terça-feira, 1 de novembro de 2011

Biografia - Schopenhauer

Nunca fui muito fã de biografias, por puro preconceito. Todas as que eu li, ou as que eu lembro ter lido, foram boas.  Sempre imaginei que a vida da pessoa não mostrava nada do que ele – ou ela – escreveu, produziu, criou. Claro que há um espelhamento aí, mas há tanta reflexão entre a vida e a obra final, que a vida pode simplesmente ser desimportante para analisar a obra em si. Ou seja, é possível até enxergar a vida desse criador na obra, mas ela é indiferente para a sua interpretação.

Também, talvez pelo mesmo motivo, sempre não gostei do que eu apelidei de literatura de personagem – em contraposição à de trama. A de personagem geralmente é centrada em um protagonista central, e narra a vida – toda ou um trecho – dessa pessoa. A de trama é focada na ação, ou no que está acontecendo. Novamente, voltamos a discussão sobre chatice, mas em outro formato. Geralmente, a de personagem é “psicológica”, interior – o que não é, para mim, em princípio, um problema. Porém, como regra, os autores tendem a valorizar os sentimentos sofríveis e/ou de sofrimento, em vez de mostrar raciocínios intrincados, ou mesmo humor. Por exemplo, Machado de Assis só narra por meio de seu “autor-defunto”, ou melhor, “defunto-autor” as “Memórias póstumas...”, mas nem por isso torna o ritmo mais lento. Ritmo, alguns livros carecem de ritmo. Ou melhor, tocam um ritmo que não me agrada – para continuar na metáfora musical, que, acho, funciona bem aqui. Assim como não gosto de samba de fossa, não gosto de gente que sente pena de si mesmo, ou uma narração enorme que mostra como certo personagem sofreu horrores porque matou uma mulher que considerava cruel. Não falemos mais mal dos russos, por favor, antes que tenhamos um problema diplomático.

Hum, acabei de me lembrar de um caso exemplar em relação às biografias. Dois títulos de um mesmo autor, brasileiro, erudito, conhecido, sucesso, que  tiveram recepções bem diferentes por mim – e eu imagino o porquê: “O anjo pornográfico” e “Estrela solitária”, ambos do Ruy Castro. A pesquisa de ambos é impecável – e se não fosse, pouco me importaria, já que eu não estou procurando a verdade quando leio uma biografia, mas uma verdade – e a escrita, incrível, como se lêssemos um romance, como se Nelson Rodrigues ou o Mané fossem invenções da cabeça de Ruy – curiosamente, também li a única obra de ficção dele, “Olhai estrelas”, que peca pelo vício da grande pesquisa, atravancando a narração. Todavia, acho o “... anjo...” uma obra-prima, que serviu para me tornar fã de Nelson Rodrigues, enquanto o sobre o pernas-tortas me distanciou do jogador. São vidas diferentes a ponto de as suas particularidades terem influenciado no meu julgamento? Sim e não.

No “...anjo...”, Ruy, além de descrever a trágica vida de Nelson, que sozinho daria um romance bem dramático, também não se furta a tecer seus comentários sobre as obras rodrigueanas. Ele mesmo diz que não é um Sábato Magaldi, mas que iria se permitir um hábito que os jornalistas – por medo, por descostume, por precaução – evitam: opinar. Assim, você tem uma primeira visão crítica da obra de Nelson, um apanhado, não tão profundo, mas jamais raso, de cada uma das peças e livros que o dramaturgo, que dizia que era necessário sorte até para chupar um chicabon, escreveu. Há uma vivência desse lado “alto” da vida Nelson com intensidade, sabemos de seus sucessos e, até nos seus fracassos, percebemos um gênio – no sentido de produtor – criativo atuando. Mesmo quando Castro fala sobre as peças mais açucaradas, os contos mais bobos, mesmo assim, percebemos alguém produzindo, agindo, saindo do lugar. Quando chega a velhice e a sequência de problemas – de ordem moral [o que podemos desprezar um pouco] e de saúde –, já estamos descendo a ladeira, já passamos pelo ápice da obra, e estamos esperando apenas o livro voltar ao início, ao chão, à planície. Como se os problemas não tivessem ocupado um espaço [temporal] grande na biografia [com duplo sentido] de Nelson.

Já a sobre Garrincha, talvez por respeitar o mesmo procedimento cronológico - comum a inúmeras biografias, mas não uma regra intransponível -, mostra pouco do homem que foi apelidado a alegria do povo e bastante sobre o seu fim lastimável. Fica-se com a impressão, ao final, de que o jogador quase não existiu, de que ele passou semidespercebido pela vida, que ele teve uma importância apenas mediana, ao se comparar o espaço dado ao sofrimento que foi o término da sua vida. Aquele Garrincha que aparece nas imagens driblando os zagueiros, com o seu jogo de corpo, indo e voltando, perdeu o viço, acabou escurecido e se transformando numa sombra do homem que era internado, dia sim, dia não, no hospital por conta da bebida. Nem a sugestão de justificativa que Castro faz sobre a razão do alcoolismo de Garrincha – que ele teria sido viciado ainda criança, num costume bizarro [para nossos olhos “civilizados”] dos seus pais de dar bebida para os filhos – melhora a vida dele. No fim, em vez de um ídolo humanizado, ele se torna um coitado, alguém que não merece outro sentimento além da pena.

Castro deveria ter omitido as “derrotas” de Garrincha? Jamais. Aliás, não sei exatamente o que fazer – ou como resolver esse problema. Estou apenas descrevendo o sentimento que duas obras de um mesmo autor, sobre personagens diferentes me trazem. Isso porque queria falar sobre uma outra biografia, que também ultrapassa o simples narrar de fatos, para fazer uma interpretação, ou um releitura, ou um comentário sobre a obra do biografado. Chama-se “Schopenhauer – e os anos mais selvagens da filosofia” – num subtítulo estranho – de um alemão, que já havia escrito livros sobre Nietzsche e Heidegger, chamado Rüdiger Safranski.

Antes, acho interessante – hum, não – necessário – hum, talvez – importante – hum, só se for no sentido de contextualização – explicar o que, ou quem representa Schopenhauer na minha vida. Meu pai morreu quando eu era pequeno – tinha 11 anos. Não tive muito contato com ele, não me lembro bem de sua fisionomia, e o que eu lembro dele é uma gargalhada que não combina bem com o que dizem dele para mim – sempre descrito como um homem taciturno, que jamais dava um sorriso para um desconhecido e que era rígido ao extremo. O fim de sua vida foi, como todo fim de vida, dramático e cheio de significados para todos da família, inclusive para mim – mas não é o caso de escrever sobre isso, ou, pelo menos, não agora.

O fato é que, assim que ele morreu – odiava essa palavra, porque era banal;  gostava de relacionar a morte do meu pai com a palavra “falecer”, que, para mim, parecia mais nobre; era meu pai, não? Merecia toda a nobreza, a exclusividade, o sentimento de ser o único do mundo – assim que ele morreu, passamos pelo processo doloroso e comum a todas as mortes de ter que nos desfazer das suas coisas. Mesmo pequeno, era bastante “adulto” para a minha idade e minha mãe me deixou ajudá-la com os procedimentos mais simples – e menos emotivos. Como, por exemplo, esvaziar as caixas e malas em que ele guardava papéis velhos. Documentos antigos sem valor, papéis do seu trabalho que já tinham caducado, maços de desimportância generalizada. Em uma das maletas, encontrei uma surpresa, porém, que, posso dizer, hoje, depois de anos, moldou um pouco a minha vida. Ou muito. Fez ser o que eu sou, hoje. Trabalhar onde trabalho, ter estudado o que eu estudei, escrever o que eu escrevo. Iniciou um caminho de onde não saí mais. Encontrei recortes de jornal com inúmeras crônicas e desenhos do Luis Fernando Verissimo.  Pode parecer bobo, sem importância, reles, mas aqueles pequenos textos, recheados de – humor [sempre] e – inteligência foram um tipo de substituto para o meu pai. Talvez ele não me desse todos os conselhos que eu buscaria com o meu pai, mas saber como ele pensava, como se comportava, como ele criava os filhos, me dava um parâmetro para eu me apoiar e saber para onde estava indo. Claro que não fiquei apenas nos recortes. Assim que tive idade e dinheiro, comprei tudo o que encontrei do autor gaúcho filho de um dos nossos ícones literários. Mesmo sem tê-lo conhecido, e o tendo visto pouquíssimas vezes, eu o sinto como um pai para mim, alguém que estaria ali quando eu precisasse.

Verissimo, por sua vez, também tinha os seus ícones e, por meio de uma de suas obras, encontrei o meu “avô”, digamos assim: Jorge Luis Borges [se eu tivesse um filho, ele se chamaria “Luis”]. Foi em uma obra com título meio bobo [“Borges e os orangotangos eternos”] e em uma crônica maior que o normal chamada “Borgeanas” que “ouvi” pela primeira vez o nome desse argentino de Buenos Aires – não é coincidência que a minha primeira viagem internacional tenha sido para a Argentina. Num ímpeto de coragem, e sem-noçãozismo, antes de ler qualquer coisa dele, comprei o primeiro volume de suas obras completas. Penei para passar pelos primeiros livros de poesia, sofri na obra sobre “Evaristo Carriego”, mas esse caminho me preparou para o ápice, que começaria em “Ficções”, logo após “História universal da infâmia”. Borges me confirmou a trilha de Verissimo, me embaçou as fronteiras entre o vivido e o lido, entre a arte e a realidade, entre a verdade e as verdades. Criou uma literatura que era, ao mesmo tempo, interrogativa e filosófica. Era um jogo que nós aceitávamos participar ao ler a primeira linha e que nos puxava como um elástico até o fim, mesmo que passássemos sem absorver tudo. Porque reler Borges era ainda melhor que lê-lo. Já perdi as contas de quantas vezes passei pelas suas “Ficções” e pelo seu “Aleph”, além de inúmeros dos seus outros textos [pensei em escrever “não-ficcionais”, mas achei que seria uma injustiça]. E foi Borges quem, seguindo essa tradição familiar, me apresentou meu bisavô, com uma frase em que dizia que ele, meu “bisavô”, talvez, tenha explicado o mundo: Arthur Schopenhauer.

Por ser uma leitura mais complexa – tanto no sentido de ser mais difícil de ser encontrada, quanto na ausência de proposta de entretenimento – tenho que dizer que, de toda a minha família, sou / estou menos familiarizada com “bivô” Schopenhauer. Daí a vontade de ler essa biografia que, como já disse, vai além de narrar os episódios da vida do alemão que nasceu em uma cidade que hoje fica na Polônia, mas que quase veio ao mundo na Inglaterra. Fiz umas anotações em determinado momento dessa sua biografia, que vou reproduzir abaixo. Já peço desculpas adiantadas se se tornar deveras chato:
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Rüdiger Safranski , além de lembrar a ligação de Schopenhauer com o brahmanismo [ele chega a fazer uma piada citando “O mundo como Brahma e Maya”, fazendo referência à obra principal do alemão “O mundo como Vontade e Representação”], sugere que o sistema schopenhaureano não tinha como intenção “explicar” um sistema filosófico novo, mas compreendê-lo. Explicar, como Safranski mesmo diz com outras palavras, envolveria a “representação” da “representação”, ou em outros termos, a cristalização dos conceitos, a transformação do sentimento em um código que pode ser identificado por outros. Já compreender/entender, é sentir. É trazer esse raciocínio, repeti-lo e tentar fazer com que cada pessoa o vivencie, já que a vontade é única, pessoal, mas comum a todas as pessoas.
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“A vontade é um impulso primário e vital e um movimento que pode tomar consciência de si mesmo somente em um caso limite; e só então a consciência assume um alvo, um propósito ou um objetivo”. [375]
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“Spinoza disse que uma pedra movida por um impulso qualquer, caso dispusesse de consciência, acreditaria que se movia por sua própria vontade. Pois aqui eu acrescento que essa pedra teria razão” – Schopenhauer, tirado da página 376.

E novamente voltamos a Spinoza o filósofo que parece sobreviver ao tempo praticamente incólume – ou que na média sai na vantagem – ou que foi citado tanto por Schopenhauer como Nietzsche [marginais da tradição filosófica].

Se Schopenhauer comparava a sua “Vontade” com o conceito de Brahma, em que seria o ponto central [não-geográfico] do nosso ser, naquele momento em que não somos representação, e nesse sentido, seríamos iguais a todos, como pequenos retalhos de uma grande e única colcha de retalhos, Spinoza dizia que tudo fazia parte da mesma essência, ou Deus, ou natureza.
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“A vontade, que se encontra na base de tudo, não é absolutamente um espírito em processo de autorrealização, porém um impulso cego incessante, sem meta e devorador de si mesmo, sem deixar transparecer através de si nenhum impulso diretor, nenhum pensamento deliberado, sem sequer apresentar o menor sentido.” [379]
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Melhor consciência – negação da vontade. Para Rüdiger Safranski, as duas ideias são a mesma, apenas com nomes diferentes. Porém, essas alcunhas não deixam de passar um certo raciocínio que não pode deixar de ser levado em conta. A “melhor consciência” nasce da época em que Arthur faz grandes caminhadas a montanhas – ela é o resultado de uma mente livre e desapegada. Parece a conclusão de um processo, enquanto a “negação da vontade” é o caminho a ser trilhado. Como se somente por meio da “negação da vontade” – no sentido dado por Schopenhauer – se pudesse alcançar a “melhor consciência”.
Isso é apenas uma suposição. De qualquer maneira, há uma ligação direta com Nietzsche quando ele diz que Schopenhauer era um pessimista por negar essa força – ou potência, em suas palavras – que sua vontade lhe proporcionava. Há aí um racha entre os dois filósofos. Ambos identificam a Vontade e a sua força /potência – mas um a nega enquanto o outro a afirma.
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Outro fato que separa Nietzsche e Schopenhauer é a crença-sugestão deste na Vontade como aquilo que existe além das representações, o que pode ser interpretado como uma espécie de “essência”. Nietzsche, por sua vez, jamais aceitaria que existe algo além das “aparências” [seria a sua “representação”?], desdenhando do conceito “ideal” platônico, que, numa interpretação poética, veio a dar na coisa-em-si kantiana.
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Para Schopenhauer, a Vontade cumpria, ao menos, duas funções: uma de caráter “essencial”, de essência; outro de “impulsividade”, de força. A primeira, Nietzsche desdenha, a segunda, abraça.
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Um segundo problema encontrado no sistema schopenhaureano mostra que todas as vontades dos seres são a mesma vontade – como o conceito poético brahmânico. Mas além de fazer refência ao Brahmanismo, e à coisa-em-si kantiana, não está claro o motivo dessa igualdade. Por que não se poderia ter vontades individuais, singulares? Ou o simples fato de cada um dos elementos possuir esse elemento impulsivo-seminal já é possível para torná-los, em algum grau, iguais?
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Schopenhauer dá exemplos de como as coisas, abandonadas, são impelidas a fazerem o que elas fariam “normal” e “naturalmente”, para demonstrar que as vontades seriam essas “vontades de viver” – sendo tautológico [ele mesmo admite o problema]. E aí a crítica de Nietzsche faz sentido: por que negar essa vontade? Por que negar a vontade de viver?
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Ainda não terminei de ler a biografia, mas o melhor momento para se escrever sobre um livro é no meio dele, em seu ápice, na parte que sua energia criativa está no auge e que não sobra tempo para você pensar sobre outra coisa. 

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