segunda-feira, 21 de novembro de 2011

História budista


O livro era sobre formas de se chegar a iluminação. Vários contos, pequenas histórias, passadas no mesmo cenário: O Japão zen budista, num tempo imemorial, que alimenta nossa imaginação com imagens de lagos plácidos, cerejeiras em flor, montanhas com neve eterna. Nenhum conto lhe chamou a atenção. Nenhum, com a exceção do último.

A monja Kaeda era a mais aplicada do monastério de Koya. Queria mais que todos os outros discípulos atingir a iluminação, queria despertar, atingir a completa e perfeita sanidade, fugir do círculo do Samsara, acabar com o seu karma. E para isso, ela estudava incessantemente, meditava, praticava todos os exercícios que conhecia, lia sobre outras iluminações.

No meio de suas leituras, Kaeda descobriu que o monge Oshoguzo havia despertado por meio de um jejum de três dias, em que ficou apenas meditando dentro de uma cabana no meio da floresta, no inverno. Pois ela esperou a primeira neve do ano cair para ir para uma pequena casa de madeira, que ficava a meio dia de caminhada do monastério, sem levar nada além da roupa do corpo. No início, ela sentia frio, mas conseguiu, por meio de exercícios, controlar seu corpo. Depois foi a vez da fome: no primeiro dia, não percebeu nada de anormal, mas, a partir do segundo, começou a escutar seu estômago roncando a cada minuto. Concentrou-se e controlou sua necessidade de comer. Depois, à noite, ouviu lobos do lado de fora da cabana e sentiu medo. Fez outros exercícios até acalmar o corpo e esperar que os lobos fossem embora. Ao fim de três dias, estava exausta, e desmaiou. Acordou de volta no monastério e descobriu que o monge Yamada  percebeu sua ausência e desconfiou que ela poderia estar em perigo. Foi em busca dela e a levou de volta para o monastério. A monja ficou doente e demorou semanas até se restabelecer.

Depois de voltar a ter saúde, ela pediu uma audiência com o mestre Murakami, que, sabendo da ansiedade da menina, disse a ela, sem muita explicação, que não poderia atendê-la. Kaeda não sabia o que fazer. Insistiu na semana seguinte, e na outra, até que resolveu não mais voltar para o seu alojamento e ficar na escada de acesso ao dormitório de Murakami. Um dia, enquanto ela dormia apoiada na lateral, Murakami abriu sua porta. Ela acordou na hora e se virou para a casa. Levantou-se com receio e foi em direção, pé ante pé, para dentro da sala. Murakami estava ajoelhado, de costas para a entrada, olhando um riacho que passava por fora de seu dormitório.

“Você quer chegar a iluminação, eu imagino” – ele falou.

“Sim, mestre, o que eu devo fazer?” – ela pergunta.

“Você deve querer isso mais que qualquer coisa.”

“Mas eu quero mais que qualquer coisa.”

“Então, você não deve fazer nada.”

“Como assim?”

“Vamos dar um passeio.”

Os dois saíram do dormitório e começaram a andar pelo pequeno monastério, que estava cheio de neve nessa época do ano.

“Onde estão os animais da floresta?” – ele pergunta.

“Estão na floresta” – ela responde.

“E por que eles não estão aqui conosco?”

“Porque eles vivem na floresta”, ela responde rapidamente, mas fica em dúvida sobre se era o certo e tenta outra resposta, “Porque é inverno”, ainda em dúvida sobre a resposta correta, tenta uma terceira, “Porque eles têm medo da gente.”

O mestre não esboçou qualquer reação ante a nenhuma das respostas de Kaeda. Continuou caminhando vagarosamente, sob o pesado manto que usava para se esquentar.

“Mestre, como é a iluminação?”, Kaeda se atreveu a perguntar, após alguns instantes de silêncio.

“É o nada” – Murakami respondeu, pouco antes de chegar a um poço, onde os monges buscavam água.

“Você só vai chegar à iluminação”, disse ele, “quando quiser mais que respirar.”

A partir de então, a monja foi ainda mais aplicada aos estudos. Queria provar que queria mais que qualquer coisa, mesmo que respirar, alcançar a iluminação. Soube, nesse período, que o monge Aoki, um dos mais desleixados na sua opinião – não meditava todos os dias por seis horas, nem estudava os ensinamentos sagrados como ela fazia –, havia alcançado a iluminação e ficou intrigada. Ela queria mais que ele queria alcançar a iluminação. Tinha certeza disso e não havia nada que a fizesse duvidar dessa certeza. Começou a ficar em dúvida sobre se ela seria capaz de alcançar a iluminação. Então, pensou que se até Aoki havia alcançado a iluminação, ela também alcançaria. Nem que parasse de respirar.

Fez exercícios para parar de inspirar e expirar. Ficou até 15 minutos em completa apneia, diminuindo o seu metabolismo a quase zero, com o coração parando de bater. Até que um dia, novamente, viu o mundo escurecer. Acordou sobressaltada sob os cuidados do monge Aoki, que aparentava uma nova pessoa para ela.

“Como é a iluminação?”, ela lhe perguntou.

“É tudo”, ele respondeu.

Kaeda ficou confusa, estava inquieta. Deitava no seu aposento e não conseguia parar de pensar na iluminação. Como seria? Tudo ou nada? Como ela poderia alcançá-la? Como ela sairia desse ciclo de vida e morte, o que ela deveria fazer para pagar o seu karma. O seu pensamento só se concentrava nesse objetivo. Virara uma obsessão. Não falava com mais ninguém, só fazia as suas obrigações e voltava para o seu dormitório para estudar. Enquanto fazia suas tarefas domésticas também não conseguia parar de pensar sobre o assunto. Como deveria ser a iluminação?, se perguntava enquanto carregava um jarro para buscar água no poço. O que mudava na sua vida? Ela andava com o jarro de cerâmica, pesado, antigo, e se imaginava atingindo a iluminação. Chegou ao poço e, em vez de encher o vaso, decidiu mergulhar o rosto na água gelada. Eu quero mais a iluminação que respirar, pensou, ecoando mentalmente as palavras de Murakami. Afundou o rosto e logo abriu os olhos debaixo da água. Era escuro, não havia nada lá embaixo, além de água. Ela não enxergava nada e sentiu o seu pulmão reclamando a falta de oxigênio. Eu quero mais a iluminação que respirar, repetiu o pensamento anterior, eu quero mais a iluminação que respirar. As primeiras bolhas de ar começavam a sair de seu nariz e ela não sabia como pará-las, eu quero mais a iluminação que respirar, começou a sentir escurecer e ela percebeu que iria, novamente, desmaiar, eu quero mais a iluminação que respirar, repetia, enquanto ia perdendo a consciência, até que num ato completamente involuntário o seu corpo se ergueu velozmente e ela saiu da água dando uma grande e desesperada inspirada.

Sem forças, ela se senta, com as costas coladas ao poço de pedras, ainda ofegante. Está completamente molhada, ainda mais confusa, se sentindo derrotada, pensando que jamais alcançaria a iluminação. Os seus olhos se enchem de lágrimas, mas ela engole o choro que chegara à sua garganta. Lentava-se, se recompõe, e enche o jarro no poço. Vira-se e começa a caminhar levando o jarro para dentro do monastério. No caminho, troca o vaso de lado, para compensar o peso. Em uma dessas trocas, tropeça numa pedra que havia no chão e o vaso é arremeçado ao chão, se quebrando por completo. Nesse momento, Kaeda encontra a iluminação.

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