sexta-feira, 23 de março de 2012

Penderecki & Jonny Greenwood, ou introduções a atual música erudita

Há três formas de introduções para esse texto:

1ª - a metáfora do "comfort food":

Eu sou um grande fã de comida, o que os ingleses chamam de "foodie" - acho que ela pode dar prazeres que apenas outras "artes" conseguem. Como em outras áreas, na culinária há a zona de conforto. No caso, há até algo mais direto, o "comfort food", quando o chef só prepara pratos que são extremamente conhecidos dos glutões em geral, e nada que vá causar estranhamento. Saca medalhão com arroz a piamontese da Parmê? Por aí. Eu gosto, entretanto, de tentar, vez por outra, experimentar algo que me faça repensar, que me surpreenda, que seja completamente diferente do que eu já comi antes. Num primeiro momento talvez não seja fácil, mas quando se tem coragem e se passa da barreira do "esquisito", pode-se ter contato com um novo mundo, completamente diferente do que você conhecia anteriormente. O mesmo, claro, acontece com outras formas de expressão, como a música, por exemplo.

Penderecki, o maestro Marek Mós, que conduziu a orquestra
 para Greenwood, e Jonny, enquanto mexia no cabelo.

2ª - a vantagem londrina:

Agora que o Brasil, ou ao menos São Paulo, virou destino quase certo das grandes e médias bandas internacionais, não é tão doloroso perder shows como o do Radiohead [que vai tocar aqui no mês seguinte de nós irmos embora]. Mesmo que eles tenham lançado um novo disco, que, mais uma vez, inova no que eles já faziam, eu já posso dizer para mim mesmo que já vi uma apresentação deles -aquela, apoteótica, na Apoteose. As vantagens de Londres, para mim, são: 

a/ poder assistir a um show inteiro, como aconteceu com a Florence, com toda a orquestra, e não apenas o núcleo do pessoal da Machine. 

b/ ter contato com bandas que, de tão pequenas, ainda não fizeram sucesso fora daqui, ou talvez nunca façam, como foi o caso do Ma'Grass

c/ e poder conferir os trabalhos paralelos de nomes já estabelecidos da música, como foi o caso do projeto do Long Count, dos irmãos guitarristas do National. 

E como aconteceu, de novo, agora, com a apresentação ontem das "48 responses to Polymorphia", projeto de música erudita capitaneado pelo guitarrista do Radiohead Jonny Greenwood, em homenagem ao compositor polonês Krzysztof Penderecki.


3ª - A volta à tradição:

Desde o início da modernidade, houve uma perseguição quase ditatorial a um aspecto da vida, como uma utopia, como se ela fosse realizável: o novo. E a arte, como era de se esperar, não ficou à parte disso. Esse empuxo culminou nas vanguardas do século xx, que simplesmente quiseram acabar com a representação em todos os seus aspectos. Esse papo é longo, e não cabe aqui, mas para exemplificar, pense no abstracionismo das artes visuais. Claro que a música não ficou de fora, e nasceram novos formatos, como a música concreta e a eletroacústica, por exemplo.

Penderecki é um desses compositores - nem tão novos, ele tem 79 anos - que tentaram extrapolar os limites que a música se autoimpunha. Em suas músicas não há um caminho fluido óbvio que nossos ouvidos devem acompanhar, como acontece com outras músicas -eruditas ou não. São sucessões de climas, muitas vezes sinistros, assustadores, que conseguem nos matar de medo, e nos inundar de uma sensação única, nova, estranha, diferente do que você estava acostumado. Suas músicas ficaram conhecidas porque foram usadas em filmes como "O iluminado" e "O exorcista", mas seu estilo não é facilmente palatável. Fiel à ideia de vanguarda, ele transforma qualquer componente em cena - o corpo dos instrumentos, por exemplo - em objeto para se tirar música. Ou pensa nos músicos como bailarinos que dançam de uma maneira específica conforme a nota tocada. É estranho. E é incrível.


Greenwood, por sua vez, resolveu pegar duas das músicas mais famosas de Penderecki, "Polymorphia" e  "Threnody for the Victims of Hiroshima", e, bem ao gosto do século XXI, remixá-las. Em vez, porém, de usar instrumentos eletrônicos, Greenwood reescreveu o tema dessas músicas, incluindo citações a outros compositores eruditos, como Bach, e à música pop, como quando os violinistas usam seus instrumentos como guitarras, ou os outros músicos usam como arco para suas violas e violoncelos uma espécie de chocalho. O resultado é "48 Responses to Polymorphia", que deu título para a apresentação de ontem, e "Popcorn Superhet Receiver".

No lugar de olhar para a frente, como um vanguardista do século passado faria, Greenwood, um músico tipicamente do século xxi, foi se inspirar no passado, em outros registros e em outros formatos. Lembra Sonic Youth, nas suas mais bonitas distorções. Lembra "Blade runner", no clima, e até, por que não?, no Vangelis. Lembra o próprio Radiohead, claro, na sua porção mais etérea. O produto é uma música muito mais palatável, confortável, que Penderecki, sem ser, por isso, nada óbvio, e que por sua vez não fica no mesmo lugar - se mexe.

Se no caso das obras de Penderecki, sentimos um frio constante, um medo de não se sabe do quê, nas versões de Greenwood conseguimos sentir até um calorzinho, para, depois, sermos ceivados, enganados, levados para um outro lado que nem pensávamos possível.


Essa epidemia do novo é algo relativamente recente na história da humanidade -podemos dizer que do final do século xviii? Talvez, essa seja mais uma prova de que estamos vivendo o momento exato de mais uma dobra no percurso da História, em que as pessoas se cansaram do novo e buscam a tradição, outra vez.

Foram tocadas apenas essas quatro músicas no show, de cerca de uma hora, ontem no Barbican. Mas se teve a impressão de se estar diante do que há de mais... hum... novo?... na música hoje em dia. Uma metáfora: eles são a ponta do iceberg, eles são o caminho para a onde a música deve -no sentido de provavelmente- ir. Eles são a vanguarda, ou, como cabe a nossos tempos, uma das vanguardas. Greenwood está marcando uma estrada no meio de uma floresta densa para que outras pessoas possam seguir. Está desbravando áreas já visitadas e fazendo conexões que ninguém tinha pensado ser possível. Está redescobrindo, revisitando, re-produzindo, e percebendo que havia muitas possibilidades abertas no passado que podem ser desenvolvidas, trabalhadas e retrabalhadas. Porque, como Borges sempre dizia, reler é melhor que ler.

ps. aparentemente, Jonny Greenwood não foi o único músico pop a se aproximar de Penderecki.

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