless mind [título original, tirado do poema
Eloisa to Abelard, do inglês Alexander Pope, uma das fixações de Kaufman] pode ser resumida muito simplesmente assim: casal se separa e os dois tentam, com todas as suas forças, esquecer um ao outro. Quantos e quantos filmes partem dessa premissa e chegam a lugar nenhum? No caso de
Brilho eterno..., é diferente: eles literalmente vão apagar um ao outro de suas memórias.
Ambos, em diferentes momentos, procuram uma empresa chamada sugestivamente de Lacuna que faz um procedimento não-cirúrgico de remoção das memórias não desejadas. “Há algum dano para o cérebro?”, pergunta Joel, personagem de Jim Carey. “O procedimento é basicamente danificar o cérebro”, responde o médico interpretado por Tom Wilkinson, responsável pela empresa, “Tecnicamente é igual a acordar de ressaca”, exemplifica.
Assim Joel deve juntar todos os objetos que o fazem lembrar de Clementine [Kate Winslet] e levar para que o seu cérebro seja mapeado: qualquer parte em que houver resquício da ex-namorada seria deletado, como se fosse uma fita de videocassete ou um cartão de uma máquina fotográfica digital. A proposta é que uma “mente sem lembranças” poderá “brilhar eternamente”. Mas seria isso possível? Será que uma mente existe “sem lembranças”? E é possível “brilhar eternamente”, sem em nenhum momento enfrentar alguns períodos de sombra?
Apesar de todo o avanço da neurociência, que já conseguiu, também, mapear o cérebro humano, ainda não se sabe exatamente – ou cientificamente – como funcionam os mecanismos da memória. Como nos lembramos de algo, por que nos lembramos, que fatores nos fazem lembrar ou esquecer algo? A psicologia vem, igualmente, tentando responder a essas questões desde antes de Freud. William James [irmão do romancista Henry James], por exemplo, em seu
Os princípios da psicologia, de 1890, já afirmava que “de algumas ações, nenhuma memória sobrevive ao instante de sua passagem. De outras, é confinada a alguns momentos, horas, ou dias. Outras, ainda, deixam vestígios que são indestrutíveis e de alguma maneira elas podem ser recordadas enquanto a vida durar”.
No capítulo sobre a memória de sua obra, ele tenta explicar essas questões dizendo que as lembranças do objeto têm a ver com a intensidade da relação com esse objeto – intensidade que não necessariamente tem ligação com tempo ou espaço: “Um objeto de memória primária não é assim trazido de volta; ele nunca é perdido; sua data nunca foi cortada da consciência do momento do presente imediato”. Ou seja, se aceitarmos James e entendermos que não é possível esquecer certas paixões de maneira “tradicional”, a Lacuna, a empresa do filme, veio resolver esse problema cirúrgica, fisicamente. Mas nenhum benefício existe sem algum malefício. Nenhum brilho existe sem produzir sombra.
No meio do procedimento de apagar as memórias de sua ex-namorada, Joel decide abandonar o processo, exatamente porque junto com as partes ruins de sua relação havia também muitos momentos felizes. No momento de uma separação é comum – mas não uma regra – que só as dores apareçam. Porém, com o tempo, percebemos que, como todas as outras experiências da vida, um relacionamento nunca é só bom ou ruim: mas ambos. Cortar um é cortar os dois.
Para evitar que Clementine seja apagada, ele a leva, ou melhor, a sua projeção dentro de seu próprio inconsciente leva a memória que ele tem dela para áreas em que ela não pertenceria, como a infância ou momentos vexatórios da adolescência. Como se fosse possível controlar nossa memória. E ainda, controlar nossa memória contra a máquina que caça-lembranças. Em outra tentativa de viver um pouco mais com Clementine, Joel cria, inventa uma cena que não existiu, se utilizando das lembranças que estão sendo derrubadas como tijolos, numa espécie de reciclagem, fazendo uma bela metáfora de como a produção artística se utiliza da memória como matéria-prima. Nada disso parece ser páreo para a máquina.
Ao fim do processo, Joel já não tem qualquer recordação ligada a Clementine – mesmo as mais remotas [porque memória é um jogo de associação, como o próprio William James afirmou]. Mas, num truque do roteiro, os dois acabam se reencontrando. E se interessam novamente um pelo outro. A vida dos dois estava conectada? O destino já estava traçado? Antes de pensar que há um fim feliz, fácil [que não é o caso], há duas formas de interpretar essa quase conclusão [o filme ainda tem uma pequena reviravolta final].
A primeira, mais romântica: uma máquina, ou a sociedade tecnocientífica, para citar Heidegger, não consegue controlar o homem. Há sempre algo que escapa, que foge das simplificações da racionalização. Há o aleatório, há as emoções, há as vontades escondidas.
A segunda, um pouco mais prática, mas que só funciona a partir da primeira: nesse mundo aleatório, em que a ciência e a razão não conseguem dar conta de todos os fenômenos que existem, quando há o encontro de duas pessoas cujas afinidades, uma vez, as levaram a ficar juntas, elas tendem a ficar juntas novamente – mas não necessariamente, e o próprio filme dá um exemplo do caso contrário. Ou seja, se esse casal tem uma série de fatores em comum, fatores esses que os conectam, como já os conectaram antes, por que eles não ficariam juntos novamente?
O filme mostra que a memória individual pode ser, sim, algo “cerebral”, portanto, algo racional, científico. Mas não é apenas isso. Há uma memória “corporal”, mais emotiva, que é a formação dos nossos gostos, dos nossos quereres, das nossas vontades, feitas sem escolhas meticulosas, mas por impulsos. Mostra que a memória não se pode controlar. E, principalmente, que as experiências intensas, mesmo havendo consequências negativas no processo, valem a pena serem vividas. E repetidas.