Pois. Já devo ter escrito isso antes, mas não importa. Não me lembro, para falar a verdade. A questão é que falei bastante sobre arte e estética, mas jamais entrei no, talvez, mais espinhoso dos temas: o que -dionísios!- é arte? O que faz algo ser considerado arte?
Como se sabe, esse conceito mudou muito durante o caminho da história. Os gregos nem tinham uma palavra para isso, sendo que -se eu não me engano- os romanos traduziram o mais próximo dos seus conceitos, "thekné", por "ars", que veio a dar na nossa palavra "arte". Foi só com Kant e, em seguida, os românticos alemães, ou seja, no século xix, ou seja, ontem, que começamos a valorizar essas produções que aparentemente não temos muito como explicar.
Aliás, foi exatamente Kant quem disse que não tínhamos como explicar o que era "arte", mas sabíamos o que era - o que é uma boa resposta até hoje. E é mais ou menos o que eu aplico até hoje - misturado com outras ideias, que eu também gosto.
De toda forma, mesmo desde então, todo mundo -filósofos, estetas, artistas, historiadores, críticos, pensadores, a humanidade, enfim- tentou separar a arte do que não era arte. Antes da revolução da fotografia, era um pouco mais fácil, como se sabe. Bastava seguir o conceito ainda de Aristóteles de "mimetizar a physis".
Essa palavra estranha -"mimetizar"- quer dizer mais que "copiar". Gosto da tradução "representar", mas, para mim, é um pouco mais que isso. Seria uma "re-representação", ou seja, o ato representar pela segunda vez, já que ela já está representada. E ela, no caso, seria a famosa physis, que, para os gregos tinha uma tradução simples: natureza. Não a natureza de plantas, verde, cachoeira, essas coisas hippies, mas tudo o que há no mundo, tudo é parte da natureza, inclusive o concreto, o lixo, o Demóstenes Torres, o que há de melhor e pior. [Já ouvi que Spinoza dizia que esse conceito de physis era um sinônimo para o que ele considerava Deus, o que eu, seguindo uma tradição do Upanishad, o texto filosófico dos Vedas, por sua vez o conjunto de textos sagrados dos hindus, concordo.]
Ou seja, voltando à questão principal, ao re-representar a natureza, o homem estaria produzindo arte - era fácil identificar. Eu também acho que esse conceito, de certa forma, ainda se aplica, mas, adaptado aos nossos tempos - considerando que re-representar não é, necessariamente, copiar exatamente o que se vê, mas o artista misturar sua particularidade -"subjetividade"- com a natureza e reproduzir isso no seu formato preferido. Mas esse conceito é amplo demais, e não dá para saber o que é arte ou não a partir disso.
Além disso, com o advento da fotografia, o conceito de cópia da natureza caiu, porque a fotografia era mais precisa que qualquer outro meio não mecânico. Não é coincidência que se começou a experimentar formas de pintar que deram no abstracionismo, nas vanguardas e em tudo o que vivemos hoje - em que, ao andar num museu de arte contemporânea, é complicado saber o que se propôs ser arte e o que simplesmente é o entulho do cara que está pintando um espaço do museu.
Antes de continuar, quero dizer que, hoje em dia, valorizamos demais os artistas, em vez da arte, em si - sinal dos tempos. Como se eles fossem super-homens, os únicos capazes de criar algo além-do-normal, aqueles tocados por uma força superior, que conseguem produzir esses objetos que, na falta de outra palavra, chamamos de arte. Além disso, deveríamos pensar que, mesmo que eles possam produzir essa coisa chamada "arte", essa arte pode ser ruim. Arte não é -ou não deveria ser- sinônimo de excelência.
Na verdade, essa característica -ou qualidade- de produzir arte está em todo mundo, alguns de maneira mais latente, outros, mais explícitas. Li um artigo ontem que dizia algo interessante: o fato de se apreciar um arte e conseguir extrair algum significado -mesmo que apenas estético, em que não se traduz em palavras- também é um ato de criação. Concordo. Acho que a arte não é nada, não quer dizer nada sem o espectador. Diferentemente de outro texto que eu li, acredito que uma obra de um nome famoso guardado num quarto escuro, sem ninguém ver, não é -ainda, ao menos- arte.
E, enfim, chegamos aos dias de hoje, e a minha opinião: só é arte o que o espectador achar que é arte. Um terceiro fulano que eu li fala algo parecido: que é arte aquilo que um grupo de especialistas achar que é arte. O grupo de especialistas seria formado por curadores, os próprios artistas, críticos, estudiosos, frequentadores amadores de galerias, e quem mais se autodenominar especialista. Eu concordo, em parte. Primeiro porque eu acho que não precisa de um grupo, basta uma pessoa achar que é arte para tal objeto o ser -pelo menos para ela, o que é suficiente-; e, segundo, porque nem acho que alguém precisa se autodenominar especialista, pode ser alguém que está tendo contato pela primeira vez com o objeto em questão.
Eu gosto de uma definição do Benjamin -que todo mundo costuma ler apenas o "Obra de arte na era da reprodutibilidade técnica", em seu momento mais comunista-materialista e menos judeu-cabalista [sim, ele balançou entre esses dois extremos]- de que a obra de arte é o objeto alegórico que pode ser reinterpretado infinitas vezes. [Não estou certo se ele falou exatamente isso, ou se eu, depois de alguns anos, estou reinterpretando a frase dele para o meu prazer - no fim, estou usando o conceito "contra" ele.]
Objeto alegórico seria aquele que não é metafórico. Metáfora, por sua vez, e na minha interpretação do que Benjamin falou, é a substituição de um símbolo por outro; já alegoria é a criação de um novo símbolo para se representar o símbolo previamente dado. Alegoria, portanto, cria significados, metáforas apenas trocam significados, repetem o sistema já usado.
E, no caso de "reinterpretado infinitas vezes", eu vejo assim: a fonte de interpretações da obra de arte não seca jamais. Um livro, um quadro, uma música, uma peça, uma dança podem ser sempre entendidos de outro ângulo nunca antes visto. Esse caráter infinito seria único da obra de arte -os outros objetos teriam faces finitas.
Por fim, acho que, além de valorizar demais o artista, também temos uma vontade incrível de encontrar o que é "arte", para separar dos objetos dito comuns -cabalistica e paulo-coelhamente, poderia acrescentar que não há objetos comuns. Como se quiséssemos tascar um rótulo em determinados objetos para nos sentirmos mais tranquilos, para, como já disseram, denominar e, assim, dominar. A minha proposta é que, em vez de tentar procurar desesperadamente a "arte", busquemos os objetos -criados pelo homem ou já inseridos na natureza- que sejam capazes de produzir o que se convencionou chamar "experiências estéticas". Talvez seja para isso que o mundo exista.
Como se sabe, esse conceito mudou muito durante o caminho da história. Os gregos nem tinham uma palavra para isso, sendo que -se eu não me engano- os romanos traduziram o mais próximo dos seus conceitos, "thekné", por "ars", que veio a dar na nossa palavra "arte". Foi só com Kant e, em seguida, os românticos alemães, ou seja, no século xix, ou seja, ontem, que começamos a valorizar essas produções que aparentemente não temos muito como explicar.
Aliás, foi exatamente Kant quem disse que não tínhamos como explicar o que era "arte", mas sabíamos o que era - o que é uma boa resposta até hoje. E é mais ou menos o que eu aplico até hoje - misturado com outras ideias, que eu também gosto.
De toda forma, mesmo desde então, todo mundo -filósofos, estetas, artistas, historiadores, críticos, pensadores, a humanidade, enfim- tentou separar a arte do que não era arte. Antes da revolução da fotografia, era um pouco mais fácil, como se sabe. Bastava seguir o conceito ainda de Aristóteles de "mimetizar a physis".
Demóstenes Torres, infelizmente, também faz parte da physis [Fonte: wikimedia] |
Ou seja, voltando à questão principal, ao re-representar a natureza, o homem estaria produzindo arte - era fácil identificar. Eu também acho que esse conceito, de certa forma, ainda se aplica, mas, adaptado aos nossos tempos - considerando que re-representar não é, necessariamente, copiar exatamente o que se vê, mas o artista misturar sua particularidade -"subjetividade"- com a natureza e reproduzir isso no seu formato preferido. Mas esse conceito é amplo demais, e não dá para saber o que é arte ou não a partir disso.
Além disso, com o advento da fotografia, o conceito de cópia da natureza caiu, porque a fotografia era mais precisa que qualquer outro meio não mecânico. Não é coincidência que se começou a experimentar formas de pintar que deram no abstracionismo, nas vanguardas e em tudo o que vivemos hoje - em que, ao andar num museu de arte contemporânea, é complicado saber o que se propôs ser arte e o que simplesmente é o entulho do cara que está pintando um espaço do museu.
Pobre arte povera... Acima: "Venere degli stracci", de Michelangelo Pistoletto. |
Na verdade, essa característica -ou qualidade- de produzir arte está em todo mundo, alguns de maneira mais latente, outros, mais explícitas. Li um artigo ontem que dizia algo interessante: o fato de se apreciar um arte e conseguir extrair algum significado -mesmo que apenas estético, em que não se traduz em palavras- também é um ato de criação. Concordo. Acho que a arte não é nada, não quer dizer nada sem o espectador. Diferentemente de outro texto que eu li, acredito que uma obra de um nome famoso guardado num quarto escuro, sem ninguém ver, não é -ainda, ao menos- arte.
E, enfim, chegamos aos dias de hoje, e a minha opinião: só é arte o que o espectador achar que é arte. Um terceiro fulano que eu li fala algo parecido: que é arte aquilo que um grupo de especialistas achar que é arte. O grupo de especialistas seria formado por curadores, os próprios artistas, críticos, estudiosos, frequentadores amadores de galerias, e quem mais se autodenominar especialista. Eu concordo, em parte. Primeiro porque eu acho que não precisa de um grupo, basta uma pessoa achar que é arte para tal objeto o ser -pelo menos para ela, o que é suficiente-; e, segundo, porque nem acho que alguém precisa se autodenominar especialista, pode ser alguém que está tendo contato pela primeira vez com o objeto em questão.
Benjamin, indeciso sobre ser comunista ou cabalista - ambas crenças difíceis de se seguir [Fonte:Wikimedia] |
Objeto alegórico seria aquele que não é metafórico. Metáfora, por sua vez, e na minha interpretação do que Benjamin falou, é a substituição de um símbolo por outro; já alegoria é a criação de um novo símbolo para se representar o símbolo previamente dado. Alegoria, portanto, cria significados, metáforas apenas trocam significados, repetem o sistema já usado.
E, no caso de "reinterpretado infinitas vezes", eu vejo assim: a fonte de interpretações da obra de arte não seca jamais. Um livro, um quadro, uma música, uma peça, uma dança podem ser sempre entendidos de outro ângulo nunca antes visto. Esse caráter infinito seria único da obra de arte -os outros objetos teriam faces finitas.
Por fim, acho que, além de valorizar demais o artista, também temos uma vontade incrível de encontrar o que é "arte", para separar dos objetos dito comuns -cabalistica e paulo-coelhamente, poderia acrescentar que não há objetos comuns. Como se quiséssemos tascar um rótulo em determinados objetos para nos sentirmos mais tranquilos, para, como já disseram, denominar e, assim, dominar. A minha proposta é que, em vez de tentar procurar desesperadamente a "arte", busquemos os objetos -criados pelo homem ou já inseridos na natureza- que sejam capazes de produzir o que se convencionou chamar "experiências estéticas". Talvez seja para isso que o mundo exista.
3 comentários:
Bacana. Você não trata do trivium e do quadrivium (as sete "artes liberais") medievais, mas isso parece ser de propósito - afinal, trata-se, em algum nível, de apropriações clássicas. Mesmo assim, seu texto deixa muito mais clara uma convicção: arte pressupõe, em qualquer acepção razoável, comunicação. Aliás, isso parece ter sido uma preocupação desde a Idade Média até tempos bem recentes (e a satisfação estética do observador do resultado da "mimese" - que pode representar o que vai apenas dentro da cuca do artista, para Platão - é apenas resultado do processo de comunicação, independente das deformações inerentes à apropriação). O que as vanguardas têm reforçado, como você também deixa claro, é a ênfase no produtor da "arte", sobretudo no âmbito profissional - o que só pode acontecer com a invenção da noção ocidental de indivíduo, na base da Época Moderna. O que é uma espécie de perversão, pois trata-se justamente de etiquetar produtos como sendo arte - tudo o que o Vik Muniz produz é, por antecipação, arte. A produção das ruas, neste sentido, recupera de algum modo um sentido tradicional do termo, mas também segue, atualmente, para uma normalização, através das galerias, dos críticos e que tais, que a confere um selo de "arte". É legítimo, mas é a continuidade de um processo contra o qual Mário de Andrade se levantava na década de 1940, quando bradou contra o que acreditava ser um compromisso "social" da arte. Não acho que deva existir este compromisso "social", no sentido estrito do termo. Mas há realmente, como diriam alguns, um abismo entre o que é arte e o que é expressão. Um latido é uma expressão. Dito do meu jeito: é arte aquilo que preenche minha necessidade de beleza.
Corrigindo: Mário bradava contra o fim do compromisso social.
Lembro que li uns textos de Mário de Andrade na época da pós sobre o caso. O que mais ficou na minha cabeça -e esse foi o caminho que eu tomei em todo o texto, daí não citar nada da idade média- é a necessidade de artesania, na produção da arte. ou seja, só seria arte aquilo que se faz com as próprias mãos -mesmo que se utilizando de elementos externos, como máquinas ou até ajudantes. portanto, uma ideia não seria arte -o que eu tendo a concordar.
no fundo, volto a repetir o que disse ao final: a arte não importa, importa a experiência que se tem.
Postar um comentário