domingo, 28 de dezembro de 2014

Paul Celan sobre Heidegger

TOTDNAUBERG
Arnica, eufrásia, o
gole da fonte com o
dado de estrelas acima,
na
cabana
aquela, no livro
– de quem os nomes tomou
antes do meu? –,
aquela, no livro,
escrita linha de
uma esperança, hoje
de um Pensante ente
a palavra
no coração.
capim de floresta, não aplainado
satirião e satirião, solitário,
cru, mais tarde, na estrada,
claro,
o que nos conduziu, o homem,
o que ia na escuta,
as meio per-
corridas trilhas
de madeira, nas veredas,
úmido,
muito.

TODTNAUBERG
Arnika, Augentrost, der
Trunk aus dem Brunnen mit dem
Sternwürfel drauf,
in der
Hütte,
die in das Buch
—wessen Namen nahms auf
vor dem meinen?-,
die in dies Buch
geschriebenen Zeile von einer Hoffnung, heute
auf eines Denkenden
kommendes
Wort
im Herzen,
Waldwasen, uneingeebnet,
Orchis und Orchis, einzeln,
Krudes, später, im Fahren,
deutlich,
der uns fährt, der Mensch
der’s mit anhört,
die halbbeschrittenen
Knüppel-
pfadeim Hochmoor,
Feuchtes,
viel.

Tradução e comentários [abaixo] do professor Adalberto Müller. Outros poemas de Celan aqui.

[...] “Todtnauberg”, que Celan publicou depois do encontro com Heidegger, em sua cabana rústica, na Floresta Negra. “Todtnauberg” é o nome do local, mas seu nome evoca as palavras “Tod” (morte) e “Berg” (monte). “Eufrásia”, planta medicinal usada em infecções nos olhos, em alemão se diz “Augentrost”, que literalmente significa “consolo para os olhos”. Parte do poema é o que Celan deixou escrito no livro de visitas da cabana do filósofo. O estirião é um gênero de orquídeas (orchis mascula). Vários comentadores do poema acreditam que Celan esperava que Heidegger falasse do seu erro ao acreditar em Hitler em 1933, mas, ao que tudo indica, a conversa não teria ido nessa direção. Alguns comentadores inclusive dizem que Celan – admirador profundo da filosofia Heideggeriana – teria se suicidado no Rio Sena devido a esse encontro malogrado. Vale lembrar que Celan perdera os pais brutalmente, por serem judeus, durante a invasão dos nazistas à Romênia. Hadrian France-Lanord, no excelente Paul Celan et Martin Heidegger, desmente essas especulações e superinterpretações. Enfim, o que restará é o poema, com toda a “pressão de luz”que tenta retirá-lo de seu esconderijo – lá onde ele luta, no escuro, resistindo, em tempos de penúria e destruição.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Retrospectiva 2014: Gol da Alemanha

Fim do ano é o momento do balanço do que houve no último ciclo solar. E neste 2014, houve o fim da guerra fria para Cuba, com a canetada do Obama que deu a primeira picaretada no muro metafórico deles, exatos 25 anos depois da queda do outro, o alemão. Tivemos também uma eleição extremada em que fomos obrigados a escolher entre um playboy que carrega em sua biografia todos os cacoetes excludentes apresentados em mais de 500 anos da elite brasileira, e uma desenvolvimentista que parece seguir, quase que ironicamente, a linha econômica da ditadura que ela queria derrubar. Escolhemos a menos pior, mas que nos faz pensar que o fundo do poço, nesse caso, é um fundo falso. Houve ainda a descida da nave num asteroide, a prisão algo inédita de corruptores no Brasil, e até o grave problema de saúde da Andressa Urach - pobre coitada. Mas nada mexeu mais comigo, diretamente, que a Copa do Mundo e a goleada sofrida pela seleção brasileira para a Alemanha.



A Copa foi um evento sui generis. Talvez único, numa posição bastante distante dos seus pares, seja dentro da histórias das outras copas, seja na história brasileira na competição, ou até mesmo na relação de grandes fracassos brasileiros no esporte. Mesmo para fãs ocasionais do futebol, como eu, a Copa, e a participação brasileira nela, suscitou uma miríade de interpretações.

A começar, ou ainda antes do começo, houve o #nãovaitercopa. Ainda sob o reflexo das grandes manifestações do ano passado, muita gente tentou, senão impedir a realização da competição - já que seria pedir demais -, criar uma recepção crítica a um evento que não foi pedido por ninguém, nos foi empurrado goela [já ia escrever goleada...] abaixo, criou nada mais que estádios nas cidades-sede, que, em muitos casos, já se metamorfosearam em elefantes brancos. Os organizadores [políticos, homens de negócio, "gente de bem"], como sempre, priorizando o visitante em vez de pensar nas populações que diariamente enfrentam transportes ruins, cidades sujas, educação cada vez mais mecanizada, sentimento de insegurança [infundado ou não, não importa].

Apesar destes e de outros pesares, Dilma fez o discurso, tomou a vaia e o Brasil rolou a bola em São Paulo. A partir de então, vivemos diariamente durante todo o torneio o dilema remédio/veneno do que seria a maior característica do que se chama nossa identidade. Primeiro veio o remédio: Não houve problemas graves de organização nos estádios, aeroportos, ruas das cidades. Funcionando em escala de emergência, sem muitas opções extras, tudo deu razoavelmente certo. Graças, muitas vezes ouvimos isso, ao bom humor e a hospitalidade do brasileiro - esse sujeito que de Norte a Sul, Nordeste a Sudeste, gosta de receber e mostrar a casa para as visitas sempre com um sorriso estampado como troféu.

Essa emergência, porém, não funcionou dentro do campo. Sem prolongar em grandes explicações técnicas, porque não saberia fazer, ficou claro o quanto os jogadores brasileiros carregaram sobre os ombros, junto às mãos dos companheiros que eles levavam a campo, a responsabilidade de ganhar a competição. A obrigação de fazer o brasileiro feliz. A tentativa de salvar a pátria. Em vez de jogadores de futebol, eram candidatos a heróis. Não podia dar certo.

O que ficou demonstrado com a goleada para a Alemanha de 7 a 1 foi algo além disso, porém. Lembro que no dia seguinte, acordei muito cedo para ler tudo o que eu consegui encontrar na internet do mundo inteiro e tentar encontrar um cosmos no caos que tinha se instalado em mim. Algo era muito fora da minha normalidade, da minha expectativa, para que eu conseguisse, ao menos, entender. Era por demais distante da realidade, aquela que tradicionalmente estamos acostumados. Instaurou-se um novo mundo. Pensei que era um sentimento generalizado. Nem tanto.

Para muita gente, essa derrota não teve tanto impacto quanto as derrotas em 1950 ou 1982, porque não seria tão surpreendente assim. A goleada para a Alemanha seria uma consequência natural de uma seleção formada por jogadores do mesmo país do Santos, que também foi goleado pelo Barcelona numa final do mundial de clubes recente. Ou os sucessivos sacodes que os nossos times tinham levado dos times europeus. Seria apenas o passo seguinte. Nada tinha me preparado para o 7 a 1, entretanto. Nada.

A explicação faz sentido - concordo - mas só faz sentido após o evento. Esse é o retrato "veneno" de nossas características. Se somos hospitaleiros, solícitos, simpáticos, também tratamos todas as nossas riquezas como commodities. A elite sempre suga o que temos de melhor e exporta, fazendo com que apenas poucos e privilegiados lucrem com isso. Foi assim com o pau-brasil, com a cana-de-açúcar, com o café, com a borracha. Foi assim com os escravos, continua sendo com os índios. É assim com os nossos recursos hídricos, com os nossos minérios, com o nosso solo. Com o desmatamento para plantação de soja, para a criação de gado. Com o fim dos biomas Mata Atlântica e Cerrado. Com o genocídio em curso para a criação de Belo Monte e congêneres - cuja energia é necessária, segundo a opinião de muita gente boa, apenas para a produção de alumínio e outras indústrias primárias. É assim com os nossos jogadores de futebol.

Criamos verdadeiras indústrias de exportação de jogadores e, pior, os vendemos ainda "verde", para que "amadureçam" na Europa, pegando todos os trejeitos de lá. Nossos jogadores são produtos, nada além de produtos, cada vez menos valorizados no mercado internacional, para os cartolas, agentes, donos de empresas de marketing esportivo. Estamos vendendo todos, remexendo o solo, levando cada um que aparecer, com o simples intuito de lucrar o máximo e agora. Parece que vivemos sempre em esquema de contingência. Como se só soubéssemos funcionar em estado de emergência. Mas o rio só corre para um mesmo lado: novamente apenas alguns poucos ganham muito, enquanto a grande maioria só se alimenta de sonhos cada vez mais amargos.

Para piorar, após a maior vergonha da história do futebol - daquele time, lembra?, que iria nos dar mais um orgulho para estamparmos no peito - a empresa que controla o esporte no país, orgulhosa de ser privada, escolheu dois velhos nomes para coordenar nossa principal categoria. Sendo o auxiliar técnico um ex-agente de jogadores. Como demonstrando claramente qual o caminho que quer continuar a seguir. Se após a derrota de 1950, criou-se um incipiente profissionalismo que há gente que defenda que nos deu a geração de 1958 e 1962; se em 1982 houve uma mudança de mentalidade que acabou com o futebol-arte, para criar o futebol-brucutu, que também veio a dar numa conquista de copa, em 1994, a derrota deste ano provocou apenas um aumento da sangria, um alargamento da nossa ferida, um aprofundamento da nossa tragédia sempre anunciada.

O futebol, como já filosofou Nenê Prancha, é dos esportes mais surpreendentes que há. Mas eu não arregalaria nenhum olho caso o Brasil nunca mais ganhasse qualquer campeonato relevante. Se se transformasse num país do segundo escalão do esporte. Não é agouro. Não é torcida contra. É decepção. Tristeza. Impotência. Sei que qualquer previsão é um chute num estádio às escuras, mas arrisco dizer o seguinte: neste ano selamos a sete gols nosso destino futebolístico.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

'Especulações em torno da palavra homem' - Carlos Drummond de Andrade


Mas que coisa é homem,
que há sob o nome:
uma geografia?


um ser metafísico?
uma fábula sem
signo que a desmonte?


Como pode o homem
sentir-se a si mesmo,
quando o mundo some?


Como vai o homem
junto de outro homem,
sem perder o nome?


E não perde o nome
e o sal que ele come
nada lhe acrescenta


nem lhe subtrai
da doação do pai?
Como se faz um homem?


Apenas deitar,
copular, à espera
de que do abdômen


brote a flor do homem?
Como se fazer
a si mesmo, antes


de fazer o homem?
Fabricar o pai
e o pai e outro pai


e um pai mais remoto
que o primeiro homem?
Quanto vale o homem?


Menos, mais que o peso?
Hoje mais que ontem?
Vale menos, velho?


Vale menos morto?
Menos um que outro,
se o valor do homem


é medida de homem?
Como morre o homem,
como começa a?


Sua morte é fome
que a si mesma come?
Morre a cada passo?


Quando dorme, morre?
Quando morre, morre?
A morte do homem


consemelha a goma
que ele masca, ponche
que ele sorve, sono


que ele brinca, incerto
de estar perto, longe?
Morre, sonha o homem?


Por que morre o homem?
Campeia outra forma
de existir sem vida?


Fareja outra vida
não já repetida,
em doido horizonte?


Indaga outro homem?
Por que morte e homem
andam de mãos dadas


e são tão engraçadas
as horas do homem?
mas que coisa é homem?


Tem medo de morte,
mata-se, sem medo?
Ou medo é que o mata


com punhal de prata,
laço de gravata,
pulo sobre a ponte?


Por que vive o homem?
Quem o força a isso,
prisioneiro insonte?


Como vive o homem,
se é certo que vive?
Que oculta na fronte?


E por que não conta
seu todo segredo
mesmo em tom esconso?


Por que mente o homem?
mente mente mente
desesperadamente?


Por que não se cala,
se a mentira fala,
em tudo que sente?


Por que chora o homem?
Que choro compensa
o mal de ser homem?


Mas que dor é homem?
Homem como pode
descobrir que dói?


Há alma no homem?
E quem pôs na alma
algo que a destrói?

Como sabe o homem
o que é sua alma
e o que é alma anônima?


Para que serve o homem?
para estrumar flores,
para tecer contos?


Para servir o homem?
Para criar Deus?
Sabe Deus do homem?


E sabe o demônio?
Como quer o homem
ser destino, fonte?


Que milagre é o homem?
Que sonho, que sombra?
Mas existe o homem?

sábado, 29 de novembro de 2014

'Dos caminhos do criador', Nietzsche

Queres, meu irmão, partir para o isolamento? Queres procurar o caminho que a ti próprio conduz? Hesite um momento ainda e escuta.

"Quem procura facilmente se perde. Todo o isolamento é um pecado". Assim fala a multidão, o rebanho; e tu pertenceste ao rebanho por muito tempo.

Por muito tempo ainda falará, no fundo de ti próprio, a voz do rebanho. E quando disseres: "A minha conciência já nada tem de comum com a vossa", tal será para ti queixume e dor.

Pois é ainda essa consciência comum que produziu tal dor; e o último clarão dessa consiciência lança ainda um reflexo sobre a tristeza.

Mas tu queres seguir esse caminho da tristeza, o caminho que conduz a ti próprio? Então mostra-me se para tal possuis o direito e a força.

És força nova e direito novo? Primeiro motor? Roda que gira por si própria? Podes obrigar as próprias estrelas a gravitar ao teu redor?

Ai de mim! vêem-se tantas cobiças estendidas para os cumes! Tantas contorções ambiciosas! Mostra-me que não és um disfrutador nem um ambicioso.

Ai de mim! há tantos pensamentos elevados que apenas agem à maneira de um fole: ao dilatarem-se aumentam o vazio.

Dizes-te livre? O que pretendo conhecer é o teu pensamento soberano; não me interessa saber qual o jugo que sacudiste de ti.

És daqueles que têm o direito a subtraírem-se ao jugo? Muitos perderam a última parcela do seu valor no dia em que se libertaram da servidão.

Livre de quê? Pouco importa a Zaratustra. Mas que o teu olhor me diga claramente para que fim és livre.

Saberás prescrever a ti próprio o teu bem e o teu mal, e suspender acima da tua cabeça o teu amor erigido em lei? Saberás ser o seu próprio juiz e o vingador da tua própria lei?

Terrível é um tal diálogo, frente a frente com o juiz e o vingador da nossa própria lei! Assim um astro se vê precipitado no espaço vazio e no hálito glacial da solidão.

Ainda hoje sofres da multidão, ó solitário; ainda hoje dispões da tua coragem inteira, e das tuas esperanças.

Mas venha o dia em que te cansarás da tua solidão, em que o teu orgulho vergará, em que a tua coragem rangerá os dentes. Então hás-de gritar: "Estou só!"

Um dia a tua grandeza escapará ao teu olhar e a tua baixeza apertar-te-á o pescoço, o teu pensamento mais sublime te apavorará, como um fantasma. Um dia gritarás: "Tudo é falso!"

Há sentimentos que procuram matar o solitário; se falham, então que ele os mate! Mas haverá em ti o estofo de um assassino?

Meu irmão, conheces já esta palavra: desprezo? E esse cúmulo da tua justiça... ser justo par com aqueles que te desprezam?

Obrigaste muita gente a mudar de opinião a teu respeito; querem-te terrivelmente mal por isso. Aproximaste-te deles, mas seguiste o teu caminho; nunca to perdoarão.

Passas além deles; mas quanto mais te elevas, mais pequeno te tornas aos olhos dos invejosos. Aqueles a quem mais se odeia, é o que possui asas.

"Como poderíeis ser justos para comigo? deverias tu dizer-lhes. Escolhi para meu quinhão a vossa injustiça".

Eles lançam sobre o solitário a injustiça e a imundície; mas, meu irmão, se quiseres ser uma estrela, não é por isso que os iluminarás menos.

Livra-te dos bons e dos justos. Gostam de pôr na cruz aqueles que são os inventores da sua própria virtude - odeiam o solitário.

Livra-te da santa simplicidade. Tudo o que não é simples lhe parece sacrílego; também ela gosta de brincar com o fogo - o fogo dos autos-de-fé.

E livra-te também dos teus acessos de ternura pelos homens. É comum no solitário ser demasiado rápido a estender a mão à primeira pessoa que lhe aparece.

Há muita gente a quem não deverás estender a mão, mas a pata; e esforça-te por que a tua pata tenha garras!

Mas serás sempre, para ti próprio, o teu pior inimigo; por todo o lado de emboscada, és tu que a ti próprio te espreitas no fundo das cavernas e das florestas.

Solitário, tu segues o caminho que a ti próprio conduz. E nesse caminho encontrar-te-ás a ti próprio, e aos teus sete demônios.

Sentir-te-ás herético e feiticeiro e adivinho e louco e céptico e sacrílego e malfeitor aos teus próprios olhos.

Ser-te-á necessário consumires-te na tua própria chama; como poderias nascer de novo, se te não houvesses consumido primeiramente?

Solitário, tu segues o caminho dos criadores. Dos teus sete demônios tentas fazer nascer um Deus.

Solitário, tu segues o caminho dos apaixonados; é a ti que amas e por isso te desprezas como só os apaixonados sabem desprezar.

É por desprezo que o apaixonado quer criar. Conhecerá o amor aquele que se não sentiu obrigado a desprezar o que amava?

Retira-te para a tua solidão, ó meu irmão, com o teu amor e a tua vontade criadora; só mais tarde te seguirá a justiça, com o seu pé coxo.

Retira-te para a tua solidão, meu irmão, as minhas lágrimas te seguem. Amo o homem que quer criar o que o ultrapassa, e disso perece.

Assim falava Zaratustra.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

'Interstellar' e o desterro

Logo nas primeiras linhas de "Human condition" (1958), talvez seu livro mais famoso, Hannah Arendt descreve o lançamento do Sputnik, o satélite russo que foi conhecido como o primeiro objeto feito pelo homem a entrar propositalmente na órbita da Terra, em 1957. Argumenta que esse evento, que seria o mais importante da humanidade, mais importante até que a fissão atômica, não teria sido recebido com alegria por conta da disputa política da guerra fria, mas com uma ideia de salvação do planeta - no sentido de o homem se salvar deste planeta - como se, na verdade, estivéssemos aprisionados à Terra. E essa reação, diz ela, não respeitaria cores ideológicas, acontecendo tanto entre os americanos-capitalistas, como entre os soviéticos-comunistas.

Nove anos depois do livro de Arendt, seu principal mentor, o intragável Martin Heidegger, muito provavelmente sem lê-la, faz um comentário sobre o tema de maneira que lembra a sua ex-pupila - o "enraizamento" era um de seus principais temas - na famosa entrevista para Der Spiegel: "Eu não sei se não os assusta - seja como for, a mim assusta-me - ver agora as fotografias da Terra feitas da Lua. Não é preciso nenhuma bomba atômica: o desenraizamento do homem já está aí. Nós já só temos relações puramente técnicas. Já não é na Terra que o homem hoje vive".

O repórter, então, retruca: "E quem sabe se o homem está destinado a estar nesta Terra? Seria pensável que o homem não estivesse destinado mesmo a coisa nenhuma. E também se poderia ver sempre como uma possibilidade do homem o lançar-se a outros planetas, a partir desta Terra. Com certeza que já não estamos longe disso. Onde é que está escrito, afinal, que o sítio do homem seja este?"

Mas Heidegger, como sempre, não dá o braço a torcer: "Se estou bem informado, de acordo com a nossa experiência e história humanas, tudo o que é essencial, tudo o que é grandeza surgiu do homem ter uma pátria e estar enraizado numa tradição. A literatura contemporânea, por exemplo, é excessivamente destrutiva."

Há um componente claramente conservador nas palavras de Heidegger. Vide a crítica à literatura contemporânea, que não respeitaria exatamente essa ligação com uma nação. Um tom que pode ser interpretado como de quem quer interromper o caminho do progresso, e retornar a um mundo anterior a isso, não necessariamente idílico, mas que ao menos em que haja uma ligação maior com a terra e com a Terra.

Qual foi a minha surpresa, portanto, quando começaram a anunciar Interstellar, o novo filme de Christopher Nolan, com a frase dita pelo personagem de Matthew McConaughey, Cooper:“Humanity was born on earth, but it was never meant to die here”. Não poderia estar mais em desacordo com Heidegger.

Se o filme peca excessivamente por seu caráter meloso, com um final "feliz" totalmente irreal, não podemos tirar o valor de suas cenas de ação - aquela onda no planeta água é de impressionar. Mas a minha proposta aqui não é analisar o filme, em si, mas pensar além dele, a partir da premissa em que ele se baseia: o homem deveria sair da Terra? Devemos desistir deste planeta e procurar outro? Nosso instinto de sobrevivência nos leva a abandonar tudo e tentar recomeçar do zero?

Contrariando Heidegger, podemos imaginar que mesmo que o homem não tenha produzido nada de grandioso - aos olhos dele - sem ligação com as suas raízes, isso não assegura uma regra geral e irrestrita. Não há nada que nos garanta essa verdade, como mostra o repórter. E, mesmo se fosse o caso, poderíamos estabelecer raízes em outros destinos. Os escritores que escreveram em outras línguas que não as suas primeiras, Nabokov, Conrad, Beckett, etc., dão argumentos para se pensar assim - apesar de Heidegger juntar toda a literatura do seu tempo no mesmo saco da "destruição".

Portanto, isso daria respaldo para a pergunta do repórter e a resposta de Interstellar a Heidegger: precisamos sobreviver antes de viver. Se essa Terra não nos dá mais condições de nos enraizarmos, que procuremos outra terra para vivermos. O problema do filme, me parece, e aí se juntam Heidegger e Cooper, é propor uma saída em que o homem - e não qualquer homem, mas o americano médio ou o Dasein cotidiano - isoladamente está no centro do mundo, das decisões.

Interstellar deixa algumas questões que eles dão for granted, como se diz lá na terra deles, ou, em língua de cristão, dão como certo, óbvio, não são respondidas. A primeira e mais urgente: quem garante que todo mundo quer sair da Terra? Tal pergunta se desdobra em muitas outras: quem vai sair da Terra? Todo mundo? Qual é o critério para essa saída? E quem quiser ficar? Este vai ser abandonado ou terá ainda acesso a recursos? O personagem de Michael Caine chega a dizer em certo momento que eles deveriam esconder as pesquisas porque não seriam aprovadas pela opinião pública. Então, eles estariam acima da opinião pública - quem os colocou lá?

Neste mundo criado pelos irmãos Nolan, a única saída da crise ambiental é, literalmente, sair da Terra. Ou, pior, recomeçar do zero a civilização em outro lugar. E novamente me ficou a questão: Por quê? Por que recomeçar? O que nos faz tão imprescindíveis no universo que não podemos simplesmente desaparecer? O sentimento de preservação é o da espécie ou o do indivíduo?

Sabe-se que a pior forma de se criticar um filme é propor saídas que a obra não assumiu, fazer perguntas que o longa não se propõe a responder. O filme é - ou deveria ser - uma obra fechada que compramos com as suas qualidades e seus defeitos. Se quisermos algo diferente, deveríamos então arregaçarmos nossas mangas e fazermos nós mesmos a carpintaria. Portanto, ou eu aceitaria esse mundo de Nolan, com essas regras e suas lógicas, e isso não é garantia para gostar da obra, ou eu poderia também partir para a minha própria criação.

Mas fiquei com a impressão, e isso não é exatamente uma escolha, de que Interstellar dá bastante razão às preocupações de Hannah Arendt. O filme me está dizendo que, bem, o homem é maior que a Terra. Este lugar azul não conseguiu aguentar os grandes sonhos de sua mais famosa criação e pediu concordata. Temos que nos livrar daqui para poder continuar a sonhar, a viver como sempre vivemos, sem mudar nossos hábitos. E quando destruirmos outro planeta, mudamos novamente. É uma possibilidade moralmente inócua.

Ao fim, parece que Interstellar deixa clara sua proposta inicial: somos nômades. Sempre fomos. Sempre seremos. O mundo deve se adaptar a mim, não o inverso. Assim, joga fora toda a nossa História, desde que optamos por nos estabelecer em aldeias, povoados, cidades, países - o que novamente não é um problema em si. Mas deixa uma outra pergunta ao fim: é possível dar um boot na humanidade? É possível viver de outra forma? Esperemos pela continuação.

sábado, 15 de novembro de 2014

Alcançar o infinito

"Dizia o filósofo alemão Heidegger — Manoel o admirava — que, no mundo dominado pela ciência e pela técnica, estamos perdendo o chão. A falta de chão nos torna a cada dia mais dependentes das coisas técnicas (do carro ao Facebook). Precisamos, diz o filósofo, aprender a tratar essas coisas técnicas com indiferença, acompanhada de uma abertura para o mistério. Assim, poderemos criar novamente raízes no chão, para podermos alcançar o infinito"

Adalberto Müller, talvez o maior especialista em Manoel de Barros, consegue definir bem o que eu quero dizer, falando do poeta. O resto do texto, aqui:
http://oglobo.globo.com/cultura/livros/artigo-eulogia-para-manoel-14555679

 

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

O preto no branco e os muitos tons de várias cores

Existem dois tipos de pessoas: as que dividem o mundo em dois tipos de pessoas e as que acham isso uma besteira. Eu faço parte do segundo grupo.

Durante um tempo, houve uma discussão muito grande sobre se seria possível a máquina, os robôs, a tecnologia enfim, substituir os humanos. Os defensores dos humanos pensavam que o homem e a mulher seriam impreteríveis porque não poderiam ser apreendidos, englobados, encapsulados. Como os humanos sempre tivéssemos algo que fugisse de uma relação de previsibilidade, que seria o modo de operar das máquinas - repetir para aperfeiçoar.

Por conta disso, a tecnologia sempre correria atrás, perseguiria esse caminho que foge da compreensão racional, do esperado, do planejado. Até conseguiria ser melhor que o homem e a mulher nesses processos, até mesmo tornando o humano algo ultrapassado, no processo do cotidiano reprisado. Não precisamos mais de Charlie Chaplins para apertar parafusos, algum Wall-e já faz isso por nós.

Chegamos a cogitar que a tecnologia poderia, inclusive, começar a prever nossas necessidades e criar artefatos inovadores que pudessem substituir até mesmo a capacidade do humano de ser imprevisível. Mas sempre percebemos que nossas demandas, mesmo em situações que se investe bastante em futurologia, como previsão do tempo ou diagnósticos médicos, são sempre inusitadas. A imprevisibilidade é parte integrante, quase essencial, do mundo. Até hoje, não se criou qualquer matriz [matrix?] matemática que enxergue o futuro de forma clara. Os chutes são cada vez mais precisos, mas os erros milimétricos ganham mais destaque igualmente.

O futuro é tão inesperado que jamais imaginaríamos o que está acontecendo agora. Ou melhor, que está acontecendo já há muito tempo, mas cuja velocidade de transformação vem se acentuando em uma aceleração exponencial. Em vez de achar que as máquinas conseguiriam, um dia, pensar como os humanos, acabou acontecendo o inverso: nós, humanos, estamos cada vez mais pensando como máquinas.

Com frequência assustadoramente crescente, estamos respondendo aos nossos problemas utilizando uma lógica que, na falta de nome melhor, poderíamos chamar de código binário. É sempre da ordem do "ou isto ou aquilo", ou Fla ou Flu, ou Dilma ou Aécio. Não se consegue ver - ou não se quer ver - que há muito mais coisas entre o céu e a terra do que imagina as vãs matemáticas utilitárias que usam o 0 e o 1 para tentar decifrar todos os nossos problemas. Não se consegue ver - ou não se quer ver - que há muito mais times, muitos outros esportes, muitas outras formas de se entreter que não assistindo a uma partida em que 11 homens de cada lado correm atrás de uma bola. O mundo não necessariamente é, mas pode ser mais complexo que isso.

Esse é o problema. Ao complexificar essas relações, ao colocar mais dúvidas que certezas (já que com o código binário é bem mais simples: uma resposta está certa enquanto a outra está errada) perdemos velocidade de reação. Temos que avaliar cada uma das possibilidades, pensar seus prós e seus contras, perceber que nenhuma opção está isolada no mundo, que já faz parte de uma outra teia de relações, que por sua vez também está inserida em um outro mundo completamente diferente, que interfere numa série de outras vidas que nós nem imaginávamos, e assim por diante. Não é uma equação do primeiro grau que vai resolver isso. É um pensar que envolve, muito e principalmente, a sensibilidade.


Não deve ser coincidência, portanto, que estamos menos e menos afeitos ao sensível, aquilo que mexe com nossas emoções, que nos faz sonhar - até mesmo falar sobre isso parece algo uncool. Vivemos num ritmo de acumulação, de lugares visitados, de mulheres e homens com quem transamos, de dinheiro que guardamos, de status que enchem o nosso ego, de cervejas diferentes e cada vez mais esdrúxulas tomadas, e cada vez menos num humor de contemplação, de sentimentos, de mergulhar em algo um pouco abaixo da superfície. Relaxamos no fim de semana ou temos nossas obrigatoriedades festivas? Viajamos nas férias ou tentamos apenas colecionar destinos? Trabalhamos porque gostamos, porque acreditamos, ou precisamos somente ganhar o salário no fim do mês para pagar os nossos remédios antimonotonia? Em que momentos nos escutamos?

Não dá para dizer que é certo ou errado agir assim ou assado: cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é, já dizia o Caê. Mas ao perdemos as nuances entre o preto e o branco, perdemos junto o caminho de qualquer tipo de diálogo - com quem quer que seja. Para qualquer diálogo, aquele em que se tenta construir algum tipo de ponte, para se chegar a outro lugar além de si, é necessário uma pequena recusa das suas próprias propostas. É preciso enxergar dentro de si uma cor que seja uma cor parecida com a do seu interlocutor. Só assim é possível escutá-lo, não para concordar com ele, nem mesmo para mudar de opinião, mas para saber que não somos os únicos no mundo, nem indivíduos solitários. Como disse dona Hannah Arendt, neste mundo, não há o homem, mas os homens. Somos, gostemos ou não, plurais.

Quando optamos por uma relação de preto no branco, estamos nos isolando e, pior, colocando o interlocutor do outro lado do tabuleiro, da praça de guerra, da vida. Quando você opta pelo código binário, eu certamente vou estar sempre do outro lado.

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Manual para discussões na internet

Não ria. Temos que conter a vontade de gargalhar ao pensar que precisamos de um manual para comportamento, uma etiqueta pós-moderna. A verdade é que essa eleição está se mostrando um ambiente perfeito para que as discussões se acirrem muito fortemente. Há uma polarização imensa entre os dois candidatos ao governo federal, que é abastecida pelas suas torcidas, como se eles fossem times de futebol. E, como diz o seu Elio Gaspari hoje, essa eleição será plebiscitária: ambos pedem o voto com o único argumento de que o outro é pior que você [ver: Ressentimento].

Portanto, para tentar não convencer o outro - aquele diferente de você - de que o seu partido e candidato são os melhores, sugiro um procedimento para que consigamos conversar com o outro para conservar a amizade.

Seguindo uma dica da professora Déborah Danowski, que por sua vez cita Deleuze, poderíamos dizer que
O ser de direita é sempre perceber as coisas a partir de si mesmo, como num endereço postal. Assim: eu, aqui, neste lugar, na minha casa, na rua tal, na praia de Botafogo, Flamengo, Rio de Janeiro, América do Sul. E você pensa o mundo, ali, como uma extensão de si mesmo. E cada vez que você se afasta, vai perdendo interesse, a coisa vai decaindo de valor. E ser de esquerda é o contrário: vai do horizonte até a casa.
Daí, poderíamos pensar em algum lugar onde os dois se encontram. E é só a partir desse encontro que podemos dialogar. Somente quando temos algo em comum, quando dividimos alguma certeza, alguma verdade, quando estamos andando sobre o mesmo chão é que temos a capacidade da troca, que é o início - ou deveria ser - de uma discussão. Exemplo-mor: Se não falamos a mesma língua, como vamos conversar, quiçá debater? Mas a língua é a condição básica. É necessário um outro fundamento para funcionar como fiel da balança e para que o embate tenha algum proveito. Se não...

Outro exemplo: Uma vez, quando fiz uma brincadeira sobre esquerda e direita, fui xingado [dá para conferir nos comentários], e não consegui dialogar com as pessoas que me xingavam porque não dividíamos o mínimo de lugar-comum.

Quando escrevi que "A esquerda quer arte engajada. A direita acha que a arte deve mirar o sublime. A extrema esquerda não acredita em arte que não seja política. A extrema direita queima livros que não concordem com ela. O centro leu "O pêndulo de Foucault", mas prefere não opinar para não ferir suscetibilidades", a resposta que eu recebi foi: "quem queima livros é a extrema esquerda".

Para esse rapaz [ou moça, ele/a não se identifica], me pareceu, Hitler seria de extrema-esquerda. Temos um conflito cognitivo imenso aí. Eu o [Hitler] colocaria no outro lado do espectro político, por uma série de comportamentos e políticas, como a xenofobia e o preconceito generalizado, o ideal de desenvolvimento a qualquer custo, o parâmetro fixo e excludente. Dentro da definição da Déborah, o nazista é um narcisista elevado a enésima potência [narcizista?].

A questão, para o comentarista do outro post, porém, é outra, suspeito. Apesar de ele não se explicar, tento acompanhá-lo: como a política nacional-socialista tinha no nome "socialista", além de pensar num Estado poderosamente forte, que invade as privacidades, essa política só poderia ser de esquerda, extrema-esquerda. Para ele/a, a diferença entre esquerda x direita se atém principalmente ao papel do Estado. Quanto mais interferência na vida individual, no mercado, nas "liberdades", mais ligado à esquerda. O inverso também se aplicaria.

Curiosamente, nesse caso, a direita se liga ao "liberal". Liberal, no sentido clássico, inglês. Em outras palavras, Adam Smith. Porque é possível ser liberal, no comportamento, ou seja, querendo que o Estado interfira o mínimo nas minhas individualidades, seja em relação à chamada pauta moralista [drogas, aborto, LGBT], mas, ao mesmo tempo, querer que o Estado seja intervencionista na economia, se metendo nas regras do jogo do mercado, porque não se acredita na isonomia da mão-invisível. Nesse caso, não precisa ser comunista, socialista ou outra coloração avermelhada para não querer que a economia fique com os abutres. Pode ser keynesiano - que estava longe de ser um revolucionário. A paleta de cores é grande.

É complicadíssimo estabelecer um diálogo com alguém sem entender razoavelmente o que o outro quer falar. Algumas vezes, apenas falamos em dialetos diferentes. Em geral, porém, temos a tendência de lutar com o que for possível para vencer o diálogo, impor o que sabemos como única verdade existente, e nos desesperamos ante a qualquer argumento contrário, que não enxerga o "óbvio". Somos em geral arrogantes, detentores do certo, do ético, do correto, totalmente seguros de si, desmerecedores, em tom de ironia destrutiva e corrosiva, do outro. Ou simplesmente grosseiros - como foi o caso dos comentários do outro post. O raciocínio é simples: Ele é imbecil e pronto. Fim da discussão. Próxima polêmica, por favor, onde eu possa dar a minha visão superior.

Talvez, e finalmente, estejamos aprendendo o que é a opinião pública - mais de 200 anos depois do iluminismo francês, e quase 200 anos após a criação do Speaker Corner, no Hyde Park londrino. Porém, essa defasagem deixa muitas marcas, marcas que o tempo só acentua. A nossa opinião pública cada vez mais parece uma afonia de vozes surdas, um conjunto de opiniões privadas que não criam qualquer música, além do mero barulho. Uma sugestão sem querer criar uma regra: talvez fosse melhor escutarmos, e muito, antes de falarmos qualquer coisa.

domingo, 5 de outubro de 2014

Panorama das eleições - 1o turno

Por uma série de razões [incompetência, falta de tempo, polêmicas se atropelando...], não consegui dar qualquer pitaco sobre as eleições neste primeiro turno. Fiquei, então, com o cargo de observador-cronista-crítico das posições políticas que observei, o que me deu mais vontade de escrever do que sobre a eleição em si. Mais vontade porque, de certa forma, durante muito tempo, a eleição para a presidência não me preocupou: Dilma e Marina são candidatas equivalentes para ocupar o cargo [Aécio, não]. Equivalentes, não iguais.

Não são perfeitas, têm milhares de defeitos diferentes entre si, mas de algum modo perverso, funcionam como análogas, caso você afaste o microscópio. Nos detalhes, são quase opostas [uma ambientalista, outra desenvolvimentista; uma pretensa esquerdista pré-68, outra pretensa esquerdista pós-68; uma pragmática outra idealista, etc.], mas numa visão aérea, distante, sem pormenores, as duas seriam confundidas, suspeito. Os seus defeitos são intercambiáveis e no fim vira um grande "tanto-faz" sobre quem for eleita.

Novamente, e para deixar bem claro isso: Aécio, por sua vez, não é equivalente às duas candidatas mulheres. Ele claramente representa o reacionário [no sentido de manter políticas de privilégio] e liberal [no sentido de econômico de deixar o mercado nas mãos apenas dos tubarões].

O que sempre me espantou foi as eleições para o governo dos estados: Alckmin, sendo reeleito num estado que está sofrendo de falta d'água; Pezão, vice-governador de Cabral, liderando as pesquisas num estado onde se acampou na porta do então governador por semanas, em sinal de protesto contra a violentíssima política de segurança. Claro que dá para entender os motivos dessas votações [um sentimento forte anti-petista, no primeiro caso; uma tentativa de fazer "voto útil" logo no primeiro turno contra Garotinho, no segundo], mas não consigo entender.

Com isso, me restou acompanhar das trincheiras, como um espectador de novela, os comentários entre os partidários dessa guerra pseudo-ideológica que foi palco o faketruque. Foi difícil segurar o ímpeto de me intrometer [só opinei em um caso de mentira deslavada], foi complicado aguentar tanta artilharia pesada vinda de todos os lados que mais queria ferir que construir, mas eu sobrevivi, sobrevivi para contar. :-)

Não precisa ser um gênio para perceber os públicos ali envolvidos, mas quero deixar registrado, como forma de crônica de uma eleição anunciada: O Brasil está dividido ao meio. De um lado quem apoia o projeto que se chamou lulo-petista, do outro, os muito e muito diferentes entre si contra isso.

Por mais curioso que possa parecer para quem se lembra da mesma crítica levantada ao outro espectro político, o projeto lulo-petista, que é, em tese, ou que se vende como tal, de esquerda, é bem mais coeso que o adversário. A chamada oposição está esfacelada - muito provavelmente por culpa dela mesma. Não há oposição porque e/ou não se sabe, e/ou não se conseguiu, e/ou não se quis fazer oposição nos últimos anos.

Entre os oposicionistas, há claramente de três a quatro grandes divisões: anti-petistas, claramente reacionários; os marinistas, ligados às causas mais atuais, verdes, tecnológicas; e os esquerdistas, que querem puxar o debate mais para a esquerda - grupo que ainda se divide entre os anarquistas e os mais pragmáticos [nomes todos meus, claro]. Vou tentar traçar o perfil de cada um desses grupos aqui, mas se há algo que os une, em linhas muito gerais, e o que é muito curioso, é a lógica do ressentimento. Não se vota a favor do próprio candidato, na maioria das vezes, mas contra o outro. Aponta-se o indicador para o outro e se esquece dos outros quatro dedos que miram o próprio.

Ou, do lado exatamente oposto, há um sentimento de grande desesperança coletiva porque não haveria nenhum político "bom". Sentimento este muito parecido com a descoberta de que deus não existe, nem mesmo existe o papai noel ou o coelhinho da páscoa. Puxa-vida.

Mas como ser extremamente coerente para governar um país de 200 milhões de diferentes almas? Como agradar a gregos, troianos, espartanos, cretenses, efésios, e tantas e tantas outras populações? [Daí algumas pessoas falarem sobre a importância dos governos menores, como prefeituras e centros comunitários. Mas isso é papo para outro dia.] Aos eleitores, pois:

Lulo-petistas
Por conta do tamanho do eleitorado, há muitas divergências entre esses, mas há algo que os une: Percebe-se que houve avanços sociais inegáveis nos últimos 12 anos. Inegáveis até para os adversários, que mantêm seus discursos sobre a manutenção dessas mesmas políticas [Bolsa família, Pro-Uni, Minha casa, Mais médicos...]. Esses eleitores nem sempre concordam com tudo o que o projeto lulo-petista pratica, mas o prefere, claramente, contra os adversários. Provavelmente por isso, há uma demonização dos principais adversários.

Os ataques a Aécio antes da morte do Eduardo Campos [aliás, que eleição foi essa, hein?], e depois, mais fortemente contra Marina são prova disso. Marina, claro, não se ajudou, voltando atrás de políticas mais liberais, mas os partidários do projeto lulo-petista pegaram essas fraquezas da Marina e fizeram troça. Chafurdaram. Sambaram na cara.

Se ela recuou sobre o casamento entre homossexuais, é porque é evangélica e obedece ao Silas Malafaia. Se tem o Giannetti e o Lara Resende na equipe econômica, é porque é neoliberal. Se muda sobre a lei da anistia, é porque é ligada aos militares torturadores da ditadura. Todas associações muito rápidas que nem sempre se comprovam na realidade.

Porém e o principal: todas essas são posições que o lulo-petismo não só defendeu como praticou. Ou Lula ou Dilma tocaram nas causas ditas moralistas [aborto, drogas, LGBT etc.], cortaram os lucros dos grandes bancos ou revisaram a lei da anistia? No fundo, os dilmistas criticavam na Marina algo que a candidata deles fazia exatamente igual.

Marinistas
Esses, para mim, são os mais interessantes. Marina nunca ganhou uma eleição majoritária, sempre participou do legislativo, e quando foi para o executivo, como ministra, se sentiu sufocada e pediu para sair. Isso talvez seja a explicação dos diversos erros que ela cometeu nessa candidatura.

Com a morte de Eduardo Campos [novamente: que eleição!], Marina ganhou todos os votos e mais um pouco dos dedicados ao seu antecessor. Ela virou um sinônimo de uma política que poderia ser de esquerda, verdadeiramente de esquerda, mas que se importaria com causas que o governo lulo-petismo parecia não se importar, como as verdes ou a de proteção de populações minoritárias fora do eixo urbano. Era alguém que encarnava uma esquerda que não pensa em crescer o bolo para dividir, que não divide a sociedade em apenas classes sociais, que sai do âmbito da política quadrada, de dentro de gabinete e protocolar. Em suma, parecia a personagem perfeita para incorporar a vontade das ruas do ano passado. Parecia. Com a ajuda dos dilmistas e dos aecistas, ela se auto-implodiu.

Os marinistas não conseguem mais declarar seu voto em altos brados, como foi no início da sua campanha. Há uma vergonha atravessada na garganta, como uma espinha de peixe. Há uma dificuldade de se aceitar a posição dela ambígua em relação aos ruralistas, por exemplo. Como uma verde negocia com gente assim? É uma contradição que não consegue se sustentar, porque ataca seu eixo principal.

Entre os que votam em Marina, há ainda aqueles que querem apenas votar contra o PT. O que nos leva ao próximo grupo de eleitores.


O anti-petismo
Entre esses, não importa quem vença a eleição, desde que não seja Dilma. O sentimento é de nojo contra o PT e Lula, muito parecido com o que havia quando eu era moleque contra Brizola. A piada, então, era "Brizola? Isola". Me parece uma posição reacionária, no sentido clássico, de querer voltar a ser o que era, antes de Lula.

A principal bandeira desse grupo é a da moralidade no sentido da lisura com a coisa pública. Muito parecida, aliás, com a levantada por Collor em 1989, quando se anunciou como "o caçador de marajás". Apregoam o voto contra Dilma como se a compra de votos de parlamentares para a processo de privatização da Vale ou para a emenda constitucional para a reeleição em cargos executivos, ambos no governo tucano de FHC, não tivessem existido. Ou que o mensalão não tivesse aparecido no governo do Azeredo, do PSDB, em Minas Gerais. Ou que o governo eterno do PSDB de São Paulo não estivesse sendo investigado por corrupção nas obras de expansão do metrô. Marina, claro, sai na vantagem com esse argumento da lisura, mas sua fraqueza em outros aspectos detonam sua imagem aqui.

Além do argumento da propensa honestidade, se usam de argumentos elitistas e de manutenção de privilégios - às vezes nem se dando conta disso. Os símbolos aqui são outros, não necessariamente diretos porque, bem, ninguém no Brasil é machista, racista ou tem qualquer preconceito. Mas não se vota no PT porque o Lula é analfabeto, Dilma é mulher [Marina entra no balaio igualmente], pobre agora frequenta os mesmos lugares que eu, tem muito preto na faculdade, gente que não sabe se comportar em ambientes públicos. O melhor-pior argumento que eu cheguei a presenciar foi: a inflação cresceu [o que já é uma falácia] com os serviços caros porque se paga muito pelos empregados, que não são qualificados para receber tanto.

Esquerdistas
Por fim, há esse pequeno, porém barulhento, grupo que quer puxar a discussão mais para a esquerda: Quer introduzir a discussão sobre as pautas morais [aborto, drogas, LGBT...], quer pensar outro modelo econômico para o país, diminuir a grande desigualdade social que ainda existe, planejar um futuro mais igualitário para todo mundo.

Nesse grupo, há os pragmáticos, que conseguem enxergar em algum candidato alguém que represente esses anseios. Entre os pragmáticos, ainda há os: pragmatíssimos, que votam nos principais nomes [principalmente Dilma] abrindo mão de alguma dessas bandeiras para focar em outras, que acham mais importantes [como o caso da desigualdade social à custa da destruição ambiental, por exemplo]; e os pragmatinhos, que votam em candidatos menos expressivos [Luciana Genro, mas também Eduardo Jorge], porque são os únicos que falam sobre esses temas de maneira aberta, mas que não tem qualquer chance [eleição não é só para vencer, minha gente!].

E há os anarquistas, que querem outra forma de política, e sugerem não votar.

Estes sugerem que pensar que a participação na democracia deve acontecer apenas de dois em dois anos é se abster dos destinos do país pelos outros dois anos e se achar o super-importante quando vai a uma urna eletrônica. Pensar que a democracia representativa é a única forma de se mudar o país é ter uma visão antiquada e, muito pior, covarde.

Falta água em São Paulo não apenas porque os governos foram gananciosos e acabaram com o ambiente do estado, mas porque nós, paulistas, consumimos muito, muito mais que o estado consegue produzir. Mata-se muito no Rio porque nós, fluminenses, queremos que se mate muito os pobres nas favelas, e assim podemos nos sentir seguro. Nós somos o problema.

Enquanto acharmos que o problema político é dos outros e não nosso - meu! - só ouviremos reclamações e acusações contra o outro lado. É a lógica do ressentimento.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

A posição de Deus

Não creio em Deus, mas acredito que exista uma posição de Deus. Não um lugar, um espaço físico reservado para um ser de barba branca que tudo sabe, tudo vê e tudo pode. Mas uma postura que seria negada aos homens e reservada apenas para esse Deus-que-não-existe. Uma forma de comportamento, um jeito de ser que todas as vezes que o homem tenta repetir se dá mal. Uma prepotência, mas uma prepotência não dada aos pobres mortais, uma prepotência em que a potência aí é de uma voltagem maior que o homem aguentaria. E o homem sempre se queima feio.

A história está cheia de exemplos desse tipo. Pensemos em Prometeu, para começar. Tentou roubar o fogo dos deuses, para de alguma maneira ter o mesmo poder deles, e foi condenado por esses mesmos deuses, vingativos, à eternidade a ter o fígado comido pelos abutres durante o dia, enquanto de noite o órgão se regeneraria - fazendo com que o martírio jamais acabasse. Mas não aprendemos com Prometeu. Pense em César, que ainda tentava segurar o ímpeto de ter dominado Europa, norte da África e parte da Ásia com a ajuda do ajudante, mas que acabou morto por um amigo, por exatamente ter concentrado demais o poder em si mesmo. Ou, mais recentemente, me lembrei agora, de "Scarface". Ou, mais próximo da gente, mesmo, de Eike.

Eu já escrevi sobre um desses momentos "divinos" de um dos grandes homens que já dividiram a humanidade conosco. Nada me tira da cabeça que Nietzsche entrou em colapso quando, já debilitado, percebeu que ele não era o Übermensch, o tal do além-do-homem, muitas vezes traduzido por super-homem, que ele pensava ser. Como se percebesse que sua proposta de comportamento ético/estético não era atendido por si mesmo. Que o Zaratustra não pregava nem mesmo para o seu criador.

Não foi o único, porém, a ter tido uma pane após um momento de grande estresse. Algo parecido - menos dramático, como aliás tudo em sua vida, mas certamente mais épico - aconteceu com Heidegger. É curioso como a história vai envolvendo o filósofo de Meßkirch, elevando-o para fora da realidade, até que ele simplesmente despenca. E o som do corpo dele no chão é parecido com aquele de Hiroshima ou Nagasaki. Quanto mais alto estamos, maior é a queda.

Em 1927, Heidegger publica sua obra mais famosa: Ser e tempo. Foi feita às pressas, para que ele assumisse a cátedra que era de Husserl, seu mais famoso professor, em Freiburg. Sua proposta era investigar o "ser", em vez de se ater apenas aos "entes", onde, ele reclamava, toda a tradição filosófica tinha se mantido. Em outras palavras, ele queria responder à famosa pergunta: o que nós somos? O que está lá em nosso cerne? O que é a nossa verdade mais verdadeira? Qual é o chão que todos nós pisamos?

Queria responder a isso, mas sem precisar usar de subterfúgios, de qualquer outra explicação que não fosse apenas o ato de "ser" mesmo. Não queria dizer que somos isso ou aquilo, porque isso seria resumir demais o que seria o ser. Chegou a sugerir um bom caminho de resposta, quando acrescentou o conceito de temporalidade, lembrando que somos a cada momento algo diferente. Mas não se deu por satisfeito. Entregou a obra incompleta, segundo o seu planejamento, percebendo que tinha, de alguma maneira estranha para uma obra que veio a fazer tanto sucesso, fracassado.

Mas antes mesmo da publicação do livro e de ele assumir a cátedra que fora de Husserl, Heidegger já era chamado de "O rei oculto" da filosofia, conforme lembrou Hannah Arendt, então sua discípula e amante, no texto em comemoração aos 80 anos de Heidegger.
For Heidegger’s “fame” predates by about eight years the publication of Sein und Zeit (Being and Time) in 1927; indeed it is open to question whether the unusual success of this book—not just the immediate impact it had inside and outside the academic world but also its extraordinarily lasting influence, with which few of the century’s publications can compare—would have been possible if it had not been preceded by the teacher’s reputation among the students, in whose opinion, at any rate, the book’s success merely confirmed what they had known for many years.
Logo após a publicação do livro, sua fama cresce enormemente, como se lê aí em cima. Ele consegue a cátedra e, pouquíssimos anos depois, num período que para sempre vai manchar a sua reputação, ele se associa ao partido Nacional-Socialista. Num lance para lá de estranho, ele aceita virar reitor da mesma universidade - cargo que ocupa por pouco tempo, mas cujo período o persegue até hoje.

Muito já foi escrito sobre essa passagem, esse deslumbre. Não sem receio de resumir demais, sugiro que ele tenha entrado para o partido nazista para tentar "salvar" a Alemanha, do que ele chamava "bagunça" que o país tinha se enfiado após a 1a guerra. E tenha saído do partido por conta de uma espécie de decepção com o ritmo lento dessa salvação. Ele queria mais organização, mais militarização da vida cotidiana, mais ordem. Mas nem mesmo o nazismo conseguiu transformar, na velocidade que ele queria, a mentalidade da nação.

Após sair da reitoria, ele começa a ser perseguido. De um dos orgulhos do partido, vira vidraça. Resolve, então, salvar Nietzsche dos nazistas, com as famosas aulas sobre o conterrâneo - e para sempre vai usar esse argumento a seu favor na hora de se defender. Logo depois começa a guerra.

Sem ter tido acesso aos cadernos negros, só posso imaginar o que se passou na cabeça dele. O editor deles, que aliás vem num evento em São Paulo mês que vem, assegura que "pela primeira vez, é preciso dizer que Heidegger não só se engajou pelo nacional-socialismo, o levou muito a sério e durante um certo período o acompanhou com simpatia – para depois criticá-lo severamente; além disso, vemos agora que ele também abriu seu pensamento filosófico ao antissemitismo".

Dando uma bisbilhotada no famoso "Beiträge...", uma coleção de textos filosóficos de fôlego curto escritos um pouco antes da guerra, dá para ver que uma mudança estava em curso. Marco Antonio Casanova - autor da tradução em português - explica como tal obra é a demonstração de que já, então, havia uma crítica ao trabalho anterior de Heidegger. Estava sinalizada uma mudança profunda de sua perspectiva. Mas ainda não totalmente.

Logo após o fim da guerra, ele tem que passar pelo comitê de desnazificação, é criticado fortemente pelo seu então amigo-do-peito Karl Jaspers, é impedido de dar aulas até 1950 e acontece, enfim, a queda física: Heidegger tem um colapso nervoso em 1946. Menos dramático que Nietzsche, com certeza, mas também certamente mais épico.

Quando volta a produzir, Heidegger é outro. No fim do mesmo ano, escreve uma carta, a tão citada "Carta sobre o humanismo", para Jean Beaufret, talvez o seu maior entusiasta na França, onde já demonstra com todas as letras que houve uma mudança. Tal mudança foi apelidada por ele mesmo como "Kehre", ou, como ficou conhecida em português, "virada", ou "viragem". Já não tenta observar a totalidade do ser, como se soubesse que essa posição não pertencesse aos homens, mas somente ao divino. Atem-se, desde então até a sua morte, aos entes. Pelo restante da sua vida, vai falar sobre a questão da tecnociência, da linguagem. Vai revisitar Kant, Hegel, Nietzsche rapidamente, os pensadores originais, como Parmênides e Heráclito. Nunca mais escreve um texto com tanto fôlego como Ser e tempo. Transforma-se em mais um no meio do mundo.

Curioso como até mesmo as chamadas mais brilhantes mentes da humanidade não conseguem fugir de um dos sentimentos mais comuns dos seres humanos: a vaidade. Não espanta, então, que Milton, o diabo interpretado pelo mesmo Al Pacino que imortalizou Scarface citado lá em cima, o considere seu pecado favorito.

Na verdade, ainda em tempo, nada contra a vaidade. Mesmo. O problema é a posição divina. Se colocar acima dos outros, numa posição de superioridade, de pensar maior ou melhor. Mesmo Heidegger ou Nietzsche, ou qualquer grande homem que fundou escolas, academias, religiões, nunca foram melhores ou essencialmente diferentes que qualquer outro sujeito que andou por estas terras. Todos somos humanos, demasiadamente humanos.

domingo, 21 de setembro de 2014

El deseo, de Octavio Paz

Y quizá el verdadero nombre del hombre, la cifra de su ser, sea el Deseo. Pues ¿qué es la temporalidad de Heidegger o la «otredad» de [Antonio] Machado, qué es ese continuo proyectarse del hombre hacia lo que no es él mismo sino Deseo? Si el hombre es un ser que no es, sino que se está siendo, un ser que nunca acaba de serse, ¿no es un ser de deseos tanto como un deseo de ser?
Curioso como Octavio Paz nessa passagem de "El arco y la lira" volta com o conceito de "desejo" para tentar decifrar o homem. "Desejo" que tinha sido colocado de lado por Heidegger ao avaliar Nietzsche, no famoso texto "A palavra de Nietzsche: 'Deus está morto'" - se interpretarmos de maneira muito ampla o que quer dizer "desejo" e diminuirmos o escopo do que é / seria a "Vontade de potência" de Nietzsche.

Paz continua, e talvez dê mais dicas de como ele está pensando mais próximo de Nietzsche do que imaginamos, quando sugere uma vida mais "estética", no lugar de "ética" [aqui como trocadilho no sentido de moral]:
En el encuentro amoroso, en la imagen poética y en la teofanía se conjugan sed y satisfacción: somos simultáneamente fruto y boca, en unidad indivisible . El hombre, dicen los modernos, es temporalidad. Mas esa temporalidad quiere aquietarse, saciarse, contemplarse a sí misma. Mana para satisfacerse. El hombre se imagina; y al imaginarse, se revela. ¿Qué es lo que nos revela la poesía?
Um dos aspectos mais interessante - ou que me chamou mais a atenção porque me vi muito refletido, e que nessas passagens citadas aí apenas são indicadas - é a tentativa de mostrar como não haveria apenas uma dualidade para se explicar o homem, no caso como ele mesmo diz, o ser e não ser, mas que o homem seria a relação do "entre" esses dois polos, ditados pelo ritmo [é sempre muito bom quando você vê que não é original], indo de um lado a outro, sem muita previsibilidade.

Daí, talvez, podemos pensar que o ritmo seria criado pelo desejo, que nos leva a ser outro a cada instante, mesmo que continuemos o mesmo. E, dessa forma, o desejo e a vontade sairiam de dentro do homem, tirando o poder antropocêntrico, e entrariam numa região, novamente, do entre, em que tais conceitos se confundiriam com o devir. Em suma: somos sendo como podemos e desejamos.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

La metahistoria

"Las sociedades son históricas pero todas han vivido guiadas e inspiradas por un conjunto de creencias e ideas metahistóricas. La nuestra es la primera que se apresta a vivir sin una doctrina metahistórica; nuestros absolutos - religiosos o filosóficos, éticos o estéticos - no son colectivos sino privados. La experiencia es arriesgada. Es imposible saber si las tensiones y conflictos de esta privatización de ideas, prácticas y creencias que tradicionalmente pertenecían a la vida pública no terminará por quebrantar la fábrica social. Los hombres podrían ser poseídos nuevamente por las antiguas furias religiosas y por los fanatismos nacionalistas. Sería terrible que la caída del ídolo abstracto de la ideología anunciase la resurrección de las pasiones enterradas de las tribus, las sectas y las iglesias. Por desgracia, los signos son inquietantes."

Octavio Paz, ao receber o Nobel de literatura em 1990.
Alias, todo discurso é genial. Para lê-lo, aqui.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

'El perseguidor' - Cortázar, trecho

Como es natural mañana escribiré para Jazz Hot una crónica del concierto de esta noche. Pero aquí, con esta taquigrafía garabateada sobre una rodilla en los intervalos, no siento el menor deseo de hablar como crítico, es decir de sancionar comparativamente. Sé muy bien que para mí Johnny ha dejado de ser un jazzman y que su genio musical es como una fachada, algo que todo el mundo puede llegar a comprender y admirar pero que encubre otra cosa, y esa otra cosa es lo único que debería importarme, quizá porque es lo único que verdaderamente le importa a Johnny.

Es fácil decirlo, mientras soy todavía la música de Johnny. Cuando se enfría... ¿Por qué no podré hacer como él, por qué no podré tirarme de cabeza contra pared? Antepongo minuciosamente las palabras a la realidad que pretenden describirme, me escudo en consideraciones y sospechas que no son más que una estúpida dialéctica. Me parece comprender por qué la plegaria reclama instintivamente el caer de rodillas. El cambio de posición es el símbolo de un cambio en la voz, en lo que la voz va a articular, en lo articulado mismo. Cuando llego al punto de atisbar ese cambio, las cosas que hasta un segundo antes me habían parecido arbitrarias se llenan de sentido profundo, se simplifican extraordinariamente y al mismo tiempo se ahondan. Ni Marcel ni Art se han dado cuenta ayer de que Johnny no estaba loco cuando se sacó los zapatos en la sala de grabación. Johnny necesitaba en ese instante tocar el suelo con su piel, atarse a la tierra de la que su música era una confirmación y no una fuga. Porque también siento esto en Johnny, y es que no huye de nada, no se droga para huir como la mayoría de los viciosos, no toca el saxo para agazaparse detrás de un foso de música, no se pasa semanas encerrado en las clínicas psiquiátricas para sentirse al abrigo de las presiones que es incapaz de soportar. Hasta su estilo, lo más auténtico en él, ese estilo que merece nombres absurdos sin necesitar de ninguno, prueba que el arte de Johnny no es una sustitución ni una complementación. Johnny ha abandonado el lenguaje hot más o menos corriente hasta hace diez años, porque ese lenguaje violentamente erótico era demasiado pasivo para él. En su caso el deseo se antepone al placer y lo frustra, porque el deseo le exige avanzar, buscar, negando por adelantado los encuentros fáciles del jazz tradicional. Por eso, creo, a Johnny no le gustan gran cosa los blues, donde el masoquismo y las nostalgias... Pero de todo esto ya he hablado en mi libro, mostrando cómo la renuncia a la satisfacción inmediata indujo a Johnny a elaborar un lenguaje que él y otros músicos están llevando hoy a sus últimas posibilidades. Este jazz desecha todo erotismo fácil, todo wagnerianismo por decirlo así, para situarse en un plano aparentemente desasido donde la música queda en absoluta libertad, así como la pintura sustraída a lo representativo queda en libertad para no ser más que pintura. Pero entonces, dueño de una música que no facilita los orgasmos ni las nostalgias, de una música que me gustaría poder llamar metafísica, Johnny parece contar con ella para explorarse, para morder en la realidad que se le escapa todos los días. Veo ahí la alta paradoja de su estilo, su agresiva eficacia. Incapaz de satisfacerse, vale como un acicate continuo, una construcción infinita cuyo placer no está en el remate sino en la reiteración exploradora, en el ejemplo de facultades que dejan atrás lo prontamente humano sin perder humanidad. Y cuando Johnny se pierde como esta noche en la creación continua de su música, sé muy bien que no está escapando de nada. lr a un encuentro no puede ser nunca escapar, aunque releguemos cada vez el lugar de la cita; y en cuanto a lo que pueda quedarse atrás, Johnny lo ignora o lo desprecia soberanamente.
 Todo el cuento acá.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Adorável azul - Hölderlin

IN LIEBLICHER BLÄUE...
(Friedrich Hölderlin)
No azul adorável, floresce o telhado de metal do campanário. Em redor pairam gritos de andorinhas, à volta estende-se o mais comovente azul. O sol, por cima, vai muito alto e dá cor à chapa metálica. Mas suave, lá no alto, ao vento, range o catavento. Quando alguém desce, abaixo do campanário, os degraus, então o silêncio é vida; pois quando o corpo a tal ponto se destaca, depressa se forma uma figura do homem. As janelas de onde tocam os sinos parecem portas da beleza. Sim, as portas, parecendo ainda natureza, são à imagem das árvores da floresta. A pureza, que é simplicidade, é também bela. No interior, do diverso nasce um espírito grave. Tão simples são as imagens, tão santas, que por vezes se tem medo, na verdade, de as descrever. Mas os celestes, que são sempre inteiramente ricos e generosos, fazem dessa modéstia a sua virtude e a sua alegria. O homem, nisso, pode imitá-los. Mas, quando a sua vida não é senão cansaço, pode um homem olhar para cima e dizer: assim quero eu ser? Sim. Enquanto no seu coração permanecer a pura amizade, o homem pode medir-se, feliz, pela divindade. Será Deus desconhecido, ou será, como o céu, evidente? E nisto que prefiro acreditar. Tal é a medida do homem. Rico em méritos, é no entanto poeticamente que o homem habita nesta terra. A sombra da noite estrelada não é mais pura, se ouso dizê-lo, que o homem como imagem de Deus. Haverá na terra uma medida? Não há nenhuma. Nunca o mundo do Criador suspendeu o curso do trovão. Uma flor é ela própria bela porque floresce sob o sol. Frequentemente, o olhar encontra nesta vida seres que poderíamos dizer ainda mais belos que as flores. Oh, como o sei! Porque sangrar do corpo, e do próprio coração, por já não ser inteiro, agradará isso a Deus? A alma, creio, deve permanecer pura, senão do Todo-Poderoso aproxima-se com as suas asas a águia, reforçada pelo louvor do seu canto e as vozes de numerosas aves. É a essência, é a forma. Belo pequeno ribeiro, tu brilhas comovente enquanto corres, tão claro como o olhar da divindade pela via láctea. Conheço-te bem, mas as lágrimas perturbam o olhar. Vejo no entanto uma vida alegre florescer nos próprios corpos da criação ao redor de mim, porque a comparo sem erro às pombas solitárias entre os túmulos. O riso, dir-se-ia, desgosta-me no entanto dos homens, porque tenho um coração. Quereria eu ser um cometa? Assim o creio. Porque eles têm a rapidez das aves; florescem em fogo e são na sua pureza semelhantes à criança. Desejar um bem maior, a natureza do homem não o deixa presumir. A alegria de tal virtude, também ela merece ser louvada pelo espírito grave que sopra por entre as três colunas do jardim. Uma jovem bela deve coroar a sua fronte com flores de mirto, porque é simples, de essência e de sentimento. Mas os mirtos estão na Grécia. Quando alguém se vê ao espelho, quando um homem aí vê a sua imagem como pintada, ela assemelha-se-lhe. A imagem do homem tem olhos, a lua, porém, tem luz. O rei Édipo tem um olho a mais, talvez. O sofrimento de um tal homem parece indescritível, indizível, inexprimível. Quando o drama o representa, é isso que ocorre. Mas de mim agora, o que é que vem, que eu pense em ti? Como ribeiros, arrasta-me para aí o fim de um não sei quê, que se estende como a Ásia. Esta dor, naturalmente, Édipo conhece-a. Naturalmente é por isso. Terá também Hércules sofrido? Certamente. Os Dióscuros, apesar da sua amizade, não suportaram também a dor? Sim, lutar, como Hércules, com Deus, isso é sofrer. E possuir a imortalidade, que esta vida inveja, é também sofrimento. Sofrimento, também, contudo, quando um homem se cobre de sardas e fica coberto de muitas manchas dos pés à cabeça! E o belo sol que faz isso: ele tudo chama à sua revelação. Ele conduz os jovens com o encanto dos seus raios como com rosas. Os sofrimentos de Édipo são como os de um pobre homem que se lamenta de alguma falta. Ó filho de Laios, pobre estrangeiro na Grécia! Viver é morrer, e a morte é também uma vida.
Tradução daqui, da revista TBC, The Black Cat, em prosa. Aparentemente o original foi escrito em versos.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Tristeza que tem fim com um samba

Quando eu fiz a minha pós-graduação em Arte e filosofia, minha monografia versou sobre a forma como Machado de Assis teria psicografado o caráter do brasileiro - esse ser inefável - ao comentar como iria escrever sua mais famosa obra: "com a pena da galhofa e a tinta da melancolia". Ou seja, o "exterior", a pena, desse sujeito bem humorado, feliz e contente, seria apenas um disfarce para o verdadeiro interior, que esconderia uma tristeza inconteste.

Não sei se hoje eu ainda aceitaria repetir essa definição, a começar por essa divisão tão metafisicamente clara [ou seria claramente metafísica?], ou mesmo por pensar esse binômio não daria mais conta [se é que um dia deu] do que seria esse sujeito brasileiro; ou, ainda, por duvidar de qualquer possibilidade de definição totalizante.

De qualquer forma, a relação deste provável lado sombrio da personalidade do brasileiro sempre me chamou bastante a atenção, porque, de certa forma, comprovaria a tese do palhaço que esconde a tristeza interna fazendo piada. Tese esta muito bem representada, aliás e infelizmente, pelo suicídio semana passada do Robin Williams.

Por mais que eu suspeite de que Machado tenha feito um gol nesse seu chute, me espanto quando encontro representantes nas artes de brasileiros que mostram esse caráter mais obscuro, não abertamente resplandecente, como cada vez mais é a regra. Acontece todas as vezes que penso no Goeldi, por exemplo. De toda forma, o samba, mais amplamente a música popular feita no Brasil desde a bossa nova até o fim dos anos 1970, é, provavelmente, a mais representativa dessa mistura entre os dois polos.

Talvez o marco inaugural desse período, a criação de "Orfeu negro", quando Vinicius e Tom trabalham pela primeira vez juntos, já comprove isso. Como se sabe, a música mais famosa da peça, depois filme, chama-se "Felicidade", mas versa sobre a tristeza, aquela que não tem fim, enquanto o seu antagônico teria, sim.

Recentemente eu tive um estalo quando vi [ou ouvi] Caetano Veloso dialogando com essa tradição. O baiano de Santo Amaro nunca escondeu que a sua maior influência seria João Gilberto, o deus espírito santo da santíssima trindade bossa-novística, e seu último disco comprova como até hoje ele acha a bossa nova foda. Nessa música, mesmo, ele admite como João Gilberto teria dado razão para que não nos sentíssemos apenas o fruto de três raças tristes, mas o resultado de uma mistura única, que, como toda miscigenação, é forte exatamente por ter elementos diversos.

Vinte anos antes, pelo menos, Caetano já tentava dar uma resposta-continuação para essa questão levantada por Machado e incrementado por Vinicius e a bossa nova: a tristeza, a melancolia está presente em nossa psiquê coletiva? Seria essa a alma que estaria dentro do corpo do brasileiro arquetípico? Junto com Gil, Caetano, em uma dessas músicas que já nascem clássicas, admite que a "tristeza é senhora / desde que o samba é samba". Um dos elementos parece ser essa mesmo, portanto.

"Desde que o samba é samba", apesar de ter uma letra bem curtinha, parece se inserir completamente na história da música brasileira. No verso seguinte, fala sobre a questão do racismo, do preconceito de cor, que é parte mais que integrante da tradição do samba, talvez seja a sua essência [no sentido de origem]: "A lágrima clara sobre a pele escura". Uma das interpretações lembra a imagem do homem e da mulher negros, descendentes de escravos, da maior violência que o Brasil e, antes, Portugal, produziu nessas violentas terras, que é o ícone do samba, do sambista, chorando. "A noite, a chuva que cai lá fora", refletindo a mesma imagem, de um continente negro, [galhofento? feliz? sambista?] que está triste, chora.

Os versos seguintes reforçam o clima melancólico, que já tinha sido lembrado pelas frases iniciais: "Solidão apavora / Tudo demorando em ser tão ruim". Mas o seguinte já começa a mudança: "Mas alguma coisa acontece / No quando agora em mim". A primeira parte seria uma referência a "Sampa"? Se alguma coisa acontece no coração de Caetano "só quando [ele] cruza a Ipiranga e a avenida São João", isto é, só então, lá dentro da cidade maior do Brasil ele pode sentir, gostar, ser São Paulo, em "Desde que o samba...", ele afirma essa "alguma coisa acontece" neste momento exato, "agora". É mais urgente. O samba, que nessa música está bastante embebido de bossa nova, e que pode ser uma metonímia para música e, por que não?, para a arte, e arte brasileira especificamente, circula no sangue de Caetano+Gil, a todo momento, sempre, nunca para. Assim, eles descobrem como fugir da dualidade melancolia x galhofa, para uma relação de mudança:

"Cantando eu mando a tristeza embora". Pela primeira vez, há uma atitude, há um posicionamento ativo, algo que se possa fazer. E não é trabalhar, ou qualquer ato ligado às tradições do chamado Ocidente, mas o cantar, o divertir-se, o, seguindo o modo de viver de quem é sambista, portanto, viver a vida como ela é. E o cantar não esconde a tristeza. O cantar é o transformar a tristeza em outro algo.

Em uma entrevista em que ele fala sobre essa música, Caetano lembra muito da última parte da letra, que continua esse raciocínio e lembra outros:
O samba ainda vai nascer
O samba ainda não chegou
O samba não vai morrer
Veja o dia ainda não raiou
O samba é o pai do prazer
O samba é o filho da dor
O grande poder transformador
Os quatro primeiro versos seriam a afirmação de que esse elemento fora das práticas utilitárias, no caso o samba, a música, a arte, não se perde, não acaba, mesmo com o mundo se transformando em algo cada vez mais ligado a relações pragmáticas. Lembra muito a fala do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro quando se refere aos índios, esses marginalizados por definição, como aqueles que vão nos ensinar, nós do centro, a viver após a catástrofe iminente do nosso mundo. E lembra o próprio Caetano em "Um índio", que coloca o personagem geralmente ligado preconceituosamente a um passado remoto, arcaico, tradicionalista, descendo de uma "estrela colorida / brilhante" para nos revelar, nós os donos da hegemonia, o "óbvio".

Os três últimos versos reforçam a tradição talvez iniciada por Machado, mas com uma pequena mudança, um twist: o samba, a música, a arte, e a arte brasileira nascem a partir da tristeza [dor, melancolia] e transforma essa dor em alegria [prazer, galhofa]. Ele não nega a tradição brasileira, a herança que recebeu, ao contrário, a reafirma, mas acrescentando um detalhe pequeno, que mostraria uma posição mais própria dos indivíduos.

A arte, esse estado de espírito produzido pelo artista, é o "entre" os dois polos que, talvez, um dia, nos definiram - e que podem, de alguma forma, ainda nos definir. Um entre que não separa dois elementos concomitantes, mas que se transmutam um no outro. Um sendo o elemento originário do outro. Em vez de serem elementos duais do mesmo corpo, são o mesmo elemento, apenas transformado pelo fogo da arte.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Which life?

In the short interval between the time when my beard began to sprout and now, when it is beginning to turn grey, in this half-century more radical changes and transformations have taken place than in ten generations of mankind; and each of us feels: it is almost too much! My today and each of my yesterdays, my rises and falls, are so diverse that I sometimes feel as if I had lived not one, but several existences, each one different from the others. For it often happens that when I carelessly speak of “my life,” I am forced to ask, “which life?"
 Stefan Zweig, in The world of yesterday (1942)

segunda-feira, 28 de julho de 2014

A esquerda, a direita e outros bichos

A esquerda quer mudar o mundo. A direita enxerga no mundo a sua verdadeira face. A extrema esquerda vê nessa verdadeira face do mundo, sua beleza. A extrema direita não acha nada belo, além do próprio espelho. O centro é talvez, depende, quem sabe.

A esquerda acredita que o homem pode mais. A direita vê a miséria dos outros e dá de ombros, c'est la vie, ou melhor, that's life. A extrema esquerda fica revoltada e quer mudar isso de qualquer jeito. A extrema direita fica revoltada e quer que os outros se explodam. O centro é contrário a ser do contra.

A esquerda pensa nos outros, no coletivo, no a-gente. A direita age, no máximo, pela própria categoria. A extrema esquerda quer que todos ajam no coletivo, pela gente. A extrema direita acha que ninguém é igual a ela. O centro escolhe não escolher.

A esquerda é um por todos e todos por um. A direita é farinha pouca meu pirão primeiro. A extrema esquerda é Chaos AD, Tanks on the streets. Confronting police. Bleeding the plebs, mas como crítica. A extrema direita é capitão Nascimento, primeiro filme. O centro é devagar, devagar, devagarinho.

A esquerda é movimento. A direita, estática. A extrema esquerda é espoleta, a extrema direita, explosão. O centro é em cima do muro.

A esquerda é para frente, a direita, para trás. A extrema esquerda é para um lado, a extrema direita, para o outro. O centro é ponto morto.

A esquerda quer mais diálogo, a direita, um líder, a extrema esquerda um líder forte que dialogue, a extrema direita, o filho de deus. O centro dos Beatles E dos Rolling Stones.

Aliás...
A esquerda é Beatles. A direita, Rolling Stones. A extrema esquerda, Clash. A extrema direita, Johnny Ramone, só ele. O centro pergunta do jogão de ontem.

A esquerda quer arte engajada. A direita acha que a arte deve mirar o sublime. A extrema esquerda não acredita em arte que não seja política. A extrema direita queima livros que não concordem com ela. O centro leu "O pêndulo de Foucault", mas prefere não opinar para não ferir suscetibilidades.

A esquerda muda, a direita fica, a extrema esquerda é a própria revolução, a extrema direita, a involução. O centro passa essa pergunta.

A esquerda é mais Estado, a direita é menos Estado, a extrema esquerda é sem Estado, por um lado, a extrema direita, por outro - ou muito Estado, o que for pior. O centro ainda está indeciso. Ou vota com a maioria.

A esquerda acredita no outro. A direita acredita em si. A extrema esquerda não acredita. A extrema direita acredita em Deus. O centro depende da plateia.

A esquerda é democrática, até ser contrariada. A direita é contrariada pela democracia. A extrema esquerda não é lá muito democrática, a extrema direita não é, definitivamente, democrática. O centro não é contra nem a favor - muito pelo contrário.

A esquerda ri, mas acha que não deveria. A direita não ri, mas acha que deveria. A extrema esquerda não ri, e acha que não deveria. A extrema direita não ri e tem raiva de quem o faz. O centro ri, adora um carnaval, uma mixórdia e uma folia.

A esquerda adora o povo. A direita enxerga no povo identidade. A extrema esquerda se acha o povo. A extrema direita quer acabar com o povo. O centro [se] frequenta, às vezes, o povo.

A esquerda é manifestantes. A direita, O Globo. A extrema esquerda é black bloc, a extrema direita, polícia. O centro quer saber se vai dar praia no fim de semana.

A esquerda é socialista, a direita, corporativista, a extrema esquerda é anarquista, a extrema direita é só imbecil, mesmo. O centro não gosta muito de política.

A esquerda acha que todos são iguais, até que se prove o contrário. A direita acha que todos são diferentes, e ninguém vai provar o contrário. A extrema esquerda prova que todos são iguais, e ai de quem acha o contrário. A extrema direita acha isso uma palhaçada. O centro pede mais calma.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Dispersão

[...] Nossa geração que não consegue manter-se focada em determinados assuntos por muito tempo? Ou seria melhor chamar de geração displicente? Não no sentido de ser negligente, mas no de ser relaxado, naquilo que os anglófilos chamam de “laid back”, e que os brasileiros e os fluminenses são muito conhecidos como produtores de. “Dispersa” é melhor, acredito. Vamos nos perdendo, trocando de assunto, clicando em link que gera outro link, e mais outro, e outro. Nos diluímos em nosso meio, nos misturando, perdendo as fronteiras. Fazemos tudo ao mesmo tempo-agora, ansiosos, nervosos, vidrados, super-homenamente, e nada exatamente completamente.

Um livro, esse objeto que requer bastante da concentração das pessoas, seria como uma espécie de obra de arte em si. É uma escultura, uma escultura interativa, em que as pessoas poderiam refletir sobre a questão da dispersão – mesmo que não lessem uma única linha. Bastava olhar para ele, tocá-lo, lembrar-se que é necessário passar horas com ele, dias até, se dedicar, entrar num mundo completamente diferente do seu, se retirar de onde você está, abdicar da visão única da vida. O livro é uma peça de resistência.  Uma maneira de se agarrar a tradição. Isso é ser conservador? 

Essa superficialidade – essa vontade consciente de se ater apenas às superfícies, que cada vez mais se aprofunda – cria uma outra forma de relação com o tempo, com a passagem de tempo. Antes, ser profundo era uma vantagem, era sinal de mais, de algo a mais. Ser profundo queria dizer mergulhar no passado, saber detalhes até, às vezes, insignificantes, do que se queria conhecer. Era um mergulho vertical, de encostar o nariz no fundo do mar. Agora, há uma horizontalidade. Não se é mais profundo, mas se enxerga além, ao longe, para o largo e avante, outros e mais assuntos, um pouco sobre tudo, tudo sobre o nada. Não dá para fazer uma hierarquia de saberes aqui. 

Estamos em boa companhia quando o assunto é déficit de atenção. Dizem que Einstein, Walt Disney, John Lennon também tinham. Leonardo da Vinci também. Começava um trabalho e logo era distraído para fazer outra coisa, e deixava inacabado o trabalho inicial. De seus quadros, quase todos não estão finalizados, em diferentes graus de acabamento. Há histórias de que ele teve que voltar quase uma década depois para acabar a segunda versão da “Virgem das rochas”, que iniciara e já tinha sido pago. Em outros casos, era comum que ele desenvolvesse um material para ser usado na pintura que se conservasse fresco por um tempo maior, para que ele pudesse produzir suas obras na velocidade que ele quisesse. Poderia dar uma pincelada hoje e ir para casa. Passar uma semana fora, voltar, e apenas observar o que já tinha sido feito, refletindo sobre o próximo passo a dar. Retornar no dia seguinte e passar quatro dias pintando, sem se alimentar de nada. Foi o caso da “Última ceia”, e, inclusive, o motivo da sua ruína: ter usado uma mistura de tinta a óleo com ovo que pereceu em poucos anos. 

Se por um lado Leonardo é visto como o grande nome do Renascimento, quase uma síntese desse movimento, um homem que trafegava por áreas de atuação das mais variadas possível, por outro, esquece-se que, até os 30 anos – já uma idade avançada, para a época, salvo em casos exemplares e exceções, como Michelangelo, que viveu mais de 90 anos – ele não tinha produzido nada realmente relevante no campo da pintura para ser considerado um gênio. Quando se oferece para o Sforza, o duque de Milão, se vende – no sentido de mostrar suas qualidades – como um engenheiro, como alguém que conseguia produzir equipamentos militares, armas que tornariam a cidade-estado mais poderosa. 

Sforza era um homem que não estava na lista da sucessão do trono, mas que dá um golpe no seu sobrinho, de 7 anos, filho do seu irmão mais velho, que acabara de falecer, e sobe ao poder. Era um homem educado nas artes militares, o que não era comum entre os príncipes distantes do verdadeiro comando. Eles geralmente estudavam apenas o clássico: artes, línguas, matemáticas. Por isso, talvez, ele aproveita o talento artístico de Leonardo para recriar, ou emular, a academia de Platão, com Da Vinci como chamariz principal e grande nome. Foi o primeiro a descobrir a força dessa “marca” – e a partir de então, o mundo o vem venerando. Uma marca dispersa.

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Faculdade do juízo

A beleza é a categoria do que é belo. E o belo é algo praticamente inexplicável. Praticamente, mas, ainda, assim, tentável. Diz-se que o gosto é subjetivo, cada um tem um seu. Mas como justificar que, se o gosto é assim algo tão pessoal, tão verdadeiramente individual, como defender que temos a certeza inquebrantável de que as pessoas vão achar belo aquilo que nós achamos, como se fosse algo evidente? Quando vemos, ouvimos, temos acesso a algo belo, somos tomados de uma certeza tão profunda, tão verdadeira, tão plantada em nossas raízes que esquecemos dessa origem, olvidamos que somos pessoas isoladas umas das outras e não cogitamos a hipótese de esse sentimento tão arrebatador ser somente nosso. É como se a beleza tocasse em algum pedaço da nossa personalidade que estaria anterior à individualidade, fosse formada antes dessa separação, que atingisse uma área do nosso ser ainda mais seminal, em que não identificamos nossa própria personalidade, algo ainda mais original, quando não nos separamos dos demais, num panteísmo ateu. É como se houvesse uma visão, uma revelação e nos colocamos, nos vemos assim, como representante dos homens e mulheres do mundo, um representante representativo, que se foi emocionado, se foi tocado pela beleza, essa fada-madrinha, essa musa, todas as pessoas, por serem igualmente humanas, também seriam sensibilizadas.

domingo, 22 de junho de 2014

'Orfeu. Eurídice. Hermes', de Rilke

Insondável era a mina das almas.
Como veios de prata serpeavam
silentes pela treva. Entre raízes
jorrava o sangue no deflúvio para os homens,
e parecia duro como pórfiro nas trevas.
Nada foi mais vermelho.

Somente rochedos
bosques insubstanciais. Pontes sobre o vazio,
e o lago imenso, pardo e cego,
suspenso do fundo distante
como pluvioso céu sobre uma paisagem.
Entre prados, suave, em plena calma,
surge o traçado tênue do trajeto
estirado como longo risco branco.

Deste caminho único vinham eles.

À frente, o esbelto homem no manto azul,
mudo, impaciente, olhos fixos no alvo.
Sôfrego, devorava o caminho em grandes tragos
Com os seus passos; as mãos pensas,
graves e fechadas no colapso das rugas
nada mais sabiam do alívio da lira,
que pendia da ilharga esquerda
como um feixe de rosas em ramo de oliveira.
Seus sentidos estavam bifurcados:
o olhar como um cão o precedia,
voltava, no ir e vir pairava sempre ao longe,
aguardando na primeira curva,
mas o ouvido permanecia atrás como um perfume.
Parecia-lhe sentir às vezes
a caminhada dos outros dois,
que deviam segui-lo na senda ascensional.
Não restava, todavia, senão o rumor dos seus passos
que subiam ao aflar do vento no seu manto.
Mas a si mesmo dizia que decerto vinham.
Dizia bem alto e ouvia o esmaecer da voz.
Eles vinham, mas os dois encalçavam
os passos terrivelmente inaudíveis. Se pudesse
voltar-se uma só vez (não fosse a retrovisão o fim
do intento em vias de se consumar) veria
as plácidas figuras, que o seguiam, silenciosamente:

o deus viajor e mensageiro das distâncias,
o capacete sobre os olhos claros,
o fino caduceu diante do corpo,
o propulsar levípede das asas
e, confiada à mão esquerda: ela.

Amada sublime, que suscitou na lira
mais lamento do que as carpideiras,
em clamor convertendo o mundo: bosques e vales,
caminhos e povoados, campos e rios e animais;
em redor no mundo do clamor, como em outra terra,
a queixa tácita do sol e o constelado céu
um céu em pranto com estrelas disformes -
A sublime amada.

Ia guiada pela mão do deus,
o passo tolhido pelas longas vestes fúnebres,
incerta, branda, sem pressa.
Ia dentro de si, como suprema esperança,
e não pensava no homem que ia à frente
nem no caminho escalonado rumo aos vivos.
Estava em si. E o estar morta
dava-lhe plenitude.
Como um fruto de doçura e treva,
estava plena em sua grande morte,
tão nova que nada entendia.

Entrara em nova adolescência
inviolada; seu sexo era
botão em flor no entardecer,
e suas mãos eram tão alheias ao enlace
que mesmo o toque suave
do levíssimo deus que a guiava
a magoava como ousada intimidade.

Já não era a mulher loura
divulgada nos cantos do poeta
nem aroma e ilha do largo leito
nem propriedade desse homem.

Estava solta como os seus cabelos
liberta como chuva que cai
exposta como copiosa provisão.

Agora era raiz.

E quando enfim o deus
a deteve e, com voz condoída,
pronunciou as palavras: "Ele se voltou". -
ela não compreendeu e disse: "Quem?"

Mas ao longe, sombrio na saída clara,
estava alguém, cujo rosto
era irreconhecível. Ele estava parado e viu,
em meio à clareira do caminho,
o deus mensageiro, com olhar tristonho,
volver-se e acompanhar, silencioso, o vulto
que retornava pela mesma via,
o andar tolhido pelas vestes fúnebres,
incerto, brando, sem pressa.

(Trad. Ronaldes de Melo e Souza. A versão original está aqui.)

[Esse poema de Rilke me fez pensar numa outra interpretação para o tema de Orfeu e Eurídice. Após a tragédia, que é a morte de Eurídice, Orfeu poderia estar com ela desde que a mantivesse na memória, no seu pensamento, na sua imaginação. Ela não poderia se materializar. Era algo que não existia. Ao confrontar a realidade, Orfeu a perde. Eurídice já era outra Eurídice após a morte. Orfeu jamais a teria de volta.]

domingo, 15 de junho de 2014

Hinos de guerra no futebol

Se já há um saldo positivo desta Copa, além do gol do Van Persie e da subsequente goleada holandesa sobre a Espanha, é a invasão do Brasil por nossos amigos sul-americanos e a sua mais bonita, emocionante e arrasadora consequência: a moda de cantar os hinos de seus respectivos países a cappella. Começou com o Brasil, passou pelo Chile e chegou à Colômbia. Coincidência ou não, o único sul-americano que não usou desse subterfúgio [ou eu nem percebi], o Uruguai, perdeu.



Esse ato aparentemente simplório tem uma série de efeitos. Primeiro, os óbvios. O hino nacional se transforma num grito de guerra. É o momento que os jogadores se irmanam e percebem que fazem parte de um mesmo grupo, de uma mesma equipe, de um mesmo país. Eles têm características diferentes, mas objetivos comuns e vão lutar, juntos, para atingi-los.

Não precisa nem ter em suas letras refrões como "Aux armes, citoyens / Formez vos bataillons / Marchez, marchez! / Qu'un sang impur / Abreuve nos sillons!"; ou versos como "O Lord our God arise / Scatter her enemies, / And make them fall: / Confound their politics, / Frustrate their knavish tricks"; ou ser explícito como: "Son giunchi che piegano / Le spade vendute: / Già l'Aquila d'Austria / Le penne ha perdute. / Il sangue d'Italia / E il sangue Polacco / Bevé col Cosacco, / Ma il cor le bruciò" [aqui uma explicação da passagem], ou precisar saber muito de línguas estranhas para entender logo de cara quem é o maioral: "Deutschland, Deutschland über alles, / Über alles in der Welt". O hino é para dizer quem é amigo e quem é alemão.



Mesmo o brasileiro, que foca mais no tamanho ["Gigante pela própria natureza"] e das belezas do país ["Deitado eternamente em berço esplêndido / ao som do mar e à luz do céu profundo"], tenta elencar, logo de cara, muito sutilmente, quem é o nosso adversário: a ex-metrópole. O "brado retumbante" do "povo heroico" foi ouvido "às margens plácidas" do Ipiranga. Não há negociação, nem empate. É "independência ou morte", é vitória ou, em caso de qualquer outro resultado, derrota.

Salvo os exageros nas aproximações [tenho o defeito de enxergar mais as semelhanças que as diferenças], me lembrou a haka dos jogadores de rúgbi neozelandeses. Mas se não quisermos ir tão longe, me lembrou também a ladainha, o canto que antecede o jogo propriamente dito da capoeira, em que um solista faz uma lembrança dos seus antepassados, das suas origens, da sua história, portanto. Ou ainda aquela reunião que a galera de teatro faz logo antes das cortinas abrirem. Em todos os casos, é o momento em que todos presentes se juntam, como um só corpo, esquecem o mundo lá fora, e focam, juntos, no mesmo ponto.



Não é acaso que os times que cantaram o hino a cappella jogaram com uma vontade muito maior que a do adversário. Nem sei se o Brasil foi melhor que a Croácia - acho que não - mas entrou em campo querendo comer a bola. O mesmo pode ser dito para o Chile, que ainda deu uma bobeada contra a fraca Austrália, ou a Colômbia que, apesar da falta de Falcao García, não tomou conhecimento da Grécia, mesmo com Sócrates em campo.

Mas se todos esses argumentos não forem suficientes, basta lembrar que é uma maneira muito delicada de quebrar um protocolo da Fifa. A toda poderosa do futebol que não gosta de fazer nada fora das regras [com a exceção de algumas negociações envolvendo dinheiro] não tem poder para impedir que os jogadores simplesmente parem de cantar seus hinos. Claro que, para a Fifa, é o tipo de quebra de protocolo que é até bem vinda, já que não atrapalha seus interesses comerciais, ao contrário, mas enxergo esses atos como pequenos protestos muito barulhentos. Como se dissesse que a Fifa não manda em tudo.