O mundo proclamou a liberdade, sobretudo ultimamente, e eis o que vemos dessa liberdade deles: só escravidão e suicídio! Porque o mundo diz: 'tens necessidades e por isso satisfaze-as, porque tens os mesmos direitos que os homens mais ilustres e ricos. Não temas satisfazê-las e até procura multiplicá-las' - eis a atual doutrina do mundo. É nisso que veem a liberdade. E o que resulta esse direito à multiplicação das necessidades? Para os ricos o isolamento e o suicídio espiritual, para os pobres, a inveja e o assassinato, porquanto esses direitos foram concedidos mas ainda não se indicaram os meios de satisfazer as necessidades. Asseguram que, quanto mais o tempo passar, mais o mundo irá unir-se, irá constituir-se num convívio fraterno porque isso reduz as distâncias, transmite as ideias pelo ar. Ai, não credes nessa união dos homens. Compreendo a liberdade como a multiplicação e o rápido saciamento das necessidades, deformam sua natureza porque geram dentro de si muitos desejos absurdos e tolos, os hábitos e as invenções mais disparatadas. Vivem apenas para invejar uns aos outros, para a luxúria, a soberba. Dar jantares, viajar, possuir carruagens, posição social e criados escravos eles já consideram uma necessidade, e para saciá-la sacrificam até a vida, a honra, o amor ao homem, e até se matam se não conseguem saciá-la. Vemos a mesma coisa naqueles que não são ricos, e entre os pobres o não saciamento das necessidades e a inveja ainda são abafados pela bebedeira. Em breve, em vez do vinho haverão de embebedar-se com sangue, para isto estão sendo conduzidos. Eu vos pergunto: esse homem é livre?- Stárietz Zossima, hieromonge guia espiritual do protagonista Aliócha, in DOSTOIÉVSKI, F. - Os irmãos Karamázov. Editora 34: São Paulo. Tradução (brilhante) de Paulo Bezerra, p. 426
quinta-feira, 28 de dezembro de 2017
Liberdade, liberdade
sábado, 9 de dezembro de 2017
O show e o show do Baiana System no Circo Voador
A começar: o que Russo Passapusso e companhia fazem é extrair o sumo do que é mais potente da música já produzida no país e no mundo. Uma nova geração da nossa antropofagia, sim, que já passou pelo tropicalismo, pelo BRock e por gente tipo Chico Science. Ou seja, é dos produtos artísticos mais potentes que se pode ter. Vai do heavy metal ao pagodinho. Do carnaval ao baile funk, passando pelo dub, pelo reggae, pelo hip hop. Um grande liquidificador que nos impede de rotulá-lo com facilidade.
Há também toda uma preocupação estética com projeções e interações que me lembrou aquela reclamação do Caetano no VMA: é de um cuidado "profissional" que não deixa a desejar a nada ao seu vizinho de noite do outro lado da rua. O grafismo do Baiana faz referência ao funk, ao passinho, ao desenho animado, ao design, tudo, junto.
Mas o grande ponto do Baiana não é a sua parte "exterior". Isso é ainda muito Ocidental, muito moderno. Em uma palavra apenas: branco. No show do Baiana, quem manda é o público - em grande parte negra.
Assim como estamos vendo acontecer em outras produções artísticas, a arte não termina no filme, no livro, na música - o público pode retrabalhar, remixar, remexer, reabrir a obra e a refazer completamente. E a plateia do Baiana sabe que é ela o centro da questão. É uma experiência de corpo político - a mais forte que presenciei desde junho de 2013.
A música existe para alimentar essa plateia, para dialogar, para ser a causa. Não haveria plateia sem música. A música não é pano de fundo, entretanto, está no meio, entre, ocupando todos os poucos espaços vazios. A plateia já criou códigos, formatos de dança, maneiras de se movimentar que correspondem ao chamado do Passapusso. O que é o "furacão", por exemplo?
Até aí, porém, qualquer show de axé chega. O diferencial do Baiana está em dois aspectos entrelaçados: o contato físico e o perigo constante. Foi como se eles conseguissem transferir o ambiente da pipoca do carnaval baiano para dentro de todos os seus shows. Na frente do palco, uma pequena multidão se espreme, se empurra, dança, se sarra, se beija, se esfrega, pula, soca, sua, treme, se afasta, se organiza, se movimenta, tudo isso seguindo a música. É uma roda típica de shows de punk ou metal, acrescida de ginga, de sacanagem, de balanço, de suingue. É um bonde de baile funk, com muitas variações de encaixe e desencaixe.
As únicas constantes: o contato, e, consequentemente, o perigo iminente. Parece que a cada música você vai tomar uma cotovelada esquecida no supercílio, perder o óculos escorregando no suor, desfalecer de calor, ser jogado no chão ou arremessado contra um punho desprotegido, ser carcado por alguém mais afoito ou receber uma rebolada no seu colo sem você pedir. O seu corpo, ali, não te pertence. Há uma perda de individualidade fortíssima. Uma grande suruba com roupa.
Nesse terceiro show do Arcade Fire, era possível entender os paradigmas da sociedade ocidental moderna, que nos empurraram goela abaixo. O seu espaço é a sua propriedade privada: é sagrado. Você chegou antes, a pessoa não pode entrar à sua frente, sem apresentar uma série de justificativas. Existe a posse. Sabemos o nosso lugar e ele deve ser respeitado.
No show do Baiana, a plateia mostra que não há um espaço fixo. Você está em constante desequilíbrio, se apoiando nas cinco pessoas, no mínimo, em quem está encostando ao mesmo tempo. Você está razoavelmente parado, conseguiu uma estabilidade até que a música volta e a próxima roda se abre e as pessoas começam a pular e a se empurrar e a dançar da maneira como conseguem. Você não sabe onde o seu corpo começa, onde ele termina. É violento, é perigoso. Mas é claro que é um perigo em doses muito baixas (vi apenas uma menina sendo levada para fora, porque havia desmaiado de pressão baixa).
E é claro que é nesse perigo, nessa possibilidade de algo dar errado, nesse estar próximo do abismo, a ponto de poder olhá-lo de frente, que reside a potência desse encontro. Não é coincidência que o tio Aristóteles, na sua Poética, falava da necessidade das tragédias gregas antigas em ter um momento de catarse, de expurgação, de eliminação pelo suor, pelo choro, pelo sangue, pelos fluidos. Nem só de Apolo deve viver a nossa veia artística. Tem que ter também, e muito, Dionísio - ou para fazer um paralelo mais a nosso gosto, Exu.
ps. Curiosamente, foi um pouco essa sensação que eu tive em 2005, quando vi um bando de garotos e garotas pularem do palco na plateia, tocando diversos instrumentos, se divertindo, dançando, alegres. Os então jovens músicos do Arcade Fire pareciam que não estavam preocupados com nada além de serem felizes. Se ontem, mais de uma década de experiência depois, eles pareciam já quase representar perfeitamente os papéis que o tempo lhes reservou, lá no nosso primeiro encontro, eles pareciam saber que a arte tem que ter uma dose elevada de perdição. Parecem ter perdido, um pouco, isso.
quinta-feira, 7 de dezembro de 2017
DIVISAS, por Humberto Ádvena
Se eu escrever, se eu tiver essa coragem, o que eu devo fazer após o ponto final? Publico? Publico bem publicamente? Alardeio aos infinitos ventos sem nomes? Ou queimo antes mesmo de ler? Destruo qualquer prova de que um dia algo como um texto possa ter existido? Afinal, para que publicar hoje em dia? Quem lê tanta letra? Não seria apenas uma vaidade das mais infantis? Queimar, mas queimar também: para quê? Para citar tantos outros escritores inéditos? Queimar para não enfrentar a realidade? Queimar por ideal, por não ser perfeito? Esse também não é um dos formatos da vaidade?
Escrever? E escrever sobre o quê? O que me é permitido escrever? Qualquer assunto não é, necessariamente, um roubo? Não estaria eu usurpando a vida de outras pessoas como um sanguessuga para tão somente o meu prazer, a minha exibição, de peito inflado de ar vazio? Aliás, eu tenho autoridade de falar sobre quais assuntos, em especial? Pois é: do que eu sei verdadeiramente falar?
E por que há tanta necessidade de falar, de aparecer, de se mostrar? Só existe aqui, neste tempo e neste espaço, o que é visto – curtido, compartilhado, comentado? Não deveria ser o oposto: num mundo em que todas as pessoas lutam para sobressair, para levantar a cabeça da lama grudenta, ficar no lugar não deveria ser uma das formas mais inusitadas – portanto, valorizadas – de se destacar? Não deveria haver – não deveria sobrar um leitor, ao menos, para justificar tantas palavras jogadas nesses papéis em branco virtuais? Ou vamos ficar nesse jogo de compadres, em que um lê o outro, como dois cachorros se cheirando, e, automaticamente, se autocongratulando, um ao outro, pelo espelho?
É possível, porém, não escrever? É possível, alguém sabe? Silenciar, pacientar, se acalmar? Por que não apenas escutar – ouvir os outros, abertamente? Ou escrever é uma necessidade – uma forma de sobreviver, um formato para sobreviver? Escrever seria, então, apenas e somente uma forma pernóstica de terapia ocupacional? Uma maneira cabotina de colocar em prática uma psicologia de botequim das mais infames e prepotentes, de tomar uma dose da mais vergonhosa psicanálise barata? É a cura pela escrita, agora? Quem vai, volto a perguntar, porque é necessário, quem vai doar os próprios olhos para a literatura? Ou será só olvido, um longo, escuro, e silencioso olvido?
Para começar: existe arte só com o artista, sem espectador? Para terminar: escrever é arte? Como intermezzo fora de lugar: Será que vamos um dia trafegar fora do âmbito do mais puro egoísmo?
Ou ainda: seria escrever uma maneira de dialogar consigo mesmo? Uma ponte entre nossos dois ou multi-lados? Um modo de encontrar equilíbrio – um equilíbrio tenso, que nunca se resolve, dentro de uma personalidade dupla neurótica, ou pulverizada esquizofrênica, certa e infalivelmente obsessiva-compulsiva, como a de todos nós? É uma tentativa, um trabalhoso esforço para mudar o paradigma do ser ou não ser – transformando-o em ser e não ser? Em vez de negar, somar? Em vez de excluir, abrir sendas, criar pontes, trabalhar para a comunhão, enxergar a interseção?
Não sabemos, sabemos, não.
terça-feira, 28 de novembro de 2017
Pastorzinho ora prefeitinho
Vocês não têm a impressão que o Crivella fala no diminutivo com as pessoas ao seu redor? Essa história de “cuidar das pessoas”, sei não... ele deve se achar mesmo um descendente diretos dos patriarcas da Bíblia. Tão superior ao populacho. Tão nobre, tão líder, tão... pastorzinho.
Ao menos, concordemos todos, da Igreja Universal ele é herdeiro. E agora que o tio deixou crescer aquela barba profética e se aproximou de um discurso mais ligado ao judaísmo - como se isso desse um verniz de “originalidade” - faz sentido, vai.
O pastorizinho ora prefeitinho deve se achar o máximo, com razão. Por isso trata todo mundo como garotinho.
Também, pudera: entregamos a chave da segunda cidade do país para ele. A cidade que no imaginário do mundo é o resumo do restante da nação. E cujos códigos simbólicos são necessariamente antagônicos aos dele. Carnaval? Samba? Ele deve adorar um retirozinho. Ou você consegue imaginar o pastorzinho de sunguinha na praia? (Não, melhor não imaginar.)
Eu vou além. Um pouquinho além. Acho que o ora prefeitinho está azeitadinho no cargo. Tudo faz sentido para ele. Parece um bonequinho.
Espero apenas o dia em que, por uma falha da manutenção, o rosto dele, aquele rosto de velhinho simpático, que leva os netinhos para a pracinha, aquele rosto branquinho como algodão, como cera in natura, aquele rosto plastificado começar a se desprender do restante da cabeça e cair no chão, tipo uma lata-velha se desfazendo em pedaços pelas ruas, antes do conserto de apresentadores de televisão.
Imagino que ele vai estar, nesse momento, pronunciando seus discursos diminutivos sobre qualquer assunto relevante, “cuidando” das nossas preocupações, como um bondoso pastorzinho. Neste momento, neste momentinho, o maxilar vai despencar. Plaft. As pessoas constrangidas, sem conseguir dizer nada, tentando apontar: pastorzinho, pastorzinho, o seu, o seu queixo, ele...
O pastorzinho, suspeito, sempre suspeito, nem vai perceber e vai continuar falando pequenininho, bonitinho, calminho. Seguro de si, cuidando das pessoas. Como sempre. Do lado de dentro, vamos poder ver expostos como entranhas os mecanismos do ventríloquo. E, suspeito, a mãozinha do seu tiozinho.
Ora, prefeitinho, ora que piora.
quinta-feira, 23 de novembro de 2017
O que você levaria consigo em caso de incêndio?
(Isso deve explicar, inclusive, esse texto de desabafo - embora escrito no celular.)
Dessa segunda vez, ainda peguei o e-reader, lembrei das chaves de casa e malandramente catei um guarda-chuva - vai que o aguaceiro aperta, cheguei a pensar.
Tinha ficado até orgulhoso de mim, da minha organização, considerando que o fogo desta vez foi bem mais perto (no 203 e eu moro no 301, o que faz com que a casa esteja mais enfumaçada que filme do Cheech & Chong, sem qualquer vantagem por isso), de madrugada, e eu tinha tomado uns vinhos para dormir. Aí, já de volta à casa, percebi que tinha me esquecido da carteira. Para que levá-la, né?, me perguntei. Só vive vazia.
Enquanto estava lá embaixo, foi bom ver quem são os meus vizinhos (nesse mundo cada vez menos comunitário) e conferir o que eles levavam: animais de estimação, garrafas d’água, telefones celulares... o de sempre. Ou quase.
Sempre me lembro do primeiro incêndio, lá no 502, no meio da copa de 2014, num dia após um jogo do Brasil e de uma festa bem animada que eu tinha participado. Aquilo sim foi incêndio de verdade. Incêndio moleque. Incêndio de várzea.
Era, pelo menos, de manhã cedo e pude ver o pessoal com mais cuidado - hoje não deu para ver direito os pijamas da coleção 2017 - e o que eles carregavam. Havia documentos, mais gente carregando computadores, animais de estimação, celulares... e uma senhora que sempre me encafifou: ela levava uma pipoqueira.
Pois é.
Não me perguntem se estava cheia ou vazia. Se ela foi pega no meio do processo de fazer pipoca. Se ela é da umbanda. Ou se ela se empolgou com o fogo e resolveu... não, não, isso não.
Fiquei tão chocado que não consegui qualquer aproximação (mentira: até parece que, introvertido como eu sou, eu teria falado algo com ela em qualquer oportunidade).
Dessa vez, infelizmente, não houve nenhum folclore. Melancólicos os nossos tempos. Ou, como disse lá o barbudo, e eu dou fé: a história se repete como farsa.
quarta-feira, 22 de novembro de 2017
As dobras do tempo 'No instante agora'
O velho general tinha se manifestado durante o maio, pela televisão, e tinha sido engolido pela força dos acontecimentos do momento. Em junho (?), quando as ruas tinham se acalmado um pouco, ele decidiu falar apenas pelo rádio, veículo que ele conhecia muito bem, desde os seus discursos (desde Londres) na segunda guerra, que ajudaram a manter o moral dos franceses invadidos pelos nazistas. Ele exige a volta da ordem no país. Ameaça usar (ainda mais) da violência contra o caos, para manter o país unido, para seguir a constituição, para fazer da França a França, novamente.
No dia seguinte, uma multidão - maior em número que os próprios protestos dos eventos de maio - vestindo roupas nitidamente mais caras, enrolados em bandeiras tricolores, invade as mais famosas ruas da capital francesa para apoiar o discurso do presidente, e não recebe qualquer impedimento das forças de segurança - mesmo atrapalhando o trânsito, entrando em monumentos públicos.
O paralelo é óbvio demais para nós para não me abalar. Sempre ouvimos que a direita ganha as eleições depois de 1968, mas ver as imagens tão nítidas de um movimento conservador em marcha, após tamanha explosão de possibilidades potentes, é bastante pedagógico. Ainda mais para nós, que parecemos em geral perdidos dentro de um ethos melancólico. É confortante encontrar companhia histórica (de vez em quando).
Após o filme, fica a pergunta óbvia: a “direita” então venceu a disputa de maio de 1968? Se pensarmos no curto prazo, certamente. Eles eram maioria, ganharam as eleições, apoiaram a reação. Se pensarmos pelo viés dos próprios soixante-huitards na época, também: eles queriam uma revolução, uma mudança completa da forma de vida, manter o ritmo de transformações para sempre, numa agenda de desejos polifônicos sem mira certeira. Não era possível acertar em tudo, por supuesto. A derrota é, portanto, pelo tamanho da expectativa. Mas alguma coisa ali, sem sombra de dúvida, havia mudado profundamente. Se transformado tanto e de tal modo que não tinha como nem De Gaulle nem manifestações patrióticas segurarem sua força. O tempo já era outro, para todos.
Ps. Isso não quer dizer que devemos deitar em berço esplêndido - ao contrário. Temos que pensar que a luta é constante e sem interrupção. Temos que diversificar nossas estratégias. Como? Não tenho a mais ligeira ideia. Temos que também nos tranquilizar com os momentos de potência, para depois colocar em ação.
Ps2. Curiosamente, dois dos marcos mais famosos da esquerda no século XX distam cerca de 50 anos um do outro: 1917, 1968. Curiosamente, 2, estamos completando 50 anos do último.
Ps3. Talvez 2013 tenha sido a nossa dobra na História. Certo é que já mudamos de percepções. É o momento de nos adaptar aos novos tempos.
Outro detalhe curioso: João Moreira Salles, diretor, roteirista e narrador do filme, lembra que a cena da manifestação da direita quase não aparece nos filmes sobre o período. Nós escolhemos o que vamos contar do nosso passado.
Ainda: Sobre melancolia e esquerda: http://criseecritica.org/.../11/Uma-ou-duas-melancolias.pdf
sexta-feira, 17 de novembro de 2017
INSONE MUNDO, por Adriano Lia
Mas eu deveria voltar a dormir. Parar de pensar nas minhas preocupações. Nas minhas obrigações. No que eu deveria estar fazendo. Mas como parar de pensar naquilo que se pensa? Não pensar, não pensar, não pensar. Pronto, pensei. São 3 e 40 da manhã. Posso dormir até as 9h. Dormi à meia-noite. Daria as oito horas diárias obrigatórias, e ainda sobrava. O dia vai ser longo. Já estou cansado. Tenho trabalho, depois aula, depois jantar, depois... Mas tenho que fazer a barba antes. Cozinhar alguma coisa. Comprar algum legume, fruta, sem agrotóxicos, ecologicamente responsável. Mas está tudo tão caro, estou tão sem dinheiro. Mas eu sou um privilegiado, o topo da pirâmide. Imagine o mundo real, lá fora. Gastei demais nos últimos dias. Bebi para entreter, mas só passei o tempo. Quem marcou esse jantar? Posso cancelar? Já cancelei outras vezes. Posso ou não posso? Estico a linha com obrigações à minha frente sem que ninguém esteja do outro lado. O que devo fazer? Penso em respostas compridas que nunca serão cumpridas, por incapacidade ou fadiga do material. O mudo mundo, como sói fazer, me ignora, como se fosse também surdo. O cansaço já não é só promessa. A verdade é neurótica. A paranoia, a única minha companheira.
Por que apenas eu não aceito? Está tudo resolvido. O bloquinho e a sua caneta preferida estão aqui para você. Há um mundo inteiro de possibilidades além das obrigações. Parece a cabra que expia. Reproduz os movimentos. Depois, fica um sentimento de alívio. Assim espera-se, na fantasiosa e quase inexistente das hipóteses. Frases curtas cortam o papel porque a urgência pisca. O que fazer quando o plano naufraga? Admitir a derrota – lentamente, com parcimônia, tentando respirar entre os soluços. Seguir adiante, até onde der. Depois, desabar. Sou apenas um homem. Mas não consigo admitir. Mas sou sim, só isso. Em todas as suas acepções. Desses que a ferrugem engessa os membros. O corpo se mostra finito. Mas eu posso sair do script, querer outros quereres. Mas eu quero?
As grandes narrativas não fazem (mais) sentido. Agora, a decisão tem que ser minha. Não posso colocar sobre outrem a bússola. Não há outrem. Não posso seguir mais a maré, mesmo que a maré me fosse favorável. Não há mais maré. Só há “eu”, um magro, fraco e circunstancial “eu” – o que sobrou depois de tantos anos tentando se esconder. O passo, qualquer passo, é responsabilidade. Não há mais culpados. Não sou mais vítima.
O mundo sem mapa. Era mais fácil quando eu me enganava. Mas é ainda possível? Em algum momento, você nasce e o mundo anterior se torna automaticamente estranho, pequeno, inabitável. Mas você não tem qualquer outro mundo. “Ainda” – no débil otimismo. No limbo, ter paciência. Não é a primeira vez – anotar. Escrever é: migalhas de pão despejadas no caminho. Se confortavelmente se perde, se surpreende ao se achar. Estados de espíritos.
Estou cansado, o dia vai ser longo, e eu não tenho tempo. Mas eu deveria voltar a dormir.
quarta-feira, 15 de novembro de 2017
Os limites de "Vazante"
Vi ontem "Vazante", o novo e polêmico filme de Daniela Thomas. Uma pequena-grande crônica extremamente cuidadosa na recriação de época de uma família rica das Minas Gerais, na região dos diamantes, em 1821.
O filme é violento do início ao fim. Mostra-se diversas formas de submissão que são os fundamentos da sociedade brasileira: homens contra mulheres, ricos contra pobres, mas principalmente, sem nenhuma dúvida, brancos contra negros.
O dono da fazenda, tropeiro, querendo começar uma plantação nas suas terras, mantém um grande número de negros sob o seu jugo. Entre trabalhadores da lavoura, africanos recém-chegados, gente que trabalhava em sua casa, mulheres que vendiam doces nas praças da cidade, capatazes, negros forros que se tornam capitães do mato, todos, de uma maneira ou outra, estão debaixo de sua jurisdição - "pertencem" a ele.
É tão violenta a forma como as relações são mostradas que não há maneira de não ficar extremamente incomodado com a escravidão. Ela é tratada de maneira tão crua, tão direta, e também tão cheia de nuances, que não minoram em nada o problema, ao contrário, a acentuam: para uma vida um pouquinho melhor, o negro tinha que se "embranquecer". Ou eu, do alto dos meus privilégios, achei que não poderia ser mais incisivo.
O filme vem sofrendo, desde a sua primeira exibição pública, no festival de Brasília, uma enxurrada de críticas de representantes do movimento negro, por dessubjetivar os negros retratados na película, os relegando a um papel coadjuvante no processo todo. Por, enfim, ter contado o filme a partir da perspectiva da sinhazinha que, muito jovem, é obrigada a casar com o português dono das terras. [Alguns links nos comentários.]
É possível enxergar as alegações e responder: todas são verdade. Mas uma outra porta de pensamento se abriu para mim durante o filme: como Daniela Thomas, branca, rica, uma das pessoas que organizaram a festa de abertura da Olimpíada no Brasil, poderia fazer outro filme? Ela poderia ter colocado a câmera em outro lugar? Em outras palavras: podemos criticar o filme pelo que ele NÃO tem?
Por mais que as discussões sobre um "autor" individual, gênio que escuta as musas, já tenham mais de cem anos, e tenham retirado completamente a força dessa "inspiração divina", a grande maioria das obras que chegam ao >mercado< são fruto de escolhas de um sujeito. Ainda hoje, filmes, livros, músicas etc. são expressões de subjetividades particulares. Essas pessoas são influenciadas pelo mundo que habita, são moldadas pelos encontros, são afetadas pela/os outra/os, mas, ainda assim, foi Daniela Thomas quem escolheu o ponto de vista do filme. Ela quem disse "ação" e "corta".
Como ela falaria de algo que não é "ela"? O limite de sua atuação não é exatamente os seus próprios limites? Não estaria ela fazendo um movimento quase antropológico de "tradução" ou de "diplomacia" entre mundos que se chocam?
Reparem, não é uma defesa da elite, uma defesa corporativista, que daria carta branca para os "bem intencionados" a fazer qualquer coisa - ou ao menos, não é minha intenção consciente. Eu quero entender. Eu quero escutar, de verdade, sem qualquer ironia.
Eu sei que a obra de arte não pertence ao seu autor, mas a quem tem contato com ela. Eu sei que há diversas chaves de interpretação das obras de arte, que vão além da estética. Eu sei que a obra de arte está inserida em um determinado contexto histórico, social, cultural. Eu sei que é impossível agradar a todos [o que bate diretamente com a minha neurose]. Eu sei que, diferentemente do que diz Brás Cubas, a obra em si mesma NÃO é tudo - é necessário enxergá-la sob perspectivas. Eu só não sei o que ela poderia ter feito de diferente. Gostaria verdadeiramente saber.
sexta-feira, 13 de outubro de 2017
O bizarro Cosme & Damião tardio da Barra
Numa das áreas mais ricas do riquíssimo bairro, havia uma multidão de crianças - algo como uns 100, 200, sem exagero - todos muito pobres, nas margens da Avenida das Américas, tentando se entreter subindo nas árvores, brincando de pique, agindo, enfim, como crianças ~analógicas~, enquanto suas mães se sentavam em cadeiras de praia tentando também matar a espera. Mas espera de quê?
Como os sinais da Barra sempre foram lotados de crianças fazendo malabarismos ou pedindo dinheiro, minha primeira reação foi achar que o enorme grupo era efeito dos momentos atuais, de crise de perspectivas e de horizontes cada vez mais curtos. Estava certo e errado ao mesmo tempo. Era possível tanta gente viver das migalhas dos mais ricos? Depois, me explicaram: isso só acontece no dia de Cosme e Damião e no dia das crianças - ontem.
Mulheres moradoras de áreas periféricas levam suas crianças para a Barra nessas datas para receber doces (no dia 27 de setembro) e brinquedos (no dia 12 de outubro). Alguma coisa ali nessa cena me incomodava e me incomodou muito.
Talvez, primeiro, mostrar à força o contraste entre estratos sociais tão distantes. Eles não "pertenciam" àquela área, destoavam como se fosse um "erro" na programação de um bairro planejado para evitar pobres - ou, ao menos, pobres à vista. Uma infiltração, que não se conseguiu prever.
Eles me forçavam encarar de frente a verdade de que enquanto há um mar de mansões e apartamentos de frente para a praia, há um oceano de crianças carentes até do mais simples. Enquanto há meninos de classe-média que ganham tantos brinquedos que nem conseguem abrir todos os pacotes, há garotos que se sujeitam - ou são sujeitados - a mendigar por migalhas.
Mas não foi só esse componente moralista-social (que, claro, importa) que atravessou minha garganta. Havia alguma coisa além que me incomodava ainda mais profundamente. O que era, fiquei me perguntando, o que era?
Sempre fui uma criança estranha (fui?). Entre tantas estranhezas, nunca gostei de doces - portanto o Corme&Damião nunca foi um dia especialmente importante. Jamais corri atrás dos saquinhos e quando os ganhava, eles ficavam literalmente meses na minha casa sem serem tocados - até que eram provavelmente jogados fora.
Há, contudo, um elemento na busca pelos saquinhos que cada vez mais me interessa, por misturar um processo ativo a uma atitude lúdica. Meninas e meninos saem pelas ruas da cidade numa busca pelo(s) tesouro(s), sem usar qualquer tipo de mapa pré-determinado. As suas caminhadas são a própria forma de criar trajetórias, quase como arcos narrativos, da própria cidade - dessa geografia afetiva que nasce a partir das corridas. É um descobrir e se apropriar dos lugares, sem se tornar dono ou proprietário. Aquele por-do-sol é seu, mas é também de quem mais olhar. É uma espécie de atualização da proposta do flâneur, mas com pitadas de ginga e uma alegria que não constavam no original. É um se deixar afetar, mas ativamente. É um estar aberto para o que acontece, à medida que se caminha, sem ficar parado.
Exatamente o inverso da proposta daqueles pobres meninos e meninas pobres que coloriam as margens da Avenida das Américas, ontem. Os meninos e as meninas na Barra estavam sendo usados por madames para expiar suas culpas. Não pode ser coincidência o dia de ontem também ser o da padroeira desse que é o maior país católico do mundo. Os meninos e as meninas eram meros bonecos despersonalizados, sujeitados pela vontade dos outros. Mesmo que eles possam aproveitar os brinquedos, mesmo que seja melhor que eles tenham algo para brincar, mesmo que seja melhor que as madames doem os brinquedos extras de seus filhos a deixá-los estragando dentro de casa, esse encontro só reforça o desencontro. Os meninos são objetos de decoração que apenas reforçam a dignidade "altruísta", "caridosa" e "filantrópica" da nossa elite de casa grande. Não preciso dizer a cor da pele de todas- TODAS - as crianças nas margens da grande avenida, né?
Lembro de uma história de madames de Ipanema que pediram para deixar os mendigos na porta da igreja de Nossa Senhora da Paz para que elas pudessem lhes dar esmolas ao sair das missas aos domingos - e foram atendidas. Os meninos e as meninas estão sendo treinadas para serem os próximos pedintes.
domingo, 24 de setembro de 2017
Woody Allen e a crise do nosso tempo
O octogenário diretor captou, do seu jeito neurótico e com a leveza que a idade lhe proporcionou, um dos traços fundamentais do que acontece hoje em dia não somente nos EUA, mas talvez em todo mundo Ocidental, incluindo aí sua periferia - isto é, nós aqui no Brazilquistão. Um dos espíritos do nosso tempo que pode ser resumida numa frase muito simples: o que é que nós podemos fazer?
O esqueleto da série é o mesmo de Manhattan murder mystery, filme de 1993, que Allen rodou com Diane Keaton, depois de toda a primeira - e mais dura - fase da separação com Mia Farrow. Diane Keaton, ex-mulher de Allen, estrela do clássico Annie Hall, aceitou voltar a trabalhar com ele em um dos momentos mais conturbados da vida do cineasta - o que pode colaborar para a ideia de que ele não é, assim, um monstro como se pinta.
No longa como na série, Allen interpreta um sujeito medroso que aceita passar por situações de perigo convencido pela esposa [na série, interpretada pela veterana Elaine May]. No filme, investigar um misterioso assassinato em Manhattan, como diz o título do filme; na série, passada na década de 1960, o escritor de segundo escalão que quer ser um J. D. Salinger tem que receber em casa uma guerrilheira americana interpretada por Miley Cyrus que luta por igualdade, justiça, e o fim do capitalismo.
É nesse momento que aparece a sutil e genial sacada do artista. Todos na série são esquerdistas para os padrões americanos. São contra a guerra do Vietnã, a favor da igualdade racial, votam nos democratas, acreditam na liberdade como bem supremo. Mesmo Alan Brockman, um rapaz que está se hospedando na mansão dos protagonistas, e que tem como meta uma vida bem burocraticamente burguesa [se casar, ter filhos, continuar os negócios do pai como banqueiro...] é um liberal, isto é, se coloca do lado certo da História. Entretanto no momento em que a pequena guerrilheira chega no recinto essas pessoas de bem são jogadas automaticamente para a defesa. Eles percebem que votar de quatro em quatro anos no candidato menos pior não é o suficiente.
Estamos fazendo o máximo que podemos para diminuir as mazelas de onde eu vivo - ou vivo meu cotidiano fechando os olhos para o que acontece ao meu redor, pensando apenas na minha vida e na da minha família, com a desculpa de que voto no candidato correto? Variações da mesma pergunta passam na cabeça de todos os principais personagens ao longo dos seis episódios, junto a tiradas cômicas sobre o comandante Mao, o barbudo Marx e aquele simpático Che. A série, sem muito esforço, levanta várias perguntas também para o espectador: o que é ser parte de uma democracia? Como diminuir as desigualdades sociais, acabar com a corrupção, minorar a violência? Em suma, a pergunta de um milhão de dólares que perpassa a cabeça de nove de dez pessoas preocupadas com a situação atual do Brasil e do mundo: O que é que nós podemos fazer?
Sem escorregar em um maniqueísmo das conclusões fáceis, Allen dá respostas diferentes para cada um dos personagens, a partir das suas próprias trajetórias e questões de vida. Mostrando que a mudança pode estar em gestos pequenos, como não se deixar ser capturado pela correnteza da manada fácil e obrigatória, ou apenas desobedecer as expectativas conservadoras dos pais para seguir a sua vontade, ou mesmo criar e participar de protestos pelos direitos civis, ou simplesmente se dedicar a escrever um livro que tanto desejou. Num mundo em que a euforia e o gozo fácil se infiltram nos poros do cotidiano e substituem alegrias mais substanciosas, talvez seguir o próprio desejo [sem ser egoísta por isso] seja a maior revolução que podemos cometer.
sexta-feira, 22 de setembro de 2017
'Quem me navega', por Viola Galera
Não é possível prever nem mesmo o tempo, quiçá o clima. O mundo é banhado em mistérios abissais. Há mais meandros escondidos entre o infinito oceano e a delimitada terra do que a nossa dura razão instrumental pode elencar. Pois. Eu sinto a mesma coisa. Existe sempre alguma coisa ausente que me atormenta. E não estou falando da vela. É algo mais abstrato. É saber que não sou dono da minha própria fortuna.
Não escolhi ser criado, nem ter esse simples formato ligeiramente trapezoidal, revestido de fibra de vidro, com um falo enorme no meio, que me lembra um totem para quem os humanos parecem sempre prestar homenagens. Não consigo entender isso, eu, cuja sexualidade não passa por objetos tão grosseiros. Tive sorte, pode-se dizer, fui uma criação artesanal, de um curioso rapaz que recitava algumas frases exóticas em uma língua aveludada e redonda. “Ẹni bá ṣe oun tí ẹnìkan ò ṣe rí á rí ohun tí ẹnìkan ò rí ri”. Consegui gravar essa. Conversando com outros barcos no porto onde estou atracado – sim, quando sozinhos, nós fofocamos frivolamente como homens no churrasco após a pelada –, descobri que ela quer dizer algo como “quem faz o que ninguém fez, vai experimentar aquilo que ninguém experimentou”, e fiquei remoendo. Claro que há o incentivo para a coragem de enfrentar mares nunca antes navegados. É sempre bom saber que nunca somos originais, outras pessoas já enfrentaram tormentas ainda maiores que as suas – e sobreviveram. Fiquei pensando, entretanto: haveria mares absolutamente virgens? Ou, o inverso: é possível navegar a mesma rota duas vezes?
Não precisamos continuar com essas – exatamente essas – elucubrações. Provavelmente a resposta é mais que 1 e menos que 2; está entre os dois bordos, o que desafia o nosso princípio de não contradição. Fomos criados dentro de uma física – e mesmo uma metafísica – em que ou a gente é ou não é. Ou isto ou aquilo. Ao descobrir que o mundo também tem conjunções aditivas deveríamos ter ficado mais felizes. Não foi bem o que aconteceu. A tradição cobrou seu preço pelo conforto de tantos anos.
Não sou eu quem escreve o texto, é o próprio texto quem se escreve. Uma frase e outra e logo outra aparece e se intromete, interrompe o que eu queria dizer e pronto, já estou longe do meu porto seguro. Esse é o meu maior medo. Delírios de controle de um veleiro mixuruca. Saber que não adianta os nossos bons ou maus propósitos, o nosso fado está sempre em jogo, com múltiplas forças além da nossa própria. É descobrir que nos cada vez mais raros dias de calmaria, vamos navegar pouco, mesmo; enquanto nas posseidônicas tormentas podemos ser jogados, arremessados, até destroçados.
Não deveria ser assim, tão duro como o carvalho de um galeão.Temos que aceitar o acaso. E temos que reiterar que há margem para manobras, mesmo nas angras mais apertadas. Aceitar a sina não é, também, largar o timão ao sabor das marés. É saber que a própria vontade não passa de um vento que infla nossas velas. Um entre muitos. Jamais o mais forte, tampouco o mais tímido. A vontade deve nos proporcionar atalhos para os dias de vento de revés, nem que seja a paciência da criatividade. Peixe, quando o mar está para peixe. Velas vazias, para os dias de tempestade; velas cheias, para os de bonança. Lembrar que mar calmo não testa marinheiro. Nem mesmo veleiro. Ou, mais do que simplesmente aceitá-lo, amar o destino – qualquer que ele seja. Um barco seguro se sabe capaz de se readaptar às inesperadas mudanças de rumo e às intempéries das ausências.
terça-feira, 12 de setembro de 2017
As consequências 'positivas' da proibição do Queermuseu
[Se você não sabe de qual polêmica estamos falando, confira essa reportagem aqui.]
... eu quase [eu disse QUASE] fico feliz com essa ação fascista do MBL que censurou a exposição lá no Sul. Por alguns motivos:
Primeiro e o mais simples: para demonstrar que uma meia dúzia de bundas-mole fazendo barulho pode, sim, mudar o curso das coisas. Foi agora o MBL para um causa podre, mas táticas de agrupamento parecidas podem e deveriam ser usadas para pressionar parlamentar para votar propostas mais progressistas, sim. Por exemplo.
Segundo e o mais importante: por voltar a nos lembrar o poder que a arte tem. Parecia, para a imensa maioria dos simples mortais, que peças, filmes, exposições, enfim, produtos artísticos-culturais tinham se transformado em um inócuo programa familiar de fim de tarde de domingo, comparável a um Master Chef, Faustão ou qualquer outro programa de televisão de entretenimento mais básico.
Foi preciso um bando de fascistinhas, ligados aos partidos mais reacionários do país [psdb, dem, etc.], para nos lembrar o quanto a arte pode mudar a perspectiva das coisas. Foi necessário eles se incomodarem com obras que atingiam os valores fixos e de uma miopia extrema para saber que é exatamente para isso que a arte "serve". É especificamente por isso que a arte é arte.
Odeio a expressão que a arte tem que chocar [se fosse só isso, bastava colocar o dedo na tomada, ora], mas o ponto da frase de efeito clichê é, me parece, que a arte deve te trazer uma abertura do horizonte. Deve ser de difícil digestão, exatamente porque você precisa voltar a ela. Deve ser transformadora da maneira como você encara a vida.
Podemos voltar a acreditar que produzir arte - em todos os seus formatos - é importante, mesmo em tempos como agora, em que ela parece tão desvalorizada. Diria mais: talvez exatamente por isso, ela se torne cada vez mais importante.
Terceiro e o mais otimista [deixemos o pessimismo para tempos melhores]: para demonstrar que a nossa batalha cotidiana pode até parecer estar nos seus estertores, caminhando a passos largos para uma derrota [nossa] fragorosa. Mas o episódio fez com que várias forças do campo progressista se juntassem para berrar contra o absurdo. Podemos aproveitar essa união, momentânea, para lutar contra outros absurdos.
Quarto e o mais irônico: perceber que o problema de interpretação de texto - e todo o amplo campo que essa expressão abarca - não é uma exclusividade da esquerda. Que "todo mundo" confunde autor com eu-lírico. Que "todo mundo" faz uma leitura de sociologia de botequim de obras de arte. Que "todo mundo" quer respostas fáceis para dúvidas que precisam de tempo para serem digeridas.
Por fim, uma nota dissonante: Não adianta reclamar, nesse momento, e se perguntar onde foi que nós erramos. Nós erramos sempre, amigos, quando não valorizamos o ensino das humanidades nas escolas, quando não valorizamos a academia que pensa exatamente esses conceitos abstratos, em detrimento de um conhecimento mais técnico, quando valorizamos profissões que só visam o lucro, e cada vez maior, quando nos encastelamos dentro dos nossos mundos de conhecimento, cada vez mais profundo e sem nenhum debate com o lado de fora, quando acabamos com cadernos em jornais e revistas especializadas em nos fazer refletir sobre o nosso mundo, de uma maneira menos maniqueísta. Momento de voltar ao terceiro motivo.
segunda-feira, 4 de setembro de 2017
O pau
Pensemos da maneira mais máscula: sexualmente. A mulher, a mulher tem vários botões, várias possibilidades, várias formas de encaixe. Seja heterossexual, seja homossexual, seja bi. O homem homossexual aumenta bastante a possibilidade de encontros, de agenciamentos. Mas o homem heterossexual só tem o seu próprio pau – e mais nada. Se o pau cai, se o pau some, desaparece, o homem some concomitantemente.
A tradição ocidental se ergueu, desde a Grécia, mais fortemente, ao redor do homem, e este, por sua vez, do seu falo. Mais que um patriarcado, era, foi e continua sendo, uma falocracia. O falo, como o símbolo máximo do homem, como o centro do homem, e o homem, subsequentemente, o centro do mundo. Foi assim que ele sempre se entendeu, sempre se colocou no mundo, sempre se defendeu.
O resto do mundo – animais, plantas, minerais, e também as abstrações, os sentimentos, e também a própria mulher, como também o negro, como também o homossexual, como também qualquer outro, tudo, enfim, que não era considerado o homem, tudo – só existia para e a partir do homem. Como ferramentas para que o homem completasse seu objetivo. Como alimento. Como objeto de investigação. Inspiração. Força de trabalho. Buraco a semear. Parideira. Escravo. Como, em suma, um objeto, de diversas complexidades, mas sempre sem qualquer dignidade de existência própria, independente desse esquema perverso e sádico, para que o homem o sujeitasse.
O caso brasileiro torna as coisas ainda piores. Por termos sido colonizados por uma potência europeia machista e católica que caiu em decadência e virou periférica, por termos sido escravocratas, por sermos genocidas, por termos reafirmado essa posição desde sempre e não conseguido modificar a lógica que impera desde a invasão europeia, a tendência de um centro, único, em que os demais astros apenas circundam, voam, circunscrevem, mas jamais atingem o falo, erguido, que se acha potente, imponente, que quer não se deixa atingir, mas que pode penetrar, pode invadir, tem a liberdade, autodoada, para fazer o que quiser.
Todo o poder que o homem considera possuir não passa de um fetiche sobre o próprio pau. Se o pau não existe, o próprio homem não existe mais, ele desaparece assim que o pau desaparece. Se o homem heterossexual perde o pau, ele não se transforma em mulher, nem em homem homossexual, ele some, ele perde sua única referência, a única maneira de ele se enxergar, de se identificar.
A mulher foi apelidada de sexo frágil, mas é o homem heterossexual que é de uma fragilidade ímpar. Ele apoia todo o poder que acha que tem, todo o poder que ele tenta exercer sobre os outros, em apenas um único ícone. É tanto peso sobre o falo que é claro que ele não aguenta. Por isso ele precisa submeter o outro, por meio da violência – em vários formatos.
No momento em que a mulher, ou qualquer outro, mas a mulher é o principal outro, tenta sair do centro de gravitação do homem, ele não apenas sente perdendo poder, o que já seria ridículo sozinho – já que o seu poder não deveria estar nessa relação que, além de todos os detalhes, já parte de origens desiguais – mas ele sente se perdido. Se ele não pode sujeitar o outro, o homem heterossexual não sabe fazer mais nada. A única forma de ele se relacionar com o mundo é a verticalidade, e desde que ele esteja no topo.
Não há relações igualitárias. Não há uma verdadeira troca. O homem já começa o jogo vencendo, e não quer perder jamais. Qualquer ato do outro para tentar ser também um sujeito é visto como destruição da sua própria maneira de ser – e como ele nunca precisou, nem tentou, ele não sabe ser de outra forma. Como as metrópoles enxergavam como atos de traição a tentativa das colônias de se tornarem independentes.
O homem terá que descobrir outras formas de ser que não baseadas no próprio pau, ou será cada vez menos, menor, mesmo esperneando, como uma criança imatura que enfrenta a primeira grande dificuldade da vida. Até que não será mais.
sábado, 19 de agosto de 2017
As incertezas de Heisenberg
segunda-feira, 24 de julho de 2017
Os melhores vinhos franceses
Os châteux de Bordeaux são lindos |
Numa segunda olhada para essa disputa, porém, dá para ver além da borra da uva. Do alto da pretensão do turista que visitou em dois fins de semana seguidos cada principal cidade de ambas as áreas, vou tecer aqui alguns comentários aleatórios, que me ocorreram para explicar não somente os vinhos franceses, mas a própria França e, quem sabe, alumiar um pouco um certo país tropical.
A região bordelais - que abarca a cidade de Bordeaux e adjacências - fica perto da costa, numa área próxima ao Oceano Atlântico, posição estratégica do ponto de vista logístico. Seu vinho foi, desde mais ou menos a invasão das Américas por europeus, exportado para colônias deste ou do outro lado da grande poça atlântica. Até mesmo sua garrafa cilíndrica, que é o padrão mais comum em supermercados brasileiros, foi pensada para melhorar esse processo comercial - capaz de ser empilhada mais facilmente. Consequentemente, do ponto de vista capitalista, o vinho feito na área, chamado metonimicamente de Bordeaux, virou sinônimo de vinho de qualidade francês.
Os grandes empresários vinicultores bordelais fizeram muito dinheiro, construíram châteaux de boquiabrir até os menos impressionáveis, e criaram uma indústria do vinho que movimenta uma grana alta até hoje. Junto a isso, porém, eles também descuidaram da qualidade do produto com a certeza de que bastava se apresentar como um Bordeaux para que o vinho fosse aceito em qualquer mesa. Além disso, o negócio atraiu muitos aventureiros que também quiseram, para usar uma expressão bem marqueteira, surfar no sucesso da marca.
Para tentar regular um pouco o negócio, Napoleão III [aquele que Marx chamou de "farsa", aquele que veio depois da "tragédia" Napoleão Bonaparte] tratou de criar um selo para proteger os vinhos que já existiam na região em 1855. Isso só existiu por uma coincidência: ele queria exibir os vinhos num grande evento, a exposição mundial da capital francesa. Nascia assim o avô das denominações de origem controlada, exibidas hoje em todos produtos que necessitam provar seu terroir. Ao mesmo tempo, criou uma elite de vinhos que jamais pode ser mexida.
Pelo que se lê por aí, toda e qualquer tentativa de modificar esse ranking inicial não é bem aceita - e tudo por conta de questões que vão além da simples qualidade do vinho [que, aliás, de simples não tem nada; mas isso é uma outra questão]. Foram criadas outras tantas categorizações que hoje em dia, para os simples mortais, nós que não sabemos quase nada de vinho, é quase impossível saber qual é o vinho mais confiável apenas de olhar seu rótulo.
Dijon parece de mentira |
Para piorar o processo, escutei há alguns anos, uma anedota que, se non è vero, è ben trovato. Diz-se por aí que, com o crescimento econômico e a tentativa de os chineses se integrarem rapidamente às regras do mundo ocidental, eles estariam comprando quantidades chinesas de vinhos bordeaux, sem se importar muito com a qualidade do produto. A intenção é apenas exibir o vinho para os demais, como um apetrecho qualquer, como se fosse um celular Apple, uma calça Lee ou um carro Ferrari. O preço dos vinhos, assim, disparou. Pura lei da oferta e da procura. Para piorar a história, a anedota dizia ainda que, porque os chineses não estariam acostumados com o gosto do vinho ocidental, eles decidiram misturá-lo com outro produto tipicamente ocidental: a coca-cola. Como se diz ironia do destino em francês, mesmo?
De qualquer forma, se há uma consequência positiva dessa confusão toda nos bordelais é a mistura de cepas sem qualquer tipo de purismo. É extremamente comum que os vinhos dessa parte da França sejam feitos a partir de dois ou mais tipos uvas. O resultado é uma alquimia extremamente difícil de se acertar. Qual é, por exemplo, a quantidade exata de cabernet sauvignon e de merlot para se fazer um vinho bom? Por conta disso, em geral, os bons vinhos de Bordéus [como os portugueses chamam essa área] são encorpados, densos, licorosos, escuros, a ponto de aguentar acompanhar bem das carnes mais gordurosas aos queijos mais pesados - e fazer desaparecer os gostos mais sutis.
Já em Bourgogne... Bem, a Borgonha, como nós chamamos essa área do centro-oeste francês, é quase o oposto da confusão de Bordeaux. Se nas ruas da principal cidade da região rival, abundam turistas cafonas, restaurantes caça-níquel e pós-adolescentes de carro novo cantando pneu, Dijon, a capital da Borgonha, parece não se importar nem mesmo com aqueles grupos que seguem a guia de guarda-chuva em punho. É elegante e sóbria como o seu vinho. Opa, pera. É quase isso.
Uma área tão grande produz vinhos muito diferentes entre si, mas há, ao menos, três características que se mantêm praticamente inalteradas: 1/ as garrafas são mais arrendondadas, dando um aspecto mais, hum... charmoso. 2/ as cepas são únicas - e o pinot noir é o mais barato e comum de todos no norte [#cholamais]! 3/ há um controle fortíssimo da qualidade dos vinhos produzidos na região. Lá, antiguidade não é posto. É necessário o pessoal correr atrás do prejuízo a cada ano para manter suas denominações intactas. Se não...
Esses controles de qualidade não são uma certeza de que o vinho é bom ou ruim. Há infinitos motivos e outras infinitas razões para se gostar ou não de um vinho. Um vinho é uma líquido vivo [raramente se consegue, por exemplo, duas garrafas exatamente iguais] que foi influenciado por inúmeros fatores, como a condição do solo, a quantidade e a qualidade de sol no ano e, após as reticências e o et cætera, o grande e absurdo acaso. Saber como um vinho foi preparado não garante qualquer certeza sobre sua degustação, apenas que ele é o melhor que poderia ter sido preparado dentro de um mundo que não respeita qualquer CNTP.
Outro detalhe curioso é a presença mais marcante dos bourgognes na culinária. O boeuf bourguignon é onipresente em Dijon. Os ovos en sauce meurette, idem. O coq au vin não aparece sempre nos cardápios, mas também não é bem uma surpresa. É um vinho mais, hum, simples - no sentido de mais leve, mais tranquilo, que pode "compor" melhor, sem querer sobrepujar nada nem ninguém. É aqui que os adjetivos desaparecem para os só amadores do vinho.
O certo é que há um controle e uma organização na Borgonha para um vinho mais, hum, puro. Isso me leva a especular que o processo é uma boa metáfora para o capitalismo. Como se o processo de industrialização na área tivesse se desenvolvido ao custo de muito trabalho e investimento. Agora a intenção é aperfeiçoar o produto para se chegar no mais próximo da perfeição. Enquanto isso, na outra área - Bordeaux -, teria havido uma acumulação a partir da exploração do solo, com a criação de [praticamente] capitanias hereditárias, que se mantêm [praticamente] inalteradas depois de tantos anos. Bem, é isso, ou a minha vontade de ver sempre a nossa herança colonial em todos os lugares.
A "rivalidade" Bordeaux x Borgonha é, de alguma forma, a demonstração da divisão interna desse país que é atravessado por vontades tão conflitantes, tão opostas. São duas maneiras diferentes de produzir vinho, duas histórias quase opostas, e o resultado é claro: duas bebidas incomparáveis. Ou quase. Borgonha é Nova Inglaterra, Bordeaux, Sul dos EUA. Borgonha é Norte da Europa, Bordeaux, o Sul. Borgonha é Flu, Bordeaux, Fla. Apesar de minha preferência pelos gostos mais arrebatadores, não é surpresa, portanto, saber qual é o melhor vinho francês.
quinta-feira, 6 de julho de 2017
A casa [da mãe Joana] França-Brasil
Sempre me perguntei, para evitar uma aproximação exagerada entre Brasil e França, que falseasse o real: por que a França - e não outro país - teria essa ligação íntima com o Brasil? O que a França - ou Paris; ou Paris? - tem que outros lugares não têm? A questão é que não consegui fugir das questões com respostas satisfatórias e agora estou me esforçando para levantar alguns possibilidades de caminho.
Minha primeira tentativa é histórica. Os franceses tentaram, diversas vezes, colonizar não somente o Rio, como também outras áreas da costa do que veio a ser o Brasil. Discordando daqueles que reclamam do nosso passado português, imagino que para nós, que somos o resultado de uma colônia europeia com tráfico de escravos africanos tirados a força de suas casas dentro de um território manchado com o sangue do genocídio indígena, não haveria muita diferença. Vide o Haiti. Reze pelo Haiti. Todavia, para os franceses...
Para os franceses houve, suspeito, uma sentimento de perda, de queda de um espécie de paraíso na Terra. Uma terra em que, finalmente, eles cumpririam o destino deles: o de serem os donos da porra-toda. Em outras palavras, a Casa Grande numa terra grande.
[Pausa para dizer que se os jornais ainda poderiam ser usados como forma de entender uma parcela representativa da sociedade, o mais que insuspeito "Le Monde" demonstra como os franceses pensam sobre o restante do Monde. Todo e qualquer assunto internacional é, de uma maneira bem direta, parte das suas políticas internas. Eles devem, de alguma maneira, estar a par de todos os assuntos porque eles teriam, numa imaginação um pouco fantasiosa, influência direta nisso. Dias desses, por exemplo, a capa do site era sobre um drama na sucessão do trono na Arábia Saudita. Noves fora o peso estratégico do reino, o tema é, no mínimo, estranho para olhos brasileiros. Fim da pausa.]
Voltando à França, e à sua relação com o Brasil. Os gauleses, sem o Brasil para explorar, se sentiram naquela famosa relação de quem poderia ter sido e nunca foi. Uma promessa nunca cumprida. Um potencial não explorado, por motivos de: caminhos tomados estranhamente na vida - da vida. Seria possível, com pouco esforço, dizer o mesmo do Brasil, apelidado pelo Stefan Zweig de "O país do futuro". O mesmo Zweig, vale o comentário, que tem uma presença bem mais constante aqui em sebos e livrarias que em outros países que visitei [nunca fui à Áustria, no entanto].
Haveria, daí, uma segunda identificação entre o Brasil e França. Os dois se sentiriam parte do mesmo clube dos corações frustrados. França, como o irmão mais velho e rabugento, Brasil, como o mais novo e festivo. De onde nasce a terceira ligação.
Poder-se-ia [o presidente-intestino ficaria orgulhoso da mesóclise] supor que esse irmão mais velho e ranzinza quer, no fundo, cair na folia do mais novo. Haveria uma inveja... não, não: uma cobiça, uma vontade de ser desse modo descompromissado, desleixado, desse jeito de não se levar a sério, não conseguir se levar a sério - mesmo quando uma dose leve de seriedade seria indicada - do Brasil e dos brasileiros. [Esse modo que não é, claro, mais que uma caricatura em zoom out da maneira de ser que o Brasil exporta para si mesmo e para os outros.]
Isso lembra as maneiras atrapalhadas do franceses de não se deixarem ser tão desleixados, de não deixarem a cultura do jeitinho se espalhar indiscriminadamente: com uma mão pesada da burocracia. Não há ninguém que more aqui mais que um mês que não tenha ido aos correios, La Poste, aqui. Para ter um celular de conta, por exemplo, é necessário mandar uma carta de próprio punho assegurando que você não atrasará o pagamento. Sabe lidar com a sólida e inflexível estrutura de algumas instituições públicas brasileiras, que têm pouco ou nenhum jogo de cintura? Agora multiplique por três. Pronto.
Há, portanto, um aspecto cultural - no sentido mais amplo do termo - em comum entre Brasil e França e o território francês, com sua particularidade geográfica, só vem a confirmar isso. É banhado pelo Mediterrâneo, por baixo, e pelo golfo de Biscaia e pelo canal da Mancha, que é uma saída já do mar do Norte, por cima.
Existem diversas maneiras caricatas de dividir a Europa [ver ao lado], mas uma das mais comuns é entre o Norte [protestante, frio, funcional, moderno...] e o Sul [católico, caloroso, confuso, clássico...], que funciona "bem", até a página 3. No máximo. A França, como os mapas aí do lado mostram, carrega as cicatrizes dos dois lados da fronteira Norte-Sul. Há uma culpa por não ser tão eficiente, quanto os irmãos de cima, nem tão relaxados como os irmãos de baixo. Há sempre um sentimento de não estar confortável com o que se é. Um estar desalojado de si mesmo. Um sentido que o brasileiro e a brasileira de classe média levemente intelectualizada conhecem bem, apostaria.
Ao mesmo tempo, a França é ainda um país extremamente central na Europa, propagadora de vários dos elementos que compõem os alicerces das chamadas democracias liberais. Além disso, é uma das mais consolidadas metonímias da Europa, fruto de governos centralizadores, reis, imperadores e que tais. Essa sua posição histórica-geográfica obrigaria, nessa minha hipótese, a França a ter uma participação mais ativa na política internacional [vide as manchetes do "Le Monde"], quando, na verdade, ela só gostaria de estar relaxada numa praia tropical, tomando caipirinhas [onipresentes] ao som de samba [idem]. Voilá, uma contradição não-ambulante. Uma contradição bem brasileira.
Mas por que a França? Por que não outros países com mais vínculos com o Pa-tropi? Bem, porque Portugal ficou muito pequeno para o Brasil. Talvez eles tenham essa relação mais íntima com Angola e, quiçá, Moçambique, sabe-se lá. Espanha tem suas próprias ex-colônias para se preocupar - e invejar. A Inglaterra é fechada dentro da sua própria Commonwealth de influência, e muito cinza para se alegrar com sombra e água fresca. Alemanha tem a barreira da língua, quase intransponível num primeiro momento. Os EUA são abastecidos por tantos outros estrangeiros e influências externas, que a força brasileira se dilui completamente. A França reúne, talvez por coincidência, os elementos para adorar o Brasil, para ter esse diálogo quase paternalista. Não é responsável por suas mazelas, portanto não carrega uma culpa, e não recebe uma onda massiva de imigrantes. E, principalmente, valoriza os nossos clichês como a utopia a se alcançar. Vai entender.
É, ainda, na França que o emigrante brasileiro que não quer tentar a sorte nos EUA [por qualquer motivo que seja], e não sabe falar outra língua além do português-brasileiro com forte sotaque, se arrisca. É o irmão mais novo pedindo ajuda ao irmão mais velho. E tome bar baiano, restaurante com feijoada, roda de samba, forró misturado até com música dos balcãs [dizem que é divertido].
O La Fontaine é sempre citado nos cursinhos de francês com suas fábulas de moral nível He-Man explicando o episódio. Num de seus versinhos que não bebeu diretamente de Esopo, ele fala de uma formiguinha trabalhadora e acumuladora de capital, e de uma cigarra, que canta a vida, sem se preocupar muito com o dia de amanhã. Parece que de alguma maneira, Brasil e França são da mesma família: a das cigarras que são, no menor ou no maior grau, obrigadas a se comportarem como formigas. Talvez um dia consigamos simplesmente nos sentir bem em nossa própria pele.
quinta-feira, 29 de junho de 2017
O paradoxal exercício da escultura de Rodin
Depois fui investigar essa minha resposta de supetão. Não falei nenhum dos impressionistas do século XIX, nenhum dos escritores românticos, nenhum dos realistas, não falei de Proust, nada. Citei Rodin. Por que Rodin? Talvez a exposição no Grand Palais que lembra os 100 anos de sua morte tenha me dado a resposta.
Talvez a escultura, entre todas as artes plásticas, seja a que consegue demonstrar com mais facilidade a materialidade da obra. É quase impossível não perceber que aquele busto brilhoso de Camille Claudel à sua frente não saiu de um pedaço de bronze. O toque do homem sobre o material bruto é muito claro. A mágica é evidente - sem que saibamos como ela é feita, claro. Alguns escultores, talvez os maiores nomes da escultura, perceberam a necessidade, ao longo da carreira, de demonstrar essa materialidade, de deixá-la à vista. Rodin, claro, não fugiu a essa tradição.
Ele era uma mestre dos materiais. Transitava bem entre o gesso, o mármore e o bronze - apesar de ser um craque, o maior de todos, no gesso, esse material renegado no século XX. De qualquer forma, quase não percebemos essa diferença. Porque a escultura carrega uma outra característica que é paradoxal com a primeira citada ali em cima: apesar de sua materialidade, nós esquecemos o seu material.
É olhar para o jovem retratado no "L'age d'airain" [ao lado], que de tão natural, segurando sua cabeça, andando, foi quase impedido de participar de um salão de arte, sob a acusação de modelagem, e se perguntar: quando esse rapaz vai se mover? Mesmo que ele seja feito de bronze.
Seu São João Batista musculoso e caminhando. Sua efígie da República francesa, séria, como se fosse a mais importante e necessária figura do mundo. O pensador, a figura ícone de um século XX que se propunha científico, racional, após todo o positivismo do XIX, mas cuja utopia explodiu nas duas grandes guerras. O homem sentado refletindo. Sobre o quê?
Um momento tão diferente do nosso, de fluxo obrigatório da euforia, como forma de sobrevivência, que nos arrasta, nos leva, caso não paremos sobre uma pedra para pensar. Depois se descobre que tal estátua foi pensada para figurar sobre a monumental "Porta do inferno", que nunca foi completa, mas deixou várias obras para a posterioridade (como, por exemplo, "O beijo"). Primeiro, Rodin imaginou que o pensador representaria Minos, o rei do inferno. Depois, Dante, o autor da divina "Comédia". O homem por trás da criação. O homem substituindo o papel de criador que era divino. Deus, afinal, estava para morrer.
"Rodin reafirma sem cessar a presença da natureza no coração de sua obra", diz um trecho do texto de apresentação da seção dedicada ao que foi chamada sua fase expressionista, antes ainda de ele ser consagrado. Essa seria a parcela de materialidade que toda a escultura carrega. Em seguida, o texto aceita o paradoxo que toda obra de arte deve carregar em si, para ser digna desse nome. Rodin se liberta da posição de sujeito genial, de artista criador, e deixa a obra simplesmente acontecer - mas age, assim, contra a própria natureza do material. "O corpo é um modelo onde se imprime as paixões", diz o artista.
Ele não precisa respeitar os limites do "real". O corpo comanda a escultura - entendido aqui como o ato de esculpir. Pescoços longos demais, braços inexequíveis, movimentos improváveis. A intenção é fazer o material base dançar. É fazer ouvirmos a sua música. Artista e obra bailam junto num pas de deux quase invisível. É nesse "quase" morada da mágica.
N'"O beijo", há uma maciez na pele de Francesca, uma tranquilidade no rosto de Paolo, personagens românticos da "Comédia" dantesca que inspiraram Rodin. A sensualidade explode com ela se doando completamente e ele a recebendo. Pensamos em Camille Claudel e o relacionamento sempre desigual entre professor e aluna. A pedra de onde os corpos nascem é também o banco onde os amantes estão sentados para namorar. Há um romantismo, sim, mas um romantismo mais do século XX que do século XIX [a obra foi concebida entre 1881 e 1882]. Há uma abertura, uma possibilidade dos dois serem livres.
A sensualidade é presença forte nas obras de Rodin. Cresce com "Psyché e Printemps", e a ninfa surpresa de ser surpreendida, "Fauno e Ninfa", com um verdadeiro ataque do personagem meio bode, meio homem, mas principalmente com "Je suis belle", em que a mulher pula sobre o homem [ao lado].
Existe uma busca por uma expressão humana, no sentido do animalesco, do emotivo, do lado que não exibimos normalmente, mostrando os sentimentos que nem sempre consideramos os mais nobres. Ugolino, outro personagem dantesco, conhecido por devorar os próprios filhos no capolavoro do fiorentino, rasteja, sobre as quatro patas. A velhice, a vitória da criança prodígio. Ele mostra o que não podia ser mostrado. Mesmo "O pensador", e seu tema mais "racional". O que nos faz interromper o fluxo da vida, nos afastar e refletir? Sermos afetados. Afetos.
Curiosamente, além da série "O pensador", há também uma chamada "A meditação ou a voz interior" [abaixo]. Dessa vez, a personagem é claramente feminina, está em pé, em tamanho natural, com o corpo totalmente retorcido, o rosto um pouco caído, como se se perguntasse sobre algo e quisesse se escutar. Não há braços, apenas o movimento. Rodin queria se concentrar apenas no principal. Ela também foi afetada, mas diferente do homem que se imobiliza, a mulher não tem um destino inquebrantável, deve se adaptar durante o próprio percurso.
Há um enfoque nas figuras femininas nessa altura da vida, já mais maduro, após 1890, ou é impressão minha? "Íris mensageira dos deuses" é uma estátua de bronze sem cabeça com as pernas abertas e todo o seu sexo à mostra, por exemplo. Seria ele percebendo a importância feminina?
Após Rodin, foi possível liberar a nossa imaginação para completar a figura. É o fim, afinal, da figuração. Rodin, que bebeu tanto dos clássicos, como Dante, se transforma em um ícone, seguido pelas gerações que vieram após ele. Mira no passado e acerta o futuro. Abre caminhos, como toda arte mais revolucionária.
Rodin talvez seja uma das maiores referências francesas para o mundo contemporâneo porque atingiu o patamar desejado por todos os artistas, que merecem esse nome. O de sumir atrás do gigantismo de sua obra. "O pensador" é um símbolo de uma época. "O beijo", idem. O "Homem que marcha", uma escultura já do fim da vida, aparentemente banal, um exercício de desfiguração, vira um desses temas sempre revisitados por outros artistas. Talvez a maior influência de Giacometti, uma das grandes sombras sobre Picasso escultor. Na exposição do Grand Palais - só em Paris deve ser possível reunir tantas obras de tantos grandes nomes, no mesmo lugar ao mesmo tempo - é possível comparar as obras e enxergar uma das linhas de fuga inaugurada pelo escultor. Esse artista, como diz o texto inaugural da exposição, que queria encontrar a epiderme da matéria bruta. Parece ter conseguido.
segunda-feira, 26 de junho de 2017
Comunas [cristãos] de Paris
A minha primeira impressão sobre a França, ou mais especificamente sobre Paris, se sustenta quase exatamente igual desde então. Se há alguma diferença, ela está apenas na profundidade do que eu senti nesse primeiro coup d'œil.
Percebi, em comparação, que os londrinos teriam a melhor-pior maneira de encarar o outro, o estrangeiro: ignorando-o. Um comportamento, na superfície, igual ao que ele pratica com qualquer outro sujeito, independentemente de sua origem. Já o parisiense faz questão de mostrar que há uma diferença entre ele e o outro.
Esse comportamento que ressalta a diferença não é - vendo agora - necessariamente pior que a inglesa. Nessa primeira visita, cheguei a apelidá-la de pior-pior maneira, mas hoje vejo que uma sociedade complexa como a parisiense cria diversos mecanismos para responder a esse primeiro impulso de segregação.
Autoestima: "Ainda um francês que se faz inesquecível" |
Já é um clichê dizer que Paris e Londres são nêmesis. Cidades-irmãs separadas por um estreito canal que muda de nome dependendo do lado que você o enxerga. Uma rivalidade parecida com a que acontece com Rio x São Paulo, Barcelona x Madri, Nova York x Los Angeles.
Essa disputa entre Londres e Paris, suspeito, nasce do fato de ambas terem sido capitais de países que, nós querendo ou não, justamente ou não, dominaram política, cultural, filosoficamente o mundo chamado Ocidental por séculos.
Em suma, foram o berço do imperialismo clássico, de raiz, imperialismo moleque, daquele que escravizava sem meias palavras, sem qualquer tipo de desculpinha esfarrapada [sic] politicamente-correta [sic]. E, consequentemente, ainda hoje continuam exercendo uma influência inegável no xadrez mundial da atualidade. Pense no [combalido] Conselho de Segurança da ONU, por exemplo.
Ao mesmo tempo e da mesma forma, ambos Estados também perderam consideravelmente suas áreas de exploração-colonização, direta ou indiretamente. Houve a ascensão dos EUA, houve o processo de independência, houve a formação da UE. Todo esse processo de perda de poder aconteceu há no máximo 50 anos, o que mostra como ele é recente. Não por coincidência, a produção intelectual apelidada de pós-colonial [talvez após Edward Said e o seu "Orientalismo"] floresce principalmente nesses dois países [mas não apenas, vide Portugal e EUA, só para citar outros dois casos bem diferentes].
A diferença do tratamento ao outro, entretanto, não pode ser explicada nesse passado em comum. Aí que mora a distância entre as chips e as frites. Minha suspeita tem a ver com com a mentalidade religiosa em ambos os países.
Talvez um grande exemplo [há vários] de como a religião não é exatamente o centro da vida inglesa esteja dentro da catedral de Westminster, com suas duas enormes homenagens a dois santos da ciência: Charles Darwin e Isaac Newton. Isso sem contar ainda com o canto dos poetas, onde vários dos principais escritores ingleses estão enterrados [aqui em Paris, eles estão no Panthéon, cuja principal atração, na minha humilíssima opinião, é o pêndulo de Foucault].
Além disso, podemos pensar que a chefe da igreja anglicana é... a rainha. Se isso ainda não serviu para mostrar a diferença entre um país e outro no quesito, um último argumento: Na Inglaterra, todos os museus são gratuitos, enquanto as igrejas cobram ingressos para sua visita. Bem, acho que não é necessário lembrar que na França é exatamente o oposto, né? Notre Dame, Sacre Cœur e companhia têm livre acesso, enquanto o visitante comum tem que gastar uma grana para ver a fila de turistas tirando foto com a Gioconda.
O cristianismo, principalmente o catolicismo, é central no pensamento francês. Mesmo que não seja óbvio, ele aparece subtefurgiamente. O inglês seguiu a cartilha weberiana antes mesmo de ela ser escrita.
Há, sugiro, por conta dessa diferença, uma culpa - que não dá para chamar de outra coisa que não "católica" - nos franceses. Como se eles soubessem, mesmo que inconscientemente, que dependem, sempre dependeram, do outro - do estrangeiro - para serem o que são: uma potência mundial. Não precisa ser versado nas artes psicanalíticas para sacar que qualquer dependência cria ódio tanto no dependente quanto no objeto de dependência.
Por outro lado, esse sentimento mais explosivo, mais emotivo, cria, como já mencionado, mecanismos de compensação. Pense no caso clássico de se pensar a diferença entre o racismo brasileiro, que tem vergonha de dizer o seu nome, em relação ao americano, em que ele é escancarado. De qualquer forma há uma maneira "melhor" de ser racista? [Essa pergunta, aliás, faz algum sentido?]
Um desses mecanismos é, claramente, a força da esquerda na França. Mesmo que do outro lado da poça se discuta seriamente o socialismo e suas origens (Marx e Engels - inglês em alemão - moraram lá) - a impressão é que do lado de cá, o pensamento mais libertário é bem mais forte e constante.
Pense nas grandes revoluções ou revoltas: 1789, 1848, 1871, a resistência francesa na Segunda Guerra, 1968... Claro, houve revoltas e revoluções também do outro lado do canal, uma até em que o rei perdeu a coroa, e muito antes de se inventar a guilhotina. E, sim, a mais famosa das revoluções de cá não mudou, assim, muito as estruturas do estado das coisas. Mas é inegável a tentativa francesa de tentar, como dizem os anarquistas do Comitê invisible em seu livro "Maintenant", criar em terra o reino dos céus, prometido na bíblia. Mesmo com o Estado laico e tudo. Que estranho sentir saudade, mesmo que de maneira oblíqua, da santa igreja apostólica romana.
quinta-feira, 15 de junho de 2017
Maio de 1968, Junho de 2013
Foi curioso começar a ler o pequenino livro junto às críticas ao já quase esquecido texto do ex-prefeito e ex-ministro Haddad - e seu míope, porém, quase seminal, para os padrões petistas, diagnóstico do nosso Junho de 2013 - e terminar com os primeiros textos sobre os quatro anos dos nossos maiores protestos da História recente [penso principalmente no do Torturra e no do Pablo Ortellado]. É difícil contornar os paralelos entre os dois momentos.
[Sou um leitor de zoom out, na imensa maioria das vezes: vejo sempre a grande figura e faço comparações dos traços mais brutos, ignorando os detalhes mais escondidos e os gostos mais sutis - portanto, é claro que há diferenças entre os dois momentos, mas o que eu quero ressaltar aqui é exatamente as suas semelhanças e o que podemos entender de nós mesmos ao olhar para o caso francês.]
Há inúmeras maneiras de fazer esses paralelos, mas há duas, intrinsecamente conectadas, a meu ver, que merecem ser destacadas e ressaltadas numa primeira canetada. O franco-alemão Cohn-Bendit faz coros com outros soixante-huitards [os que participaram do movimento em 68, soixante-huit, em francês] ao dizer como os protestos como aconteciam até então estavam totalmente ultrapassados, i.e., em desacordo com os desejos e anseios da sociedade de então e, principalmente, dos jovens. Lembrar que o jovem, e a cultura jovem, como nós a conhecemos, nasce no pós-guerra, e ganha força principalmente nos anos 1960.
Não haveria como mobilizar, dialogar, mover os outros com um tom antigo, diz ele. O que os estudantes demonstraram - talvez a arma mais desestabilizadora dos jovens - foi uma "joie de vivre", uma alegria de viver, que empolgava não somente outros jovens, mas dava esperança até mesmo gente mais calejada como Jean-Paul Sartre, veterano de outras resistências francesas.
O jornalista francês Stéphane Paoli, que conduz a entrevista [junto com o sociólogo Jean Viard], chega a tentar resumir todo o movimento de Maio de 1968 à "jouissif", uma alegria, do tipo de uma fruição. A foto da capa do livro, de Gilles Caron [que ilustra esse texto], é citada em vários momentos como um exemplo da força - a força sutil, alegre, gaia - do movimento. "Minha história é ainda mais viva com essa foto", diz Cohn-Bendit.
Não precisa ser um especialista em semiótica para conferir como o sorriso de satisfação do jovem estudante de 20 e poucos anos desconstrói o peso endurecido do soldado com o seu capacete brilhoso. Era o frescor do sorriso largo contra o velho, o encardido, o mofado da sisudez militar. Era alguém que desafiava a ordem, criando outra forma de ordem, mais leve, menos respeitadora das ordens pré-estabelecidas.
Cohn-Bendit lembra das inscrições nas paredes de Paris como uma das principais forças de mobilização da época*: "Jouir sans entraves" [fruição sem entraves], "Sous les pavés la plage" [sobre o asfalto, a praia], "La bourgeoise n'a qu'un plaisir, c'est de les détruire tous" [a burguesia não tem outro prazer senão destruir a todos], "À bas la société de consommation" [abaixo a sociedade de consumo], "Je suis marxiste, tendance Goucho" [Eu sou marxista, vertente Groucho - a minha favorita], "Soyez réalistes, demandez l'impossible" [Sejam realistas, exijam o impossível], "Il est interdit d'interdire" [é proibido proibir]. Quase todas, se as minhas traduções estão corretas, têm um forte fundo humorístico, às vezes surrealista, até.
Os movimentos contraculturais não foram uma exclusividade francesa - e o próprio Cohn-Bendit faz questão de ressaltar isso logo de cara na conversa. Havia uma urgência de mais flexibilidade dos modos de ser era uma tendência mundial - ou em todo o mundo sobre influência do chamado Ocidente.
Para citar um exemplo mais conhecido nosso, basta pensar na Tropicália de Caetano, Gil e companhia - e como o comportamento deles fora da ordem vigente foi ambidestramente criticada, da direita mais conservadora até os comunistas mais tradicionais. Aliás, de uma maneira bem parecida [novamente: no zoom out], esse foi um desconforto muito parecido com o provocado pelo movimento de Paris.
Também podemos voltar ainda mais um pouco no tempo e chegar à Antropofagia de Oswald de Andrade e sua "alegria é a prova dos nove" para ver como o riso pode provocar fissuras no mais sisudos dos muros.
Se quisermos optar por um caminho não tão tradicional, podemos ainda retornar a Machado, ao casmurro Machado de Assis, que deixou claro logo no início de sua obra mais icônica que seu principal personagem, o defunto autor Brás Cubas, escrevia suas memórias póstumas com a escura tinta da melancolia, sim, mas certamente usava para tal empreitada uma leve e ridente pena da galhofa. É necessário ter sempre um sorriso de canto de boca, mesmo quando falamos sobre as coisas mais sérias e profundas.
Isso tudo me lembrou o último protesto que participei - há um mês, mais ou menos, logo após saírem os grampos do empresário da JBS com Temer. Havia dois grandes chamarizes para a multidão que lotou a Rio Branco: um do gênero empoeirado, sobre um carro de som, berrando slogans gastos contra os inimigos de sempre; e outro jovem, fresco, com estudantes - a maioria mulheres e negras - usando instrumentos de percussão, tocando ritmos populares com letras cheias de sacadinhas perspicazes que falavam sobre a urgência das pautas de gênero e de raça, entre outras temas, em um imaginário eixo x, sem se esquecer do eixo y, o econômico, que junta a outra das pontas dos excluídos.
Imagino que não seja necessário dizer qual dos dois discursos era mais potente e reunia mais gente empolgada, com fogo nos olhos.
Como diz Cohn-Bendit, ao comentar o simbolismo do sorriso da foto: a liberdade deve rimar com prazer.
A resistência será feminista, negra, trans, pobre, favelada, indígena, quilombola, e um imenso etc. de causas minoritárias, mas também será, terá que ser, ridente - ou não será.
ps. O livro, curiosamente para o início deste texto aqui, se chama "Forget 1968", assim mesmo, no inglês, a pedido do próprio Cohn-Bendit. O que mostra que mesmo os ícones dos grandes movimentos políticos se cansam do seu passado. Talvez um dia possamos dizer a mesma coisa sobre 2013. Acho que ainda não estamos em condição - ao contrário.
* Outra das forças propulsoras citadas por Cohn-Bendit em 1968 é a rádio e outros meios independentes que transmitiam e cobriam os protestos quase como jogos de futebol. Impossível não pensar no paralelo com a Mídia Ninja - e como ter um monopólio de comunicação no Brasil nos atrapalha fortemente.