O livro era sobre
formas de se chegar a iluminação. Vários contos, pequenas histórias, passadas no
mesmo cenário: O Japão zen budista, num tempo imemorial, que alimenta nossa
imaginação com imagens de lagos plácidos, cerejeiras em flor, montanhas com
neve eterna. Nenhum conto lhe chamou a atenção. Nenhum, com a exceção do
último.
A monja Kaeda era a
mais aplicada do monastério de Koya. Queria mais que todos os outros discípulos
atingir a iluminação, queria despertar, atingir a completa e perfeita sanidade,
fugir do círculo do Samsara, acabar com o seu karma. E para isso, ela estudava
incessantemente, meditava, praticava todos os exercícios que conhecia, lia
sobre outras iluminações.
No meio de suas
leituras, Kaeda descobriu que o monge Oshoguzo havia despertado por meio de um
jejum de três dias, em que ficou apenas meditando dentro de uma cabana no meio
da floresta, no inverno. Pois ela esperou a primeira neve do ano cair para ir
para uma pequena casa de madeira, que ficava a meio dia de caminhada do
monastério, sem levar nada além da roupa do corpo. No início, ela sentia frio,
mas conseguiu, por meio de exercícios, controlar seu corpo. Depois foi a vez da
fome: no primeiro dia, não percebeu nada de anormal, mas, a partir do segundo,
começou a escutar seu estômago roncando a cada minuto. Concentrou-se e
controlou sua necessidade de comer. Depois, à noite, ouviu lobos do lado de
fora da cabana e sentiu medo. Fez outros exercícios até acalmar o corpo e
esperar que os lobos fossem embora. Ao fim de três dias, estava exausta, e
desmaiou. Acordou de volta no monastério e descobriu que o monge Yamada percebeu sua ausência e desconfiou que ela
poderia estar em perigo. Foi em busca dela e a levou de volta para o
monastério. A monja ficou doente e demorou semanas até se restabelecer.
Depois de voltar a ter
saúde, ela pediu uma audiência com o mestre Murakami, que, sabendo da ansiedade
da menina, disse a ela, sem muita explicação, que não poderia atendê-la. Kaeda
não sabia o que fazer. Insistiu na semana seguinte, e na outra, até que
resolveu não mais voltar para o seu alojamento e ficar na escada de acesso ao
dormitório de Murakami. Um dia, enquanto ela dormia apoiada na lateral, Murakami
abriu sua porta. Ela acordou na hora e se virou para a casa. Levantou-se com
receio e foi em direção, pé ante pé, para dentro da sala. Murakami estava
ajoelhado, de costas para a entrada, olhando um riacho que passava por fora de
seu dormitório.
“Você quer chegar a
iluminação, eu imagino” – ele falou.
“Sim, mestre, o que eu
devo fazer?” – ela pergunta.
“Você deve querer isso
mais que qualquer coisa.”
“Mas eu quero mais que
qualquer coisa.”
“Então, você não deve
fazer nada.”
“Como assim?”
“Vamos dar um passeio.”
Os dois saíram do
dormitório e começaram a andar pelo pequeno monastério, que estava cheio de
neve nessa época do ano.
“Onde estão os animais
da floresta?” – ele pergunta.
“Estão na floresta” –
ela responde.
“E por que eles não
estão aqui conosco?”
“Porque eles vivem na
floresta”, ela responde rapidamente, mas fica em dúvida sobre se era o certo e
tenta outra resposta, “Porque é inverno”, ainda em dúvida sobre a resposta
correta, tenta uma terceira, “Porque eles têm medo da gente.”
O mestre não esboçou
qualquer reação ante a nenhuma das respostas de Kaeda. Continuou caminhando
vagarosamente, sob o pesado manto que usava para se esquentar.
“Mestre, como é a
iluminação?”, Kaeda se atreveu a perguntar, após alguns instantes de silêncio.
“É o nada” – Murakami respondeu,
pouco antes de chegar a um poço, onde os monges buscavam água.
“Você só vai chegar à
iluminação”, disse ele, “quando quiser mais que respirar.”
A partir de então, a monja
foi ainda mais aplicada aos estudos. Queria provar que queria mais que qualquer
coisa, mesmo que respirar, alcançar a iluminação. Soube, nesse período, que o
monge Aoki, um dos mais desleixados na sua opinião – não meditava todos os dias
por seis horas, nem estudava os ensinamentos sagrados como ela fazia –, havia
alcançado a iluminação e ficou intrigada. Ela queria mais que ele queria
alcançar a iluminação. Tinha certeza disso e não havia nada que a fizesse
duvidar dessa certeza. Começou a ficar em dúvida sobre se ela seria capaz de
alcançar a iluminação. Então, pensou que se até Aoki havia alcançado a
iluminação, ela também alcançaria. Nem que parasse de respirar.
Fez exercícios para
parar de inspirar e expirar. Ficou até 15 minutos em completa apneia,
diminuindo o seu metabolismo a quase zero, com o coração parando de bater. Até
que um dia, novamente, viu o mundo escurecer. Acordou sobressaltada sob os cuidados
do monge Aoki, que aparentava uma nova pessoa para ela.
“Como é a iluminação?”,
ela lhe perguntou.
“É tudo”, ele
respondeu.
Kaeda ficou confusa,
estava inquieta. Deitava no seu aposento e não conseguia parar de pensar na
iluminação. Como seria? Tudo ou nada? Como ela poderia alcançá-la? Como ela
sairia desse ciclo de vida e morte, o que ela deveria fazer para pagar o seu
karma. O seu pensamento só se concentrava nesse objetivo. Virara uma obsessão.
Não falava com mais ninguém, só fazia as suas obrigações e voltava para o seu
dormitório para estudar. Enquanto fazia suas tarefas domésticas também não
conseguia parar de pensar sobre o assunto. Como deveria ser a iluminação?, se
perguntava enquanto carregava um jarro para buscar água no poço. O que mudava
na sua vida? Ela andava com o jarro de cerâmica, pesado, antigo, e se imaginava
atingindo a iluminação. Chegou ao poço e, em vez de encher o vaso, decidiu
mergulhar o rosto na água gelada. Eu quero mais a iluminação que respirar,
pensou, ecoando mentalmente as palavras de Murakami. Afundou o rosto e logo
abriu os olhos debaixo da água. Era escuro, não havia nada lá embaixo, além de
água. Ela não enxergava nada e sentiu o seu pulmão reclamando a falta de
oxigênio. Eu quero mais a iluminação que respirar, repetiu o pensamento
anterior, eu quero mais a iluminação que respirar. As primeiras bolhas de ar
começavam a sair de seu nariz e ela não sabia como pará-las, eu quero mais a
iluminação que respirar, começou a sentir escurecer e ela percebeu que iria,
novamente, desmaiar, eu quero mais a iluminação que respirar, repetia, enquanto
ia perdendo a consciência, até que num ato completamente involuntário o seu
corpo se ergueu velozmente e ela saiu da água dando uma grande e desesperada
inspirada.
Sem forças, ela se
senta, com as costas coladas ao poço de pedras, ainda ofegante. Está
completamente molhada, ainda mais confusa, se sentindo derrotada, pensando que
jamais alcançaria a iluminação. Os seus olhos se enchem de lágrimas, mas ela
engole o choro que chegara à sua garganta. Lentava-se, se recompõe, e enche o
jarro no poço. Vira-se e começa a caminhar levando o jarro para dentro do
monastério. No caminho, troca o vaso de lado, para compensar o peso. Em uma
dessas trocas, tropeça numa pedra que havia no chão e o vaso é arremeçado ao
chão, se quebrando por completo. Nesse momento, Kaeda encontra a iluminação.
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