sexta-feira, 30 de dezembro de 2005
Wong Kar Wai não é nome daquela famosa fábrica de chocolate, quiçá do seu criador, como alguns já sugeriram. A alcunha é estranha para qualquer ocidental, admitamos, mas podemos começar a - e devemos - nos acostumar com ele. Primeiro porque é chinês (nasceu, segundo a bíblia, em Xangai e foi morar em Hong Kong bem novo) e a China vai dominar o mundo, como os EUA estão cansados de saber; depois porque ele é um dos diretores que logo logo todo mundo vai estar falando sobre.
Wong Kar Wai é um romântico. Do pouco visto (dois filmes e um terço de um terceiro, "Eros", uma produção à seis mãos), repara-se na formação de seus personagens sofredores, amantes inveterados, idealizadores e idealizados, que crêem na força do amor acima de tudo. Entretanto, longe de funcionar como um impecilho piegas à história, o romantismo desgarrado de Wong Kar (Wai é o primeiro nome) é o motor de toda a engrenagem, de toda a lógica de seus filmes. O diretor ama as suas personagens. E esse amor é transmitido de inúmeras formas. Seja na preocupação extrema pela formação de cada quadro (quase pinturas), seja na opção por tomadas (câmeras lentas, supercloses etc.)
Wong Kar Wai é um fetichista. Ele transforma cada imagem retratada em um objeto de prazer, de culto hedonista. Um simples traveling acompanhando uma personagem feminina indo comprar macarrão ("Amor à flor da Pele") é um deleite. Porque suas atrizes principais são, sem exceção, lindas, vestem-se com um primor excepcional e ele sabe muito bem disto e sabe perfeitamente passar esta sensação. Porque há uma sensualidade latente em todas as imagens. Porque transborda charme de cada fotograma.
Wong Kar Wai não é chato e seus filmes têm diálogos. Aqueles que possuem o preconceito mais comum podem ficar tranqüilos. Talvez por serem passados em Hong Kong, uma cidade com bastante influência ocidental desde sempre, talvez por uma opção direta do diretor, seus filmes partem de uma estrutura """realista""" (com três pares de aspas). Ou seja, há a preocupação de se parecer o mais próximo possível de uma realidade como a conhecemos. As personagens moram em um prédio de apartamentos, pagam contas, conversam no corredor, transam loucamente...
Lá na China, ele já faz sucesso há muito tempo. Aqui é razoavelmente recente. Daqui a pouco, quando as críticas positivas de seu mais novo rebento ("2046", uma espécie de continuação do "Amor..."), ele se tornará pop no mundo óculos-quadradinho-descolado-do-estação. Melhor para todos.
segunda-feira, 28 de novembro de 2005
Sei que criar expectativas não é das coisas mais inteligentes a se fazer. Mas, como controlar a imaginação quando o que está em jogo é o show de uma das suas bandas preferidas? Foi o que aconteceu com o Sonic Youth. Sem apontar culpados, a apresentação foi fraca. Pouco tempo de palco, mais músicas do Sonic Nurse (parecia que só eu as conhecia), platéia apática.
Por outro lado, o Flaming Lips me surpreendeu do início ao fim, mesmo sabendo que o Wayne Crane é totalmente insano, que parece saído da década de 1970, mesmo tendo conhecimento de todas as suas peripécias antes do show e perceber que uma delas não foi completa (andar por sobre a platéia dentro de uma bolha de plástico), mesmo assim, o show foi divertidíssimo.
quinta-feira, 24 de novembro de 2005
Pelo quarto ano consecutivo, Baloshof Jack Frost , um gato persa branco, foi eleito o Gato do Ano pela Fife - Federação Internacional Felina Européia. A última etapa da competição foi realizada entre os dias 19 e 20 de novembro, no Centro de Exposições Imigrantes, em São Paulo. Para manter o aspecto de campeão, Frost, como é carinhosamente chamado, é tratado com produtos da Pet Society, empresa líder em produtos inovadores e de alto padrão, o que garante uma pelagem bonita e saudável.
Este é Baloshof Jack Frost
segunda-feira, 21 de novembro de 2005
O que houve com Ariel Sharon? Ele foi um dos fundadores do Likud, o partido de extrema-direita em Israel. Foi um dos generais que comandou as tropas judias no massacre contra os egípcios apelidado de "Guerra dos Seis Dias". Era um dos mais radicais opositores contra a formação do Estado Palestino. Seu nome aparece associado às guerras de Suez, do Yom Kippur, do Líbano (onde houve a Matança de Sabra e Chatila), e à Intifada de Al-Aqsa. Ouvi de uma política espanhola que ele teria amolecido depois da morte de sua última mulher, Lily, em 2000. Mas as datas não batem: ela faleceu antes dele assumir o poder - em 2001.
Bem que o mesmo que aconteceu com Sharon poderia acontecer com outras pessoas...
quarta-feira, 16 de novembro de 2005
Nenhum direito reservado
Respostas de Ronaldo Lemos, o responsável por, entre outras coisas, o site do Creative Commons no Brasil.
1) Um artigo seu (CREATIVE COMMONS, MÍDIA E AS TRANSFORMAÇÕES - RECENTES DO DIREITO DA PROPRIEDADE INTELECTUAL) sugere como o músico pode ganhar dinheiro: "ringtones, DVDs, shows, vídeos, licenciamentos etc." Entretanto, o mesmo não pode se aplicar a todos os artistas. Como ficaria, por exemplo, a remuneração do escritor?
Cada tipo de obra possui uma dinâmica de remuneração diferente quando se pensa em projetos envolvendo modelos de negócios baseados em conteúdo aberto. A estratégica para escritores é diferente. Veja por exemplo o Cory Doctorow, escritor inglês cujos últimos 3 romances são licenciados por CC e disponibilizados online. Todos os livros dele esgotaram as respectivas tiragens impressas, demonstrando que quem iria comprar o livro, comprou de qualquer jeito. Além disso, um dos livros foi baixado 140 mil vezes pela Internet. Além disso, o blog dele (www.boingboing.net) tornou-se extremamente popular e agora já gera dinheiro com anúncios. Ou seja, o blog ajuda a vender os livros e gerar receitas e os livros ajudam a popularizar o blog. Há uma regra, nesse caso válida para qualquer tipo de produção cultural: a viabilidade econômica de qualquer artista reside na relação que ele constrói com o seu público. Se um artista iniciante não facilita o acesso do público à sua obra, vai ser muito mais difícil conseguir construir essa relação atualmente.
2) As gravadoras/ editoras/ os grandes estúdios sempre argumentam que não terão mais interesse em incentivar os novos talentos caso a livre circulação de informação cultural se torne algo ainda mais comum e, principalmente, incentivada e legal. Tal afirmação faz algum sentido? Se não, como convencê-los de que a livre circulação pela rede será benéfica para todos?
Esse argumento não faz sentido, há várias gravadoras aderindo a conteúdos abertos. Exemplos como a Loca Records, a Opsound, a Magnatunes são importantes. No Brasil, a Trama está dando os primeiros passos nesse sentido, a gravadora acabou de traduzir e publicar o livro do Lessig no Brasil. Outro modo de demonstrar que as coisas estão mudando é o projeto "OpenBusiness", que discute justamente modelos de negócio baseados em conteúdos abertos. O endereço é openbusiness.cc. Cada vez mais o conteúdo livre torna-se uma forma racional e eficiente de fazer negócios.
3) É comum ver alguns artistas virem a público gritar contra a pirataria. Na sua opinião, a livre circulação dos bens culturais não incentivaria essa ilegalidade?
De forma alguma. É o mesmo caso do software livre. Há uma frase que acho que sintetiza a idéia que diz o seguinte: "Não compre software pirata, use software livre". A palavra "pirataria" é um termo com grande carga emocional e que na verdade não significa nada em si: pirataria de remédio é diferente da pirataria de cd´s. Mas aqueles que querem se utilizar do direito autoral como ferramenta para excluir potenciais competidores, que se valem de novas mídias, acabam recorrendo à bandeira da "pirataria" para justificar mudanças na lei de direito autoral que beneficiam alguns pouquíssimos agentes, em detrimento de toda a sociedade.
4) Você acha que as gravadoras - o caso das músicas é o mais exemplar, atualmente - em algum momento vão dar o braço a torcer? Aceitar que "perderam a batalha" para a Internet?
De jeito nenhum.
5) Alguns textos defendem a tese de que o Brasil, através de políticas adotadas pelo Governo Federal com o software livre, entre outras tantas, está bem adiantado na implantação, ou pelo menos, assimilação do Creative Commons. Vc concorda com a afirmativa? E, principalmente, como / quando vc acha que isso se dará na prática - para o simples internauta?
Na verdade, a aceitação do software livre e do Creative Commons no Brasil é justificada por motivos complexos. Esses motivos incluem desde razões antropológicas (vide nosso caráter antropofágico e tropicalista), até mesmo pura necessidade. A ausência de canais para difusão da cultura nova, que emerge em todos os lugares do Brasil é tão grande, que um número enorme de criadores intelectuais sabe que se não aproveitar as novas tecnologias e facilitar o acesso às suas obras, não tem a menor chance de ser ouvido, visto ou lido por ninguém.
sexta-feira, 11 de novembro de 2005
Até o início dessa semana, Chico Buarque ainda continuava sendo "apenas" o melhor letrista de MPB a que eu tive acesso. Sua versão escritor, depois de ter lido as peças "Gota D'água", "Calabar", o romance "Estorvo" e ter assistido aos longas adaptados de suas obras "Ópera do Malandro", "Benjamim" e o próprio "Estorvo", era vista como boa. Em se tratando do filho de Sérgio Buarque de Hollanda, ser apenas "bom", é quase vergonhoso.
Seus textos - todos - possuíam uma riqueza técnica irrepreensível, como, aliás, acontece com as suas músicas em geral. O seu teatro, por exemplo, é todo rimado. Sobra capacidade. "Estorvo", em outro caso, está preso dentro de uma estrutura altamente literária, onde a trama em si é menos importante que a descrição daquilo que se passa. Quase não há concessão para o leitor. A idéia, o resumo, portanto, parece melhor que toda a narrativa - aliás, o mesmo acontece com todas as obras "grandes" do Veríssimo, filho, mas por outros motivos.
Foi então que, mais que por acaso, caiu-me nas mãos, a sua última incursão pelos literatura: "Budapeste". Devorei-o em menos de dois dias. Dessa vez, mesmo não tendo uma narração totalmente tradicional, a estrutura do romance respeita alguma estruturação. É como se, agora, ele tivesse se preocupado também com o "trabalho sujo". Lembrou-se do cimento, da argamassa, quando antes só tinha feito o acabamento - com tudo em ouro, deixemos claro.
Além disso, o assunto tratado é algo que está intimamente ligado ao meu universo. E, como já foi dito por Borges, gostar é se reconhecer. Aliás, a história é quase borgeana. Talvez por ser longa demais e conter os rípios que o argentino tanto evitava, os dois diferenciem. Chico também usa uma linguagem mais coloquial que o viejo brujo. Mas que há um parentesco entre os dois, não há dúvida.
Para quem não leu a orelha do livro do Buarque de Hollanda, "Budapeste" conta a história de José Costa, um ghostwriter e tudo o que isso implica. Ou seja, um sujeito que escreve artigos, pronunciamentos e até livros dos outros deve se orgulhar pelo sucesso alheio, sem ficar com ciúmes por não receber nenhum reconhecimento? O que vale é escrever ou ficar famoso? Ou, como numa discussão que houve em alguns blogs e sites, escrever não é preciso, receber os louros do livro pronto é preciso?
Claro que essa não é a única discussão do livro. Depois Costa se transforma em Kósta, quando aporta na cidade-título. Envolve-se com Kriska e decide aprender o idioma local, língua que até o diabo respeita (essa frase já se transformou em clichê). E, para aprendê-la, deveria esquecer por completo toda e qualquer forma de comunicação que não fosse o idioma magiar.
Mas, realmente, o principal mote é: a quem pertence a literatura? Àquele que escreve, àquele que diz que escreveu ou ao que simplesmente leu o livro? Chico não propõe uma solução final. E talvez a resposta não esteja implícita na questão acima. Talvez, esteja novamente em Borges que dizia que a literatura pertence tão e somente ao tempo. Cabe ao escritor canalizar a ânsia de seu momento, em qualquer arcabouço, e ao leitor, sorvê-la. Nesse caso, se propõe o óbvio: as diferenças entre aquele que escreve e o que lê diminuem, para não dizer que desaparecem. Chico, depois de me proporcionar tal raciocínio, faz parte da minha lista de escritores preferidos.
quarta-feira, 9 de novembro de 2005
Fases
Comecei a digitar porque, ontem, estava numa loja de eletrônicos e começou a tocar uma música do Nirvana e eu disse é do In Utero. O sujeito abriu o programa e me disse não, é do Nirvana. Bem, depois descobri que era do álbum Bleach, o primeiro da banda liderada por Kurt Cobain, mas que só saiu nas lojas depois do hipersucesso Nevermind.
Mas, como disse, tudo começou com uma frase. Como desde sempre acontece comigo, roubada de alguém. Não posso gostar de um grupo cuja música diz estuprem-me, estuprem-me, eu repetia com os meus dez, 11 anos. Tempos conservadores, aqueles. E, principalmente, tempos imaturos. Mal sabia eu que era - também - um pedido metafórico, como se Kurt e cia. se oferecessem ao mercado para ser estuprado e levassem toda a sua criatividade.
Claro que, com o tempo, o rock entrou na minha vida e fui levado por uma conseqüência de fatos ao marco grunge, a O álbum da década de 90, ao Nevermind. Comprei o CD, tenho-o até hoje. Admito que, no início, ainda achava que ele - o disco - era bem torto. Um senso anticomercial muito bem apurado. Músicas feitas para não fazerem sucesso. E muita, muita atitude. Intempestividade é uma ótima palavra a se aplicar nesse momento. O mercado, contudo, fareja à milhas de distância uma nova tendência e a capta. Muito esperto, esse mercado.
Depois, muito tempo depois, cheguei e aterrissei no In Utero. Até hoje, o meu favorito. A dobradinha Heart Shaped Box e Rape me é tão boa que é quase um desperdício estarem, assim, as duas melhores músicas do álbum, uma ao lado da outra. Lembro de mim mesmo, pulando sozinho que nem um louco, totalmente bêbado numa festa da faculdade ao som da outrora desgraçada Rape me. Com o rolar dos refrões, outros loucos me acompanharam e a catarse foi quase completa. Daquelas que, quando a música termina, você volta ao solo e se pergunta onde é que está. Se sente leve, como se o suor que escorre na testa em todo o corpo pudesse ter expurgado todas as agruras do mundo.
E assim, fiquei, anos pulando de álbum do momento em álbum do momento - às vezes o acústico entrava na roda, o In Utero, sempre, Nevermind, um pouco menos. A partir de ontem, e era isso que eu queria dizer desde o início, o meu álbum do momento é Bleach. Visceral é isso aí.
quarta-feira, 2 de novembro de 2005
Os subúrbios de Paris sofrem com os embates diários/noturnos entre a população, na sua maioria imigrante árabe, e a polícia. E o ministro do interior francês proferiu o clichê da "limpeza na área". Este é o momento de parafrasear Ancelmo Góis: deve ser difícil morar num lugar como este.
sexta-feira, 30 de setembro de 2005
capítulo 9: o viúvo
Acompanhando o féretro, Seu Bento está hipnotizado. Não como acontece quando se visita essas charlatonas, mas completamente envolvido com a cena. Era a sua mulher que estava sendo depositada naquela cova. Era tão profundo, como é que... Não fazia sentido pensar nisso. Não era possível... Não, era uma loucura imaginar nisso...
Tinham vivido juntos muitos anos. Bento nem mais lembrava, mas Dona Margarida, essa com certeza se lembraria de quantos. Eram muitos. O seu filho mais velho tem quase 50 anos. Agora, só, sozinho como nunca foi, o que faria? Como se comportar? E as pequeninas coisas? Lembrou-se do lanche da tarde. Todo dia, Margarida colocava a mesa, e tinha broa, um tipo de bolo, queijo. Como era gostoso aquele bolo de cenoura que ela sabia fazer... Quem colocaria a mesa agora? A filha o chamara para morarem juntos, ela tinha um quartinho vazio, mas não. Bento está velho demais para dar trabalho para a filha. E, além do mais, ele sabe se virar sozinho. Serviu o exército, sabe sobreviver. Foi no ano que conheceu Margarida. Ele tinha 18 anos. Tinha acabado de fazer aniversário... Então... Então... Foram 57 anos juntos. Nossa! Muito tempo. Muito tempo mesmo. E agora, ali, indo buraco abaixo... Quem é que vai passar o café fresquinho todas as manhãs?
Bento anda na rua sem se preocupar com a noite fechada. Sabe que é perigoso, mas, agora, nessa hora, não se preocupa muito. A casa está muito vazia, é um silêncio que fica zunindo no ouvido como uma mosca. Não adianta ligar a TV, o barulho não sai. E é até pior. De manhã, os programas de receitas que Margarida gostava. De tarde, a novela, de noite, mais novela. Desliga a televisão. Vai para a rua de novo.
Tenta fazer compras no supermercado. Isso é fácil, sempre acompanhava a mulher. Leva o carrinho para carregar as frutas, o leite e quem é que vai comer os biscoitos de mel e aveia? Devolve para a gôndola. Segue, tem que seguir.
Na rua, passeia, não anda. Não há pressa, por que chegar cedo em casa? Pessoas correm, hora do almoço, telefones celulares ao ouvido, conversas gritadas, nunca gostou desses aparelhos eletrônicos. A filha, Ilda, deu um computador para casa dos pais, mas ele ficou lá, parado. Só é ligado quando os netos vão visitá-los. Ou visitá-lo. Tem que se acostumar.
Na rua transversal, enxerga uma cena insólita. Um mendigo vende uma montoeira de livros. Há uma pilha que ele conhece bem: a Encyclopaedia Britannica. Sempre quis ter a Britannica. Mas a mulher falava: "Onde é que vamos colocar esses tijolos?". E ele, como não gostava de discussão, deixava para lá. Bento olha para o mendigo – maltrapilho, sem camisa, braço defeituoso, bafo de cana, olhos vermelhos – acha inacreditável que aquele sujeito tenha todos os 23 tomos que compõem a principal enciclopédia do mundo. Pega um na mão, abre, é a versão de 1945. Nada mal. Mas deve ser caríssima. Por curiosidade, nunca vai comprar, claro, vai colocar onde?, pergunta, "quanto é?". O mendigo responde: "50". Bento olha para os livros desacreditando: "está completa?", o outro confirma com a cabeça. Seu Bento pensa, será que é roubada?, mas em seguida percebe o quão absurda é tal afirmação. Quem conseguiria carregar 23 bíblias gigantes? Ou, pior: quem se interessaria em roubar livros comuns? Bento nem titubeou, sacou a carteira e: "Volto já com o carrinho vazio".
Primeiro ele empilhou os tomos na sala e ficou analisando as lombadas. Por onde começar? O que ler? Abriu a primeira parte, a que estava em cima e achou até engraçado: "W" de "weapons". As modernas máquinas de guerra da segunda guerra não são nada comparadas com as atuais armas de destruição em massa. Deixou de lado, pegou outro: "C" e ficou espantado. Encontrou "Corumbá": Rio caudaloso que corta Brasil e Paraguai. Também é uma cidade em Mato Grosso, no Brasil. Incrível. Há conhecimentos eternos. Nunca ficarão velhos. A História será a mesma. Ao rever o passado, ao olhar para trás, sempre se encontra as mesmas coisas. Os tanques da segunda grande guerra podem não mais serem poderosos, mas estão na História e não saíram - quiçá sairão - de lá. Dentro dA Enciclopédia eles encontram a eternidade.
Bento deitou-se no sofá, da maneira como sua mulher detestava, os pés sobre o encosto, se espreguiçou e ficou passando os olhos na Britannica. Era um inglês simples, até ele poderia entender. Sentiu, pela primeira vez desde muito tempo, um pedaço da felicidade. Estava tranqüilo, esboçou até um sorriso. Estava com a letra "N", Friedrich Nietzsche. Começou a ler a biografia do pensador alemão. Sua aproximação de Wagner, seu gosto inicial por Schopenhauer, os estudos dos gregos... E encontrou, escrito à caneta, uma pequena declaração: "Não procure o sentido, viva e deixe-o te encontrar". Bento largou o calhamaço sobre o peito e olhou para o teto branco. Como assim? Quem será que teria escrito isso? Para que, por quê? Eram tantas perguntas enfileiradas, tantas questões sem nenhuma resolução, que Bento se levantou. Aquilo era demasiadamente infreqüente para ele não se empolgar. Como é que ele poderia saber quem escreveu tais frases? Era só nisso que Bento pensava. Tinha que saber o porquê delas estarem ali, qual era o sentido real delas... Saiu à rua atrás do mendigo.
Nada. Era tarde, o mendigo provavelmente fora aproveitar a nota de 50 que ele tinha lhe dado. Ele não pode estar longe daqui, pensou Bento. Resolveu percorrer os botecos de péssima qualidade, aqueles que ele tinha evitado porque sua mulher não gostava. Agora não tinha mais motivo.
Como se pode imaginar, tal tarefa não é nada fácil. Bento andou pelas redondezas, entrou em galerias fétidas com sujeitos mal-encarados nas portas, em bares com corredores longuíssimos e balcões idem, e nada novamente. Bento meteu as mãos nos bolsos e voltou cabisbaixo para casa.
Uma noite em claro depois, Bento sai cedo à procura do mendigo. Fica esperando o sujeito no mesmo lugar que ele estava no dia anterior. Mas, será que ele viria? Procurou na memória e não se lembrou de tê-lo encontrado outra vez antes. Anda de um lado para o outro, e se ele não vier? Como é que fará para encontrar quem escreveu aquela frase misteriosa? E se deu conta que mesmo que o mendigo aparecesse ele poderia não servir para nada. Como ele saberia quem é que escreveu aquela frase? Se ele conhecesse o antigo dono já era um achado. Não poderia contar nem com a sorte dele saber... E nesse exato instante, o mendigo aponta na esquina, com uma camisa de botões, cabelo penteado, andar calmo e seguro. Não era ele, pensa Bento. Mas era. Ele estava, ele estava... Limpo... Sentiu-se um imbecil por pensar de tal forma, se censurou por demonstrar um preconceito, mas o sujeito realmente estava diferente. O mendigo, melhor, o homem se aproximou e reconheceu Bento. Abriu um sorriso sincero de simpatia e estendeu a mão. Bento logo a chacoalhou e em seguida falou: "Pode parecer loucura, e é, mas eu preciso de uma ajuda sua". O homem escutou Bento sem nunca desmontar o sorriso do rosto. Bento falava que, por mais absurdo que seja, mesmo não entendendo o motivo, tinha sentido a frase pulsar dentro dele. Era como se ela despertasse alguma fé escondida. Era estranho, nunca ocorrera nada assim. E, agora, depois que Margarida... Bem, agora que ele estava sozinho, sem ninguém, a Encyclopaedia e logo depois a frase, tudo o enchia de vontade de continuar. Novamente tinha algo para fazer além de acordar e esperar a noite para voltar a dormir. O homem o escutava sem alterar as feições e quando Bento acabou, um silêncio permaneceu no ar. Seu Bento ficou apreensivo, repetiu a questão para ter a certeza que o homem o entendera. O sujeito olhou para o céu e apontou para o alto: "ela mora ali". Seu Bento olhou para cima e ficou confuso: "Ela... Ela também morreu?". O homem abriu ainda mais o sorriso e não falou mais nada. Apenas desceu com o dedo apontado e mostrou a portaria do prédio em frente onde eles estavam. Bento começou a rir incontrolavelmente. "Aqui?", repetia e ria Seu Bento, "aqui? Ela mora aqui? Todo tempo ela morou aqui?”.
Bento agradeceu o homem, balançou novamente suas mãos com força – o homem sorria – e esperou alguém sair do prédio. Essa era a vantagem de ser um idoso. Raramente desconfiam de você. Não demorou e Bento estava caminhando nos corredores do condomínio. O homem ex-mendigo tinha lhe dito que o apartamento da mulher era no terceiro andar, de frente. Só quatro apartamentos por andar. Será fácil.
Saltou do elevador e as luzes se acenderam. Bento sentiu algo queimar dentro de si. Era uma ansiedade que não experimentava desde que era um moleque, desde a época que conhecera Margarida. Ela tinha sido o seu fim. O seu início e o seu meio também. Começaram e concluíram tantas coisas juntos. Construíram uma vida em comum. Sim, houve crises, como todo mundo, mas sempre entenderam que se eles se gostassem, e nunca duvidaram disso, deveriam contornar os problemas. As desavenças existem, mas se os dois cederem um pouco, podem fazer algo que agrade a ambos. E conversar. Isso. O segredo foi sempre conversar, jogar limpo, ser justo. Nunca esconder nada, nenhuma mágoa. Colocar para fora tudo o que incomodava. Era isso. Não deixaram que aquele pequeno amargo estrague o gosto do resto. Extirpar o câncer antes que se alastre.
A campainha, o coração batendo, o som ecoa. Escuta passos curtos, rápidos. Sorri sem saber o porquê. A porta abre vagarosamente e ele fica cego por um instante com tanta luz que vem da janela. Depois que consegue recobrar a visão, a visão: com quinze anos de idade, Margarida está em pé, do outro lado da porta.
quarta-feira, 28 de setembro de 2005
O Globo de hoje traz uma matéria sobre um prédio de inacreditáveis 11 andares construído na Rocinha. Entre outros detalhes, mostra que, numa construção vizinha, cobra-se R$ 1500 de aluguel. Nada mal, dá para se viver de renda assim.
Alfredo Sirkis, o secretário de Planejamento da prefeitura, diz que os traficantes locais impedem que ele faça o seu trabalho: "O controle militar do tráfico dificulta nossa atuação. Mais recentemente, detectamos indícios de que, além de explorar o gás e o serviço de mototáxis, traficantes estão envolvidos com construções na favela. Tivemos de ter o apoio do Bope para demolir este ano uma casa erguida em espaço publico ao lado de um Ciep."
E então, chegamos pela primeira vez a pergunta inicial de tudo: será que ainda tem jeito? Será que conseguiremos um dia ter uma comunidade integrada ao resto da cidade ao invés de um gueto, onde quem manda não é exatamente o Estado?
Mais a frente na matéria, a Secretária municipal de Urbanismo da administração Marcelo Alencar, a arquiteta Lélia Fraga diz que, na época dela, sugeriu levar todos os favelados "da Rocinha, do Vidigal, da Vila Parque da Cidade, da Vila Pedra Bonita e da Vila Canoa" para o que ela chamou de "área residencial" a ser construído na Zona Portuária.
E então a pergunta se modifica: será que jogar a "poeira" para debaixo do tapete é a solução? Esconde das vistas das classes-médias e está ok?
Não sei. Talvez a sugestão da sra. Fraga resolvesse o problema das péssimas condições de habitação. Mas duvido que os moradores do morro de São Conrado deixassem a praia, o conforto de morar próximo de tudo, para ficar na Praça Mauá, mesmo que com casas com toda a infra-estrutura.
O que mais me choca, contudo, é a contínua negação do Estado em entrar nas favelas. Vá lá que a Globo não queira subir morro, com medo que mais um Tim Lopes morra, mas o Estado? Não to nem dizendo para combater o tráfico, que isso seria pedir demais. É entulhar os guetos com diversos serviços públicos, gratuitos e de qualidade (ah, meus tempos de Uerj), ao ponto de transformá-los em um lugar melhor de se viver, onde as pessas tenham orgulho de viver e não precisem pagar (a mais) para conseguir que recolham os seus lixos ou pedir pelo-amor-de-deus para serem atendidas nas filas de hospitais no asfalto. Não sei se isso daria certo, nem em curto, médio quiçá longo-prazo. Mas, seria uma boa tentativa.
Mas o que é que eu estou falando aqui? O único morro que subi na vida foi o de Nova Iguaçu, que em lugar das favelas há mansões. Além do mais, sugeri que os governos investissem em infra e serviços básicos. Devo estar com a cabeça na Argentina ou Chile...
sexta-feira, 23 de setembro de 2005
capítulo 8: a ex-jornalista, atual empresária
Não dava mais, era o máximo que qualquer ser humano poderia agüentar: 16 horas ininterruptas de trabalho. Para quê? Para que conseguir sonoras com o secretário, apurar que nem uma louca todos os números do orçamento, da verba federal, ligar para Brasília diversas vezes ao dia? Para ser acordada por um assessor chato às sete da manhã, depois de ter dormido depois das duas da madrugada, que quer saber por que o nome do superintendente estava errado nos créditos? Para perceber novamente que sua matéria estava errada, do início ao fim, que ninguém leu a pauta que você deixou lá, que você ficou horas batendo, com todo o cuidado, que você saiu mais tarde só por isso, para entender tacitamente que todo o esforço foi à toa? Maria Antônia simplesmente desistia.
Levantou-se de sua mesa e foi na do seu chefe direto avisá-lo. Ele ainda tentou persuadi-la, mas Maria não conseguia escutar nada. Só pensava em sair por aquela porta que estava na sua frente e nunca mais voltar. Por isso, ela caminha enquanto o chefe tenta ainda convencê-la. "Tchau... melhor: adeus. Eu até gosto de você, Gil, mas não...", Antônia só balança a cabeça e vai-se embora.
Dias depois (período este que ignorou por completo os apelos do telefone para ser atendido), Maria voltou a si: o que é que faria para sobreviver? E, pela primeira vez em sua vida, uma angustiazinha gelou o seu estômago. E agora? Não queria apenas abandonar a TV, mas todo o jornalismo... Mas, o que é que ela sabia fazer além de produzir pautas? Além de escrever, ter contatos, marcas entrevistas, agendar vivos, o que é que ela sabia fazer?
Sempre fora tão independente: morava sozinha desde os 20 anos, não ia ligar agora para a mãe pedindo dinheiro. Não mesmo. Era a última coisa que faria. E Priscila? Mas Pri tá viajando, tá em Paris, de férias. Há as pessoas da TV, mas agora não quer conviver com ninguém de lá. Quer se desintoxicar... Há gente boa lá, mas não agora, agora não. Que tal o Breno, o ex-namorado? Eles mantêm uma relação legal, são amigos, se falam vezenquando, será que o Breno poderia ajudar? Bem... Olha... Melhor não... A última vez foi aquela coisa... Ele veio para a casa dela e já tava falando em morar ali, em reviver os velhos tempos... É melhor não.
Então era isso: era Maria Antônia e mais ninguém. Nossa. Dá um desespero pensar nisso. Ficar, assim, tão sozinha. Não ter ninguém para dividir as barras. Não saber nem por onde começar. Quem está dentro do turbilhão é sempre a pior pessoa para achar a saída. Por que a Pri tinha que viajar logo agora? Logo no meio da crise? Será que Antônia não agüentaria mais um pouco? Não, isso não. Só em pensar em voltar para aquela redação dá calafrios e ânsia de vômito.
Mas como sobreviver? Bem, um tempo, alguns meses, Maria consegue segurar. Tem o FGTS, as férias vencidas (15 meses trabalhando direta, que nem uma maluca!), algumas economias... Também, nunca dava tempo para sair. E quando dava, Maria Antônia estava tão cansada que ela queria só ficar em casa, vendo um filme na TV e dormindo antes do final. Isso realmente não era vida.
Maria Antônia foi meditar: o que realmente consistia o seu trabalho? Colocar, arranjar gente, das mais diferentes espécies, para aparecer na TV. E como isso era difícil, nossa. Pode até parece inacreditável, como assim, né, como assim não querem aparecer na televisão? Mas não é tão simples como parece. Porque o Gilberto sempre queria um sujeito tão específico, sei lá, um tenista destro que gosta de roupas azuis, e onde é que você vai achar um tenista destro que gosta de roupas azuis? Putz, isso era um saco. Mas até que dava para passar quando se conseguia. E ela já sabia até os macetes, então era suportável. O pior mesmo era agüentar o muito barulho dos repórteres por nada, o chilique do Gilberto porque não há o tal jogador de tênis destro, mas canhoto, e porque ninguém valorizava o seu trabalho, aquilo que você acreditava, que ficava horas a mais para deixar perfeitinho. Por que ninguém lia o que você escrevia? Será que os textos eram extensos? Bem, não importa. Nunca mais Maria Antônia Gomez Tremonti vai escrever uma pauta de TV.
Além disso, o que mais Antônia fazia? Bem, ela tinha projetos específicos e... Peraí... Peraí... E se... Será?... Mas, e se... CLARO! Por que não? Por que não criar uma agência de personagens? Por que não fornecer essa matéria-prima para as TVs do país inteiro? Os contatos, ela tem. Os meios de conseguir as pessoas mais esdrúxulas, ela sabe. Para ganhar dinheiro é um pulo. Ela cria um banco de dados, armazena cada uma das personagens, com dados pessoais e também as características mais marcantes que podem render alguma coisa. Olhar clínico, ela também tem. Promete para cada um deles a possibilidade de aparecer na televisão, quem é que não gostaria?, e cobra uma mensalidade mixuruca, só para manter o cadastro. Ela ganha no varejo. Não ia enganar ninguém e tornaria a vida dos coleguinhas muito mais fácil. Era um trabalho justo, ético, nobre como outro qualquer...
E foi assim que nasceu a primeira agência de personagens para fins jornalísticos.
quinta-feira, 22 de setembro de 2005
Ano passado, o convite para a festa do Festival do Rio exigia black tie. Influenciado por alguns amigos, capitulei e me rendi ao máximo de terno e gravata. Chegando lá, mas que vergonha. Só tinha gente com trajes informais. Para dizer o mínimo. A justificativa era simples: o comes-e-bebes era na beira da praia e ninguém se fantasiaria de pingüim para ir à Copacabana, mesmo que perto do Palace. Não aprendendo com o erro, na festa de encerramento, fui novamente de modelito terno-gravata. Novamente, era um dos únicos mais formalmente vestido...
Hoje, novamente, pediram black tie. Diferentemente, a festança ocorrerá na Quinta da Boa Vista, ex-residência oficial da família real brasileira. Será que agora, longe da maresia, os culturetes vão se fantasiar?quarta-feira, 14 de setembro de 2005
"O empresário Sebastião Augusto Buani, dono do restaurante Fiorella, apresentou nesta quarta feira um cheque de R$ 7.500 endossado por Gabriela Kênia S.S. Martins, recepcionista no gabinete do presidente da Câmara, Severino Cavalcanti(PP-PE). Segundo Buani, o cheque, sacado no Bradesco no dia 30 de julho de 2002, foi usado para pagar uma parcela da propina que teria sido exigida por Severino, então primeiro secretário da Câmara, para garantir a renovação do contrato do restaurante"
terça-feira, 13 de setembro de 2005
Alguém pode tentar explicar por que o Jair Bolsonaro levou o seu "amigo" para assistir a uma sessão da CPI logo hoje, no dia em que o José Genoíno prestava depoimento? Qual era real intenção dele? Deixar o ex-presidente do PT constrangido? Será? Ou, será mesmo que as explicações dele ("Trouxe um amigo meu, coronel do Exército brasileiro, com mais de 70 anos, que foi combatente no Araguaia. Ele tinha essa curiosidade e eu o convidei para a sessão como um cidadão qualquer. Ele entrou mudo e saiu calado") vão ficar como as definitivas?
Desde Sarney - "Tudo pelo social" - não há mais a distinção entre esquerda e direita. Talvez já não houvesse antes, é difícil determinar uma data específica. Cito o ex-presidente José Sarney (1985-1990) porque é curioso que um homem vindo da Arena use um slogan voltado mais com os ideais do outro lado do tabuleiro.
Hoje, os candidatos de todas as colorações e plumagens fazem campanha valorizando o discurso de mais dinheiro para educação e saúde. Todos são iguais, sem diferenciação, sem profundidade. Bem, mais ou menos. Reparem que, se no formato, todos parecem saídos da mesma forma, quando algum assunto polêmico vem a público, percebemos as posições radicais e moderadas, liberais e conservadoras, etc etc etc, de cada um deles.
Veja o caso de Severino Cavalcanti. Quando assumiu choveram matérias sobre os seus ideais católicos, contrários ao aborto, ao casamento entre homossexuais, à discriminalização das drogas... Eu não quero que o presidente do meu Parlamento tenha essa postura, posso, devo criticá-lo, tenho que protestar contra qualquer ato seu que me pareça retrógrado. Mas, se ele agir dentro dos parâmetros da lei, se respeitar a ordem, se for um bom congressista, mesmo tendo idéias diametralmente opostas às minhas, o que eu posso fazer além de chiar?
Claro que se ele sair da linha, mesmo que tenha sido uma única vez, mesmo que tenha sido anos atrás, mesmo assim, ele deve ser cassado. Agora, gostaria que esse mesmo critério fosse aplicado em toda a casa. Queria que vasculhassem minuciosamente as contas, as concessões, os contratos assinados dentro da Câmara. Quantos resistiriam?
segunda-feira, 12 de setembro de 2005
"Já no fim da entrevista de ontem, o presidente da Câmara, Severino Cavalcanti (PP-PE), encontrou um jeito de atacar seu novo inimigo, o deputado Fernando Gabeira (PV-RJ) (...):
— Ganho todas as eleições porque defendo a família, sou homem de fé e cristão. Não escondo as minhas posições. Quando fui aqui inquirido por homossexuais, com o seu Gabeira à frente, disse na cara dele que iria votar contra eles — disse, sobre a proposta de união civil entre pessoas do mesmo sexo. — Descerei da tribuna para lutar contra aqueles que querem fazer o que Gabeira faz e o que eu não faço. Não ando com maconha e com tóxico. Nem defendo que a juventude vá ao bar tomar (sic) maconha."
sexta-feira, 9 de setembro de 2005
capítulo 7: Diálogos no coletivo
Estava muito calor quando entrei no ônibus. Para piorar, o coletivo, bem cheio, não me deixou escolha e sentei-me no único lugar livre. Foi uma espécie de alívio. Estava há muito em pé e tinha andando bastante no dia. Meu pensamento logo se desligou e foi lá para fora, para o mar de Copacabana com aqueles gringos todos querendo parecer um carioca legítimo. Quando voltei para dentro, já estávamos quase em Ipanema.
Curioso que, nessa exata hora, reparei que atrás de mim, não sabia exatamente onde, dois sujeitos conversavam e um deles, apesar do português extremamente correto, possuía um leve sotaque. Colocava algumas vogais como tônicas, quando deveriam ser átonas, nada que impedisse a sua completa compreensão por qualquer pessoa. Mas, esse detalhe fez com que eu prestasse atenção na conversa.
Tentei, antes mesmo de ele pronunciar uma palavra, traçar uma história pregressa para aquele gringo que sentava atrás de mim e com um português tão bom. Por que ele estaria no Brasil, quais era os interesses dele, enfim, um miniperfil. Entretanto nada que fugisse dos clichês. Em pouco tempo, ele me forneceu dados que, de certo ponto de vista, comprovavam a minha viagem pessoal. Por outro lado, ele construiu uma persona mais bojuda que era bem diferenciada daquela frágil que tinha imaginado.
Toca o telefone do gringo. Ele atende, vira o rosto para o lado da janela, abaixa o tom de voz, mas percebo que ele não pronuncia muita coisa além de "sim, sim, tudo bem, ok, vámos ver...". Depois, volta para conversar com o sujeito ao lado:
- Ela de nóvo.
O camarada dele, com uma voz efeminada, responde: - Cara, você tem que ser mais incisivo. Tem que explicar para ela o que você quer...
- Sim, mas éu disse para ela...
- Tem que falar: 'Olha, eu não tenho tempo para você hoje'
- Foi bom, quando nos conhecemos, na boate, mas éu realmente tenho que fazer um monte de coisas hóje... Não sei o que vou encontrar, se a ver de nóvo. Sabe, na noite, tem o álcool, as luzes, a música...
- Então. Se você não quer nada, diz para ela!
- Não sei, éu disse, mas... Ela é legal.
À medida que ele me dava mais informações, acrescentava mais detalhes na minha história. Tudo estava claro. Apenas a ligação entre os dois portadores das vozes estava ainda embaçada. Disfarçadamente, me virei para enxergá-los. Na hora pensei que ele fosse argentino pelo porte: tinha o cabelo grande e dourado. Era musculoso, mas magro, com traços do rosto finos e delicados. Era um garoto muito bonito, deve fazer sucesso entre as mulheres. Principalmente aqui no Brasil, onde ele é um estranho. O camarada dele é fácil descrever: um negão com dread locks pequenos, sendo que alguns tufos eram roxos.
- Tinha já combinado ir na casa de Silvana hóje. Não posso desmarcar. As mulheres aqui são muito fáceis. Basta ir a uma boate...
- Então, você não precisa se prender a essa mulher, cara. Basta sair. Agora, quando ela ligar, fala que você não quer...
No que aconteceu algo um tanto quanto inesperado. O sujeito que estava exatamente atrás de mim e na frente deles, se intrometeu na conversa e interrompeu o negão:
- Rapaz, você não devia dar ouvidos a ele...
E então, algo ainda mais absurdo, outra pessoa, agora ao lado deles, que estava de pé, também falou:
- Eu concordo. Ele tá querendo se aproveitar de você. Não tá vendo que ele é veado?
Foi o suficiente para se instaurar uma balbúrdia:
O negão, com a voz ainda mais estridente, respode: - Vocês estão loucos! O que é isso?!
O sujeito de pé engrossa a voz para encarar o negão: - É isso mesmo! É veado, bicha, gay! Ele quer é te comer, garoto, não deixa não! Fica esperto!
O que está sentado atrás de mim na frente deles tenta um tom conciliador, mas todos falam quase ao mesmo tempo, só se escuta algumas frases soltas: - Peraí, um minuto, não é bem assim... Eu só acho que ele pode ter um algo a mais com a menina, sem necessariamente...
O garoto em silêncio, estupefato, enquanto o negão continua: Vocês não me conhecem! Quem são vocês para falarem alguma coisa de mim, seu bostas, seus merdas! Eu falo três línguas, tenho duas faculdades e sou veado sim, mas não devo satisfação a nenhum de vocês! Seus filhos da...
- Veado! Quer se aproveitar do gringo que não entende nada, que está perdido...
- Calma, calma gente, não vamos nos exaltar...
- Vai tomar no...
- Gente, que isso...
- Tu deve ser um enrustido, é por isso que fica aí, reclamando...
- Calma aí, génte - fala finalmente o garoto - vocês estão todos loucos...
O da frente, tenta a sensatez: - Menino, você tem que fazer o que achar melhor e não escutar os outros. Se quiser ficar com a menina, tudo bem, todo mundo vai entender...
- Eu vou é saltar - diz o negão, já se levantando - vambora. Não posso ficar aqui com um bando de escrotos...
- Mas eu não falei nada demais - diz o da frente...
- Vaitomano...
- Vamos, vambora - diz o gringo
Levantam-se os dois, esbarram propositalmente no que estava de pé e caminham às pressas para a saída. Não sem antes escutar um "Veados!", proferido pelo sujeito que logo em seguida se sentou no banco. Eu, que estava me divertindo horrores, também tive que saltar no ponto em seqüência.
quinta-feira, 8 de setembro de 2005
Sede de sangue
Já escuto o coro de "bode expiatório": sacrifica-se alguém que ninguém gosta, que é visto como o erro, ou como a origem do erro, e se esquece do restante. Oferece a carne do nordestino católico conservador como oferenda ao Deus Opinião Pública. Joga-se uma isca e todo mundo cai na armadilha. E pior que todas essas metáforas: normalmente o estratagema funciona.
Vicent Gallo é um dos convidados para o Tim Festival. Parece-me que num esquema voz+violão, voltado para o roquenrou. O AllMusic o aponta como "similar artist" de gente como Massive Attack e Portishead. Para quem ainda não ligou o nome à pessoa, Gallo é um dos sujeitos cuja ficha no IMDb é gigantesca, mesmo sendo razoavelmente jovem - ele nasceu em 11 de abril de 1962, em Buffalo, cujo nome deve ter inspirado o seu conhecidinho (entre os culturetes) Buffalo '66.
Deve ser a farsa do festival musical. Aquele por quem os cadernos culturais vão correr para conseguir uma exclusiva, mas fazer perguntas sempre sobre o cinema ou sobre a namorada, Chloë Sevigny. Vale como chamariz, nome diferente, que se aventura em outros terrenos artísticos. Mas, como músico, bem... Vale julgamento preconceituoso, sem nem ter ouvido nenhuma de suas músicas (nunca ter visto nenhum de seus filmes também)? Melhor não falar nada.
Agora, a pergunta que não quer calar: Gallo vai representar ao vivo a sua performance mais conhecida, aquela de "Brown Bunny"?
quarta-feira, 7 de setembro de 2005
É de conhecimento de qualquer pessoa que já assistiu a um filme de Woody Allen que o novaiorquino é fanático por jazz. Talvez tenha passado despercebido o fato de ele gostar, também, de música brasileira. Em "Era do rádio", por exemplo, há duas referências ao Brasil. Primeiro, uma espécie de Carmem Miranda num cassino e, em outra cena, toca ao fundo "Tico-Tico no Fubá".
Hoje, saiu uma nota n'O Globo que corrobora muito essa informação e enche qualquer fã do neurótico mais famoso do mundo de ansiedade (copio-a inteira porque amanhã o link não mais funcionará):
"Tom e Woody Allen
Bilhete de Woody Allen para Ana Jobim, agradecendo o envio do “Cancioneiro Jobim” e o CD “Inéditos”: “Senhora Jobim, muito obrigado pelo seu maravilhoso livro. Muito gentil da sua parte me deixar utilizar as canções do seu marido num filme. Ele sempre foi um herói para o meu grupo e queremos homenageá-lo utilizando sua obra. Obrigado novamente, Woody Allen.” Ana e Woody moram no mesmo prédio em Nova York. O porteiro serviu de correio."
Não sei quem é mais sortudo: Ana ou Allen.
terça-feira, 6 de setembro de 2005
Por força maior do lavoro, tive que pesquisar sobre uma bandinha de metal que faz sucesso entre a garotada. Caí em um fórum que discutia se a banda era ou não era "new-metal". O sujeito criador do tópico achava que não era e dizia odiar quem discordasse dele. Não há argumentação, apenas um apanhado de frases exaltando a virulência da tal banda, cheios de erros crassos de português. Não sou um grande fã da gramática, acho que o mais importante é a comunicação, mas quando ela é dificultada pela falta de clareza ou mesmo vocabulário, estamos com um problema. O curioso é que, ao se expressar em inglês, ele conseguiu reproduzir palavras, frases inteiras sem nenhum erro. Tudo bem que também não faziam muito sentido e se resumiam a xingar o mundo, mas todas as palavras estavam grafadas corretamente. Ou seja, o garotinho (provavelmente um adolescente) não sabe escrever em português, a língua pátria, mas em inglês, expressa-se bem. Ou não, apenas colou a letra da tal banda na parte final. E então percebemos como é limitada a tal banda. Enfim, para deleite, cliquem.
segunda-feira, 5 de setembro de 2005
Todo o curta "Nelson Sargento" é interessante. Principalmente porque, além do óbvio retrato do sambista autor de "Agoniza mas não morre", mostra que dentro da favela não necessariamente deve ter só miséria.
Nelson é de uma época em que ainda havia pobre. Sim, pobre, mas com dignidade. Há um depoimento de Cacá Diegues que fala que Sargento pediu, quando o diretor comprou uma casa nova, para pintá-la. Já ouvi também uma história parecida sobre Cartola. Mesmo já famoso, continuava a ser ascensorista num prédio no centro do Rio.
Hoje é complicado (sobre)viver sendo operário de obras ou piloto de elevador. Há 20, 30 anos, meio século, não. Podia-se ter uma casa, colocar comida em casa, os filhos estudariam numa escola pública de razoável qualidade e ele ainda teria tempo para compor para a escola de samba do coração.
Com o tempo, estrangularam não só a classe-média, mas e principalmente, os pobres. Agora, só restou os miseráveis.
domingo, 4 de setembro de 2005
"CUBA: O presidente de Cuba, Fidel Castro, ofereceu enviar 1.100 médicos para Houston com 26 toneladas de medicamentos para tratar as vítimas.
VENEZUELA: O presidente Hugo Chavez, um crítico dos EUA, ofereceu enviar combustível mais barato, ajuda humanitária e equipes de emergência.
(...)
IRÃ: Oferece ajuda humanitária ao país que o condenou como parte do "Eixo do Mal". "As vítimas reclamaram de falta de assistência no tempo necessário e nós estamos preparados para enviar nossas contribuições para as pessoas por meio da Cruz Vermelha", disse o porta-voz do Ministério do Exterior, Hamid Reza Asefi."
- Alguém ainda duvida que o Ronaldo Fenômeno deve sair para a volta do seu xará? Duvido que o Parreira venha fazer, mas...
- Não sei não, em matéria de futebol, Seleção e Copa, esqueço por completo o meu racionalismo e transformo-me no maior dos supersticiosos. Brasil, quando chega favorito a um Campeonato do Mundo, perde. Ou vergonhosamente ou na final. Lembrai de 50, 66 e 98. Ainda existe a hipótese de não perder e voltar para casa invicto - os "campeões morais": 78 e 86. E há ainda: quando é o melhor time do mundo e perde para um outro "menos qualificado": 82.
- Quase chorei com o segundo gol brasileiro contra o Chile.
- O Robinho é molecamente genial.
- O Brasil deveria poder inscrever dois times nesses copas mixurucas do mundo. Só para fazer a final mais emocionante.
;o)
sexta-feira, 2 de setembro de 2005
capítulo 6: No ponto de ônibus
Descrever Alex não é uma tarefa simples. Principalmente porque ele é um sujeito comum, que se disfarçaria no meio da multidão se transformando em massa. É baixo, magro do tipo esmirrado, usa óculos e os cabelos, agora, quando beira os 40 anos, estão ralos. Talvez, o que jogue os holofotes nele seja o hábito friorento de usar casaco com freqüência. Mora perto de minha casa e já o encontrei diversas vezes encapotado quando fazia um razoável calor nas ruas. É até curioso: eu, de bermudas, ele, de mangas-compridas.
Agora, se tentássemos descrever a personalidade de Alex, poderíamos gastar páginas e páginas e talvez não daríamos conta de tantas excentricidades. Aliás, o fato de usar casaco com demasiada freqüência aponta muito para esse perfil. Reparem: ele é hipocondríaco, inseguro, só saiu da casa da mãe quando ela morreu - há pouquíssimo tempo; tem poucos amigos e é demasiadamente metódico.
Recentemente, porém, aconteceu um fato curioso na vida de Alex. Ele me contou dias desses, quando estávamos no ponto.
Alex estava no mesmo local, num domingo, esperando o ônibus. Falou-me que usava roupas do mesmo gênero, ou seja, uma calça cáqui, camisa bege e um casaco largo marrom. Carregava um livro para ler no caminho e, como sempre acontecia, estava desligado do mundo. Então uma mulher muito bonita, vestindo-se sensualmente se aproximou dele. Alex ficou tenso. São raros os casos de mulheres que se aproximam dele. Ela foi sutil:
- oi.
Ele ficou nervoso, gaguejou, não sabia onde colocar as mãos, em que direção olhar, desviou dela rapidamente, mas depois que percebeu que era com ele mesmo, não teve outra saída senão respondê-la:
- oi.
Ela continuou:
- Que livro é esse?
Alex não sabia o que responder, a situação era por demais inesperada. Vacilou o título:
- "Cuca Fundida"
Ela engatou novamente:
- E é legal?
Alex foi mais rápido dessa vez. Pigarreou, abaixou e levantou a cabeça em seqüência:
- É, até agora está sendo, pelo menos.
- Sabe, é que, você não vai acreditar...
Ele sussurrou: "Eu já não estou acreditando"
- O quê?
- "Nada" - rápido.
- Bem, é que, sabe, eu te vi assim, parado, cara, é louco demais, você não vai acreditar...
- Pode falar, pior do que está, não pode ser...
- Olha, eu te achei, eu acho que, a gente, nós, é, nós poderíamos nos conhecer melhor...
- Bem... Não sei...
Ela arregalou os olhos: "O quê?"
- É que... Bem, eu não quero que você me entenda errado...
Incisiva, mas delicada: - Pode falar!
- É que, a gente, nós, nós, isso, nós acabamos de nos ver, aqui, num ponto de ônibus. Você não quer que eu acredite nisso, né?
- Mas, peraí, você está entendendo tudo errado. Vamos começar do início. Qual é o seu nome?
- Alex.
- O meu é Monica. Prazer.
Ela se esticou para dar-lhe dois beijos, ele ficou perdido novamente. Foi Monica que voltou a falar:
- Agora, poderíamos falar, conversar sobre qualque assunto. Eu te vi aqui, parado, com esse livro e esses óculos... Nossa, o que é que eu to falando? To meio louca, desculpa, to sem graça.
- Olha, eu acho que você está confundindo as coisas. Você não deve pensar que pode chegar assim, sem mais nem menos e vir com conversinha, falar qualquer coisa. Vocês, mulheres, pensam que são quem? Que só porque durante eras os homens correram atrás de vocês, agora podem também caçar? É isso?
- Não é nada disso...
Ele se exaltou: - Será que você está nesse exato momento me vendo como uma presa? Alguém que você deve abater? É isso? Sou apenas alguém que você conhece no ponto de ônibus, usa e depois joga fora?
- Você é um neurótico, vou-me embora...
- Isso, vai sim, prova que você não queria nada sério comigo. Queria apenas se aproveitar da minha situação aqui, desprotegido, quieto, sem nenhuma segurança...
- Você é louco...
Monica pega o primeiro ônibus que passa enquanto Alex continua falando em altas vozes para a janela fechada do carro:
- As mulheres, depois da revolução sexual, acham que podem fazer qualquer coisa. Não respeitam ninguém. Daqui a pouco, se transformarão em predadoras violentas. Exigirão do homem que mantenha-se ereto apenas para a satisfação dela...
Quando o ônibus sai, Alex pára de falar. Ele arfava. Estava possesso, fora de si. Mas, como o seu ônibus demorou, ele foi se acalmando. Encontramo-nos logo depois e ele se lembrou dos pormenores para me contar. Ou, inventou algumas partes, para ficar mais interessante. Sei que foi essa a história que ele me contou. Nunca saberemos ao certo.
Pensei em fazer um comentário sobre as semelhanças entre as atitudes, digamos, acanhadas dos presidentes Bush e Lula em suas respectivas crises.
Ambos querem ser, parece para mim, uma espécie genérica de rainhas da Inglaterra sem poder sê-lo. Ou seja, querem ganhar o bônus esquecendo-se que, ao serem presidentes de repúblicas representativas, ganham junto um ônus que Dona Elizabeth II não tem.
São, os dois, mais importantes pelas suas figuras - de um lado o caubói texano, que representa a chamada "América Profunda", conservadora, com cultura mediana, profundamente religiosa; do outro um ex-operário semi-analfabeto, vindo do Nordeste pobre para vencer na vida - que pelas suas atitudes. São mais embalagem que conteúdo.
Mas, Arnaldo Jabor fez comentário parecido no JN de hoje. Aliás, foi sutil como uma manada de elefantes enlouquecidos. Mas não consigo arranjar o link.
quinta-feira, 1 de setembro de 2005
Tudo bem que não sou nem próximo do que se pode chamar hard user da internet. Minha navegação se resume a uma meia dúzia de poucos sites que revisito diariamente ad infinitum. O Meu favoritos tem sites que nunca passei duas vezes. Logo, não conheço nem uma parcela infinitesimal do que a web pode fornecer. Minhas pesquisas se resumem ao que o Google pode me fornecer. E como ele não é deus, apesar das semelhanças entre si, também não é onipresente, onisciente nem onipotente.
Mas, ou mesmo por isso, vezenquando, me surpreendo sobremaneira. Hoje, foi numa das minhas navegações mais cotidianas. Fui ao orkut, aquele mesmo, mas procurar uma das minhas primeiras comunidades. Navega de lá, fuça cá, eis que descubro isso: TODO o "Ulisses" do James Joyce, na internet. Aliás, vejam, por favor isso.
O mundo faz um pouco mais de sentido para mim, agora...
O “mensalão” no cinema
Não é de hoje que o casamento entre cinema e política stricto sensu rende filhotes. Como exemplos, só de filmes lançados este ano, temos: “Cabra Cega” de Toni Venturi, “Peões”, de Eduardo Coutinho, e “Entreatos” de João Moreira Salles. Junto a isso, o Brasil vive um período conturbado que atinge o Poder Executivo e o Legislativo nacional. Inúmeras denúncias de corrupção envolvem parlamentares e até mesmo o presidente da República. Pode-se suspeitar então que, mais dia, menos dia, este cenário sirva para alguma produção cinematográfica como mote ou pano de fundo, certo? Bem, não se pode ter tanta certeza.
Apesar de achar que política sempre fornece um belo material para o cinema, o roteirista e diretor chileno radicado no Brasil, Jorge Duran diz que essa crise política não difere de outras: “a crise pertence ao Brasil, não é nada diferente do que houve”. Segundo o roteirista de “Dois perdidos numa noite suja”, o escândalo só tomou essa proporção porque Lula não tem base política: “com Fernando Henrique também vivíamos uma sucessão de crises, com queda de ministros e tudo mais. Raramente, porém, cogitaram seriamente a queda de FH”. Professor da Faculdade de Comunicação Social da UERJ, Márcio Gonçalves também partilha de opinião parecida: “acho que a atual crise não veiculará em um filme no futuro”.
Quanto à simbiose entre cinema e política aludida no primeiro parágrafo, alguns a entendem como algo intrínseco, como Jean-Pierre Gorin. O fundador, ao lado de Godard e outros do Grupo Dziga Vertov de cinema esquerdista na Paris de 1968, disse para O Globo em 23/08/05 que “qualquer cinema é político, porque todo filme é reflexo de uma história e é feito com uma determinada função”. Duran tem outra opinião: “há uma diferença de perspectiva entre o público e o cineasta”. Já Gonçalves é mais filosófico: “depende do que você chama de política”.
O cineasta chileno, atualmente na fase de pós-produção do seu “É proibido proibir”, sugere um possível motivo para que a atual crise nossa de cada dia não paute também o cinema: “ainda não conhecemos de verdade todos os fatos que circulam sobre os escândalos”. Talvez com o distanciamento histórico necessário e os segredos sendo revelados entre em cartaz nas salas de exibição, algum longa-metragem sobre o “mensalão”. Basta esperar.
terça-feira, 30 de agosto de 2005
Um amigo meu sintetizou perfeitamente: o Rio não tem inverno. Tem verão com frentes frias esparças. Mas este agosto exagerou. Hoje "O Globo" estampou um termômetro em Copacabana marcando 45º.
Para completar, estava eu voltando da praia, aproveitando o meu único dia de folga, quando escuto estampidos. Pensei: moro aqui há anos e nunca escutei tiros. Depois descubro que, depois que a velhinha da Ladeira dos Tabajaras divulgou as imagens que ela vinha registrando há dois anos do morro, os traficantes locais se mudaram para o Dona Marta. E, pior, estão muito ciosos do relacionamento com os policiais. A "comunidade" de Botafogo, conhecida por ser razoavelmente seguro, tranqüilo, sem tiroteios (o último foi ainda na gestão do Marcinho VP, o abusado), então se viu no meio de troca de tiros e até o posto de gasolina, ali na São Clemente, do outro lado da pracinha, foi atingido.
Além disso, cinco pessoas também foram baleadas. Entre elas, a repórter da Band Rio Nadja Haddad, natural de Nova Iguaçu, uma das paixões de um grande amigo meu de lá, o Zé, quando ele tinha uns 13, 14 anos. A última informação que tive dela era que estava internada no CTI e seu estado ainda era perigoso.
Esse troço de violência está me enchendo o saco.
terça-feira, 23 de agosto de 2005
Em Rondônia, a Polícia Federal prendeu dois índios cintas-largas que levavam cerca de oitenta diamantes brutos dentro das cuecas. A identidade deles não foi revelada. Também foi preso o garimpeiro Francisco Felício Barros. As pedras saíram da reserva Roosevelt, onde 29 garimpeiros foram massacrados pelos índios, em abril do ano passado.
sexta-feira, 19 de agosto de 2005
Um dos momentos mais esperados dos últimos tempos. Aquele que eu sonhei acordado, não porque vislumbrava as vantagens, mas porque queria distância dos problemas que vinham me acarretando. Um gesto quase metafórico. Uma troca de olhar entre mim e minha irmã, um sorriso de cumplicidade na hora que o corretor disse: "então, posso tirar a placa de 'vende-se'?". Respondemos, depois de nos entreolharmos, em uníssono: "pode". Ele caminhou para a janela, todos o acompanhamos, abriu-as, retirou uma das cordas, arrebentou a segunda e tudo havia acabado. Todo o sofrimento findara-se ali.
Agora, começa outro, de outro tipo.
quinta-feira, 18 de agosto de 2005
sabia que, talvez, Sócrates nunca tenha existido?
ele pode ter sido uma invenção de seus discípulos...
acho essa história MUITO boa
aliás 2, Platão, talvez, nunca quis ser filósofo, mas "apenas" dramaturgo
tive um professor que defendia a seguinte tese sobre Platão
antes dele, dramaturgos era conhecidíssimos, tipo pop star na grécia
e ele resolveu inventar o tal do sócrates, para ser sua principal personagem
então, em TODOS os livros de platão, quem fala é Sócrates, nunca Platão
e eles são diálogos, como peças de teatro
e a construção dos diálogos é parecida com a de teatro
ele dá a localização, quem participa das conversas, etc etc etc
dá para ser encenada, só que seria MUITO lenta e extremamente chata
é melhor ser lida
acho muito curioso pensar que um dos maiores filósofos da história pode não ter tido essa idéia
o cara se transformou em filósofo à revelia
dá para se fazer um paralelo aqui com o JC
que fundou uma religião à revelia
e também pode ser comparado com sócrates, já que NUNCA escreveu nada
vc nem sabe se ele existiu
mas é algo tão entranhado na cabeça das pessoas que ninguém titubeia que ele viveu, morreu na cruz e reviveu dois dias depois
a história, aliás, do JC é MUITO boa
Sócrates também tem momentos de angústia
JC teve muitos mais testemunhos
para começar, ele teve doze apóstolos, dos quais, quatro escreveram sobre ele
não é parecido? Sócrates e Jesus tiveram discípulos
ambos não escreveram nada
me fale outro professor conhecido da antiguidade que não escreveu nada e até hoje é lembrado
que morreu drasticamente - Sócrates se matou com cicuta
se vc acredita em vida após a morte, em reencarnação, não seria curioso pensar que um pode ser o outro?
aliás, Sócrates morre porque ele se recusa a ir conversar com o chefe da pólis
então ele vai preso
e o prefeito diz: se rebaixe a mim
e ele responde: hein? Como?
"Tá de sacanagem?"
então, o prefeito manda matá-lo, mas livraria a cara dele se simplesmente ele se rebaixasse e aceitasse o prefeito. as histórias não são parecidas?
claro que Sócrates não aceitou
e preferiu, ele mesmo, tomar a cicuta
eu acho que tomava a cicuta também.
quarta-feira, 17 de agosto de 2005
Como sempre, incisivo, simples e arrebatador: "Faz tempo que o Brasil carece de um presidente que chegue ao Planalto às oito da manhã e fique lá até as seis, cuidando do cotidiano nacional. Não será fácil, mas Lula pode tentar."
terça-feira, 16 de agosto de 2005
Frases, pequenas idéias, ótimo texto
Otto Maria Carpeaux: “Só os cínicos e os iletrados acreditam que um escritor trabalha ‘para ganhar dinheiro’. Não é verdade não. Até o fabricante mais inescrupuloso de best-sellers faz questão de ser reconhecido ou entendido, o que não é apenas um problema de vaidade”
William Faulkner (com a ajuda de Antonio Fernando Borges) sobre esses sujeitos estranhos que gostam de escrever, também conhecidos como escritores: “uma criatura arrastada por demônios”, capaz de sacrificar honra, orgulho, decência, segurança, felicidade e todo o resto para escrever seu livro: “Se um escritor tiver que roubar sua mãe, não hesitará”.
Não quero parecer conservador nem, muito menos, moralista. Mas, confesso que a idéia de que adolescentes e pós-adolescentes vão em festas / micaretas e afins para ficar com dez, 20, 30 pessoas diferentes me choca. Talvez esteja apenas ficando velho. Mas, lembro-me que isso era algo que me incomodava quando mais novo. Talvez por parecer absurdamente superficial um relacionamento que se resume a um beijo e poucos segundos de envolvimento, talvez porque veja nisso um sentimento de competitividade nocivo e desgastante. Talvez porque demonstre uma imaturidade de todos os jovens que simplesmente não querem crescer. Sei lá por quê.
Acabei de ler uma matéria muito boa sobre o assunto. Muito boa mesmo. Em nenhum momento é preconceituosa ou tendenciosa. Ouve os "lados", apresenta todos os argumentos, mostra um instantâneo desse tipo de relacionamento. Por isso mesmo, extremamente chocante.
sexta-feira, 12 de agosto de 2005
capítulo 5: o chaveiro que amava os russos
Fui morar sozinho em 2002, num minúsculo conjugado em um prédio que tinha mais de quarenta por andar. O meu era o 316. O pequeno tamanho do imóvel não me incomodava, já que funcionava como um imenso quarto. Inclusive foi o maior dormitório que já tive e, provavelmente, o maior que terei.
Entre vários problemas dessa época, havia a solidão. Na prática, morar só, me trazia a responsabilidade de resolver todas as pequenezas da casa. Se, por exemplo, o ventilador parava de funcionar, era eu que tinha que arranjar alguém para trocar a fiação. Eu, recém-chegado, pela primeira vez longe da família e mal saído das fraldas, devia personificar o homem seguro que nunca fui. A vergonha é minha companheira desde pequeno.
Nessa época, com o intuito de me proteger do mundo, erigi um muro que me separava das outras pessoas. Culpava-os por não me entender e discriminava quem não fosse parecido comigo. O isolamento era constante. Ficava dias sem abrir a boca, sem conversar com ninguém. Qual um velho ermitão morador de áreas inabitáveis praguejava ante a ignorância alheia e me refugiava dentro de livros e escrevendo fanaticamente no meu caderno pessoal.
Um dia tive que fazer uma cópia das chaves da porta. Mas, era horrível ter que interagir com pessoas. Ouvi-las, prestar a atenção em assuntos pouquíssimos importantes para mim, me magoava porque ia de encontro com um plano pré-determinado de não contaminação com situaçõs e pessoas que considerava supérfluas. Não enxergava que poderia haver algo de bom no mundo longe da minha estante, não mesmo. Contudo, como dito acima, não tinha a quem recorrer e saí à rua procurando um desses chaveiros ordinários.
Planejara todo o diálogo para evitar surpresas. Entregaria a chave e diria: "bom dia. Por favor, o senhor poderia me informar quanto custa para fazer uma cópia dessa chave?", ele me responderia o preço e estávamos combinados. Lembro-me que vestia um moleton velho, uma pequena pelugem cobria meu rosto e calçava chinelos de dedos. Nunca me importei com a aparência. Não vejo necessidade em vestir-me com nada caro ou na moda. Considero isso o cúmulo da superficialidade.
A uma quadra da minha casa, encontro uma portinha, ao lado de um boteco malcheiroso que me fez parar: era o chaveiro. Acreditava - e ainda tenho um pouco dessa fé - que o ser humano mais sincero está nos lugares mais fétidos e podres. Eles não precisam aparentar nada, porque estão no limiar da humanidade. Ali, não há máscaras, todos são sinceros, verdadeiros, se apresentam sem censuras.
Em questão de segundos sai um sujeito de dentro do bar ainda mais maltrapilho que eu, as pernas sujas de graxa, os cabelos ensebados, a barba enorme, as roupas com buracos ou remendadas. Antes que eu dissesse qualquer coisa, ele falou num tom extremamente calmo e educado: "pois não?". Entreguei a chave e fiz a pergunta formulada, não com a segurança que tinha sido imaginada, mas entre gagueiras e sobressaltos na frase. O resto continuou como planejado e o silêncio, em poucos instantes, já imperava. Como no meu sonho.
Só que, logo após ficarmos quietos, ele me perguntou: "você gosta dos russos?". Pego assim de supetão, não soube a que russos ele se referia. "Tolstói, Dostoiéviski, Tchecov", ele me ilustra. Não, nunca tinha lido nada deles, não conhecia nada da obra, era um completo ignorante do assunto. "Eu gosto muito dos russos, eles conseguem sintetizar o que há de mais emotivo entre os homens, os seus sentimentos mais primários", eu em silêncio, escutava aquela aula sobre a literatura da Rússia, invejando o seu autor porque ele era uma espécie de arquétipo do meu ideal naquela época. Um homem que ignora a vaidade e alimenta apenas o espírito. Queria ser esse tipo de homem. Se ficasse isolado do mundo, que importa?, teria sempre os livros.
Em questão de minutos, o trabalho dele acabou e ele me pergunta quem eu gostava de ler. Não soube responder porque não tinha, como não tenho, uma nacionalidade preferida. Tenho uns autores, mas não obedecem a uma ordem. Talvez, hoje, dissesse que gosto daqueles que priorizam a trama, em detrimento dos personagens, ou seja exatamente contrário a maior característica dos conhecidos eslavos, mas os meus preferidos não obedecem a nenhum padrão geográfico, podendo ser de qualquer origem, inclusive russos.
Agradeci e fui-me embora, embasbacado. De certa forma, aquele homem aumentou a minha crença na vida, demonstrando que sempre há como se surpreender, mesmo quando você não alimenta mais nenhuma esperança. E, principalmente, tendo paciência comigo, com aquele garoto que não conhecia nenhum dos russos e, mesmo assim, insistia em olhar a humanidade de cima para baixo. Foi uma lição de humildade inesquecível.
Essa semana, voltei lá porque estava perto e precisava copiar outras chaves. Mas não encontrei o chaveiro que amava os russos.
quarta-feira, 10 de agosto de 2005
Preciso de ar para respirar
paisagem para olhar
beleza para contemplar
Preciso de um pouco de espaço
bastante silêncio
e o sol da manhã, quase mormaço
Preciso do vento constante
janelas sem basculante
e visitas num instante
Preciso de calma e tranqüilidade
de uma localização privilegiada
e vizinhos e preços camaradas
Preciso de limpeza no elevador
largura no corredor
e uma dama que me dê amor
terça-feira, 9 de agosto de 2005
O complicado, no caso, é selecionar um trecho para exemplificar, já que ele é todo amarrado e representa diferentes pontos-de-vistas meus sobre o novaiorquino-mor. Vou copiá-lo salteado:
"Muita coisa se passou na vida de Woody Allen nos últimos anos (...). As implicações bergmanianas cederam então a um olhar que não tenta mais problematizar os enigmas da vida, mas sim desfrutá-los em todos os seus absurdos."
(...)
"("Anything else") É também sobre intervir nas coisas, como defende o escritor sessentão David Dobel (Allen), que nada mais é que o próprio Allen após ter aprendido a lição que sua jovem namoradinha lhe deu ao final de "Manhattan" (1979). Seu personagem, quarentão, ouvia que era impossível termos controle e certeza sobre tudo."
(...)
"A cultura não tenta agora explicar o mundo, e sim preservar a discussão das coisas, o pensamento"
(...)
"É um filme, também, de encontro entre dois tempos. Entre o Allen maturado, vulgo Dobel, e o jovem escritor Jerry Falk (Jason Biggs), seu pupilo e que ainda tenta entender o mundo como o turrão de "Manhattan". "
"Ainda que a vida aqui mantenha voláteis nossos amores e certezas, quase como num suspense, "Igual a Tudo na Vida" não é um filme distópico. Pelo contrário, é um encontro com a vida, como nos diz a bela citação que Dobel faz de Tennessee Williams: o oposto da morte é o desejo."
Paulo Santos Lima, para a Folha Ilustrada
sexta-feira, 5 de agosto de 2005
capítulo 4: dancing along the edge
Menina tímida, quieta, Lídia sempre despertou a preocupação de seu pai. Este, nos poucos momentos em que podia ficar em casa, gostava de ir ao quarto dela e conversar um pouco. Fazer perguntas simples, saber como estava a vida, a escola, os amigos. Sentia-se um pouco intruso, já que não passava muito tempo com ela e não a conhecia profundamente. Mas, mesmo assim, insistia em fazer-lha agrados, sendo o mais natural possível, para não parecer que a estivesse comprando com migalhas.
A garota entendia o pai. Sabia de suas responsabilidades e tentava agir com naturalidade quando ele se aproximava. Para falar a verdade, encarava esses momentos como se fossem um refúgio do cotidiano opressor com a sua mãe. Via nele uma salvação, oxigênio para continuar.
Há pouco tempo, Lídia se tornara ainda mais fechada. Por iniciativa da mãe, a filha começou a se tratar com um psiquiatra amigo da família materna, que logo receitou alguns medicamentos que tiravam toda a pouca iniciativa da menina. A pequena fazia o caminho para a escola, voltava e não conseguia permanecer acordada por muito tempo em casa. Era deitar no sofá da sala que caia em sono.
E ela gostava de dormir. Assim, raciocinava, permanecia mais tempo longe de tudo. Todos os dias de manhã, quando o despertador insistia em tocar, Lídia tinha que pensar no pai para poder se levantar. Se não, dormia para sempre. Hibernaria e mesmo no maior verão possível continuaria dormindo. Por isso, focava o pensamento às 7h no pai. Não queria deixá-lo triste, o pai não merecia. Lembrava dele sentado na beira da cama, acariciando sua cabecinha, seus cabelos macios, dando um beijo antes de se retirar. Ela não teria coragem de desapontá-lo.
A aversão que Lídia sentia pela mãe piorou um determinado dia. Era de tarde, a filha contou à mãe que iria ao cinema. Mas a sessão estava lotada e, por isso, teve que voltar antes do previsto para casa. Pegou o elevador até o andar da família, caminhou vagarosamente pelo corredor longo, frio e mal-iluminado, escutando suas passadas, como se andasse em câmera-lenta. Olhava para baixo, para os próprios pés, balançava as chaves procurando a correta para abrir a porta. Chegou em frente de casa, girou a maçaneta e encontrou a mãe parada com o olhar assustado junto de um homem que nunca vira antes. Lídia não reparou no sujeito além de perceber que era grisalho. A mãe ficou estática olhando a menina, enquanto ambas empalideciam em conjunto. Se não fosse esse olhar de espanto a garota nunca desconfiaria de nada. Mas bastou que elas ficassem quietas por milésimos de segundos para Lídia entender tudo.
O pequeno coração disparou e o barulho da sístole e diástole a ensurdeceu. O grisalho se despediu cautelosamente da mãe e Lídia não tirou os olhos da mãe. Pareciam conectadas e enraizadas ali, a mãe com um olhar de raiva gelada, uma combustão fria, transferindo toda a culpa para a filha, estática, perdida com pensamentos desconexos, confusos, que não formavam nenhuma frase, não emitiam nenhuma ordem. O homem foi embora, Lídia entrou, a mãe fechou a porta.
Agora, hoje ou ontem, Lídia decidiu não tomar o remédio e teve a coragem que sempre duvidou ter. Deixou um recado para o pai na escrivaninha pedindo perdão, mas explicando-lhe que não era capaz, que não agüentava mais, era o seu limite. E foi caminhar no umbral da varanda.
terça-feira, 2 de agosto de 2005
"Baudelaire disse que a surpresa e o espanto são as características básicas de uma obra de arte. É o que penso. Camus diz em "O Estrangeiro" que a razão é inimiga da imaginação. Às vezes, você tem de botar a razão de lado e fazer uma coisa bonita" - Oscar Niemeyer
Já ouvi muita gente dizer (confundir) que o objetivo da arte (se é que há objetivo) é chocar. Ou, a diferença entre objeto comum e o artístico, seria o choque. Ao encará-lo ficaríamos petrificados, paralisados ante a sua originalidade, a sua beleza, ou qualquer outro adjetivo que pudesse ser encaixado aqui.
Fiquei alguns dias pensando nisso. Não sei se conseguirei definir o que eu considero arte, nem acho que caiba alguma consideração restrita. Algumas coisas permearam as minhas elocubrações e, hoje, me deparei com o Jabor que, resumidamente, fala sobre como a podridão é valorizada, hoje, como arte. Não tenho como contra-argumentá-lo. Nem é a minha intenção. Apenas, talvez, corroborá-lo.
Acho que a definição de arte só poderia ser dada com idéias de alto caráter interpretativo e relativo como estas: a capacidade de causar espanto com a beleza.
Tive essa idéia olhando para um pôr-de-sol (será que foi um pôr-de-sol? já não me lembro mais. Mas o exemplo serve à exatidão). Era belíssimo. Ficaria ali horas observando-o. Nada mais importava, sentia-me em paz, tranqüilo. Aquilo era harmonia (isso não quer dizer que a arte deve priorizar apenas a harmonia).
Em seqüência, quando o sol já havia se posto, pensei que cada vez menos pessoas reparam em objetos / cenas belos (as). Ninguém dá a menor importância para isso. Imaginei o caráter apenas quantitativo que impera nos relacionamentos homem-mulher atualmente. Não se perde mais tempo conferindo os detalhes da sua parceira (o). Basta consumi-la. (Não vou falar sobre sociedade de consumo, podem ficar tranqüilos.)
Beleza seria o objeto capaz de provocar espanto. Fazer-nos abrir a boca e perder o rumo.
Mas acho que devo desenvolver melhor isso...
sexta-feira, 29 de julho de 2005
capítulo 3: o advogado controverso
Edvaldo nasceu numa família humilde. Classe média-baixa, se quisermos usar um padrão universal. Cresceu em um bairro do subúrbio, mas mantinha-se distante dos garotos de sua idade. Agia dessa maneira involuntariamente, não se sentia superior, diferente ou melhor. Na verdade, não pensava sobre isso. Apenas gostava de ficar em casa, brincando com seus próprios bonecos e nunca suspeitou que poderia abrir a porta e ter um mundo amplo lá fora.
Com esforço de todos os parentes, se formou na advocacia, profissão que sempre achou boa. Boa mais no sentido altruísta do termo que no egoísta. Edvaldo pensa assim: todos deve ter direito aos mesmos direitos; ninguém pode ser tratado diferentemente só porque nasceu em outro lugar, tem um nariz mais abrutalhado, ou porque é pobre.
Aprendeu essas idéias igualitárias na faculdade. Repetia esses preceitos para si mesmo como mantras. Entendeu-os como por osmose. Pensava que todo advogado deveria ser humanista, acreditar no seu semelhante, defender a espécie. Escutou os melhores professores, os profissionais mais reconhecidos pelo mercado, falando exatamente isso. De alguma maneira, associou a solidariedade com o sucesso.
Já participou de discussões porque não concordava com nenhuma proposta - que ele chamava de - radical. Não via como a pena de morte pode ser produtiva, por exemplo. Para ele, era quase um contra-senso em termos. Em primeiro lugar, sempre morreria mais gente inocente que os verdadeiramente culpados. Não adiantavam falar-lhe que há alguns criminosos que não se recuperariam na cadeia. Ele repetia a mesma ladainha: os homens devem pagar vivos pelos seus crimes.
Entretanto, por mais incrível que possa parecer, lá dentro, no seu íntimo mais profundo, Edvaldo não consegue confiar em ninguém. Acha a humanidade fadada ao fracasso. É um sentimento fatalista, ele sabe, mas não deixa de pensar que somos animais gananciosos, que não nos contentamos com o que temos e podemos fazer tudo para alcançar aquilo que queremos. Era por isso que nós nos movemos. Mas o caminho a que isso está levando a humanidade é totalmente catastrófico.
Para provar suas teses, Edvaldo decidiu defender um criminoso da pior estirpe. Um deputado que fez sua fortuna com o tráfico no Norte do país e que matava com requintes de terror quem dificultasse o seu caminho. Se por um lado, Edvaldo acha que todos têm o direito à defesa, por outro, ao auxiliar o que de pior há na humanidade, ele provaria também que o homem pode fazer tudo por poder, ambição ou dinheiro. Ou para simplesmente provar uma idéia.
Pela atitude improvável, chamou a atenção da mídia que o transformou no foco da discussão das elites. Trabalhou incansavelmente, virou noites em claro para achar falhas no processo e as encontrou. Por obra de Edvaldo, o tal criminoso ganhou as ruas como um sujeito inocente.
Contudo, Edvaldo não sobreviveu muito tempo para continuar sua catequese. Mas, se pudesse, ele agradeceria o seu assassino: este também comprovava sua tese.
quinta-feira, 28 de julho de 2005
> Hoje, no trabalho, só quis escutar música dos anos 80: The Killers, The Bravery e The Chameleons.
> Não parece uma escala de décadas? The Strokes, The Libertines, Franz Ferdinand, Bloc Party. (Repararem: há um gap temporal ali, entre os Escroques e os Libertinos).
> Por que diversas bandas novas optaram por ter o 'THE' na frente?
> Hot Fuss deveria ser o segundo CD do Interpol?
> Há alguma banda realmente original? Já houve? Isso importa?
terça-feira, 26 de julho de 2005
Durante toda a minha vida, tive uma certeza: o pior filme publicitário já produzido no Brasil era o das Perucas Lady, tá? (Reparem que o site também é HORRÍVEL). Mas, ultimamente, passa no horário do Globo Esporte, uma propaganda que é de deixar qualquer um constrangido. Começa assim:
Algumas pessoas correm (fingindo pessimamente) como se disputassem uma competição. Quando o primeiro colocado passa pela corda e levanta os braços o off manda: "Aqui vc gasta a energia". A cena corta, pessoas comem um torrone, off: "Aqui vc repõe". E - assustadoramente - entra a música mais horrorosa da história: "torrone é, é, é Montevérgine / torrone é, é, é Montevérgine". Vergonha...
ps. Na saída do meu trabalho, diariamente, encaro um galhardete ridículo de uma loja de aluguel de roupas chamada Avec Elégance. Primeiro que o nome me remete àquela música do Lobão ("Decadence avec elegance"). Depois que o galhardete é mal plotado, com as figuras pouco nítidas. E, por último, os modelos são HORRÍVEIS, feios de dar dó.
Não deve ser muito difícil fazer uma publicidade mais ou menos né?
sexta-feira, 22 de julho de 2005
Série personagens fictícios
capítulo 2: a policial
Bianca, apesar do nome, tem a pele morena. Os cabelos negros, as feições abrutalhadas, o nariz adunco e as sobrancelhas espessas. O corpo é bem feito: seios fartos, cintura fina, bunda generosa. É impossível não percebê-la em qualquer ambiente, seja pela opulência ou pela impetuosidade.
Rouba qualquer cena. Fala alto, não se importa com olhares. Sente-se segura, confia em si, em alguma coisa dentro dela, ou no coldre dentro da bolsa, e não esmorece ante os críticos ou aqueles que prezam pela discrição.
Em certos momentos, atinge a grosseria. Conversar com ela é complicado porque entremeia as frases com insultos gratuitos. Parece um menino, no sentido mais masculinizado de tal comparação, sem ser lésbica. É abrutalhada no tratar com pessoas. Ao cumprimentar, dá tapas nos ombros. Não sorri, gargalha. Exagera nos atos, esbarra nas pessoas sem pedir desculpas. Não fala, grita.
O último namorado, arranjou na corporação. Já terminaram, ele acabou. Mas quando ainda estavam juntos, Bianca amolecia. Até hoje, ao avistá-lo, transforma-se num canário recém-nascido. Desprotegida, inocente, perdida. No relacionamento, ele mandava, ela obedecia. Sem discussão. Ela se transformava por completo. Não interagia com os amigos da faculdade noturna de direito, finda a aula, ia embora. Sem conversa, sem chopinho. Passou longos períodos sumida.
O pai era também policial. Bianca adorava ir ao jardim zoológico com ele nos fins de semana. Ou brincar no play do prédio. Ou ainda quando ele a levava no colégio. O pai, apesar de todos os contratempos, era extremamente dedicado às duas filhas. Trabalhava demais, mas sempre conseguia reunir forças para poder ir à praia com elas, por exemplo. E fazia questão de almoçar em casa, à mesa, com toda a família reunida, as vezes que podia.
Ao ficar um pouco maiorzinha, Bianca acostumou-se a esperar o pai na sala, deitada no sofá. Quando ele demorava a chegar, chorava. Sofria aos poucos. Primeiro era quase um mio imperceptível, baixinho, mas que aumentava de intensidade enquanto o pai não aparecesse. Todas as noites eram iguais: quando ela ouvia a maçaneta da porta, corria pela sala e, num pulo, se agarrava ao pescoço do pai.
Num dia longo, porém, ela não parou de chorar.
quinta-feira, 21 de julho de 2005
"Só acredito nas pessoas que ainda se ruborizam."
"Acho a velocidade um prazer de cretinos. Ainda conservo o deleite dos bondes que não chegam nunca".
"Todo tímido é candidato a um crime sexual".
"Deus prefere os suicidas".
"A ficção, para ser purificadora, precisa ser atroz. O personagem é vil para que não o sejamos. Ela realiza a miséria inconfessa de cada um de nós".
"(...) Resta que a decisão nos parece ser o fruto de nosso capricho, o que é incômodo: preferiríamos não ter de invocar apenas nosso desejo como razão de nossa escolha. Portanto pedimos tempo para pensar (e justificar). O diabo é que, freqüentemente, quem quer encontrar argumentos que autorizem todas as suas escolhas transforma a vida numa série de extenuantes reflexões preliminares.
Resumo: parodiando Hamlet, o tempo para pensar nos torna, às vezes, um pouco covardes."
Contardo Calligaris - FolhaSP de hoje
quarta-feira, 20 de julho de 2005
Lembro de duas formas de castigo que minha mãe me dava involuntariamente. Uma delas era marcar horário no salão de beleza. Outra, quando íamos visitar meu vô, que mora na rua Teresa, em Petrópolis, lá no Alto da Serra, acompanhá-la na subida. Ela entrava em cada buraquinho disfarçado de loja perguntando sobre preços, tamanhos, estilos, cores, etc... Para percorrer um percurso de 1,5 km, no máximo, demorávamos três, quatro horas até.
Não sou freudiano ao ponto de achar que a minha aversão completa por compras de qualquer natureza venha daí. Mas, seria curioso colocar todo o meu comportamento num "trauma de infância".
O certo é que tenho verdadeiro HORROR às atitudes simpáticas de vendedores. São sempre os seus melhores amigos, mesmo que vc o tenha conhecido há poucos instantes. Sabem o que fica melhor em vc, ou o que é o melhor para vc.
É o arquétipo da falsidade. Eles pouco se importam com a sua opinião. Perguntam o seu nome simplesmente porque a conduta da loja acha que assim vc, comprador-otário, vai se sentir sendo atendido por um camarada. Então, o sujeito (ou a sujeita) estampa os seus dentes, faz caras e bocas, opina, puxa conversa, ri das suas piadas sem graça, enfim, tudo para vc se sentir tão à vontade que, por que não?, compra mais um pouquinho, gasta além daquilo que vc está disposto.
Trabalhei apenas uma vez sozinho nos EUA de garçom. Foi uma das experiências mais ridículas da minha vida. Talvez tenha sido um dia ruim, não tenho como fazer uma amostragem para saber que todo dia seria daquele jeito. E, também, como estava debutando, é claro que tudo era pior, ou pelo menos, superdimensionado por mim.
Houve diversas cenas vexaminosas, mas uma em específico funciona exemplarmente.
Um garoto extremamente mirrado entra no restaurante, roupas largas, boné para trás, malandro hip-hop americano. É acompanhado de um amigo e duas meninas e roda a chave do carro no dedo. É claro para mim que ele não tem 18 anos e fico na dúvida se ele tem os 16 necessários nos Estados Unidos para dirigir. Como havia aprendido, aproximo-me, entrego-lhes os talheres, igual ao manual, pergunto se querem beber alguma coisa e não entendo o que um deles responde. Inquiro novamente e logo ele percebe que não sou americano.
Pergunta-me: "vc é de onde?". "Brasileiro", respondo. E a partir daí qualquer das minhas falas é motivo para ele rir sem parar. Como se eu fosse um miquinho amestrado que ele mostra para as suas amigas. Viro a chacota. Tudo é razão para galhofas. Pede-me para falar um palavrão na minha língua e acha estranho quando não quero falar. Insiste tanto - e eu pensando no manual "o cliente sempre tem razão" - que pronuncio. Não me lembro o quê. Ele continua: quer a tradução. Para mim é humilhante demais. O meu sorriso sai, o meu maxilar fica imóvel. Ver um moleque completamente ignorante da minha situação querendo se exibir para suas meninas chafurdando em cima de mim é a minha completa desgraça.
Eu sei que qualquer um que ler o parágrafo acima pode achar minhas reações exageradas. Não quero que se comparem nem se coloquem no meu lugar. As palavras talvez não traduzam totalmente a situação por demais escrota. Provavelmente faltem detalhes para demonstrar por completo o ambiente em que tudo estava inserido. E, principalmente, considero que há diferenças de opiniões quanto às humilhações. Considero-me bastante suscetível a esse tipo de incidente.
A minha intenção, entretanto, é outra. Apenas demonstrar o meu total ASCO nas relações de venda de uma maneira ampla - tanto de um lado quanto de outro do balcão - e geral - nada contra um vendedor em específico. Assim como, por exemplo, tenho ABSURDAS restrições aos médicos, mesmo que considere alguns, em específico, de tamanha importância, vendedores se comportam de um modo (falso) que é o oposto daquilo que concebo como ideal para a minha vida. Por mim, morriam de fome.
segunda-feira, 18 de julho de 2005
Se todas as versões oficiais forem verdadeiras (o que é muito difícil), essa corrente de escândalos que alcança proporções inimagináveis, que ameaça a reeleição do Lula, se iniciou por uma picuinha pessoal. Senão, recapitulemos.
O estopim de tudo foi a gravação de um "petequeiro" (no linguajar de Roberto Jefferson) dos Correios recebendo três mil reais de propina para favorecer uma empresa numa licitação. Através da CPI dos Correios, descobrimos que foi um empresário de Brasília que fez a já lendária gravação. O intuito do empresário era desmoralizar o comprador da estatal e então conseguir também vender alguma coisa para ela. O problema é que o tal comprador (cujo nome, Maurício Marinho, é até difícil encontrar no google) sem querer falou o nome de Roberto Jefferson. Daí em diante, vc já sabe toda a história.
Aliás e a propósito. Só para constar: se a corrupção começou com denúncias de propinas dos supracitados R$ 3 mil, já se cogita a respeitosa cifra de R$ 2 bi. Nada mal para um país subdesenvolvido.
sexta-feira, 15 de julho de 2005
capítulo 1: o médico incompetente
Edgar sempre fora o principal aluno das suas turmas, desde o primário. Não fazia nenhum esforço para ser o melhor. As notas esbarravam no máximo. Os alunos, no início, o cobiçavam, depois, tenderam à inveja. Edgar mostrava-se superior (ou indiferente) a tudo. Para ele, todas as conversas sobre assuntos menores que aqueles que ele considerava importante, eram balelas. Reunidas num saco e jogadas fora antes mesmo de conferi-las.
Para falar a verdade, Edgar menosprezava os outros. Sentia-se tão acima da humanidade que não se importava com as declarações que lhe dirigiam. Seguia em frente. Era blasé, distante, de certa forma frio. Incomodava-se com nada.
Estudou medicina, mas poderia ter optado por qualquer outra profissão. Seria bem sucedido, estava escrito. Já na universidade, demonstrava a sua capacidade de assimilação de conteúdo de maneira enciclopédica. Fazia ligações entre o conteúdos explicados que eram incríveis, sabia diagnosticar doenças impensáveis, tinha interpretações surpreendentes, lembrava de detalhes dos textos, recitava-os despreocupadamente em voz alta para a humilhação do interlocutor. Os professores o adoravam. Os alunos, alguns o admiravam, outros, os menos afoitos ao estudo, não o suportavam.
Ao formar-se, encontrou a mulher da sua vida. E esse encontro logo surtiu efeito nele. Aline não fora sua primeira mulher, mas com ela, Edgar pensou em se casar. O incrível é que ela era extremamente diferente dele. Se ele era racional, ela era emotiva. Se ele era teórico, ela era prática. Se ele era um frio, ela era passional. Os mais chegados perceberam os efeitos, viram como ele se transformou num ser mais humano próximo dos outros.
Quando estava longe dela, entretanto, Edgar ainda era praticamente o mesmo. No hospital, arremessava diagnósticos sem nenhum tipo de contato com os pacientes. Não lhes dirigia a palavra, não conversava, não queria saber como se sentiam. E, surpreendentemente, sempre acertava. Por mais que não valesse da sua própria humanidade para saber como os outros se saíam, por mais que se mantivesse à distância, ele conhecia tão bem o corpo humano por estudos com cadáveres e em livros que ele processava todas as informações e desenvolvia uma receituário infalível quase instantaneamente.
As pessoas vinham lhe agradecer e ele sempre ficava constrangido. Não via nenhum motivo para isso. Queria ficar longe delas. Continuar fazendo aquilo que ele estuda e estudou tanto para fazer, ou seja, curar pessoas. Não era nada demais o que ele fazia. Quando ele consertava o carro, por exemplo, não ia dizer "obrigado" ao mecânico. Ele não fez mais que o seu trabalho. No máximo, dava uma gorjeta. O trabalho deve ser desempenhado à perfeição ou não deve ser feito.
Quando já beirando a idade que chamam de madura, sua mulher adoeceu. Ele, já um médico reconhecido internacionalmente, pediu para tratar do caso. E mesmo que não tivesse feito o pedido, seria indicado porque era realmente o melhor. No início, pensou que seria mais um de seus pacientes. Então, não conseguiu evitar a obviedade, e o pensamento assombrou à sua mente. Era a sua mulher, ali, deitada. Mesmo assim, não devia se envolver, repetiu para si mesmo. Receitou, como sempre, revisitando suas anotações mentais, uma série de procedimentos. E, pela primeira vez, não deram certo. Pelo contrário.
Aline queria falar com ele. Edgar não sabia como lidar com isso, a mulher queria falar-lhe. Deitada sobre a cama, coberta pelos lençóis brancos, usando aquela roupa ridícula, ela seria sua mulher ou mais uma paciente? E por qual motivo seus métodos não surtiram efeitos? Edgar se confundira. Nada era mais claro. Isolou-se, deixou-a sozinha, não deveria se envolver, tinha que curá-la. E isto não queria dizer envolvimento, nunca quis, não poderia deixar-se contaminar, ele sabe a resposta, é óbvio, qualquer um pode enxergar, está na sua frente, tem que estar. Nada o impede, ali na frente, é só abrir os olhos, mas por que agora não vê nada?
Mas nada deu certo dessa vez.