terça-feira, 30 de novembro de 2010

Beltrame vira ídolo

Tinha tudo para dar errado. Não deu. Tinha tudo para ter um banho de sangue. Não teve. Tinha tudo para ser um fiasco. Não foi. A operação do Alemão prendeu poucos traficantes, sim, mas é inegável que não ter morrido nenhum policial nem ter entrado na comunidade atirando foi uma grande bola dentro. A retomada do território era o objetivo principal, a meu ver. Prender os caras é importante, mas fica em segundo plano.

A política pública de segurança do Rio mudou quando um delegado federal gaúcho assumiu o posto de secretário, um cargo que tinha um limite de tempo em qualquer governo anterior. José Mariano Beltrame ficou os quatro anos e nada dá mostras que ele vai sair no próximo governo.

As UPPs, seu principal programa, não são novidades - o projeto é uma adaptação do que fizeram lá na Colômbia. E mesmo no Rio, já houve outros projetos parecidos na época do Gpae (Grupo de Policiamento em Áreas Especiais). Mas, a diferença é que Beltrame fez funcionar. Não me lembro de ter visto qualquer notícia sobre um problema nas UPPs. O lidar com o público - em todos os níveis de interpretação - é de uma honradez incomum.

E, como disse um amigo meu, se há uma outra vantagem para que gostemos dele é a sua não-candidatura nas últimas eleições. Enquanto há pseudo-celebridades de todos os naipes que bastam 5 minutos de fama para concorrer a cargos públicos, Beltrame se manteve distante do foco. Quase não aparecia nem na campanha de seu candidato, o governador. Fazia o seu trabalho e está de bom tamanho. Se todos apenas fizessem os seus trabalhos...

domingo, 28 de novembro de 2010

Cobertura de guerra

Um dos aspectos mais... curiosos desses confrontos na Vila Cruzeiro e no Alemão é o clima beligerante. Tudo bem que o Rio, como metonímia do Brasil, não é para principiantes. Um trafica mora numa casa de R$ 5 mil e tem um AK-47 do mesmo preço no mercado negro [se a internet não estiver enganada]. Os trafica' se acham defendendo um território, criam pequenos feudos em que mandam, desenvolvem pequenos exércitos, mas com uma organização mais flácida que pudim de leite. No outro lado do ringue, 21 mil homens, blindados anfíbios, as três forças armadas, mais polícias de todos as esferas e cada um no quadrado do outro. No meio, os jornalistas, enxergando uma oportunidade única da vida: ser correspondente de guerra dentro do próprio município. Do lado de fora, a população, com sede de sangue, contra os desmandos gerais dos últimos 30, 50, CEM, por que não?, 500 anos. E quem sofre? Os de sempre: pobres, pretos, favelados...

TODO MUNDO escreveu que as imagens de quinta-feira pareciam um "Tropa de elite 3" ao vivo - eu incluído. Catarse coletiva, ao vivo, transmitida para todo mundo que tinha uma TV ou mesmo internet. Era, novamente, um nós contra eles. Bandidos x mocinhos. Tudo muito fácil de entender. Simples demais. Demais.

Continuo com mais dúvidas que com conclusões. Pensei, quando vi a tropa dos trafica' fugindo da Vila Cruzeiro: o que vamos fazer com esse povo todo? Temos espaço nas cadeias para esse povo todo? Vamos matar todo mundo? Duzentas, 300, 400 mortes? Bem, esse ano não tivemos nenhum avião caindo. Seria o correspondente. Quantos inocentes?

Fico, para terminar, com a passagem de um jornal que li recentemente:

“[A Favela] É o lugar onde reside a maior parte dos valentes da nossa terra, e que, exatamente por isso – por ser o esconderijo da gente disposta a matar, por qualquer motivo, ou, até mesmo, sem motivo algum –, não tem o menor respeito ao Código Penal nem à Polícia, que também, honra lhe seja feita, não vai lá, senão nos grandes dias do endemoninhado vilarejo.”


Em outro trecho:


"a Favela (...) é a aldeia do mal [...] aldeia da morte [...] Enfim, e por isso, por lhe parecer que essa gente não tem deveres nem direitos em face da lei, a polícia não cogita de [usar da] vigilância sobre ela”. 


O jornal é  “Correio da Manhã”, em 5 de julho de 1909.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Semana de filosofia


Eu sei que a semana começou na segunda e hoje é quinta. Mas é hoje, na minha opinião, a melhor palestra: "Filosofia, arte e linguagem", com a Kátia Muricy e o meu orientador, Pedro Duarte de Andrade. Mais informações aqui. Por conta disso, não vai rolar o evento nem hoje nem amanhã.

Muito barulho...

Antes de começar a colocar a minha opinião, uma confidência: tenho uma irmã que mora em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, e pega tanto a Dutra, como a Avenida Brasil e a Linha Vermelha todo dia. Portanto, teria por que me preocupar. Mas não me preocupo.

É claro que ela está morrendo de medo. E eu não a culpo por estar com medo. Eu, no lugar dela, também estaria com medo. Moro em Botafogo e nada aconteceu perto da minha casa - por isso, me sinto  em outra cidade, como se nada tivesse acontecendo [para não dizer "nada", dois homens foram presos suspeitos de atear fogo num carro].

Ela está com medo, é claro, por conta da divulgação desses veículos queimados. Isso gera uma onda de pavor generalizada. Não é para mostrar os carros pegando fogo? É, claro que é. Isso é notícia. Mas é bom saber das consequências da ação. A tal da reação, diria Newton. Primeiro, a óbvia: virar o varejão. Qualquer fulano com um parafuso faltando vai achar legal tacar fogo para também aparecer nos jornais. Segundo, e para mim a mais importante, a falta de contextualização: histórica, social, política.

Em absoluto, o que temos: mais de 30 veículos queimados; 23 mortos - a polícia não diz quantos inocentes, também conhecido como [doravante tcc], bala-perdida, e quantos "criminosos"; dezenas de presos e dois - DOIS - policiais feridos.

Temos informações - só "oficiais", ou seja, da polícia, porque os bandidos ainda não têm porta-vozes - de que os "ataques" foram ordenados pelos chefes dos bandidos por conta das UPPs. Temos informações - também "oficiais" - de que as quadrilhas se juntaram para atuar juntas contra a polícia [o que, na minha humilíssima opinião, pode até ser bom, diminuindo os confrontos e as consequentes mortes de inocentes]. Mas o que isso quer dizer, na prática?

Para começar a avaliar os estragos, temos que pensar comparativamente. Se os veículos foram queimados realmente em represália às UPPs, podemos pensar algumas coisas: Por exemplo: as UPPs estão realmente funcionando, os bandidos estão procurando outras formas de... de o que, mesmo? Há roubos? Aumentou o número de assaltos? Ou eles querem apenas amendrontar a população? Com qual objetivo? Que as pessoas fiquem contrárias às UPPs e deixem voltar o tráfico armado nos morros da Zona Sul? Porque, até agora, as UPPs só funcionaram na Zona Sul. Será que a classe média - que sempre me assusta pela sua teoria da "farinha pouca meu pirão primeiro" - vai querer ter de volta as armas às favelas do lado de suas casas?

Outra ideia: se a intenção é desestabilizar o governo, a tática dos bandidos foi, a meu ver, um erro sem tamanho. É só lembrar que esse governo começou matando gente às dúzias e não seria agora que eles recuariam. Só ver ali em cima que já são 23 mortos. V-i-n-t-e-t-r-ê-s mortos.

Mas, é sempre bom ressaltar para os teóricos da conspiração de plantão, esses mortos só aconteceram por conta dos ataques. Hum...

Voltando: qual é o objetivo desses bandidos? Reparemos em outro detalhe: não há feridos, quiçá mortos nos "ataques". Seria que eles querem mostrar como o governo é ineficiente no controle da segurança da cidade? Bem, reparem novamente que os "ataques" acontecem em áreas mais afastadas dos centros ricos, tcc, Zona Sul. Salvo um ou outro carro que pegou fogo em Laranjeiras, o pânico nessa área da cidade é completamente exagerado. Aposto que se compararmos com outras épocas - cadê a contextualização? - ficaremos surpresos com os números. Lembrando que os números divulgados pela Secretaria de Segurança do Rio mostram a diminuição drásticas em TODOS os números de crimes da cidade.

E, nas áreas mais pobres, o que tinha mudado com a entrada das UPPs? Ou seja, os bandidos estão maltratando quem sempre maltrataram. Um ônibus queimando chama muito mais a atenção, claro, que tiroteios entre quadrilhas rivais. Ou achaques. Ou a falta de direitos civis [esse, então...]. Mas, qual é a diferença para o que sempre vivemos? Ou melhor, para o que eles sempre viveram? Cadê, novamente, a contextualização? Os bandidos, me parece, se estão atrás disso tudo, não têm, ainda, um porta-voz, mas já fizeram media training.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

De volta da Terra

Não, não vi nem vou ver o Macca. Portanto, não me venham conversar sobre isso. Vamos falar sobre o Planeta Terra. Rapidinho, porque ainda estou com jet lag de São Paulo para o Rio. [Aliás, o que aconteceu nessa última semana em São Paulo é digno de entrar para a História da música pop do Brasil: num período de sete dias, tocaram: Massive Attack, Stereophonics, houve o Planeta Terra, Paul MacCartney, Lou Reed, Scissor Sisters e ainda havia a possibilidade de um fã mais afoito de "Dança com lobos" querer ver Kevin Costner. Isso é incomparável com o que já tivemos aqui no Brasil. E me fez pensar muito sobre o comportamento de São Paulo. Mas deixemos para outra oportunidade...]

Foi tudo ok no Planeta Terra. Organização bem certinha - para um festival desse tamanho, os incidentes foram poucos e esparsos. O Playcenter é um acerto: é divertido, diferente e simpático. As atrações foram sempre boas: nada imperdível, mas nada, também, desprezível.

Porém, fiquei sentido de ser o único entre os meus amigos que foram ao show que ainda gosta de guitarras... terminei o show do Smashing Pumpkins com todo mundo já debandado. Mr. Corgan se comportou, como vi e li por aí, como mr. Corgan. Ele é estrelinha. A versão indie do Axl Rose. Isso quer dizer que, apesar de toda a banda ter mudado e só ele continuado, o som era típico das abóboras: pesado, com bastante  guitarras distorcidas. Mas ele tocou hits, minha gente. O moço joga para a galera e ninguém valoriza? Pelamorde.

Tive duas boas surpresas: Holger e Yeasayer. Conhecia pouco [no caso do segundo] ou nada e os dois grupos fizeram shows bem legais. Ambos me lembraram - mais o primeiro - o clima Vampire Weekend: música indie, com influência de percussão. Aliás, completando com o Hot Chip, esse palco tinha um pé, mesmo que disfarçado, na África.

Hot Chip fez um show grandioso. Com direito a catarse coletiva. Provavelmente o melhor show - como era de se esperar.

Empire of the sun abusou da psicodelia, com um grupo de mulheres dançando no palco. Deu onda. As músicas mais conhecidas animavam. As desconhecidas faziam dormir.

Phoenix foi "ok". Começaram com o supertrunfo "Lisztomania" e ficaram sem cartas para cortar o cansaço que já se abatia sobre a galera.

Mika é a versão Fredie Mercury versão século XXI, com muito menos apelo.

E Of Montreal me lembrou, na parte teatral, o Flaming Lips, mais com muito menos testosterona.

Perdi Hurtmold, mas não se pode ter tudo na vida, né? Em compensação, andei de montanha russa, após uns  13 anos.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Mitologias

Ainda não tenho esse raciocínio muito bem costurado, mas já sei para onde vou me apoiar, caso queira estudar o assunto mais profundamente. É basicamente a descrença na ciência como única explicação para o mundo.

Acredito que as narrativas [como forma de transmissão de conhecimentos], o conto [na origem da palavra, produto do "contar"], a mitologia [sem o ranço que a palavra tem, associada a maioria das vezes a seres antropomórficos gregos, mas ligada à ideia original de mythos, como oposto - oposto não é uma boa palavra - a logos, que seria a razão - razão não é uma boa tradução] são tão importantes quanto a ciência.

Não vivemos, nunca na história, apenas com a razão. No dia que descobri que o pensamento é a soma do logos + mythos, entendi como era importante pensar. Não desprezo a ciência, mas não podemos ficar presos a explicações simplesmente científicas do mundo [physis, para ficar na galera grega].

Por isso, o crescimento tão grande das religiões, que, a grosso modo, são mitologias que saíram de seu terreno e entraram em outro.

Em algum lugar, Nietzsche fala sobre a substituição do Deus [que está morto] por outros mitos, como a liberdade, ciência, democracia, e outras invenções ocidentais. Heidegger fala sobre a nossa sociedade tecnocientífica, onde viramos técnicos que apertam botões e giram manivelas.

A mitologia acabaria com essa metafísica [bemXmal, bem+mal] e daria o recado por inteiro.

Ainda tenho que desenvolver essa ideia melhor.

ps. me dei conta, só agora, de que mitologia = mithos + logos. É disso que estou falando, ora.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Fluminense vai perder

Tudo bem que eu não sou bom de adivinhação. Mas achava que a rodada desse fim de semana era fatal para decidir quem será o campeão do Brasileiro este ano. E, com a combinação de resultados, imagino que o Fluminense deva perder o título e o Corinthians será o campeão - infelizmente, por vários lados.

Primeiro, o óbvio: Fluminense é o meu time. E mesmo que eu não seja um freak do futebol, quiçá um fulano que assiste às partidas regularmente, fico mais feliz com o Fluminense ganhando que com ele perdendo. É inerente à minha constituição pessoal.

Segundo porque o Corinthians me desperta os meus pensamentos mais... serristas*. Como um time com um gordo como atacante pode ganhar um campeonato como o Brasileiro? Como um time com o Roberto Carlos Meião pode ter torcedores fiéis? [Eu sei que esses dois argumentos meus só demonstram o quanto o Brasileiro é nivelado por baixo; quando joga um atacante fora-de-série, mesmo fora-do-peso, ele se destaca no meio de tanto joio. E temos tão poucos ídolos que mesmo um fulano que se acha a última bala-juquinha-do-pacote e hoje em dia está mais para cocô-de-rato-de-cormedamião é visto como a salvação e o caminho.]

Sei que o futebol, ainda menos que a política, é uma ciência inexata. Todas as vezes que vejo / ouço / leio o matemático Oswald de Souza ou o Tristão de não-sei-o-quê, tenho pequenas convulsões pelo corpo. Não existe qualquer lógica nas previsões e probabilidade no velho esporte bretão vale tanto tabus e história - talvez menos, até. Por isso, mesmo, qualquer previsão é fadada ao fracasso - e, mais que em qualquer outra oportunidade, quero que essa minha naufrague e eu me sinta a versão masculina da mãe Dinah.

A questão é: o Corinthians - quer eu goste, quer eu desgoste, é um time de chegada - como se diz dos clubes que crescem com o passar do campeonato. Chegar às últimas três rodadas com um ponto de vantagem é muito perigoso - para o Flu. Fora que há uma tendência de marcar pênaltis que beneficiem o Timão, mas isso é a subjetividade da subjetividade, nem dá para entrar nesse pormenor.

O Flu enfrenta dois grandes times de São Paulo: São Paulo e Palmeiras, fora de casa, além do Guarani, no Engenhão - praticamente fora de casa também. Corinthians: Vasco, Vitória e Goiás. Os adversários do clube paulista são, na teoria, muito mais fáceis que os do tricolor. Dizem que os times de lá vão facilitar para o Flu, mas, por mais que eu quisesse, não acredito nisso. Se fosse assim, também teríamos problemas com o Vasco. Dizem que o Palmeiras vai jogar com time misto, e acredito que será mais difícil para o Fluminense vencer a obrigação de ganhar. Ou seja, estou pessimista.

 Fora isso, o Muricy, após vencer trocentos títulos com o São Paulo, se esqueceu no passado de como é vencer, deixando o Palmeiras, após mais da metade do campeonato liderando, fora dos quatro primeiros. Pelo menos estamos garantidos na Libertadores.

* O pobre do Serra não tem nada a ver com isso. Acho até que ele é um progressista. Mas ao se associar com as mais retrógradas forças e fazer campanha em prol de agendas ultrapassadas, o seu adjetivo, "serrista" se transformou em um sinônimo de preconceituoso na minha cabeça.

domingo, 14 de novembro de 2010

Bela e coxa

Eugênia, de "Memórias póstumas de Brás Cubas", é a personagem mais injustiçada da literatura nacional. Ficou associada ao conjunto de frases "por que bela se coxa? Por que coxa se bela?" e foi largada por Brás Cubas exatamente por conta disso. Claro que essa é a cereja no topo de uma implicância de Brás à sua família, que remonta à época quando era ainda uma criança e presenciara a mãe de Eugênia - "a bem nascida", como bem repara Patrick Pessoa - numa moita com um fulano [demonstrando um comportamento preconceituoso bem comum à época em que se passa a história do livro, início do século xix]. Eugênia, inclusive, é chamada de a "flor da moita", numa bela e irônica metáfora, sendo associada à beleza [flor] e à sua reputação de pobre, de filha bastarda, de filha da moita, de coxa, enfim. Mas sempre a imaginei mais bela que coxa. E acho que ela paga um preço por algo que não fez. Mas quem disse que o mundo é justo?

sábado, 13 de novembro de 2010

O monstro Stevenson

O Google me lembrou com um de seus Doodles que o escocês Robert Louis Stevenson faria aniversário hoje, 160 anos. Um dos grandes autores para Borges - um escritor argentino que lia em inglês perfeitamente por conta da avó inglesa, Fanny Haslam - Stevenson era mal visto em sua época porque era muito... popular. Parece que Tom Jobim errou quando restringiu ao Brasil sua constatação de que sucesso era ofensa pessoal.

Ele é autor de pelo menos dois clássicos mundiais ["Strange case of Dr Jekyll and Mr Hyde" que foi traduzido no Brasil como "O médico e o monstro" e "Treasure island", ou "A ilha do tesouro"], sendo o primeiro uma obra que extrapolou as suas próprias intenções e entrou para uma espécie de mitologia mundial.

Stevenson era malvisto porque escrevia aventuras, livros que adolescentes e jovens podem ler e entender. Mas está aí uma de suas maiores qualidades: a leitura em camadas. Todos entendem a história do médico e a do monstro. Se precisarem, podem adentrar mais no livro e o interpretar sob a luz histórica e descobrir que era uma crítica a um puritanismo inglês da época; ou ainda analisá-lo psicologicamente e vislumbrar uma metáfora para o distúrbio bipolar; ou pode, ainda, filosoficamente, e descobrir que somos feitos de opostos e é impossível abdicar de uma parte em prol de outra.

O escocês ganhou o melhor presente que a História pode dar para um artista: dissolveu suas criações e as colocaram como criações que sempre estiveram aí, sem autor determinado.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Aula sobre a tradição musical afro-baiana

[Como fui eu mesmo que escrevi, não dá para dizer que é roubo, mas cópia... Daqui]

A roupa e a posição dos músicos no palco já demonstravam a intenção da orquestra.  Orquestra, não, Orkestra, com “k”, como assina a Rumpilezz, do maestro Letieres Leite. À frente, e vestidos com smokings, estavam os percussionistas. Em volta, com chinelos de dedos e bermudas, estavam o naipe de metais.

Apesar de funcionar como uma big band de jazz (são quatro trompetes, quatro trombones, dois saxes alto, dois saxes tenor, um sax barítono e uma tuba), a formação demonstrava a importância que Leite dá para sua percussão. “Eles saíram da cozinha e foram para a sala de estar”, costuma falar o compositor em suas apresentações.

Além de maestro, flautista, saxofonista e compositor, Leite também é uma espécie de mestre de cerimônia e, entre uma música e outra, explica a origem de sua música, dando uma aula sobre a tradição afro-baiana. Durante o show no Espaço Tom Jobim, no Jardim Botânico, Zona Sul do Rio, na noite de quinta-feira (11), ele contou que essa produção tem como origem comum o candomblé, que frutificou em elementos como as grandes aglomerações percussivas, como o Ilê Aiyê e o Olodum, o samba do recôncavo e o samba-reggae. Sua composição, afirma, nasce das claves e desenhos rítmicos do universo percussivo baiano. Em outras palavras, dos tambores, surdos, timbaus, caixa, agogô, pandeiro, caxixi e dos atabaques rum, rumpi, e lé – daí, somado com os “zz” de jazz, forma rumpilezz – típicos da música sacra do culto nascido na África e que encontrou solo fértil no Brasil.

O Rumpilezz mistura os batuques com muitos solos de saxofone, flauta e trompete. É uma banda de jazz, sem perder o balanço do samba jamais. Aliás, todas as músicas, mesmo as mais complexas, continuam totalmente dançantes. Funciona como se os instrumentos de sopro abraçassem a percussão, mas sem nunca abafá-los. O tom é o batuque, é o ritmo.

Algumas músicas, como “Alafia” – que segundo o percussionista Gabi Guedes, reverenciado a todo momento por Letieres Leite, quer dizer “respeito” –, parecem ter saído de uma trilha sonora de um filme de ação. Outras, como “Floresta azul”, são aparentemente tranquilas. Há ainda as músicas didáticas, como “O samba nasceu na Bahia”, que mostra como os diversos tipos de samba se formataram no estado. Mas todas, prestam uma homenagem à tradição e à História musical bahiana.

O compositor, responsável pelos arranjos de muitos sucessos de Ivete Sangalo, passou seis anos em Viena, na Áustria, onde estudou no Konservatorium Franz Schubert, e na volta começou a desenvolver um projeto que desembocaria na Orkestra. “Foi quando consegui unir os dois mundos – a tradição dos terreiros com o aprendizado no conservatório”, disse em uma entrevista em fevereiro deste ano.

“A Orkestra Rumpilezz surgiu dessa pesquisa e as pessoas estão vendo o universo percussivo da Bahia com outros olhos. A música alternativa, que não gera um grande negócio, não dá um grande retorno, sempre existiu", continua ele: "Ainda está um pouco tímida, mas a tendência é crescer. Acho que é natural haver um desgaste [no universo da axé music].” 

Para quem ficou mais curioso, os próximos shows da Orkestra, segundo sua produção, vão acontecer nos dias 30, nos Arcos da Lapa, no Rio, 1º de dezembro em São Paulo, e 16 de dezembro, no Pelourinho, na Bahia.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Meu salário em cerveja

As meninas d'As viajantes republicaram um post aqui comparando as duas Oktoberfest. Para quem quiser ver, basta clicar aqui.

ps. para quem quiser tirar um gostinho do que é uma oktoberfest, mas não quer esperar até outubro, Blumenau também sediará o segundo Festival Brasileiro de Cerveja. Mais infos aqui.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Caixa de ressonância

Um dia na Caixa Econômica maltrata os nervos até de um sueco acostumado a não se melindrar por coisas mundanas. Ontem foi a minha vez de passar pelo teste de bunda-quadradismo. Ao chegar, preparado para uma maratona de cadeiras, encontrei logo de cara uma novidade. Um coroa, sem camisa, descalço e cercado de diversas pessoas que diziam frases entrecortadas, mas que eu consegui entender apenas algo como "larga de mão, senão você perde a razão". Supus erroneamente que tinha a  ver com as portas giratórias, mais uma maravilha dos bancos modernos.

Quando eu passei por este obstáculo, percebi ao lado dos seguranças um garoto de 20 e muitos, 30 e poucos, mas não reparei muito nele. Em seguida, o cara sai do banco e tampa na porrada com o véio, que virou bola de futebol. Só não tomou um prejuízo maior porque a turba o envolveu e fez o trabalho do deixa-disso.

[No momento em que escrevia essa parte, chega uma mulher com uma criança de colo - o horror dos horrores.]

Na fila, sentado, imaginei / lembrei do tratamento bancário da Baixada na década de 1980. Lembro que havia uma agência do Bradesco, que funcionava num subterrâneo, e era chamada de "Inferno" por seus correntistas ou quem fosse lá. Apropriado.

Enquanto espero o primeiro atendimento de muitos [foram cinco, ao todo], ajudo um coroa que via sua senha pelo lado errado e recebo, em seu lugar, um espécime da Velhinhas de bancus, cujo comportamento principal é falar sobre qualquer assunto com qualquer pessoa. Ela é do mesmo gênero [Velhinhas] da Velhinhas de supermercadus e da Velhinhas da fila do INSS e adoram aglomeração de gente.

Após uma hora na primeira fila e descobrir que não precisava ficar ali, vou para a segunda parte do dramalhão mexicano. De longe, escuto uma mulher reclamando sobre a dificuldade de ser atendida e de como ela tinha que faltar ao trabalho para ir ao banco e de como ela passava fome para conseguir ir à agência, até que, num crescendo, ela chora.

Na segunda fila, encontro novamente a Velhinhas de bancus, que queria abrir uma poupança, mas - adivinhem - o sistema estava fora do ar. Então, ela decide depositar o dinheiro na conta corrente. Dinheiro, não. Moedas. Se alguém me contasse isso, não acreditaria. Ela trouxe R$ 227 em mo-e-das.

Enquanto isso, faltavam dois números para me atender. Mas a mãe-com-criança-de-colo fura a fila descaradamente. Na minha vez, vou do caixa para o gerente [espero], volto para o caixa [espero], volto para o gerente [espero, mas pouco, verdade] e, por último, caixa novamente [não espero.]

Um sindicalista dos bancários entra distribuindo o jornal da categoria com uma camisa dizendo que o cliente fica em primeiro lugar. Não quero conhecer o último lugar. Todas as vezes que tenho que ir lá descubro que caixa só é econômica no número de funcionários.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Depois não entendem...

Após "Scott Pilgrim" ter sido lançado primeiro em São Paulo, no momento que sai o DVD nos EUA, vejo uma outra história que demonstra a falta de tato, de uma maneira geral, da indústria cultural [ainda vale usar a palavra adorniana?].

Presenciei troca de favores por conta de um empréstimo - I said, empréstimo - do livro do jornalista catedrático João Máximo sobre Noel Rosa. A obra está esgotada e não vai ser relançada - parece -, mesmo em ano de centenário do compositor da Vila.

Fui pesquisar na Estante Virtual e o título mais barato que encontro custa - sente-se, por favor -  R$ 340.

Eis que não dado por satisfeito, vou à internet livre e encontro uma versão, digamos, socializada.

Agora, me respondam: quem é que está perdendo dinheiro aqui?

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Centro da cidade

O centro de uma cidade com mais de 6 milhões de habitantes, que é chamado pela maioria desses cidadãos simplesmente de cidade, em referência ao seu passado de centralizador de todas as atividades da região, é realmente incrível. Apesar de o Rio ser um dos únicos aglomerados urbanos cujo centro não tem forte presença de moradores, essa área é simplesmente imperdível. Seja por conta dos grandes figuras que se encontra; dos contrastes que se presencia; das oportunidades de ampliar os próprios horizontes; da perspectiva de conviver com os polos de nossa desigualdade social; seja porque se descobre aleatoriamente um sapateiro de rua que disse que cola a sola de um tênis meu, praticamente novo mas que de tão grande boca, a sola pediu para sair; ou porque após passar por três lojas para consertar meus óculos em Botafogo, consigo resolver na primeira que vou no Centro, com o atendente não entendendo o motivo do meu espanto quando eu agradeci tão efusivamente. O centro é incrível.

domingo, 7 de novembro de 2010

Da última vez que me referi a esse romance [tenho medo dessas palavras que carregam conotações sérias demais, como "romance" "poesia" "escritor", mas não sei como resolver isso], estava no segundo capítulo de um livro de 82 páginas. Agora, estou no capítulo 62 [+ ou -] do mesmo livro que já tem até agora 109 páginas. Algo como a página 89. É um romance, mas a intenção é que cada capítulo seja independente um do outro, como se fossem contos ["conto" eu tenho menos medo, porque é mais humilde, parece para mim; apesar de que, de um lado, há gente que nem sabe o que é um "conto" e, por outro, gosto de quando ele é associado a outros termos que tiram sua sisudez, como "da carocinha"  "de fadas", etc...]. Reproduzo abaixo, uma parte que gostei.


***




62

A médica pediu para eu escrever sobre o porquê de eu estar aqui hoje. Falei para ela que não sabia a razão, mas ela insistiu, queria que eu tentasse me lembrar. Eu disse para ela que não tinha nada a recordar, porque simplesmente não houve nada, mas ela argumentou que eu deveria, então, voltar até onde eu me lembrava e contar novamente as cenas que viessem à minha cabeça. Como ela é a única que me ouve, pensei em fazer isso por ela.

Lembro de ter ido falar com o delegado. Pedi para conversar com ele, sem a presença do meu advogado, e ele aceitou. Comecei a contar para ele como as minhas missões funcionavam e quais eram os seus objetivos. Expliquei a ele toda a minha teoria, demonstrei que estávamos no mesmo lado e que, na hora que ele descobrisse isso, iria me soltar e combateríamos juntos as mazelas da sociedade. Primeiro ele se mostrou incrédulo com um detalhe insignificante. Achei estranhíssimo ele não acreditar que havia sido eu o autor de todas as missões. Lhe dei os detalhes de um ou duas ações minhas, as que me lembrava de cabeça na hora, e pedi para ele conferir no sistema de polícia. Ele ficou me olhando com uma cara de desconfiado e eu achava que ele era louco por não ir logo conferir. Em seguida, pegou o telefone, discou o número lá de fora e disse algo ainda mais estranho: “Fulano (não me lembro o nome dele), temos aqui um sujeito que quer ficar famoso”, e contou, por alto, as minhas missões. Depois disso, ele se virou para mim e falou com um ar de desprezo: “Você é um monstro.”

Não queria acreditar que ele estivesse me chamando de “monstro” por causa das mortes. Que insistência boba essa de ter que manter vivo até os que não prestam. Estava fazendo um favor para ele, estava limpando as ruas, estava diminuindo os números de violência e ele me xinga. Não faz sentido algum. De qualquer maneira, não respondi nada e me mantive em silêncio. Entretanto, senti as explosões começarem dentro do meu estômago. Senti o meu sangue começar a ficar ácido, a minha cabeça esquentar, meus olhos turvarem.

A porta abriu e era o “Fulano”, com uns papéis na mão. “Tudo bate, chefe”. Quase deixei escapar um sorriso. O delegado também estava quase sorrindo. Podia perceber que ele já imaginava o quanto iria se promover às minhas custas. Se eu soubesse que ele iria reagir assim, teria ficado quieto. Não imaginei que ele fosse tão idiota, que não concordasse com as minhas ações. Senti o meu corpo esquentar e os meus órgãos internos derreterem de tanto ácido. Puxei forte o pulso, que estava algemado na cadeira, algumas vezes, sei lá quantas. Estava bastante nervoso, estava quase fora de mim. Estava como ficava antes de iniciar as minhas missões. Se não estivesse preso naquela cadeira, não haveria nada que me impedisse de comer os olhos do delegado. Puxei mais forte o meu braço, enquanto via aquele risinho. Percebi que a cadeira estava para quebrar, e o meu braço sangrava.

“Fulano, leve ele daqui”, pediu o delegado. Senti que tinha uma oportunidade rápida. Quando me soltassem da cadeira, pularia sobre a mesa e arrancaria os olhos do delegado com as minhas próprias mãos. Depois, se me pegassem, não teria problema. Tentei me controlar, parar o meu corpo que tremia sem parar. Respirei uma, duas vezes, na terceira, tudo apagou.

Filme de gênero

E não é que Lars von Trier fez um filme de terror? Tudo bem, estou atrasado um ano, "Anticristo" é de 2009 e já deu o que tinha que falar com suas cenas bem chocantes que transformam a decapitação auricular de "Resevoir dogs" em uma brincadeira, literal e metaforicamente [Aliás, pensando agora sobre orelhas, esse pedaço da anatomia, que não tem pálpebra - como já ouvi de um conhecido neohippie - aparece também em "Blue velvet". Mas o que isso tem a ver? Nada...]

Após "Dançando no escuro" e o experimentalíssimo "Dogville",  Von Trier se transformou num diretor cultuado por suas figuras de linguagem e por sua melancolia extrema. [Penso agora na gravura homônima de Dürer e, coincidência, lembro que o próximo projeto do dinamarquês se chama... "Melancholia", repetindo a pobre Charlotte Gainsbourg, a única atriz que já fez dois filmes dele - ou estou exagerando?]

Depois ele se aventurou por outro gênero, a comédia, mas uma comédia à dinamarquesa, com "O grande chefe" [ótimo filme] e agora chega num filme de terror, quase tradicional, mas rodado com toda a sua tekné.

Começamos assistindo a um dramalhão: marido e mulher perdem o filho, que se jogou da janela, enquanto eles transavam. Mulher se culpa e o marido, terapeuta, tenta tratá-la. Nesse segundo momento, achamos que vai ser um filme psicológico - literal e metaforicamente - e que alguma coisa vai dar errado: um analista não pode tratar de sua própria família, é o óbvio. Mas, mal sabíamos que isso é apenas a ponta daquelas pedras de gelo que se desprendem do polo norte levando preocupação para todos os ambientalistas do mundo.

Descobrimos, em seguida, que ela não tinha conseguido fazer sua tese porque passara por problemas em sua passagem por uma cabana no meio do mato, apelidada, não à toa, de Édem. E a partir daqui, começam as elocubrações.

A tese da mulher é sobre o femicídio, o genocídio de mulheres. Junte a isso que há uma lenda de que Von Trier maltrata suas protagonistas, tanto é que é muito difícil de alguma repetir o personagem [Nicole Kidman disse há três dias sobre von Trier: "People who are brilliant are difficult. He can be mean and vindictive and all these things, but he says those things about himself"]. E que, no filme, ela se transforma numa verdadeira demônia [após presidenta, pode, né?]. O resultado parece simples: Von Trier odeia as mulheres. Essa conclusão, porém, é simplória.

O filme, como outros do dinamarquês, é metafórico. A mulher, em "Anticristo", é a emoção, a ligação com a natureza, o desespero, as forças do desconhecido, a magia, a irracionalidade. O homem, por sua vez, é o oposto: razão, cidade, centrado, psicologia, ciência, sensatez. Ela é Eva, a culpada pela queda do paraíso; ele, Adão, o primeiro humano, o primeiro sujeito que usa a cabeça para viver, não apenas o instinto.

"Anticristo" - lembrai sempre do nome - não é, entretanto, um filme católico, nem mesmo cristão. "Anticristo", aí, tem a ver com a contraposição com a bondade, representada pela maneira mais rasa de se interpretar o espírito "cristão". [Pensei agora no "Anticristo" de Nietzsche, principalmente porque o filósofo alemão era aquele que pregava contra essas oposições e dizia - a grossíssimo modo - que éramos uma composição de opostos.]

Uma das características mais marcantes em obras de terror é esse embate entre o bem e o mal. E Von Trier conseguiu pegar exatamente essa dualidade para explorá-la em todas as suas possibilidades de entendimento, em todas as suas metáforas possíveis. Isso, é claro, pode parecer um filme machista, que degrada as mulheres, principalmente vindo de quem vem. E até acho que deve ter alguma relação aí: assim como não conseguimos nos desvencilhar de nosso tempo histórico, não podemos fugir de nós mesmos. Mas essa é apenas uma das possíveis e mais banais interpretações. "Anticristo" merece mais.

Seja porque é um filme de terror que dá medo - uma raridade ultimamente. Seja porque é um filme muito bem filmado. Seja porque é inteligente e se desdobra, como uma boa obra de arte, após a exibição. As cenas finais não vão sair da minha cabeça tão cedo.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Choque cultural [ou como nasce a xenofobia]

Visitamos ontem o Art China, provavelmente o único restaurante chinês de todo o Rio de Janeiro [se houver outro, me fale - mas não vale o caríssimo Mr. Lam ou qualquer pé-sujo cujo dono é chinês e que vende também sushi; tem que ser chinês frequentado por chineses] e tive um choque cultural.

No cardápio, impresso em um papel A4 vagabundo, havia mais informações em mandarim - ou cantonês, sei lá - que em português. Do que eu consegui entender, havia, de exotismo, língua de pato, bucho de peixe, e pé de porco. Achei que era demais e optei com um prato de rã com gengibre.

Sim, foi uma aposta ousada, mas como lembrava de já ter comigo rã [à milanesa] quando pequeno, a opção era a melhor relação entre um prato que fugisse dos tradicionais frango-xadrez da vida, mas sem cair no oposto, como um peixe que eu nunca tinha ouvido falar com ingredientes que não consegui nem identificar. E não adiantava chamar o garçom brasileiro, ele também não conhecia nada e quando sugeri pedir uma entrada ele falou que não tinha vendido para ninguém aquilo, até aquele momento [era uma trouxinha de carne, carne enrolada em massa chinesa e frita, com molho agridoce, simples e gostosinho].

E olha que o lugar é frequentado e muito por chineses. Dizem que até o embaixador come lá, de vez em quando. Parece que há o famoso pato de pequim, mas, além do fato de ter um prato de R$ 110 no cardápio sem qualquer explicação em português, não vi nenhuma referência a ele. Aliás, os preços são convidativos: yakissobas gigantescos para uma pessoa custam R$ 12.

Antes de falar sobre a minha experiência gastronômica em si, cabe falar sobre o grupo de quatro chineses que chegou durante o nosso almoço. Já tinha ouvido falar que chinês come muito. Mas essa afirmação é tão genérica quanto a de carioca não gosta de dias nublados, para ficar apenas na poesia. De certa forma, se levarmos em conta aqueles quatro, posso assegurar que chinês come muito mais que muito. Foram diversas vasilhas de pratos que eu tentava identificar à distância, mas que, claro, não conseguia. Vi uma espécie de sopa, com algo verde e macarrão; arroz; uma espécie de guisado vermelho; e um frango, de coloração escura, como algo defumado, ou próximo do estragado, cortado longitudinalmente.

De certa forma, fiquei intimidado com aqueles fulanos. Não eram simpáticos. Não faziam questão de parecerem simpáticos. Falavam alto, tinham cara de mau encarados. Parecia que nós estávamos invadindo o ambiente deles. Ou será que estou com mania de perseguição?

Principalmente porque o meu prato, a rã com gengibre, bem, eu consegui comer metade e fiquei com aversão. E imaginei que eles me olhavam com um ar de "você vai comer isso?" Mas pode ser só impressão e sugestão. A rã, quando chegou, fumegante, ainda era saborosa. Depois, com aquela coloração branca-pálida, como se só tivesse tomado uma fervura, a ponto de poder observar suas veias, além da dificuldade extrema para comê-la, já que foi partida em pedaços pequenos e tinha ainda muitos pedacinhos de osso, me deixou, admito, com nojo. Pela primeira, desde que me entendo por gente, não comi todo o prato por falta de coragem. Acho que exagerei na minha primeira passagem pelo restaurante.

Eu sou a pessoa mais favorável à imigração que conheço - a mistura é mais interessante, para mim, que a depuração. Além disso, estava atrás desse restaurante especificamente há tempos, mas não consegui ficar à vontade lá. Sei que a comida e o ambiente em que você não fala nem "oi" na língua dos locais ajuda. Mas, mesmo na Índia, me sentia mais "em casa". Na Índia, me pareceu, os indianos são mais friendlies.

É claro que essa é uma conclusão premeditada, baseada em absolutamente uma única experiência em que levo em consideração apenas um universo pequeno de pessoas e hábitos para fazer uma comparação injusta. Porém, acredito que é exatamente assim que nascem os preconceitos: tirando conclusões premeditadas; fazendo julgamentos desnecessários; se colocando no centro de um mundo metafórico, em que as suas certezas são melhores que as de outros, principalmente se os outros forem de olhos puxados ou tiverem a cor da pele diferente, ou ainda, e horror dos horrores, sotaque de uma determinada região do país.

Não acho que eles têm que se adaptar à nossa maneira de viver [e qual é a nossa maneira de viver?], nem nós precisamos tentar integrá-los aos nossos costumes, quiçá somos obrigados a frequentar os seus restaurantes. Sou favorável de todos exercerem suas individualidades livremente, desde que não interfira na individualidade e na integridade física e moral de outrem, claro.

Se vou ao restaurante chinês, vou porque gosto de conhecer o diferente de mim, o que nunca tinha pensado, me surpreender com gostos completamente exóticos [penso agora no tacacá paraense: dois sabores novos para mim em um mesmo prato]. A primeira experiência foi ruim, mas não traumática. Não dá para chegar a qualquer conclusão, assim. Por isso, já pensei em voltar lá e provar outros pratos. Alguma sugestão?