Claro que eu me confundi com a data e deixei passar a efeméride dos 400 anos da primeira exibição de "The tempest" - havia pensado que tinha sido no dia 6, quando fora no primeiro de novembro de 1611, dia de todos os santos, com a presença do King James, no seu Whitehall.
De qualquer forma, vale o registro. Vale o registro como efeméride para nós brasileiros porque mostra como, entre outras diversas possibilidades de leitura, Shakespeare anotou em sua obra o encontro do Novo Mundo.
"The tempest", segundo o comentário introdutório da minha edição da Royal Shakespeare Company, foi a última peça em que o bardo escreveu sozinho. Já era um autor reconhecido e que tinha relevância - mas ainda vivia em um estado absolutista e sabia que não podia desagradar o seu chefe-mor. Portanto, as referências a essa relação Velho-Novo Mundo são sutis ou, ao menos, inferidas. A bela introdução - não assinada - porém anota as diversas citações que não deixam muitas dúvidas sobra a vontade de Shakespeare tratar desse assunto. Numa tradução livre: "a chegada a uma ilhada inabitada por europeus, a fala sobre 'plantation', o encontro com um 'selvagem' em que o álcool é trocado por habilidades de sobrevivência, um processo de aprendizado da linguagem em que é claro quem é o mestre e quem é o escravo, o medo do escravo em engravidar a filha do mestre, o desejo de fazer o selvagem procurar a graça cristã [além também de proporem que ele deveria ser enviado para a Inglaterra para ser exibido e ganhar um dinheiro com isso], referências ao clima perigoso das Bermudas, e ao 'bravo novo mundo': em todos esses aspectos, 'A tempestade' conjura o espírito do colonialismo europeu".
A introdução segue tratando do papel de Caliban, o tal "selvagem", e de como ele representou para gerações de escritores caribenhos anglófilos uma forma de superar o que foi apelidado de "complexo de Caliban", que seria uma forma de subordinação - ou, traduzindo poeticamente para o português-brasileiro-pós-Nelson-Rodrigues, a síndrome de vira-lata. Como os habitantes dessas áreas sempre se sentiram inferiorizados, simplesmente por terem nascido fora dos grandes centros urbanos, e como isso influenciava sua produção. Conhecemos bem isso.
Eu me interesso, porém, pelas frases - versos - linhas que ficam marcadas, como se fossem tatuagem, na memória da humanidade, nas sentenças que as pessoas repetem sem saber de quem era, como se fosse um ditado que sempre existiu sem qualquer relação de autoria, que tivessem brotado simplesmente do nada, espontaneamente. Shakespeare é um craque nesse aspecto. Só nesse livro há três frases que vão ficar para sempre - ao menos, na minha memória.
A primeira é de Prospero - o protagonista da peça, aquele que comanda todas as ações - falando sobre a perenidade das coisas, num discurso analisado diversas vezes e bastante interpretado como uma autorreferência ao próprio teatro, sua intrínseca fantasia-vazia, e o fim de sua vida produtiva: "We are such stuff / As dreams are made on " - que não cabe uma tradução, sem perder a força dos versos originais, mas que diz que somos pueris, feitos da mesma substância que os sonhos são feitos - vagos, nebulosos, inexatos, obtusos.
A segunda é a frase de Miranda, filha de Prospero, que intitula esse post, e está sob o seguinte contexto: "O, wonder! / How many goodly creatures are there here! / How beauteous mankind is! O brave new world, / That has such people in't!". Já ao fim da peça, ela descobre outros habitantes - visitantes - na ilha onde ela cresceu apenas com o pai e Caliban. Portanto, o "brave new world" se referia, metaforicamente, a abertura de um novo mundo, mas não-diretamente à ilha em que ela vivia. Se relaciona ao conhecimento de coisas que ela não sabia que existia, de "tais pessoas" que vivem fora dela, da maravilha que é a espécie humana.
E a melhor frase, na minha humilíssima opinião, mas que, coincidentemente, também é a dos editores do livrinho, que a estamparam na capa, além de escreverem essa conclusão explicitamente na introdução, lembrando para o fato de ela ser dita, exatamente, por Caliban, o tal selvagem, numa referência à ilha, portanto, por associação, ao novo mundo mesmo, em si, como se mostrasse que apenas os que vivem aqui sabem como é a vida nessas bandas - nem melhor nem pior, apenas diferente: "Be not afeard; the isle is full of noises, Sounds and sweet airs, that give delight and hurt not." É o mundo do completo desconhecido, que dá medo, por não sabermos como é, ou o que é. O mundo dos novos barulhos, das novas formas de música, dos novos sabores, cheiros, dos novos extasiantes, de novas morais, e que, vivendo sem lutar contra, aceitando-o como é, não machuca.
ps. Como o texto foi apresentado em 1611, portanto, antes do início mais forte da colonização inglesa nas Américas - como a introdução, inclusive, deixa claro - fico imaginando o quanto de influência Shakespeare teve sobre o King James. Seríamos os mesmos sem que essa peça existisse?
pps. para ler, no original, a peça: aqui.
De qualquer forma, vale o registro. Vale o registro como efeméride para nós brasileiros porque mostra como, entre outras diversas possibilidades de leitura, Shakespeare anotou em sua obra o encontro do Novo Mundo.
"The tempest", segundo o comentário introdutório da minha edição da Royal Shakespeare Company, foi a última peça em que o bardo escreveu sozinho. Já era um autor reconhecido e que tinha relevância - mas ainda vivia em um estado absolutista e sabia que não podia desagradar o seu chefe-mor. Portanto, as referências a essa relação Velho-Novo Mundo são sutis ou, ao menos, inferidas. A bela introdução - não assinada - porém anota as diversas citações que não deixam muitas dúvidas sobra a vontade de Shakespeare tratar desse assunto. Numa tradução livre: "a chegada a uma ilhada inabitada por europeus, a fala sobre 'plantation', o encontro com um 'selvagem' em que o álcool é trocado por habilidades de sobrevivência, um processo de aprendizado da linguagem em que é claro quem é o mestre e quem é o escravo, o medo do escravo em engravidar a filha do mestre, o desejo de fazer o selvagem procurar a graça cristã [além também de proporem que ele deveria ser enviado para a Inglaterra para ser exibido e ganhar um dinheiro com isso], referências ao clima perigoso das Bermudas, e ao 'bravo novo mundo': em todos esses aspectos, 'A tempestade' conjura o espírito do colonialismo europeu".
A introdução segue tratando do papel de Caliban, o tal "selvagem", e de como ele representou para gerações de escritores caribenhos anglófilos uma forma de superar o que foi apelidado de "complexo de Caliban", que seria uma forma de subordinação - ou, traduzindo poeticamente para o português-brasileiro-pós-Nelson-Rodrigues, a síndrome de vira-lata. Como os habitantes dessas áreas sempre se sentiram inferiorizados, simplesmente por terem nascido fora dos grandes centros urbanos, e como isso influenciava sua produção. Conhecemos bem isso.
Eu me interesso, porém, pelas frases - versos - linhas que ficam marcadas, como se fossem tatuagem, na memória da humanidade, nas sentenças que as pessoas repetem sem saber de quem era, como se fosse um ditado que sempre existiu sem qualquer relação de autoria, que tivessem brotado simplesmente do nada, espontaneamente. Shakespeare é um craque nesse aspecto. Só nesse livro há três frases que vão ficar para sempre - ao menos, na minha memória.
A primeira é de Prospero - o protagonista da peça, aquele que comanda todas as ações - falando sobre a perenidade das coisas, num discurso analisado diversas vezes e bastante interpretado como uma autorreferência ao próprio teatro, sua intrínseca fantasia-vazia, e o fim de sua vida produtiva: "We are such stuff / As dreams are made on " - que não cabe uma tradução, sem perder a força dos versos originais, mas que diz que somos pueris, feitos da mesma substância que os sonhos são feitos - vagos, nebulosos, inexatos, obtusos.
A segunda é a frase de Miranda, filha de Prospero, que intitula esse post, e está sob o seguinte contexto: "O, wonder! / How many goodly creatures are there here! / How beauteous mankind is! O brave new world, / That has such people in't!". Já ao fim da peça, ela descobre outros habitantes - visitantes - na ilha onde ela cresceu apenas com o pai e Caliban. Portanto, o "brave new world" se referia, metaforicamente, a abertura de um novo mundo, mas não-diretamente à ilha em que ela vivia. Se relaciona ao conhecimento de coisas que ela não sabia que existia, de "tais pessoas" que vivem fora dela, da maravilha que é a espécie humana.
E a melhor frase, na minha humilíssima opinião, mas que, coincidentemente, também é a dos editores do livrinho, que a estamparam na capa, além de escreverem essa conclusão explicitamente na introdução, lembrando para o fato de ela ser dita, exatamente, por Caliban, o tal selvagem, numa referência à ilha, portanto, por associação, ao novo mundo mesmo, em si, como se mostrasse que apenas os que vivem aqui sabem como é a vida nessas bandas - nem melhor nem pior, apenas diferente: "Be not afeard; the isle is full of noises, Sounds and sweet airs, that give delight and hurt not." É o mundo do completo desconhecido, que dá medo, por não sabermos como é, ou o que é. O mundo dos novos barulhos, das novas formas de música, dos novos sabores, cheiros, dos novos extasiantes, de novas morais, e que, vivendo sem lutar contra, aceitando-o como é, não machuca.
ps. Como o texto foi apresentado em 1611, portanto, antes do início mais forte da colonização inglesa nas Américas - como a introdução, inclusive, deixa claro - fico imaginando o quanto de influência Shakespeare teve sobre o King James. Seríamos os mesmos sem que essa peça existisse?
pps. para ler, no original, a peça: aqui.
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