“Quando surgiu, o cristianismo
se valeu da imensa vontade de suicídio que havia entre as pessoas. Imagine
viver em uma época em que não havia qualquer conforto. Viver era um terror, era
uma constante privação, era um eterno sofrimento. O cristianismo fez desse
desejo pela morte, pela auto-aniquilação, uma alavanca para o seu poder:
carregou de culpa, de uma espécie de pré-culpa, uma culpa de algo que você nem
fez, mas que pensou em fazer, de uma culpa pelo pensamento – o cristianismo foi
um mestre em culpar o pensamento, até o mais inocente dos pensamentos –,
carregou de culpa todos os tipos de suicídio, multiplicando imaginariamente a
sensação do incômodo do real, da vida real na cabeça das pessoas, trabalhando
com a fantasia, com a criação de cada uma das pessoas para que elas soubessem,
ou imaginassem, ou vivenciassem o que seria, como seria a vida delas caso se
matassem, caso eles interrompessem suas vidas, caso eles tomassem uma atitude
contrária ao dogma pregado. E o que eles viram era pior que choro e ranger de
dentes.
“Os homens viviam
constantemente agoniados, porque não conseguiam enxergar uma saída, porque
estavam sempre vivendo vidas miseráveis e convivendo com o sofrimento alheio. A
única forma de se aliviar era a Igreja, era a confissão, era o desabafo no
ouvido do padre que, dessa forma, tinha acesso a todos os segredos da
comunidade, e portanto poderia controlar o que acontecia porque conhecia os
mais íntimos segredos de cada um dos habitantes de seu vilarejo. Tinha acesso à
informação, e não podia contar a ninguém, porque a confissão deve ser secreta.
Mas, em uma posição privilegiada, o clero podia controlar as demais pessoas – e
era o que acontecia.
“Para falar a verdade,
a igreja não negou todas as possibilidades de suicídio: negou todas as
possibilidades de saída, de escolha, de decisão. Porque ela manteve duas formas
de suicídio, apenas duas, e as revestiu das mais altas esperanças e da mais
importante dignidade: o martírio lento e o aniquilamento dos ascetas.
“Em todas as
religiões, o homem religioso é uma exceção. A oração foi inventada pelos homens
que nunca tiveram pensamentos próprios. Não sabem o que fazer nos momentos
importantes de suas vidas, nos momentos mais elevados, quando eles percebem que
deveriam se comportar com alguma dignidade. Eles não sabem o que fazer. Foram anos sendo catequizados para não pensar
nada além do que era autorizado. Doutrinados para apenas repetir, para ser o
moto-contínuo, para repetir o que vinha de trás e jamais colocar a cabeça para
fora.
“Os fundadores das
religiões, para evitar maiores problemas, criaram a oração como forma de
doutrinar o pensamento, adestrar o homem comum, o homem do bando, o homem da
manada. A oração é a etiqueta do pensamento. É a cela vazia, é o caminho
estreito, é a repetição que esvazia o raciocínio. É o dizer sem querer dizer, é
o afirmar sem ter completa noção do que se está falando. Proibir ao homem menor
de dizer suas orações seria roubar-lhes suas religiões.
“Quando encontramos a
defesa da moral, quando ouvimos das pessoas a necessidade de moralizar as
ações, quando percebemos que há um anseio por uma doutrinação, estamos
escutando os argumentos do pensamento de rebanho. Quando há um argumento de que
a necessidade da maioria é mais importante que a vontade de um único indivíduo,
que esse único indivíduo deveria baixar a cabeça, não voar mais alto, porque,
por outro lado, estaria atrapalhando o funcionamento de todo o grupo. O pensamento
de rebanho é um pensamento de preservação da espécie, que não afirma a vida em
todas as suas possibilidades. Limita o ser humano até onde ele acha que pode ir,
para não atrapalhar, para não despertar a inveja dos demais, para não desestabilizar
a ordem, a falsa ordem que falsamente organiza o rebanho. Pela moral, o
indivíduo é instruído a viver em função do rebanho. Quando o indivíduo sai de
um rebanho e vai para outro, deve se aclimatar às novas morais. Ele sempre é
limitado, ele sempre se deixa limitar, sempre se diminuindo, se apequenando
pelo seu entorno, não tentando encontrar o próprio caminho, descobrir qual é o
seu verdadeiro tamanho, perceber a direção para onde o seu vento sopra, qual é
o formato de sua pegada. A moralidade é o instinto de rebanho no indivíduo. Por
isso, sou contra toda a moral, sou amoral, sou a favor da ética.
“Faça aquilo que você
acha que deve fazer, e tenha coragem e força para aguentar todas essas
consequências. Não pense que elas te trazem apenas felicidade imediata, elas
têm consequências, mas apenas o homem sem visão, o homem míope, que joga com as
regras de outras pessoas em vez de impor as próprias, pensa que essas
consequências podem ter uma conotação – seja negativa ou positiva. Elas apenas
são. Nada além disso. Acontece o que tem que acontecer. Não é um destino, é o
inverso. Não existe a possibilidade de fazer algo diferente do que aconteceu. Não
é possível voltar, não é possível retornar e tomar outra oportunidade. Assim
que se tomou uma decisão, vá em frente, siga adiante.
“O mundo dança entre
os dois polos e nunca podemos congelar um instante. Estamos em constante
mutação. Pensar que um momento ruim é ruim apenas é não perceber que até os
momentos ruins têm coisas boas, assim como o inverso. O bom tem dentro de si o
ruim, como o seu inverso, como se fosse uma bola, um círculo, um grande cubo em
que as características estão constantemente misturadas, e são, em si,
mescláveis, podem ser uma coisa e logo são outras, e elas podem se transformar,
e elas são diversas coisas ao mesmo tempo, sempre mudando, nunca podendo se
congelar o momento.
“Imagine uma ampulheta
que em vez de duas meias-bolas tivesse apenas uma e inteira e que estivesse em constante
mutação, em constante movimento. E que cada grão de areia não fosse apenas
areia, mas a antiareia, o inverso da areia, e todos os estados fluidos entre a
areia e a antiareia. E conforme a bola-ampulheta se movimentasse, porque é
impossível ficar parado, nada fica parado, tudo está em constante movimento, os
grãos mudariam a todo momento de areia para antiareia, passando por todos os
estágios intermediários.
“A pior coisa que a Revolução
Francesa fez foi matar o Lavoisier, que conseguiu resumir em uma frase o que eu
quero dizer: nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Foi acusado logo
pelo Marat, pelo Marat, que é mais conhecido fora da França por aquela pintura do
Jean-Louis David, de quando ele foi morto pela partidária dos girondinos; pois bem,
Lavoisier foi acusado de vender tabaco de baixa qualidade! O grande cientista foi
acusado de vender tabaco de baixa qualidade! Foi guilhotinado. Perdeu a cabeça.
O curioso, o curioso nessa história é que Marat, um jacobino, extremista,
morreu antes, quase um ano antes. E sua morte desencadeou o período do terror,
que você sabe melhor que eu como aconteceu.
“Outra curiosidade é
que essa mesma máxima, que ninguém sabe realmente se foi dita pelo Lavoisier,
mas que ficou associada à figura desse homem morto na guilhotina por causa de
tabaco de má qualidade, é que mesma essa frase, também não é uma criação sua,
mas uma transformação de outra, de um grego chamado Anaxágoras, que dizia que ‘Nada
nasce nem morre, as coisas já existentes se combinam e depois se separam’. É curioso
que mesmo a frase, mesmo essa coisa simplória como uma frase, um pedaço de
código, uma sentença perdida, uma combinação quase aleatória de palavras, nem
isso pode ser original, não é novo, não aparece, não brota da terra, não
não-existe e depois existe, ela sempre existiu e vai mudando, vai se adaptando,
vai se encaixando aos ouvidos de seu tempo, os ouvidos que nunca querem
escutá-lo, que se tapam, que criam pálpebras para evitar que as palavras estranhas,
palavras que possam modificar, que possam desestabilizar, que deixem o chão
mexido, que trema sua vida, para impedir que esse tipo de palavra entre, para
impedir que as palavras que poderiam ir contra à ordem, à moral, ao rebanho,
que pratiquem a tentação. Como a história da maçã.
“Lúcifer foi o único
anjo que desafiou Deus. Lúcifer vem do latim lucem ferre – aquele que suporta a
luz. Era assim como os romanos, herdeiros da tradição grega, que não respeitava
uma moral que impunha a vergonha da culpa, era assim que os romanos chamavam Vênus,
o planeta que anunciava o sol, o arauto de um novo dia. É fácil. Luz, sol = Deus.
Lúcifer, aquele que o anuncia, aquele que o suporta, aquele, que, de certa forma,
vem antes, que é mais forte, Lúcifer = antideus, ou, pior, Lúcifer > Deus.
Não poderia dar certo.
“O homem tinha que ser
doutrinado a não desafiar deus, e, por consequência quem fosse o portador de
sua mensagem. Por isso, mostrou-se, foi imbuído nas mentes de todas as pessoas
que por conta da Eva, da mulher, coitada, que aceitou a maçã-proibida, da
árvore proibida, todos agora sofreríamos. Essa passagem é tão forte que dá para
vê-la por dois pontos cruciais. Primeiro se propõe que estamos pagando uma
conta que não é nossa, mas que, por conta de uma semelhante, e logo a mulher,
que é mais forte, que naturalmente aguenta mais as dores, que carrega dentro de
si as gerações seguintes, que é a responsável pela prole, portanto a mais
perigosa dos seres, já que pai do filho nunca é óbvio como a mãe o é, portanto que
deve ser combatida, diminuída, humilhada, colocada por baixo, sobre todas as
responsabilidades do mundo, a mulher, por conta dessa mulher, nós sofreríamos,
nós não viveríamos mais – e eu sublinho essa palavra – num paraíso –
incrível como a palavra aqui parece se encaixar perfeitamente, mas que não diz
muita coisa, já que não sabemos o que era esse paraíso, ou essa definição é uma
definição moral, datada à moral de uma época e não algo atemporal, ética.
“Além dessa culpa que
amarra, que acorrenta na perna uma bola de ferro, que prende a uma masmorra,
além disso, essa mesma anedota, esse mesmo conto propõe ainda uma atitude
passiva, que seja contrária à ação, que se espere que aconteça, que viva sobre
a influência de deus e de seus mensageiros, de seus enviados, que são
escolhidos pelos seus superiores, sob que tipo de critério, não sabemos, e sob
quais circunstâncias, podemos apenas intuir. Portanto o homem e principalmente
a mulher devem se martirizar pela pretensa burrice de si mesmo – porque quem
garante que você também não cairia em tentação? – e deve esperar os padres da
igreja para tentar se resguardar para, talvez, um dia, entrar novamente nesse
paraíso perdido, nesse lugar idílico que é, por si, totalmente moral.
“Em vez disso, por que
não se orgulhar da decisão de Eva, que queria pensar maior que o paraíso lhe
permitia? Por que não perceber em Eva a primeira mulher, a primeira pessoa que
desafiou uma moral estabelecida? Que queria apenas saber como era algo que não
conhecia? E nem vamos voltar à questão de Lúcifer, que caiu porque desafiou
esse deus todo poderoso, que não aceita nem o diálogo. Não me assusta que as
ditaduras tenham uma inclinação ao catolicismo.
“Quando nasceu,
Zaratustra sorriu e por isso o sacerdote da vila mandou o pai dele matá-lo.
Onde já se viu uma criança sorrir em vez de chorar ao nascer? E o pior: o seu
pai o colocou na fogueira. Mas ele não se queimou. Depois, colocou a criança
para ser pisoteada por uma manada de bois, mas um animal o protegeu. Depois, o
colocou no meio da floresta, mas Zaratustra sobreviveu a tudo.
“Antigamente, o que
havia de pior era viver isolado, porque queria dizer que era quase a morte.
Hoje, com toda a nossa tecnologia, isso chega até a ser engraçado, mas se você
pensar que houve um tempo em que as pessoas dependiam uma das outras para tudo,
para trabalhar na lavoura, para construir novas casas, para costurar roupas,
para combater os invasores, se tem acesso ao motivo pelo qual a moral nasceu. O
homem abria mão de sua liberdade, de seu sentimento de poder fazer o que ele
bem queria para viver dentro dessa sociedade. A moral, portanto, sempre nivelou
por baixo, sempre se prestou ao mais baixo nível para que todos estivessem
incluídos.
"Imagine um mundo em apenas de duas dimensões –
você pode escolher quais dimensões quiser: comprimento, profundidade, altura,
qual você quiser, mas só duas. Imagine um mundo só com comprimento e
profundidade, sem altura, por exemplo. Tudo é completamente raso, plano, não
existe nada acima de nada, não existe o abaixo, todo mundo só vive em duas
dimensões, são totalmente comprimento e profundidade, só isso e nada além. E
então, um dia, chega um helicóptero, um objeto voador, algo que não está dentro
do que as pessoas estão acostumadas. É sobre isso que estou falando.”