"Ontem saí com um cara. Falei que não iria comentar a minha
vida pessoal, mas ela ilustra bem um outro episódio, uma outra promessa, um
outro assunto que me afeta pessoalmente. Conheci o rapaz – sem nomes, ok? – num
show e ontem seria a segunda vez que nos encontraríamos. Ele é fisioterapeuta.
Nada contra fisioterapeutas, mas ele é completamente diferente de mim. Me
perguntou o que eu fazia. Disse que era tradutora. Depois, tomei fôlego e
pratiquei a minha proposta de levar esse trabalho, isso aqui, essas minhas
escritas, a sério, mesmo que não me leve a nada – o fato de escrever, mas
escrever o melhor que eu puder, é o que eu quero. Disse a ele que estava
escrevendo um livro. Primeiro ele me olhou com um ar de surpresa como se
dissesse: você? Nunca imaginei. Mantive-me quieta, porque não tinha nada a
acrescentar, mesmo que tenha ficado com uma vontade de tentar me justificar, ou
mesmo me defender, ou explicar que eu poderia, sim, escrever um livro, que
escritores não são seres que vivem em outro planeta, que eles podem ir a shows
e sair com fisioterapeutas. Depois ele
foi simpático, como os homens, quando minimamente maduros e malandros, são, no
início de qualquer relacionamento: “Poxa, que legal.” Novo silêncio. Ele
procurava as palavras para continuar a conversa, eu ficava quieta, porque não
tinha, ainda, o que falar. Ia responder: “Sim, é legal”? Não, não é muito a
minha cara. Porque não gosto – como diz uma amiga minha atriz – de jogar texto
fora. “Sobre o que é?” ele engatou uma pergunta. Agora, sim, poderia
respondê-lo. Porém, apesar de saber exatamente sobre o que é, fiquei na dúvida.
Acho que essa é a pior pergunta a se fazer a um escritor, a alguém que está
escrevendo. Tentar resumir a história em poucas linhas, em poucas frases, uma
história que está em mais de cem páginas, que já ganhou tantas histórias dentro
dela, que pode ser vista de diversas maneiras. Resumi-la é apenas dispensar uma
parte significativa do seu trabalho, e isso não é fácil. Não é agradável, e se
você puder evitar – e por que não poderia? –, você vai. Você vai querer contar
tudo e aí não vai passar a informação de maneira clara, porque, se é para
contar tudo, a pessoa deveria ler o próprio livro, que não merece ser recontado,
oralmente, pelo próprio escritor, sem qualquer recurso literário. Percebendo o
meu silêncio, ou simplesmente querendo falar um pouco mais, ou ainda tentando
me ajudar, ele fez uma nova pergunta: “É um romance?”.
Lembrei da história de um amigo que lançou seu primeiro
livro, uma coletânea de contos, e a sua mãe perguntou: “Mas é um romance?”, e
ele respondia: “São contos, mãe”, e ela perguntava novamente: “Mas é um
romance?” – e eles ficavam assim, sem que houvesse uma maneira de interromper
esse jogo cíclico. Até cogitei a possibilidade de contar esse episódio a ele,
mas achei melhor passar.
Isso aqui é um romance? O que é um romance?, me veio à
cabeça. Acho que não há uma definição única para o que é romance. Pensei em Goethe
e o seu “Wilhelm Meister”. Pensei no Córtazar e o seu “Jogo de amarelinhas”.
Pensei em Joyce e o seu “Ulisses”. Não. O meu livro não era mesmo um romance,
qualquer a definição que eu possa imaginar. “Não, não é romance”, respondi a
ele. Então, ele, rapidamente, me perguntou novamente – agora parecia
interessado, como se tivesse ficado intrigado com a possibilidade de existir
outra coisa que não romance no ramo dos livros, ou ainda como se pensasse que
eu poderia estar escrevendo a minha vida, como se tivesse interessado em meus
segredos sexuais mais escondidos que eu só iria revelar por meio do livro: “Ah,
então é realidade...” E aí eu percebi o meu erro: quando ele me perguntou se
era romance, ele queria perguntar se era “ficção”, o que as pessoas chamam de
ficção, normalmente, uma história “inventada”. Eu deveria ter respondido que
era um romance e encerraria a questão. Agora, não dava para voltar. Como eu
iria afirmar que eu tinha me confundido e que o meu livro era, sim, romance? Ou
como iria dizer para ele que de acordo com o que eu considero como romance o
meu livro estava longe de ser encaixado nessa categoria. Pensei numa
alternativa: “Não, também não é ‘realidade’, é uma ficção”, tentei explicar,
simplistamente. “Então é um romance”, voltou ele, me lembrando novamente a mãe
do meu amigo, e me brochando. Como eu iria explicar a ele que, de certa forma,
eu estava fazendo uma regalia, abrindo uma exceção nas minhas crenças por ele.
Que eu nem acredito na possibilidade do real, que, para mim, vivemos em
constantes ficções criadas por nós mesmos ou por outras pessoas, que podemos
habitar essas ficções e depois sairmos, que o que chamam de realidade é apenas uma
forma de ficção, e que eu chamo de ficção pode ser entendido como uma
interpretação, ou como interpretações do que as pessoas em geral chamam de realidade.
Eu não queria prolongar a conversa, não queria confundi-lo, não queria nem ter
iniciado essa conversa, mas não dava para eu ficar nesse jogo com ele, como o
meu amigo fica com a mãe. O meu amigo tem que aguentar a mãe, eu não precisava
aguentar nem esse meu companheiro nem ninguém. “Bem, é complicado...”, tentei
responder, mas fui salva pela chegada a nosso destino."
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