[Crítica publicada originalmente na "Revista de História".]
O ídolo dos sindicalistas. O candidato favorito das eleições. O filho de dona Lindu. Quem é Luiz Inácio da Silva, ou, como é conhecido por todos os companheiros, Lula? O retirante nordestino, o viúvo que casou com uma viúva, o líder dos metalúrgicos que perdeu um dedo em um acidente de trabalho, o brasileiro que tem entre as suas grandes frustrações não saber batucar?
Talvez por conta de sua trajetória incomum, de torneiro mecânico a presidente da República, ou por sua imensa popularidade enquanto era o chefe do Estado, Lula foi retratado, direta ou indiretamente, por três diferentes produções cinematográficas nos últimos dez anos: “Lula, o filho do Brasil”, “Peões” e “Entreatos”. Complementares em alguns aspectos, elas mostram faces diferentes desse mesmo personagem que até hoje surpreende os brasileiros.
O último filme a ser realizado, “Lula, o filho do Brasil”, talvez seja o mais fraco de todos. O longa de Fábio Barreto é a única ficção, mas o seu problema não reside nesse aspecto. Ou não apenas. O maior defeito da produção é não se ater a um determinado momento histórico do personagem. Sem esse recorte temporal, somos apresentados a um grande painel, mas sem qualquer profundidade. Vemos em uma cena Lula perder o dedo mindinho da mão esquerda, e na outra, ele já está de volta ao trabalho. Ele fica viúvo em uma sequência, sofre na seguinte, e já escuta sobre Marisa Letícia, que vem a ser sua segunda esposa, logo em seguida.
Além disso, há exageros, ausências e uma inverossimilhança forte, do tipo “falta de química”, no casting. Os aumentos se dão principalmente no trato da faceta sindicalista de personagem. Após uma das famosas greves da virada da década de 1970 para a 1980 fracassar, Lula – corretamente interpretado por Rui Ricardo Dias – é mostrado em uma negociação tensa com os demais metalúrgicos. A cena é situada em uma igreja, no filme de Barreto. Mas em “Linha de montagem”, de Renato Tapajós, documentário que cobriu exatamente esse período, vemos que o cenário foi muito menos simbólico: um ginásio. Esses aumentos são perdoados quando se tem em mente que a ficção deve ter mais liberdade para recriar certos momentos que nunca se repetirão à perfeição. Já a escolha de Cléo Pires para interpretar sua primeira mulher, Maria de Lurdes da Silva, é mais difícil de desculpar. Parece simplesmente inapropriado. Pior só se em vez de Glória Pires para o papel de Dona Lindu colocassem Regina Duarte.
Se o filme de Barreto foi exibido em ano eleitoral, e sofreu críticas por isso, “Peões” e “Entreatos”, de Eduardo Coutinho e João Moreira Salles respectivamente, foram projetos gestados ao mesmo tempo, no momento em que a popularidade de Lula estava se dirigindo ao seu ápice, a eleição de 2002.
Seguindo a sua trajetória de investigação e de dar voz ao homem comum, Coutinho tentou resgatar a história de personagens que não ficaram conhecidos com as greves do ABC. Buscou os seus personagens no Nordeste e nas próprias cidades do ABC paulista. Vários idolatram Lula, chamando-o de “segundo pai”, “grande mestre”, “o cara” [antecipando Obama?], “pessoa lutadora”, “grande pessoa”, “pai”, “irmão”, “meu tudo”, “filho lindo”, homem cuja mãe teria orgulho [o que remete, sem querer, ao filme de Barreto, que mantém o foco firme em Dona Lindu, lembrando que Lula dedicou o seu discurso de posse a ela].
Os entrevistados têm, todos, sotaque nordestinos. Sentem orgulho desse passado de trabalho duro, afirmando que o “filho de metalúrgico é também metalúrgico”, ou que “peão de fábrica não é vergonha alguma”. Os entrevistados que apresentam alguma mágoa e que tentaram uma vida melhor para os filhos argumentam que essa dor se deve principalmente porque tiveram que priorizar o sindicalismo e o trabalho à família. Mesmo esses, todavia, dizem não se arrepender do passado. Todos afirmam que participavam do movimento porque gostavam. Porque queriam ser parte da História. A maioria aparenta ser bem livre, do tipo que, passando dificuldades, não se deixa levar pela opinião dos outros, tentando trilhar os próprios caminhos. Fica a impressão de que essa alta autoestima se deve exatamente pelo fato de terem participado de um movimento maior que o cotidiano duro das fábricas, sentirem que estavam lutando pelo bem comum de todos, pelo certo.
Coutinho faz uma espécie de continuação ou resposta ao “Linha de montagem” de Tapajós, inclusive encontrando a servente que escondeu os rolos dos filmes quando a polícia tentou encontrar na época das greves. João Moreira Salles, por sua vez, pratica um quase milagre ao produzir uma obra que envelhece cada vez melhor. E essa tendência não tem previsão de mudar. Ao fazer um registro de um período muito pequeno, entre o primeiro e o segundo turno da eleição presidencial de 2002, o filme conseguiu capturar a personalidade de personagens que se tornariam muito famosos nos anos seguintes. É possível ver momentos de quase intimidade [nunca é uma intimidade completa com uma câmera ligada ao seu lado] de José Dirceu, Antonio Palocci, Ricardo Kotscho, Luiz Gushiken, José Genoíno, Aloizio Mercadante, Duda Mendonça, entre muitos outros.
O longa começa numa cena bastante simbólica. Lula está no barbeiro, aparando um dos seus principais ícones, enquanto dá uma entrevista ao telefone em que comenta política externa e mercado financeiro, com metáforas futebolísticas.
Os personagens estão, em alguns momentos, interpretando claramente para a câmera. Mas há outros que eles surpreendem pela sinceridade. Como quando, na reunião pré-debate, José Dirceu admite que não podia mostrar o que “tinha guardado no cofre” das outras eleições. Ou quando Lula fala que tomava pinga na hora do almoço quando trabalhava na fábrica.
Mas o melhor é ver o personagem principal interpretando a si mesmo. Lula conta causos, fica chocado com o medo de Regina Duarte, faz piada com Bush, demonstra suas diferenças para o polonês Lech Walesa [do sindicato Solidariedade], dá sua versão da formação do PT e de como o Partido dos Trabalhadores era único no mundo.
Em um dos momentos mais engraçados, Lula aguarda sentado a uma mesa para gravar a participação em propagandas em apoio a candidatos da base, quando o publicitário Duda Mendonça se aproxima para passar os pontos que o candidato deveria reforçar. Enquanto fala, Duda batuca de leve na mesa e Lula o observa com um olhar fixo. Quando acaba, Lula fala em um tom quase de ciúme que a sua maior frustração era nunca ter aprendido a batucar nada. Duda, por sua vez, diz que, ao contrário, era ótimo. Há um corte rápido e logo vemos os dois personagens, no mesmo cenário, mas com Duda batucando desbragadamente enquanto Lula apenas o observa, ainda mais vidrado, como se invejasse o companheiro.
Ao fim, fica a impressão de que o filme é um documento histórico único. Que vai ser estudado pelas próximas gerações, que vão tentar entender a história do polêmico presidente, um dos mais populares da História, mas que igualmente esteve próximo de vários escândalos. Para saber como mudou a vida de Lula, basta pensar em quantos dos políticos mostrados no filme de João Moreira Salles ainda se mantêm ativos publicamente.
O ídolo dos sindicalistas. O candidato favorito das eleições. O filho de dona Lindu. Quem é Luiz Inácio da Silva, ou, como é conhecido por todos os companheiros, Lula? O retirante nordestino, o viúvo que casou com uma viúva, o líder dos metalúrgicos que perdeu um dedo em um acidente de trabalho, o brasileiro que tem entre as suas grandes frustrações não saber batucar?
Talvez por conta de sua trajetória incomum, de torneiro mecânico a presidente da República, ou por sua imensa popularidade enquanto era o chefe do Estado, Lula foi retratado, direta ou indiretamente, por três diferentes produções cinematográficas nos últimos dez anos: “Lula, o filho do Brasil”, “Peões” e “Entreatos”. Complementares em alguns aspectos, elas mostram faces diferentes desse mesmo personagem que até hoje surpreende os brasileiros.
O último filme a ser realizado, “Lula, o filho do Brasil”, talvez seja o mais fraco de todos. O longa de Fábio Barreto é a única ficção, mas o seu problema não reside nesse aspecto. Ou não apenas. O maior defeito da produção é não se ater a um determinado momento histórico do personagem. Sem esse recorte temporal, somos apresentados a um grande painel, mas sem qualquer profundidade. Vemos em uma cena Lula perder o dedo mindinho da mão esquerda, e na outra, ele já está de volta ao trabalho. Ele fica viúvo em uma sequência, sofre na seguinte, e já escuta sobre Marisa Letícia, que vem a ser sua segunda esposa, logo em seguida.
Além disso, há exageros, ausências e uma inverossimilhança forte, do tipo “falta de química”, no casting. Os aumentos se dão principalmente no trato da faceta sindicalista de personagem. Após uma das famosas greves da virada da década de 1970 para a 1980 fracassar, Lula – corretamente interpretado por Rui Ricardo Dias – é mostrado em uma negociação tensa com os demais metalúrgicos. A cena é situada em uma igreja, no filme de Barreto. Mas em “Linha de montagem”, de Renato Tapajós, documentário que cobriu exatamente esse período, vemos que o cenário foi muito menos simbólico: um ginásio. Esses aumentos são perdoados quando se tem em mente que a ficção deve ter mais liberdade para recriar certos momentos que nunca se repetirão à perfeição. Já a escolha de Cléo Pires para interpretar sua primeira mulher, Maria de Lurdes da Silva, é mais difícil de desculpar. Parece simplesmente inapropriado. Pior só se em vez de Glória Pires para o papel de Dona Lindu colocassem Regina Duarte.
Se o filme de Barreto foi exibido em ano eleitoral, e sofreu críticas por isso, “Peões” e “Entreatos”, de Eduardo Coutinho e João Moreira Salles respectivamente, foram projetos gestados ao mesmo tempo, no momento em que a popularidade de Lula estava se dirigindo ao seu ápice, a eleição de 2002.
Seguindo a sua trajetória de investigação e de dar voz ao homem comum, Coutinho tentou resgatar a história de personagens que não ficaram conhecidos com as greves do ABC. Buscou os seus personagens no Nordeste e nas próprias cidades do ABC paulista. Vários idolatram Lula, chamando-o de “segundo pai”, “grande mestre”, “o cara” [antecipando Obama?], “pessoa lutadora”, “grande pessoa”, “pai”, “irmão”, “meu tudo”, “filho lindo”, homem cuja mãe teria orgulho [o que remete, sem querer, ao filme de Barreto, que mantém o foco firme em Dona Lindu, lembrando que Lula dedicou o seu discurso de posse a ela].
Coutinho faz uma espécie de continuação ou resposta ao “Linha de montagem” de Tapajós, inclusive encontrando a servente que escondeu os rolos dos filmes quando a polícia tentou encontrar na época das greves. João Moreira Salles, por sua vez, pratica um quase milagre ao produzir uma obra que envelhece cada vez melhor. E essa tendência não tem previsão de mudar. Ao fazer um registro de um período muito pequeno, entre o primeiro e o segundo turno da eleição presidencial de 2002, o filme conseguiu capturar a personalidade de personagens que se tornariam muito famosos nos anos seguintes. É possível ver momentos de quase intimidade [nunca é uma intimidade completa com uma câmera ligada ao seu lado] de José Dirceu, Antonio Palocci, Ricardo Kotscho, Luiz Gushiken, José Genoíno, Aloizio Mercadante, Duda Mendonça, entre muitos outros.
Os personagens estão, em alguns momentos, interpretando claramente para a câmera. Mas há outros que eles surpreendem pela sinceridade. Como quando, na reunião pré-debate, José Dirceu admite que não podia mostrar o que “tinha guardado no cofre” das outras eleições. Ou quando Lula fala que tomava pinga na hora do almoço quando trabalhava na fábrica.
Mas o melhor é ver o personagem principal interpretando a si mesmo. Lula conta causos, fica chocado com o medo de Regina Duarte, faz piada com Bush, demonstra suas diferenças para o polonês Lech Walesa [do sindicato Solidariedade], dá sua versão da formação do PT e de como o Partido dos Trabalhadores era único no mundo.
Em um dos momentos mais engraçados, Lula aguarda sentado a uma mesa para gravar a participação em propagandas em apoio a candidatos da base, quando o publicitário Duda Mendonça se aproxima para passar os pontos que o candidato deveria reforçar. Enquanto fala, Duda batuca de leve na mesa e Lula o observa com um olhar fixo. Quando acaba, Lula fala em um tom quase de ciúme que a sua maior frustração era nunca ter aprendido a batucar nada. Duda, por sua vez, diz que, ao contrário, era ótimo. Há um corte rápido e logo vemos os dois personagens, no mesmo cenário, mas com Duda batucando desbragadamente enquanto Lula apenas o observa, ainda mais vidrado, como se invejasse o companheiro.
Ao fim, fica a impressão de que o filme é um documento histórico único. Que vai ser estudado pelas próximas gerações, que vão tentar entender a história do polêmico presidente, um dos mais populares da História, mas que igualmente esteve próximo de vários escândalos. Para saber como mudou a vida de Lula, basta pensar em quantos dos políticos mostrados no filme de João Moreira Salles ainda se mantêm ativos publicamente.
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