sábado, 8 de dezembro de 2012

Questão de humanidade

Tenho uma relação mista com Criolo. Não fui um dos primeiros a "adotá-lo", e fiquei um bom tempo sem nem mesmo conhecê-lo. Quando o descobri, fiquei impressionado como ele conseguia usar elementos de estilos que eu gosto muito, como afrobeat, e que, por acaso, raramente eram usados em músicas aqui no Brasil. Foi uma ótima surpresa.

"Bogotá" é excepcional.

Em um show, porém, com Mulatu Astatke, muito da minha simpatia foi por água abaixo. Ele parecia em uma outra voltagem, interpretando um personagem elétrico, ligadão, doido ["Criolo doido" era a sua alcunha ainda nos tempos das quebradas], que não condizia com a tranquilidade sábia daquele senhorzinho que tocava xilofone tão calmamente ao lado. No palco, Criolo parecia over, exagerado, demasiado, too much. Desde então acabei tendo pouco contato com ele novamente.

Mas fiquei feliz quando ele foi um dos nomes escolhidos pela equipe da BBC par mostrar os novos sons da América Altina [escrevi errado, sem querer, mas gostei do neologismo, que me remete a algo "altivo", mas no "alto", como se nos "Andes"]. A outra brasileira, igualmente bem escolhida na minha opinião, foi Gaby Amarantos, que eu também não conhecia. Infelizmente, ela foi alvo dos "comentaristas de internet"* quando a BBC divulgou o link da reportagem no Facebook.

Voltando a Criolo, fiquei ainda mais impressionado quando ele, nesse videozinho pequeno da BBC, falou uma frase que ficou ecoando na minha cabeça desde então. Parecia ingênua, sem muita elaboração, quase como um ato de fé, uma verdade que se repete para se aprender por incorporação. Mas, mesmo que ele não soubesse o que estava falando, ou, principalmente, se é algo intuitivo, que ele nem tem noção ao certo de onde brotou, que ele percebe como uma verdade própria e estava, naquele momento, apenas a externando... isso não importa. O fato é que a frase é excelente:

"Definir a arte é esquartejar uma das poucas coisas no planeta que ainda te faz sentir humano."

Por partes, por favor [evitando o esquartejamento].

A primeira parte da frase é mais controversa: "Definir a arte é esquartejar...". Soa como se a arte não pudesse ser definida por palavras, como se as palavras fossem incapaz de abarcar todas as possibilidades da arte. É verdade, sim, mas tem um lado medroso, implícito, de evitar problemas espinhosos. Mesmo que seja um "esquartejamento", e, portanto, uma certeza de fracasso, você fala essa frase de efeito, dá essa saída, que é mais fácil, do que enfrentar o problema insolúvel. Como se sabe, eu discordo completamente. Não é porque o problema não pode ser resolvido que não se pode pensar nele. Esse raciocínio, aliás, me lembrou aquele outro, de Wittgenstein, de que não devemos falar sobre o que não sabemos.

Mas é a segunda parte da frase que me interessa: "... uma das poucas coisas no planeta que ainda te faz sentir humano." Se isso não é já uma definição para a arte, eu não me chamo Kleber Cavalcante Gomes. E é uma belíssima definição, eu diria.

Em um mundo em que as pessoas pensam - ou, num raciocínio otimista, ainda pensam -, verdadeiramente, que se pode resumir todas ações em algoritmos, como se fosse possível a previsão do futuro, em que estamos destinados à cibernética, que somos cada vez mais ciborgues, que nossa simbiose com as máquinas aumenta de maneira exponencial... o que é ainda humano? O que ainda te faz sentir-se humano? O que o homem faz e que o não-homem não consegue fazer?

Numa época que o artista é [ainda? ?] mais importante que a obra, que a arte [ainda, já?] não se banalizou o suficiente para perder a sua aura de mágica, podemos pensar que é esse objeto, esse ato, essa interpretação de mundo que, por falta de nome melhor, chamamos de "arte",  nos diferencia dos não-homens. Nem adianta existirem macacos-pintores, porque é o ato de olhar, não o de produzir, que a arte existe. Só existe arte quando o espectador [mesmo que o próprio artista] decide isso. E isso, otimisticamente, não deve ser uma questão de "ainda" ou "já".

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* "Comentaristas de internet" são aqueles fulanos que tendem a falar mal do assunto proposto, independentemente do quê, só porque o bom é aquilo que eles conhecem, sabem, tem acesso, imaginam, mas que nunca é tátil, ficando apenas no campo da idealização ou do sonho. Geralmente eles se colocam numa posição de superioridade ao objeto retratado, falando coisas como "é um absurdo que isso esteja sendo mostrado". Também é comum a presença de nostalgia nesses comentários, mesmo, ou principalmente, quando há uma nostalgia daquilo que não se viveu. Exemplo: "Olha como a nossa música, que já produziu Chico&Caetano, está representada hoje!" São típicos casos de pequenos autoritários preconceituosos, com idade mental próxima da antiga pré-adolescência, que não tem o hábito nem de ouvir qualquer opinião controversa à sua, de ler os textos que criticam, nem de simplesmente clicar nos links apresentados.

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