sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Das vantagens de se ter uma TV

Desde que chegamos aqui, ouvimos diversas pessoas dizendo que os ingleses não trabalham tanto como os brasileiros ou os indianos. Tivemos um exemplo na hora de tentar instalar o combo da sky para tv, internet e telefone. A companhia terceirizada responsável pela televisão veio aqui duas vezes, mas arranjou desculpas em ambas para não resolver o problema. Conclusão: cancelamos a assinatura e optamos por uma tv de graça - precisamos apenas comprar uma caixa de decodificação do sinal para o digital [cara] e cabos hdmi [caríssimos], além de ter que montar nós mesmos o esquema. Internet e telefone, fomos para outra companhia, que marcou de começar o serviço no dia 18 de novembro...

De posse da tv, tivemos algumas surpresas, though. Por ser um país em que a televisão pública é forte, rica e razoavelmente independente, a programação não respeita apenas a diretriz da audiência. Anteontem, nosso primeiro dia com televisão em casa desde a nossa mudança, no horário nobre, enquanto a BBC1 passava um documentário sobre animais marinhos, a BBC2 mostrava como está o Paquistão, depois de tanto tempo sendo associado a um celeiro de terroristas. Não imagino nada parecido no Brasil - seja no âmbito de ter dois canais para poder passar o que quiser [na verdade, eles têm quatro], seja na escolha dos assuntos a serem transmitidos.

A melhor surpresa, porém, foi ver, ontem, também em horário nobre, o filme "Life in a day", do diretor [razoavelmente desconhecido] Kevin Macdonald. Razoavelmente, porque ele já fez, entre outros, "The last king of Scotland", que ganhou uma bela repercussão. O longa de uma hora e meia, mais ou menos, produzido pelo Ridley Scott [esse sim, grande nome] ficou famoso, antes mesmo de ser lançado, porque pedia a colaboração de internautas do mundo inteiro para sua produção. Quem quisesse, deveria se filmar, ou produzir algo de caráter pessoal, no dia 24 de julho de 2010 e enviar para eles. Segundo minha amiga Wikipedia [há, aliás, uma bela homenagem à enciclopédia no filme], foram enviados mais de 4,5 mil horas de filmagens, e 80 mil arquivos de 140 países. Estreou recentemente em Sundance e, a partir do último dia 31, estava disponível no youtube [vide abaixo]. Passar na TV aberta, com um gap de poucos dias para o lançamento na internet, com qualidade de imagem incrível, e no conforto do sofá, mostra que a TV pode ser, ainda, incrivelmente surpreendente.



Sobre o filme. A grande dúvida que tivemos era se foi utilizada alguma imagem de apoio. Os takes eram tão bonitos, tão bonitos, que duvidamos que as pessoas pudessem ter produzido um material tão incrível. Aparentemente, só usaram mesmo os vídeos enviados - o que me faz renovar a fé no ser humano, de certa forma.

A proposta dos produtores era mostrar um dia na vida da humanidade - um dia aleatório. O primeiro sábado após o fim da Copa do Mundo, como disse o editor Joe Walker para a "Wired". Por isso, se eles começam "cronologicamente", mostrando a noite, o nascer do sol, os diferentes e, ao mesmo tempo, similares hábitos matinais de cada canto do planeta, depois, eles tomam outros caminhos.

Os vídeos mais dramáticos são privilegiados, mas sem deixar de lado o humor e mesmo uma certa leveza, mesmo quando os assuntos mais carregados são mostrados - aparentemente há alguns temas centrais, ou vídeos que aparecem mais, para dar uma sustentação no todo, para criar uma espinha dorsal do projeto, como a família cuja mãe está enfrentando câncer, ou o coreano que está andando de bicicleta pelo mundo há seis anos.

O diretor optou por usar música externa, mas aproveitou quando os próprios personagens estão cantando ou fazendo uma música própria, como quando mostram mulheres africanas que, ao socar a farinha, cantam e batucam ritmadamente.

O filme também não fugiu do zeitgeist, pelo contrário. Quis mostrar quais eram as preocupações das pessoas nesse exato dia. Faz, por exemplo, uma comparação entre um fotógrafo que vive no Afeganistão, que tenta mostrar, apesar dos pesares, como a vida continua em Cabul, e uma mulher americana cujo marido está lutando em uma guerra fora do país. Ou mostra um cara que está sofrendo com a crise imobiliária americana, que até hoje reflete na economia mundial.

Esse esquema de "claro-escuro", em que se compara uma situação com o seu oposto é diversas vezes utilizado, como quando se coloca "lado a lado" uma família de dezenas pessoas que vivem em um cemitério, sem qualquer rendimento certo, e a opulência de países ricos, com um cara falando de sua Lamborghini.

O longa usa também bastante a proposta de capítulos divididos em temas. Três quartos de todo material foi recebido diretamente, sem qualquer intervenção. O restante foi recebido depois que a produção enviou câmeras para países pobres e pediu para eles cobrirem certos assuntos, como o que tinham no bolso ou do que tinham medo e o que amavam.

Sem qualquer medo de comparação, me lembrou "O homem com uma câmera", do Vertov. Junta imagens aparentemente sem nexo e criar, assim, uma conexão, um caminho, mesmo que não óbvio, nem, certamente, linear. Mesmo que o "Life in a day" caia na vala comum do esquecimento cibernético, aquele que o ontem se apagou, tamanha a quantidade de informações que temos de hoje, o filme já cumpriu o seu papel de registrar para quando os "escafandristas" vierem como era a humanidade nesse início de século xxi.

ps. BBC quer fazer um vídeo semelhante chamado "Britain in a day", que deve ser gravado agora, no dia 12 de novembro. A ver.

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