Robal de Almendre começou a escrever antes de se entender por gente. Talvez porque vivia sozinho e quisesse evitar a paranóia. Quando começou a escrever, não se transformou em best-seller, mas fez vários amigos no meio. A sua prosa não era revolucionária, mas moralista, uma espécie de classe-média literária. Possuía um domínio narrativo bom, suas histórias costumavam ser interessantes e os personagens profundos. Se isolássemos os seus elementos e os analisássemos em separado, Almendre poderia figurar entre os grandes escritores de sua geração. Mas, inexplicavelmente, faltava algo. Como se ele se esforçasse para escrever, fizesse pesquisas, experimentasse a linguagem, mas, não isso tudo não fosse o suficiente. Havia alguma coisa de inominável, que é impossível de ser identificada, que faltava a Almendre.
Após 20 anos de carreira, podia-se considerar inserido no cânone cultural da sua época. Freqüentava outros escritores, editores, jornalistas dos cadernos de cultura, cineastas, acadêmicos, críticos, diretores de teatro e atores do primeiro escalão. Até havia ganho um prêmio nacional, pela biografia de Otto Lara Resende, feita sob encomenda.
Filho de catalães que haviam migrado na época da Guerra Civil, ele tocava o Barça, um restaurante com a melhor paella da cidade e freguesia fiel que os pais haviam deixado de herança. Almendre sempre a comparava à feijoada. O Barça é o ponto de encontro da sua geração, brincava. Onde discutiam as novidades culturais do momento. Em seus debates, todavia, faziam questão de ignorar a política, ficando apenas com a estética. Pareciam que viviam num mundo à parte, onde a miséria e a desgraça não os alcançavam, ou, argumentavam, não viam solução para a melhora da vida pública além de não se sentirem aptos, quiçá, responsáveis pela melhora da sociedade em que estavam inseridos.
Independentemente dessas questões, do Barça saíram as maiores obras de arte da contemporaneidade. Quem não se lembra de “Incoerências”, de Oswaldinho Carvalho, ganhador da Palma de Ouro em Cannes, longa que é uma espécie de colagem de absurdos que culmina naquela catarse final, já clássica? Ou de “Paranóia”, que rendeu a José Maria Frenkel reconhecimento internacional, sobre um sujeito preso dentro de um quarto que é inseguro até mesmo para abrir a porta? Ou ainda do best-seller instantâneo “Silêncio”, de Martha dos Anjos, uma obra inteira de mais de 500 páginas sem nenhuma palavra escrita? Todos amigos de Almendre, todos freqüentadores do Barça. Naquelas mesas espaçosas com vista privilegiada para o Joá foram discutidas todas as obras supracitadas e ainda outras mais.
Eles se sentiam como defensores da cultura – sem adjetivos. Eram chamados pelos seus detratores como os EmBarçados, porque simplesmente não se atentavam para o que acontecia nas ruas. Entretanto eles ignoravam as críticas deste tipo, simplesmente respondendo que a prioridade do grupo não era com aquele momento histórico, mas com a História. Como se pode ver, uma discussão que já houve em todos os lugares, em todas as épocas.
No meio disso tudo, ficava Robal de Almendre. Como todo moralista, gostava das discussões filosóficas e teológicas. Evitava tratar de estética, pois dizia que cada um tinha a sua idéia sobre o assunto e a tentativa de mudar o próximo era praticamente inútil. Almendre dizia que a preferência pelo grupo de amigos era simplesmente porque eles não se impunham regras. Eram livres para fazer o que quisessem. As obras de Almendre, no meio da falta de limites generalizada, contudo, não causavam nenhum estardalhaço. Era visto mais como o dono do restaurante que como autor da trilogia “Ato”, “Vendo”, “Amordaço”, este último o primeiro livro que recebeu proposta para ser traduzido no exterior. E isso o incomodava um pouco. Não que ele quisesse ser objeto ou protagonista de uma polêmica, mas se sentia inútil, efêmero. Claro que tal silêncio não o impedia de escrever – ele mantinha a média de um livro a cada dois anos – porque ele realmente gostava do processo da escrita. Mas, de vez em quando, ele ficava melancólico e se perguntava qual a importância de continuar.
Pode-se suspeitar, então, quão surpreso ele ficou quando recebeu a notícia de que a versão para o catalão de “Amordaço” figurava entre os mais vendidos. Em sua primeira experiência internacional, conseguia um êxito inigualável. Num primeiro momento, não pôde segurar o orgulho. O pensamento ecoava na cabeça de Almendre: sou um escritor internacional. Nunca faria sucesso em seu país porque estava fadado à fama no mundo todo, era um cosmopolita de nascimento. Pouco tempo depois, chegou outra proposta para verter a obra para o espanhol, mas, para acabar com qualquer tipo de pretensão, a vendagem foi ínfima. Almendre não entendeu muito bem o motivo da baixa aceitação pelo espanhol, mas logo se esqueceu do desastre e se vangloriava de ser ao menos bem vendido na Catalunha, terra de seus pais. Inclusive, acreditou a partir daí que o motivo para esse sucesso era, realmente, a ascendência. Concluiu que conseguia despertar as emoções de gente com o mesmo sangue que ele. Era como se o tempo e a distância física não existissem nesse caso. Ele era um catalão e não podia negar isso.
Tal hipótese se mostrou ainda mais forte quando Jorge Punyol, o seu tradutor catalão, pediu para escrever as versões do restante da trilogia: “Ato” e “Vendo”. Almendre, óbvio, aceitou. E os resultados, logo depois, foram praticamente os mesmos. Chegou a ponto de ter os três livros na lista dos mais vendidos. Feito impensável há algum tempo. O fato é: Robal Almendre era um fenômeno na Catalunha.
Seus pares que freqüentavam o Barça se dividiram entre os que invejaram o sucesso de vendas de Almendre em outro país – coisa que absolutamente nenhum deles havia alcançado – e os que ficaram simplesmente felizes com a recepção às obras, dizendo que era merecido. Almendre, por sua vez, pediu para que Punyol enviasse algumas edições em catalão para que ele pudesse expor no seu restaurante. Punyol gostou da idéia e resolveu até trazê-las pessoalmente.
Foi o primeiro contato pessoal entre os dois. Em questão de minutos, haviam virado os melhores amigos. Faziam piadas internas que só os dois entendiam, conversavam em catalão, discutiam novos lançamentos. Punyol sugeriu uma nova receita para o Barça, de um peixe ao molho de castanhas árabes, Almendre mandou o cozinheiro aprender e fez um banquete num domingo. Era a consagração máxima de Robal Almendre entre os seus pares.
Pouco tempo depois, começaram a aparecer convites para visitar Barcelona, Gerona, Lérida e Tarragona. Almendre combinou com Punyol uma viagem à Catalunha na primavera deles para proferir palestras em centro culturais, universidades e livrarias. Punyol organizou tudo, mas infelizmente não poderia ficar no país para ciceroneá-lo, já que tinha que viajar urgentemente para encontrar com um outro escritor. Certamente a editora mandaria alguém para acompanhá-lo na peregrinação. Almendre lamentou, mas se resignou.
Na viagem, havia toda uma programação em detalhes a ser cumprida: os locais das palestras, a quantidade de perguntas liberadas, os restaurantes para as refeições, até as páginas dos livros que ele poderia ler. Tudo estava planejado em detalhes. Almendre se sentia uma celebridade. Foi capa dos cadernos culturais de toda cidade que passou. Conheceu políticos, escritores e todo o naipe de famosos da região.
Os eventos literários eram praticamente iguais: ele se sentava num grande balcão, em frente a um auditório sempre lotado, lia uma página ou duas de um de seus livros e abria-se para perguntas da platéia. As questões eram sempre as mesmas: dicas para escritores iniciantes, curiosidades sobre a profissão, anedotas sobre ser também dono de restaurante, falta de intercâmbio cultural entre as nações, desconhecimento dos autores, situação política da Catalunha, Barcelona, o time, etc.
No antepenúltimo dia, Almendre visitou uma pequena universidade em Lérida. Seu pai sempre falava de Lérida, porque vários amigos dele haviam travado combate com os franquistas por ali. Almendre, sem saber muito por que, acordou emocionado. Olhou pela janela do hotel e viu uma casa demolida com uma velha palmeira-anã na frente. Logo associou à Guerra Civil espanhola – mesmo sabendo da impossibilidade de terem mantido a construção em tal estado por tantos anos apenas para lembrar a população da guerra, como acontece em Dresden, na Alemanha. Ficou triste sem saber o motivo. Sentia uma apreensão estranha, algo inexplicável que lhe deixava casmurro. O telefone do quarto tocou avisando-o que o carro havia chegado. O escritor desceu pelo elevador com a garganta apertada e os olhos marejados.
Ao chegar na universidade, foi recebido por uma salva de palmas dos estudantes e não segurou a lágrima que brotou. Desculpou-se à platéia e explicou como estava se sentindo. Mais palmas. Em seguida, pediu licença para quebrar um pouco o protocolo. Resolveu abrir o livro “Ato” num trecho que ele gostava muito e que tinha paralelos com a Guerra Civil. Começou a procurar e, depois de um tempo, o achou. Leu-o em tom baixo para um auditório em silêncio. Ao fim, mais quietude. Depois de alguns instantes sem um pio no salão, o debatedor resolveu abrir às perguntas do público. As questões foram as mesmas de sempre. Até que, quase no fim, um rapaz com feições bem finas e cabelos grandes e desgrenhados pediu a palavra. Disse que se considerava um grande fã da obra de Almendre, havia lido tudo do escritor já publicado em catalão, mas que ele não lembrava do trecho lido pelo escritor. Pediu, apenas, que Almendre dissesse qual a página que estava para que ele pudesse acompanhar. Almendre não se opôs à proposta do rapaz. Contudo, ao apontar a página em questão, o estudante avisou-lhe que sua versão era completamente diferente da dele. Almendre explicou que eram edições diferenciadas e que após a palestra lhe mostraria exatamente onde estava o trecho. O garoto, com calças de seda e bata branca, concordou.
Ele se chamava Hermano, era filho de espanhol, mas nascera em Gerona e se mudara para Lérida quando pequeno. Mostrou seu exemplar para Almendre que comprovou que eram de edições diferentes. Mas ao ler um pedaço aleatório do livro de Hermano, não reconheceu a passagem. Segurou o “Ato” em suas mãos, enquanto Hermano falava sobre como gostava do estilo violento e prático de Almendre, e tentava associar aquelas palavras lidas com as suas escritas originais. Parecia em vão. Qualquer folha que virasse, encontrava um texto completamente diferente daquilo que ele se recordava. Muito raramente, enxergava passagens inteiras que eram iguais ao que ele havia escrito. Almendre olhava para as letras e se sentia cada vez mais confuso. Durante este tempo, Hermano não parou de falar sobre o papel da violência nas sociedades pós-modernas, mas Almendre não conseguia escutá-lo direito. O som da sua voz parecia vir de um sonho ou de uma realidade paralela e só chegava aos ouvidos de Almendre abafado e distante. O escritor pegou o seu próprio livro e abriu nas páginas marcadas para a leitura. Num instante percebeu que os trechos que ele sentia familiaridade eram realmente muito parecidos com o seu original, mas o restante era outro livro.
Pediu para voltar para o hotel, não sem antes passar em uma livraria e comprar uma versão de cada uma de suas obras vertidas para o catalão. Já no quarto, comparou com os livros que havia recebido de Punyol e comprovou a sua suspeita: os textos eram diferentes. O que carregava desde sempre, era uma tradução fiel aos seus originais, mas o livro que ele havia acabado de comprar era diferente, mais exatamente o oposto. Como se Punyol houvesse subvertido todo o conceito original e transformado numa obra antagônica da original. Almendre tinha a característica de fazer fábulas morais, tentando atualizar arquétipos eternos, as versões de Punyol eram completamente amorais, tendendo ao chulo e à escatologia. Punyol caçoava da ingenuidade nas páginas que se seguiam aos trechos idênticos da obra de Almendre. Dizia que o homem não pode ser tão inocente, deve levantar bandeiras para lutar pelos seus ideais, independentemente das conseqüências que porventura venha ter. Almendre leu todos os três livros em apenas um dia e uma noite. Consumiu todas as palavras ininterruptamente como um viciado. Não foi ao último compromisso – jantar com um figurão da cidade – e decidiu voltar para casa silenciosamente.
Nunca comentou a história com ninguém, apesar dos insistentes pedidos de amigos para contar-lhes o que havia acontecido na terra de seus pais. Cortou por completo o contato com Punyol, e ele nunca mais o procurou. Entretanto, continua a receber os direitos autorais da versão catalã de sua trilogia: repassa todo o dinheiro para um ONG que ensina línguas na Catalunha. Entre elas o português e o catalão, claro.
(Um pouco de ficção para desenferrujar. Também publicado aqui.)
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