sábado, 12 de novembro de 2011

A última ceia, de Leonardo

Na exposição da National Gallery sobre o Da Vinci, a maior exibição da história sobre o renascentista, há uma ausência clara. Não é a "Mona Lisa", que não foi produzida no período em foco - quando Leonardo vai para  Milão, sob o comando de Sforza. Mas a "Última ceia". Por motivos óbvios, não foi possível transladar uma das paredes do convento onde o artista pintou diretamente sua obra. De qualquer forma, há duas maneiras, entre diversas, de ter contato com "Il cenacolo", como os italianos a chamam [italiano, para demonstrar uma espécie de posse pela tradição, de familiaridade com as produções de seus conterrâneos, tende a chamar certas obras por outros nomes que não os mundialmente conhecidos, como é o caso de "La Gioconda"].

Além de diversos desenhos de estudos para se chegar às expressões diferentes de cada um dos apóstolos e de Jesus, há uma cópia do original, impressa na parede de entrada que [se a original já está bastante degradada] está bastante esmaecida. E uma cópia produzida por um dos seus discípulos, feita logo depois da obra começar a se deteriorar. Nessa segunda versão, de Giampetrino, porém, falta toda a graça natural que emana da obra de Da Vinci. Os personagens são quase grosseiros, os movimentos são bruscos, tudo parece talhado em madeira.


De qualquer forma, é muitíssimo impressionante comparar - e imaginar - as reações de cada um dos apóstolos ao escutar que um deles iria trair o salvador. Em Mateus 14:18-20, há a famosa passagem:
"E, quando estavam assentados a comer, disse Jesus: Em verdade vos digo que um de vós, que comigo come, há de trair-me. E eles começaram a entristecer-se e a dizer-lhe um após outro: Sou eu? E outro disse: Sou eu? Mas ele, respondendo, disse-lhes: É um dos doze, que põe comigo a mão no prato." 
Gosto dessa porque há a indicação de que os apóstolos ficaram tão assustados que começaram a se perguntar - e a perguntar a Jesus quem seria o traidor. E é possível ver essa reação em alguns personagens, principalmente em André - o terceiro, da esquerda para a direita, ou Filipe, o quarto, da direita para a esquerda.

Aliás, fiz uma ligeira pesquisa para saber se as reações refletiriam o comportamento, a psiquê dos apóstolos e descobri que a Bíblia não traz muitas informações sobre a maioria - coincidentemente, ou não, os que estão mais nos cantos da tela. O que se sabe, baseia-se em lendas, ou em informações posteriores. Pela fonte que eu consultei, também há uma informação de que há poucas referências ao número de "12" apóstolos - mas há textualmente o nome de cada um deles, em certas passagens bíblicas. Isso me levou a imaginar que "12" poderia ser um número para "nem muito nem pouco", assim como, no inglês, existe o "couple", que pode ser um "par", mas também "um pouco". De qualquer forma, temos sempre que lembrar que a Bíblia não foi escrita nos anos seguintes à morte de Jesus - se esse personagem existiu, mesmo - e pode-se ter sido usada a informação que se queria.

O que podemos nos assegurar é que havia um livro, um livro famoso, muito lido, onde Da Vinci poderia se basear e nesse livro não havia muitas informações sobre os personagens secundários. O artista teve que imaginar como seriam aqueles homens de biografia obscura, de personalidade desconhecida. Olhando para a cópia sem-graça de Giampetrino, fiz um outro exercício: imaginar o que cada um estava pensando. A ordem será da esquerda para a direita, da posição da cabeça, não do corpo na mesa.

O primeiro é Bartolomeu. Soube que seu nome pode ser apenas uma corruptela de Bar + Ptolomeu, sendo "bar" a expressão usada por hebreus para designar o "filho de", e "Ptolomeu", portanto, o nome de seu pai. Não é de se estranhar que ele tenha um pai com nome grego no meio da Judeia - as cidades da Grécia ainda tinham bastante influencia sobre a região, e era comum adotar um nome grego - imagino é parecido com a atual influência americana no Brasil, e a francesa, no início do século xx. Bartolomeu se levanta, revoltado, perguntando "o quê?", como isso poderia ter acontecido, querendo tomar satisfação.

Tiago, o pequeno, um dos mais obscuros, está boquiaberto. Aparentando ser bem novo [não era o mais novo, este era João, do lado direito de Jesus] parece querer chamar Pedro, o mais velho, como se pedisse conforto de uma voz mais experiente, que lhe disse que tudo não era verdade, como um filho que busca o pai quando tem um pesadelo.

Em seguida, André, irmão de Pedro - que está ao seu lado. Levanta as mãos, como em sinal de defesa, como se quisesse afirmar que não tinha sido ele, mas vira o rosto em contradição: "agora chega, acabou". Os dois tinham uma empresa de pesca, em que alugavam barcos, e trabalhavam com João e Thiago, o maior, também pescadores.

Depois, Judas. O único que não está de frente para o espectador. Sua expressão é vista de soslaio. Dizem - mas não é possível ver nas cópias - que sua musculatura está tesa, demonstrando tensão. No pouco rosto que podemos ver, está nervoso, como se tivesse sido descoberto, mas também surpreso. Na cópia de Giampetrino, segura um saco de sal - supõe-se -, como se fosse a única coisa sólida a se apoiar, ou como referência ao dinheiro que receberia para delatar Jesus.

Pedro, cujo nome original é Simão, mas que Jesus lhe rebatizou, para fazer um trocadilho, ao afirmar que sobre Pedro [petrus é pedra, rocha, tanto em latim como em grego] ele iria erguer sua igreja, parece puxar João para perto dele, como se lhe quisesse lhe dar um sermão. Ou Pedro usa o ombro de João para tentar chegar perto de Jesus e o proteger. É considerado o mais temperamental, mais enérgico. Pedro, João e Thiago, o maior, são visto como os apóstolos mais queridos de Jesus. Os que, quando Jesus queria se dirigir a poucas pessoas, eram escolhidos. Pedro vai ser o fundador da Igreja Católica, mesmo sem ter conseguido fugir da profecia de que iria renegar Jesus três vezes antes do galo cantar duas; João, apóstolo evangelista, como Mateus, e Thiago terá a lenda de Compostela para ornar sua biografia futura.

João, por sua vez, parece escutar placidamente o que Pedro tem a lhe dizer. Ou parece desfalecer - é o mais novo, estaria menos preparado para as artimanhas dos seres humanos. Ou parece meditar sobre a informação que acabam de lhe passar, como as mãos cruzadas à sua frente sugerem.

Tomé - ou Tomás - é o que só acreditava vendo, que, depois, só reconheceu Jesus quando tocou em suas chagas. Ao contrário de sua versão materialista, ele aponta o céu, como se dissesse que Deus não permitiria tal coisa, ou como se estivesse esbravejando contra esse traidor, que ainda nem tinha traído.

Thiago, o grande, é, para mim, a melhor figura: braços abertos, expansivo, enérgico, sanguíneo. Quer resolver o problema dele naquela hora. Quer que Jesus lhe diga quem é o traidor que ele vai ter uma conversinha com ele. Aparentemente, há uma passagem que ele já tinha se comportado com essa energia, na Bíblia - o que é curioso é saber que o seu irmão, que na pintura quase desfalece, teria também tomado essa atitude mais drástica no episódio pregresso relatado.

Filipe é outro que pergunta se será ele a trair Jesus, numa atitude até bastante defensiva, para não dizer covarde, como se se oferecesse para o martírio em seu lugar, como se já estivesse com vergonha da própria atitude, mesmo que não soubesse com certeza.

Mateus, o outro evangelista, que era um agiota, pergunta para Simão [o último] "como é possível que isso esteja acontecendo?" Tadeu também faz a mesma pergunta, mas, insinua alguma resposta, reflete sobre o que ouviu e Simão está completamente perdido.

E assim os apóstolos foram imortalizados.

Se a versão de Giampetrino funciona bem para termos acesso a detalhes sumidos - como os pés de Jesus, por exemplo - em comparação com a original, ou mesmo com a cópia fotográfica do original, podemos perceber como ela é menor. A de Leonardo, mantém um certo mistério, uma delicadeza que não se vê na sua versão.

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