quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Jovens x Ultrajovens

The Suburbs, que pode ser um bom exemplo do gap de regime narrativo / temporal existente entre a atual geração de jovens e a anterior, é um álbum temático lançado pela banda de rock canadense Arcade Fire em 2010. As músicas, os vídeos e o curta-metragem Scenes from the Suburbs têm como fio condutor um certo saudosismo em relação a um passado não muito distante, localizado talvez entre o final dos anos 90 e início dos 2000. Estas obras soam como um lamento de jovens que nasceram entre o final dos anos 70 e início dos 80, gravitando portanto os 30 anos de idade, e que viram aquela vida suburbana se perder muito rapidamente. As obras em torno deste álbum tematizam a passagem do tempo através da representação do passado e, secundariamente, da relação com os ultrajovens . Meu argumento é que pela primeira vez na história do ocidente duas gerações de jovens formados em regimes narrativos distintos se sobrepõem, dividem o mesmo espaço, e esta situação pode ser observada nesta obra.
Apesar de não concordar com todos os argumentos apresentados, o texto sobre diferenças geracionais, utilizando o incrível álbum do Arcade Fire como fio condutor, do meu amigo Rodrigo Elias, é, além de imenso, imperdível. 

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

O que é aquilo, companheiro?



"Hércules 56", documentário sobre o sequestro do embaixador Charles Elbrick, por guerrilheiros brasileiros, em 1969, mostra que há muito mais narrativas e contradições na memória dos sobreviventes desse período.

domingo, 27 de janeiro de 2013

As várias Madalenas de Proust

A dicotomia entre a pecadora e a santa, entre a mulher que encarna as urgências da carne e a pureza da divindade, aquela que se entrega aos prazeres e depois se arrepende deles – essas ambiguidades configuram o mito de Madalena. Em À Procura do Tempo Perdido, elas se projetam sobre a mãe que cede aos caprichos do filho, o filho que não quer ser separado da mãe, a mãe que desiste de lhe impor as normas da boa educação, o filho que não irá superar o drama edipiano. E juntos eles acompanham o relato do incesto de outra Madalena, a mulher do moleiro criada por George Sand.
Mario Sergio Conti faz um belo ensaio sobre a obra máxima de Proust e um dos seus principais elementos que libertam a memória do protagonista: a madeleine.

To pun or not to pun

Jesus himself was a prodigious punster. His declaration that "upon this rock I will build my church" famously played on the way Peter's name echoed the Ancient Greek word for rock, "petra".
If even He likes to pun, who would be against this ideal of life? Good article in BBC about paronomasia.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Well, well, well



The closest I get from a religious experience.

Frases - Allen e Verissimo

A morte é uma sacanagem. Sou cada vez mais contra. [daqui.]
I am not afraid of death, I just don't want to be there when it happens. [mais citações dele, aqui]
 Lembro que o Ruy Castro já tinha dito que Verissimo é o nosso Woody Allen. Acrescento que, ao menos, é mais simpático. Sua frase publicada ontem em entrevista à Folha [link lá em cima] mostra como os dois operam no mesmo tom de humor. Além disso, cresceram em ambientes muito parecidos, sendo influenciados pela cultura popular americana. O exemplo maior, talvez, seja o caso do jazz: além de fãs, ambos tocam em bandas.

A entrevista do Verissimo é recheada de frases incríveis. Eu diria que praticamente toda a resposta tem, ao menos, uma boa tirada. É uma sucessão de humor. Como quando ele diz que
O problema é que eu não conseguia distinguir alucinação de realidade. Ouvia conspirações à minha volta, meu espírito, ou coisa parecida, andou até em Pelotas, que fica a 200 quilômetros de Porto Alegre, e tenho quase certeza de que não dancei uma valsa com a enfermeira que me ajudou a sair da cama pela primeira vez, na UTI.
Ou quando afirma que não vai
dizer que fazer crônica é como andar de bicicleta, a gente não desaprende. A analogia é boba. Nem andar de bicicleta é como andar de bicicleta. Sempre é preciso recuperar o equilíbrio.
Eles são, talvez, a última geração em que a ironia ainda poderia ser considerada inofensiva.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

O Rio e a nostalgia do que não se viveu

Todas as vezes que o tempo fica meio louco no Rio, como foi o caso do dia de São Sebastião, que além de ser o padroeiro da cidade dá o nome para ela, eu penso nos primeiros europeus que chegaram por essas praias. O mesmo acontece quando vou a lugares praticamente intocáveis, como Grumari, com aquele verde luxuriante quase em contato com o mar, revolto, aberto, oceânico.

Aquarela sobre papel sobre cartão do inglês Henry Chamberlain,
vista da sua casa, no Catete, por volta de 1820.

Fico com um pouco de inveja desses primeiros europeus que conseguiram ver uma cidade ainda, praticamente, intocada. Ou tocada por homens e mulheres que tinham um poder e a vontade de destruição muito menor. Era uma cidade com outra geografia. Com morros que não existem mais, com uma orla diferente. Sem prédios.

Olhar para a Grumari citada ali em cima, com a mata Atlântica ainda virgem [ou, ao menos, que me engana nesse sentido] e imaginar, ao mesmo tempo, Copacabana, e aquela selva de prédios, altos, quadrados, sem qualquer bossa, praticamente idênticos, como se fossem um a cópia do outro, dá um pouco de nostalgia do que não se viveu.

No Rio, isso é fácil, né? Já fomos um centro cultural e político ainda mais importante. Fomos o palco de grande parte dos movimentos musicais que se tornaram nacionais até o século XX. Somos vizinhos da História. Esbarramos em placas que nos contam onde Machado de Assis viveu, casou. Frequentamos os bares onde músicas foram escritas. Vivemos nas praias que mudaram comportamentos. Passeamos nos jardins do palácio onde o presidente se matou.

Mas não é a questão humana que mais me traz esse sentimento de ter perdido algo que nunca foi, exatamente, meu. Para mim, é como se a cidade, a estrutura física, fosse minha - mas não apenas minha, eu sei. E alguém, no passado, mexeu com ela, sem me perguntar se eu iria gostar. Por uma questão de cronologia, eu suponho.

Eu queria ver a Praia de Botafogo limpa, por exemplo. Antes do Aterro. Ter a condição de me entrar no mar calmo da enseada e poder, ao mesmo tempo, ficar completamente hipnotizado pelo Pão de Açúcar, que desde os primeiros navegantes chama a atenção com suas formas. Eu vejo a praia hoje e me sinto aviltado. Impedido.

O mesmo acontece quando, nas poucas vezes que passei em frente, vejo a subida para o morro do Castelo. Como era a vida ali, naquele pedaço tão próximo ao mar e ao mesmo tempo do lugar onde a cidade nascia e crescia e se desenvolvia? Nunca terei a minha opinião.

Eu queria ver o assombro na cara dos portugueses, espanhóis, italianos, ingleses, franceses, holandeses, que chegavam aqui e percebiam que tudo que se plantasse, dava. Que as temperaturas não eram tão amenas no verão, nem tão rigorosas no inverno. Que a umidade não era humilde. Que o clima variava diariamente e, às vezes, com mais frequência que diariamente. Que o verde era mais intenso, o azul, mais selvagem, o amarelo, mais quente. Que o nosso tempo era outro, nossa moral, mais flexível, nossa calma, mais contagiante.

Se um dia inventarem a máquina do tempo e me for dada a chance de usá-la, já sei exatamente para quando eu gostaria de ir. Eu gostaria de me assombrar também.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Técnicas de redação: como começar um texto

Como começar um texto? Com perguntas que vão sendo respondidas ao longo do próprio texto? Apresentando os problemas que vão ser combatidos? Os temas a abordar?

Talvez com uma citação ["A história deve ter um começo, um meio e um fim, mas não necessariamente nessa ordem", diria Godard], em que vai basear todo o seu argumento - seja para concordar ou para discordar.

Se o tema é controverso, a citação pode ser, igualmente, de um dicionário.
início [cf. o Houaiss]
substantivo masculino ( a1727)
1 ato ou efeito de iniciar(-se)
2 o que vem em primeiro lugar (num processo); princípio, começo
‹ o difícil i. de uma carreira ›
3 o princípio de alguma coisa, ger. com expectativa de continuidade; inauguração, estreia, fundação
‹ o i. da temporada › ‹ o i. da empresa ›
4 parte preliminar; exórdio, preâmbulo

Melhor ainda se tiver a etimologia.
lat. initĭum,ĭi 'começo, princípio, estreia, (pl.) nascimento, princípios (de uma ciência), mistérios, objetos usados nos mistérios, sacrifícios, cultos religiosos, auspícios', der. do v.lat. inĕo,is,īvi ou ĭi,ītum,īre 'ir para, entrar em, começar, adotar, travar, arremeter contra, ter cópula'; ver 2i-
Pode-se ainda usar, logo na abertura, sinônimos de uma mesma palavra-chave, que indiquem a gênese do texto, que, já no começo, demonstrem o quão plural é a língua e a linguagem e que não será possível fazer uma conclusão absoluta no princípio - talvez nem no fim.

"As famílias felizes parecem-se todas; as famílias
 infelizes são infelizes cada uma à sua maneira",
já dizia Tolstoi
Ou, abracadabra, com uma palavra ou frase estranha, que não faz muito sentido à primeira vista, parecendo algo estranho, exótico, mas que vai sendo insinuada sua explicação para o grande desenlace final, que surpreende - ou deveria - a expectativa do leitor.

O jornalismo, por exemplo, ainda hoje sugere que se comece com o lead, a informação mais importante. Todo jornalista é treinado para enxergar isso, como o é um funcionário que aperta parafusos para rodar a chave-inglesa. Se não respeitar essa regra, essa entrada recebe um apelido: nariz de cera. É sinônimo de algo inútil, desnecessário, que foi colocado ali. Ou se diz que o lead está no pé [do texto]. Ou seja, a informação mais importante não está logo no início. Se respeitar a regra, o texto fica sem personalidade, completamente igual a qualquer outro do jornal. É uma maneira de, entre outras coisas, acabar com essas dúvidas bobas que podem pairar na cabeça dos jornalistas, como, por exemplo, como começar um texto.

Nos textos de maior fôlego de escritores de ficção, frases - ou parágrafos - de impacto são comuns, basta-nos lembrar de Kafka, Camus, Tolstoi, Nabokov, para ficar em exemplos famosos e recorrentes. Todos têm primeiras frases que ficaram marcadas na História. Mas me parece, hoje, que eles estavam fazendo uma citação, sem que precisassem usar outros autores como referência - eram tão boas suas sentenças que se sustentavam em pé sozinhas, sem apoio externo.

Talvez haja apenas um único pedaço mais difícil do texto que começá-lo. Um momento em que não há muita bengala, nem técnicas que se apoiem. A única necessidade é que se faça jus ao que foi dito durante todo o corpo, que não surpreenda - negativamente -, que deixe com um gosto de quero-mais na boca [e nos olhos], que, se não responda todas as dúvidas levantadas, ou deixe claro que elas não têm uma réplica, assim, tão fácil. Deve parecer natural. Nunca, jamais, deve ser abrupta. Como se pode já imaginar, esse momento, claro, é a conclusão de um texto.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

'Man with a movie camera'



Esse filme do Vertov é incrivelmente ótimo. Com essa trilha do Cinematic Orchestra, então, fica um absurdo.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

'Shame' on us

Em uma cena no início de "Shame", um personagem totalmente coadjuvante faz uma crítica, que pode passar sem ser registrada pelos menos atentos, ao modo de vida cínica de nossos tempos. Como se para ter contato real [no sentido de o oposto ao virtual], houvesse necessidade, ou a escolha, de se proteger, ou de falar as "verdades" por meio de "mentiras". Ironia, sarcasmo, indiferença, todos, nesse caso, são sinônimos, em algum grau, do cinismo. Vivemos em uma epidemia onde o "outro" perde espaço, constantemente. Somos cada vez mais ególatras, umbilicais, preocupados em satisfação própria, que pode ser "resolvida" com a principal moeda desse homem utilitário: o dinheiro.


Dá para ver o filme inteiro aqui.

O filme, dirigido por Steve McQueen [o cineasta, não o ator morto em 1980], mostra o ápice do movimento rumo ao isolamento do homem dos nossos dias. Brandon, interpretado magistralmente por Michael Fassbender, é a exemplificação de onde pode chegar esse tipo de ser. Não gosta de ter qualquer relação duradoura com o "outro". Não tem, nunca teve, e nem enxerga a razão de se ter uma namorada hoje, por exemplo. Quando é confrontado com essa possibilidade, ou com um argumento que é contrário a esse seu pensamento, trava. Seu corpo não entende bem como isso pode acontecer.

Sua relação com o mundo é "produtiva". É organizado, no nível do obsessivo. É prático, como um matemático que corta as desnecessidades. É focado em práticas que lhe deem prazer. Só se aproxima de outras pessoas caso tenha possibilidade de tirar algum proveito. E tirar algum proveito, no caso dele, é gozar, sexualmente, se possível. Daí, fica sem saber como se portar com a sua irmã, que é exatamente o seu oposto. Insegura, frágil, emotiva. Talvez mostrando uma das faces da mulher nesses tempos utilitários.

Esse comportamento "prático" demais, em que se foca apenas naquilo que vai certamente dar resultados encarados a priori como produtivos, benéficos, em que se antecipa o futuro, como se fosse possível adivinhar o que vem por aí, em que se exclui os valores da vivência para se focar apenas na sua "essência" me lembra sempre de uma anedota sem graça que eu ouvi quando era pequeno:

Um avião de quatro turbinas tem um problema em uma delas. O piloto avisa para ninguém se preocupar porque havia outras três, que seriam mais que suficiente para manter a máquina voando. Assim que ele termina de falar, algo dá errado. Por falta do quarto motor, os primeiros vão se sobrecarregando, e falhando, um a um. Porque é bem difícil descobrir o que é realmente essencial. Talvez porque não haja qualquer essência que não mude.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

O obsessivo

Como controlar tudo ao meu redor? Como programar cada ato, cada ação, cada detalhe do meu entorno? Como prever o que vai acontecer? Bem, como todas as pessoas que conferem diariamente o horóscopo, ou gostam de ler as previsões para o próximo ano, isso é impossível. Converse com economistas, por exemplo. Pode-se sugerir uma tendência do que virá por aí. Mas ter um ambiente completamente controlado, é impossível. Nem a CNTP realmente existe fora dos laboratórios. Mesmo assim, o obsessivo acha que consegue dar conta.


O ápice do obsessividade é quando ela se junta à compulsão. "The aviator" - trailer acima, filme inteiro aqui - mostra bem qual é o resultado dessa combinação.

Ele - e eu me incluo totalmente no grupo - tenta antever tudo o que vai acontecer, imaginar os desenlaces, e agir de acordo com eles. Como se fosse um teatro, em que ele já tenha ensaiado antes. Quanto mais obsessivo, mais detalhista. No extremo, até admite para si sua incapacidade de ser deus e prever o futuro por completo, e, por conta disso, começa a treinar outras possíveis saídas. Se "x" acontecer, eu faço "y". Mas se for "w", eu ajo "z". Já se o caso é de "a", eu tenho como alternativa "b" ou "c" - depende se esse "a" é "+" ou "-". Tudo é programado, tudo é premeditado, e, claro, falta, em tudo, espontaneidade.

Se uma determinada situação foge do controle, como acontece diariamente, entra num desespero. Cobra-se porque não previu esse cenário. Tenta retrabalhar as saídas, treina outras possibilidades de respostas, busca outros caminhos. Não relaxa, não aproveita o devir. Não gosta de surpresas, não aceita o inesperado como parte integrante da vida. Não vê o mundo como aleatório, como algo sem uma explicação possível [Fruto de um racionalismo científico muito influenciado pela doutrina platônico-cristã?].

Se vive num mundo em que depende dos outros, como no jornalismo - ou como em todas as atividades dentro de uma sociedade complexa, repara só - fica inseguro. Porque ele acha que pode se controlar, mas não pode depender dos outros. Os outros não são confiáveis. Ou não são tão confiáveis. Ou são tão obsessivos como ele, e aí são muito confiáveis. Obsessivo acha que quem não é obsessivo é menos produtivo.

Geralmente o obsessivo é um racional. Um desses seres que acreditam que o mundo pode ser dividido em pequenas células. Além disso, o mundo atual, baseado quase que unicamente no conceito de utilidade, adora o obsessivo. O obsessivo é o mais útil. É responsável. Nunca esquece. É, à sua maneira, organizado. Não faz nada que não seja o programado. Pode ser lido com antecedência - o que é ótimo para engrenagem industrial. Às vezes, em casos extremos, se transforma em um óbvio.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

O limite da matemática

Por ser infinita, a matemática dá a impressão que pode abarcar todos os significados do mundo. Eu não sou nem próximo de especialista. Talvez haja milhares de estudos que me contradizem, mas eu penso a matemática no seu significado, ou melhor, no campo semântico específico: como sinônimo de racionalidade, de exatidão, previsão, planejamento.


"Pi", do Aronofsky, trata exatamente sobre esses limites - ou a falta de - da matemática [dá para ver inteiro aqui]

Portanto, como antônimo da impulsividade, da improvisação, do devir. Isso não quer dizer, contudo, que eu prefira um lado ao outro. Não, isso me tornaria - e a qualquer um - um "desequilibrado", no sentido de priorizar um determinado aspecto da vivência em detrimento a outro. Eu só peço, penso, exatamente em enxergar que nem uma postura nem a outra, isoladas, dão conta da nossa existência.

Devemos, em minha mais humilde sugestão, balancear esses dois "extremos", e adaptá-los à medida que os problemas e as situações vão acontecendo. Ser maleável para poder ser duro, quando necessário. Porque temos que viver o máximo possível hoje, mas também sabemos que não vamos morrer exatamente amanhã.

A matemática aparece quando começamos a nos avaliar, ou melhor, analisar. A análise, daquela maneira que entendemos do coleginho, é quando dividimos um objeto em outras partes menores. Escrutinamos esses pedaços, analisando-os novamente, até chegarmos a uma pedaço ainda menor. Vide, por exemplo, o bóson de Higgs. Ele pode explicar muita coisa, dar muitas dicas de como o mundo se criou [ou foi criado, para quem é de fé], mas não consegue explicar tudo.

É como se, ao juntar todas as peças, depois de analisá-las, sobrasse um espaço vazio. Para usar um argumento matemático, como se as somas dos pedaços fosse maior que os valores das mesmas partes, só que em separado [seria isso a Gestalt? "The whole is other than the sum of the parts"? [na tradução do alemão para o inglês]]. Essa racionalização, que nunca desiste, pode também fazer combinações, começar a somar certas partes, com outros pedaços, mas não adianta. Sempre vai ter algo que escapa.

Sempre terá algo inexplicável - mas totalmente entedível. Talvez, só talvez, isso possa parecer um pouco religioso - não é a minha intenção, nem de longe. Como disse lá em cima, não defendo o fim da razão sobre - vá lá - a emoção. A razão é um dos fatores que nos diferencia, por exemplo, dos outros animais. Essa capacidade de prever, de antecipar, de viver outros momentos ao mesmo tempo, é um dos, ou talvez o principal, que nos faz desgarrar por completo dos restante dos demais do reino Animalia. Ou seja, não desperdice a nossa humanidade.

Mas imaginar que a razão é ilimitada é um pouco de soberba de nossa parte. Sempre lembro daquela frase [do Mark Twain?]: "They did not know it was impossible, so they did it!". A emoção, o imprevisível, a impulsividade, pode nos levar para lugares nunca antes imaginados, pensados, sabidos. Pode alargar nossa vida, tornar-nos maiores.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

'Eu não gosto, mas eu adoro'

Pela segunda semana consecutiva, Francisco Bosco falou sobre a sua viagem à Índia na coluna de "O Globo". Se na primeira ele narrou como foi o seu duro cotidiano - muito parecido com o que enfrentamos, quando fomos, com a diferença de que estávamos muito mais "preparados", no sentido de termos evitados alguns problemas que eles não conseguiram -, nesta ele abordou a reação dos leitores aos seus primeiros comentários. De toda forma, o que mais me chamou a atenção foi essa frase que intitula esse texto, e que ele usou para falar de sua relação com a Índia: "Eu não gosto, mas eu adoro", e fez questão de ressaltar o adversativo "mas", para reafirmar que as duas partes da frase são antagônicas.

Delhi é uma cidade difícil, muito difícil
Essa frase pode parecer um paradoxo à primeira vista. Como você pode, ao mesmo tempo, "não gostar" e "adorar"? São duas sensações antagônicas, que deveriam se anular, aparentemente. E ele nem está usando "adoro", no sentido mais comumente usado por, por exemplo, os franceses, de adoração, quase religiosa, mas como uma hipérbole do gostar. Ele não gosta e gosta muito. E agora?

De certa forma, eu entendi perfeitamente o que ele quis dizer na hora que ele falou - ou acho que sim. Uma das mais maneiras mais simples de se captar o sentido, na minha interpretação, é imaginar que somos seres múltiplos, que somos muitos que habitam esta carne e este osso. Um desses, ou uma parte, não gosta, a outra, adora. Mas eu prefiro uma interpretação um pouco mais inusitada.

E pego o exemplo da própria coluna dele - mas poderia ser qualquer outro. Ele diz que é um "mau viajante" "porque radicalizo, no campo do outro, aquilo que já sou em meu país". Ou seja, porque, de certa forma, se torna mais o que ele acha que ele é. Porque ele para, pensa, racionaliza, e escolhe entre vários comportamentos, aquele [ou aqueles] que ele julga ser ele. E procura - é a minha sugestão - no "campo do outro" ele mesmo, um espelho, algo que reflita, que alimente, que dialogue com esse "eu" escolhido.

Mas que também pode ser incrível
Porém, algumas experiências - e a Índia foi bastante isso para mim - são muito maiores que esse "eu" ou qualquer "eu". Ela arrebata, envolve, absorve, torna "ela" o que cai dentro do seu caldeirão. O viajante, para sobreviver à Índia, tem que, então, ser menos "eu", agir menos de acordo com os planos que você tinha pré-estabelecido, ser mais instintivo, mais maleável, tornar-se parte desse organismo vivo que é "ela". De repente, você percebe que você é aquele "eu" inicial, mas mais alguma coisa. Você percebe que, ao permitir ou ser invadido pelo outro, você acaba se transformando e, quase que como consequência, engrandecendo.

Como disse ali em cima, falei da Índia, mas poderia ter falado de qualquer outro exemplo que envolve, necessariamente a perda desse "eu", desse ser inicial, em prol de outro, ou outros. Acredito que o amor, no sentido mais puro da palavra, que não necessariamente tem a ver com erotismo, se não nasce daí, é retroalimentado por esse sistema.

Isso acontece com a relação de mãe e filho, por exemplo. Entre os casais, igualmente. Ou com soldados de um mesmo batalhão que foi para a guerra, para ficar em casos que vieram à memória agora. Todos, em algum momento, abrem mão do seu "eu" anterior em prol do outro. Imagine as noites sem dormir das mães com os bebês. A mudança de vida dos ex-solteiros. O perrengue compartilhado entre os combatentes. E, se essa concessão não for algo humilhante, se for ligeiramente recompensada, é criado um vínculo. Há uma união aí. Há uma história em comum. Um passado compartilhado. Uma interseção de trajetórias. E é aí que o amor reside.

Concorda?
Daí, é fácil entender como alguém pode "não gostar" de algo, exatamente porque nega os confortos tradicionais, os costumes já estabelecidos, e, ao mesmo tempo, "adorar" esse mesmo algo. Confrontar o que você não gosta, quando inevitável [porque senão é masoquismo], é uma das únicas formas para se mudar.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

O som ao redor

Antes de falar sobre "O som ao redor" itself, gostaria de comentar rapidamente o fato de tê-lo assistido em um cinema. Um cinema comum, num domingo qualquer, início da noite. Certeza de casa cheia, de pessoas que foram ver qualquer coisa, aquilo que conseguiram.



Ir a essas sessões é uma experiência completamente diferente da que eu estou / sou acostumado. Talvez eu não tenha vivido esse compartilhamento, esse estar junto com outras pessoas, tantas vezes. Mais novo, quando muito de nossos costumes e gostos começam a ser formados, quase não ia a cinema. Nova Iguaçu tinha apenas quatro, que eu me lembre, que não passavam filme pornô. Além disso, nos cinemas straight, eram exibidos normalmente filmes de terror, que eu sempre evitei, por medo, ou filmes que não me davam vontade de ir. Provável resultado: não me acostumei a dividir o espaço.

Na sala de projeção neste domingo, por volta das 19h, ao meu lado direito estava um casal muito feliz, muito feliz mesmo. Parecia um dos primeiros encontros. Ele comentava cada movimento de cena, ela ria em momentos inesperados, ambos perguntavam aos personagens do filme detalhes das suas vidas íntimas. Era como acompanhar duas narrativas: a do próprio filme, e a de alguéns tendo contato com o filme. Seria interessante se fosse a única intervenção. E se eu já conhecesse o filme.

Atrás de mim, havia um homem que lia toda e qualquer informação que aparecia na tela. Antes de os capítulos começarem, ele falava: "Cães de guarda", "Guarda noturno", "Guarda-costas". E, auge, chegou a conclusão que todos os capítulos tinham "guardas".

Por fim, ao meu lado esquerdo, ao fim da projeção, um senhor que passou toda a projeção razoavelmente quieto, não segurou sua opinião crítica, feita em tom amistoso de quem não quer, brasileiramente, desagradar ninguém: "Que filme mais sem pé nem cabeça".

Sobre o casal, imaginei que talvez esse seja um outro código que sempre imperou nas salas de cinema, e eu, que desacostumado, me senti deslocado. No fundo, não haveria ali certo ou errado, mas formas diferentes de encarar aquele espaço, e eu apenas tinha optado por uma, enquanto o casal havia escolhido outra.

O leitor me levou a pensar, horas depois, que ele estivesse com alguém com a visão prejudicada. Ele queria ajudar o/a companheiro/a a entender as minúcias do que ocorria, as sutilezas. O que é justo e injusto ao mesmo tempo. Justo com o/a companheiro/a, injusto com quem não está ali.

O último me deu vontade de conversar com ele, lhe perguntar, ou melhor, lhe entrevistar. "Por quê?", lhe perguntaria, "Por que você achou esse filme sem pé nem cabeça?". Ele representa, imagino, um outro perfil do chamado gosto comum. Aquele que é tão diferente da crítica, que usa a crítica de forma contrária. O que a crítica elogia, ele foge, o que ela destrói, ele corre atrás. O que esse personagem busca ao ir ao cinema?, fiquei me perguntando. O que ele enxerga da e na tela? Quais são seus outros divertimentos? Por que ele decidiu por esse filme?

Mesmo quando mostramos a nossa classe "média", quando colocamos um espelho na tela, eles não se reconhecem. Ou será que reconhecem e acham feio? Ou será que reconhecem e dizem: e daí? Ou se reconhecem e falam: não to pagando para ver o que eu vejo em casa.

Ir ao cinema ao domingo às 19h é, acima de tudo, um exercício de paciência, como ir a qualquer espaço público é. Há regras que são formuladas constantemente, limites que são testados, um pequeno microcosmo democrático é formado. Será que eu deveria ter falado com as outras pessoas? Mas quem me dá o poder de investir contra os outros? Quem me elegeu o xerife da sala? Quem disse que a forma como eu quero ver o filme é a única maneira possível? Ninguém. É a única resposta possível.

domingo, 13 de janeiro de 2013

A moral udenista

A moral udenista pensa que o mundo é imóvel. Tenta congelar as relações e repetir o que se fazia desde sempre por uma questão de comodidade. Não quer mudar porque isso quer dizer se acostumar com outras formas de relação. Talvez - só talvez - perder privilégio.

A moral udenista não precisa ser necessariamente udenista. Já esteve fantasiada de marcha da família com Deus pela liberdade. E contra o comunismo. Ou do movimento pela tradição, família e propriedade. Às vezes, se resume a palavras de ordem, como "basta". Outras, é incorporada em personalidades públicas que dizem ter medo de determinados políticos. Ou que vão fugir do país, caso os determinados políticos vençam os seus democráticos pleitos. Em comum, um pensamento conservador, na mais famosa acepção da palavra, a de conservar, de ser reacionário.

A moral udenista já existia antes mesmo da UDN existir. Talvez tenha abrandado com o tempo, mas é possível enxergar semelhanças com certos homens vestindo verde e se cumprimentando com o braço esticado à frente e bradando uma palavra indígena. Ou antes mesmo, quando havia, mesmo no fim do século XIX, gente contra o fim da escravidão. Ou antes, quando um certo rei disse para o seu filho fazer a independência antes que algum louco a fizesse.

Carlos Lacerda era mó gente boa
A moral udenista tem esse nome porque, imagino, foi com a UDN que ela teve mais em voga. Culpa de Carlos Lacerda, o homem moral por excelência. Respeitador das ordens preestabelecidas. Anticomunista, defensor da família, de Deus, e de todos ícones que se repetem sempre. Que foi o grande crítico, pelo lado conservador, dos presidentes brasileiros. De Getúlio, passando por JK, a Jango. Que sempre almejou ser presidente do país. Principalmente após o golpe de 1964. Aí, foi surpreendido.

A moral udenista não é de extrema-direita. Ela é o que em outros tempos se chamava direita. É o partido conservador na Inglaterra. O republicano, nos EUA - nunca o Tea Party. São os partidos cristãos, em outros países. No Brasil, pátria dos inúmeros partidos, não é apenas um partido. São todos e nenhum em específico. Nenhum representa essa ideia claramente, ou melhor, nenhum que representa essa ideia claramente tem a repercussão que, aparentemente, ela deveria ter.

A moral udenista é contra a legalização. Do aborto, das drogas, do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Quer manter isso à parte, distante, longe da oficialidade. Mesmo que aconteça sempre, mesmo que as pessoas abortem, usem drogas, amem pessoas que por uma questão de coincidência nasceram com as mesmas disponibilidade morfológica. Não quer dizer que eles não enxerguem esses "problemas", mas acham que com a decisão de marginalizá-los, ou torná-los criminosos, vão acabar. Ou não precisarão enxergá-los.

A moral udenista é a criadora da frase "eles que se matem". A maior incentivadora do ideal da "farinha pouca, meu pirão primeiro". Acredita piamente que "pau que nasce torto nunca se endireita". Gostam de "tapar o sol com a peneira". E querem mudar, desde que permaneça a mesma coisa*.

A moral udenista diz que no Brasil só se prende ladrão de galinha, mas é íntima do vereador que arruma uma falsificação para dar desconto no IPTU atrasado. Reclama da corrupção, mas passa pelo acostamento, porque está com pressa. É amiga do peito do empresário supergente-boa que maltrata os funcionários. Acha que a lei só funciona para os outros. Aqueles que não são iguais a ela.

A moral udenista ergue um muro para manter uma distância da realidade, como se vivesse num mundo isolado, ideal, paradisíaco, edênico. E lá fora, fora da família, de seu Deus, estivesse o torto, o errado, o esquerdo, aquele-que-não-se-diz-o-nome. Tem pavor do caos. Quer organizar por completo o mundo. Limpar totalmente a sujeira das ruas. Embelezar aquilo que não é espelho. Criar um padrão que se propõe fixo. Como se isso fosse possível.

A moral udenista acredita na democracia, desde que a democracia lhe mostre aquilo que ela quer ver. Se for diferente, brada que aquilo não é a "verdadeira" democracia. Como se houvesse uma "verdadeira" e uma "falsa" democracia. Como se houvesse uma democracia "pura" e outra "contaminada". Como se houvesse a "perfeição", e a "realidade".

A moral udenista adora o Brasil, desde que o Brasil seja aquilo que ela deseja. Se não, prefere Paris, no outono. Nova York, para as compras. Orlando, para levar as crianças. Réveillon em Copacabana? Só se for em uma cobertura. Em uma festa privé [antes falava francês, agora inglês, com sotaque americano]. Sem se misturar, claro. A moral udenista adora se sentir exclusiva. Ser tratada como vip. Ir a camarotes. Conhecer pessoas importantes. Sonhar um sonho de princesa encantada.

A única coisa que a moral udenista é vanguarda é no atraso.

* Descubro, dias após publicar esse texto, que a frase original é "Se vogliamo che tutto rimanga come è, bisogna che tutto cambi", do "Il gattopardo", do Lampedusa, que, numa tradução livre quer dizer: se queremos que tudo permaneça como está, é necessário que tudo mude.

sábado, 12 de janeiro de 2013

Cem anos de Rubem Braga

Nesses cem anos de Rubem Braga, compartilho aqui o artigo da amiga Helena Aragão sobre ele, e a versão  da crônica abaixo lida por Zuenir Ventura, com fotos da vida do cronista. A escolha do texto abaixo, entre tantos produzidos por Braga, se deve a uma frase de Helena, que disse: "O desejo de escrever uma história que fizesse todo mundo ficar mais leve detalhado neste texto foi, sem exageros, um dos maiores estímulos pra eu decidir fazer jornalismo anos atrás." Nada melhor para contrabalançar o peso de ontem.


***
Rubem, em 1972, em foto de Luiz Pinto [Agência O Globo]

Meu Ideal Seria Escrever...

Meu ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está doente naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto que chegasse a chorar e dissesse -- "ai meu Deus, que história mais engraçada!". E então a contasse para a cozinheira e telefonasse para duas ou três amigas para contar a história; e todos a quem ela contasse rissem muito e ficassem alegremente espantados de vê-la tão alegre. Ah, que minha história fosse como um raio de sol, irresistivelmente louro, quente, vivo, em sua vida de moça reclusa, enlutada, doente. Que ela mesma ficasse admirada ouvindo o próprio riso, e depois repetisse para si própria -- "mas essa história é mesmo muito engraçada!".

Que um casal que estivesse em casa mal-humorado, o marido bastante aborrecido com a mulher, a mulher bastante irritada com o marido, que esse casal também fosse atingido pela minha história. O marido a leria e começaria a rir, o que aumentaria a irritação da mulher. Mas depois que esta, apesar de sua má vontade, tomasse conhecimento da história, ela também risse muito, e ficassem os dois rindo sem poder olhar um para o outro sem rir mais; e que um, ouvindo aquele riso do outro, se lembrasse do alegre tempo de namoro, e reencontrassem os dois a alegria perdida de estarem juntos.

Que nas cadeias, nos hospitais, em todas as salas de espera a minha história chegasse -- e tão fascinante de graça, tão irresistível, tão colorida e tão pura que todos limpassem seu coração com lágrimas de alegria; que o comissário do distrito, depois de ler minha história, mandasse soltar aqueles bêbados e também aqueles pobres mulheres colhidas na calçada e lhes dissesse -- "por favor, se comportem, que diabo! Eu não gosto de prender ninguém!" . E que assim todos tratassem melhor seus empregados, seus dependentes e seus semelhantes em alegre e espontânea homenagem à minha história.

E que ela aos poucos se espalhasse pelo mundo e fosse contada de mil maneiras, e fosse atribuída a um persa, na Nigéria, a um australiano, em Dublin, a um japonês, em Chicago -- mas que em todas as línguas ela guardasse a sua frescura, a sua pureza, o seu encanto surpreendente; e que no fundo de uma aldeia da China, um chinês muito pobre, muito sábio e muito velho dissesse: "Nunca ouvi uma história assim tão engraçada e tão boa em toda a minha vida; valeu a pena ter vivido até hoje para ouvi-la; essa história não pode ter sido inventada por nenhum homem, foi com certeza algum anjo tagarela que a contou aos ouvidos de um santo que dormia, e que ele pensou que já estivesse morto; sim, deve ser uma história do céu que se filtrou por acaso até nosso conhecimento; é divina".

E quando todos me perguntassem -- "mas de onde é que você tirou essa história?" -- eu responderia que ela não é minha, que eu a ouvi por acaso na rua, de um desconhecido que a contava a outro desconhecido, e que por sinal começara a contar assim: "Ontem ouvi um sujeito contar uma história...".

E eu esconderia completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha história em um só segundo, quando pensei na tristeza daquela moça que está doente, que sempre está doente e sempre está de luto e sozinha naquela pequena casa cinzenta de meu bairro.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Ouvir os outros

Enquanto estivermos em sociedade, devemos ouvir os outros. Quando for possível viver longe, não mais será preciso. Por motivos óbvios.

Isso pode parecer complicado. Além de ser o pior regime [com a exceção dos outros], a democracia - e o ato de ouvir os outros nada mais é que colocar em prática, cotidiana, a democracia no seu sentido mais simples - é também uma chatice. É lenta. É dar chance, espaço e oportunidade para até quem não presta. Quem não tem nada a dizer. Quem é mau-caráter. Quem só quer atrapalhar. Quem é culpado.

Porque, sob nenhum viés concreto, não há nenhuma forma de nos diferenciarmos por completo. Então quer dizer que nós, os cultos, letrados, estudados, que pagamos impostos, cidadãos-de-bem, nunca fizemos mal a ninguém, que gostamos dos pais acima de tudo, queremos ter filhos, somos iguais a eles, vagabundos, imbecis, idiotas, que não fizeram nem a quarta-série, trambiqueiros, sonegadores, alcoólatras e que ainda roubam o pirulito das crianças pequenas? O que nos torna corretos, e eles, errados? Se eu seguir essa sucessão de exemplos, estarei automaticamente no lugar certo? Vou ao paraíso? Serei um dos escolhidos?

Qualquer autovangloriação não vale. E não estou falando de contar seu cotidiano, que tem altos, mas também baixos, ao seu amigo. A propaganda sobre si mesmo é sempre tendenciosa. Nem preciso dizer contaminada, porque toda a opinião já o é. Mas que não é possível a autodenominação. Qualquer posição deve ser, não imposta, mas conquistada.

De toda forma, o posto não te torna essencialmente diferente dos demais seres humanos. Desmerecer a opinião do outro - sem nem ouvi-la - é se colocar num pedestal de superioridade. É defender sua vaga, atacando o outro, com medo da extinção. É um procedimento aceitável, mas covarde.

[É melhor deixar escrito para poder conferir no futuro.]

sábado, 5 de janeiro de 2013

Um poema feminista de Angélica Freitas

mijo
(um poema urgente)

1.

uma mulher não deve mijar
deve fazer xixi

2.

uma mulher faz xixi
não mija
mas em banheiros públicos
a mulher acaba que mija

3.

uma mulher faz xixi
porque é mais sexy
mas quando é incontinente
a questão se torna irrelevante

4.

conheço uma mulher
que mijava
mas dizia por aí
que fazia xixi

5.

mijei no balde
foi libertador
mijei no balde
dentro do elevador
mijei com vontade
sim senhor
hoje
sou outra mulher

6.

xixi, mijo, urina: como queira chamar
se tiver nojo e a água acabar
se quiser viver vai ter que tomar
mijo. se quiser pode dizer
xixi ou guaraná

mas continua sendo mijo

7.

nisso tudo eu pensava
a caminho do banheiro
após ter lido uma frase
do marcelo rubens paiva
será que ele mija, o marcelo?
com certeza deve mijar
mirando as estrelas, será?
fazendo desenhos no ar?

(quem se importa?
eu não me importo)


8.

outra questão a se especular
quando acontece dormindo
é xixi ou mijo?
dependerá do fluxo?
da quantidade?
qual o critério?
outra coisa que direi
como aviso ou comentário:
mija-se desperto ou dormindo
peidar só se pode acordado

março de 2011
provavelmente
Angélica Freitas
[mais dela, aqui]

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Existências

A primeira vez que vi "eXistenZ" foi numa - talvez a primeira - maratona cinematográfica que acontecia no Odeon. Fiquei impressionadíssimo. Menos com as suas esquisitices, mais com a abordagem em tom de videogame para o problema da realidade. Era uma época que eu lia "O mundo como vontade e representação". Revê-lo agora me chamou atenção para dois outros aspectos, parecidos. E para a tosqueira de filme B, que Cronenberg gosta de impor em alguns de seus filmes mais gores.


Essa é, provavelmente, a minha cena preferida. Dá para ver o filme todo aqui.

Um dos aspectos mais relevantes, para mim, é a opção de Cronenberg em imaginar que nosso futuro híbrido com máquinas, nossa "androidização", nossa transformação em ciborgues não será feitas com metais, objetos duros, uma robótica parecida com a do Robocop. Mas orgânica, simbiótica, com objetos moles, interligados ao nosso organismo como se fossem parte dele. Em vez da empregada dos Jetsons, nossa musa de beleza será algo mais de carne e osso, e glândulas e líquidos, e cordões que ora parecem umbilicais, ora, intestinos.

De certa forma, ele apenas atualiza e projeta a nossa atual relação com objetos externos que nós introduzimos ao nosso corpo. Tudo bem que usamos uma máquina, dura, de metal, quadrada, para nos locomover em longas distâncias. Mas é um componente orgânico, biológico, mole, quase farinhento que as mulheres tomam desde a década de 1950 para evitar ter filhos. E, mais recentemente, também é com medicamentos igualmente "orgânicos" [portanto dentro da minha categoria "mole"] que controlamos nossos humores, nossa vontade de dormir, nossos apetites. Os nossos botões de liga-desliga não são como os interruptores, mas pequenas pastilhas possíveis de ingerir. Estamos nos transformando em além-de-humanos por meio de medicamentos.

O segundo aspecto é ainda mais óbvio. Principalmente hoje em dia. Como Cronenberg já percebia, em 1999, a importância que os videogames teriam em nossa sociedade. Os indicadores já deveriam existir, provavelmente. Aumento de vendas, consolidação de uma indústria, aparecimento de ícones.  O videogame é o meio de se entreter preferido de diversas pessoas ao meu redor. O PS3 foi o presente de natal - de alguns natais atrás - de vários amigos. E do meu sobrinho. Ele apenas levou as questões que eram embrionárias à época alguns anos à frente.

Por onde anda Jennifer Jason Leigh?
Mas não pode ser a questão da realidade virtual - assunto que Philip K. Dick, entre outros, já tinha desenvolvido, por exemplo, no "We can remember it for you wholesale", um desses contos com nomes horríveis que inspiram filmes de ficção-científica incríveis como "Total recall" [me recuso a usar a tradução do filme] - o grande mérito de Cronenberg. Suspeito que tenha sido mostrar adultos jogando, como se fosse a parte do seu tempo mais precioso. No momento em que seu console [pod, em inglês] morre, Allegra [ao lado] quase morre junto. Não é mais uma questão de realidade em que vivemos outras vidas, muito mais interessantes que a nossa, mas de dependência. Será que estamos muito longe disso?

Por uma questão de precaução, eu continuo a evitar o aumento do meu hall de entretenimento viciantes. 

To be a rock and also to roll



quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Calor? Sou contra

Essa foto, se eu não me engano, é de 2008, outro ano
 insuportável, mas poderia ter sido de semana passada
Sou do grupo dos que acham que o verão carioca exagera no quesito calor. Nos últimos dias, eu praticamente me internei em ambientes com ar condicionado, e agora aguardo apreensivo a chegada da conta de luz. É desumano, anti-higiênico, sádico. Mas... adianta reclamar? Provavelmente, não. Não acredito que São Pedro tenha uma central de atendimento aos seus devotos. Suspeito que nem o cacique Cobra Coral consiga resolver esse problema. E, principalmente, se é vontade da maioria resolver essa questão. O verão, e o seu consequente calor, parecem parte integrante do ethos carioca, como explica Francisco Bosco hoje.

Mas... [e aqui eu percebo e admito uma das minhas características: sempre mostrar outros lados da mesma questão] será que não daria para os governantes tentarem ajudar àqueles que não se empolgam muito com as altas temperaturas?

Vista de um dos palácio de Udaipur,
usando o óculos à guisa de filtro. 
No dia do presente grego de natal, em que as medições oficiais marcaram 43,2º C, eu estava em Nova Iguaçu - onde, suspeito, não há qualquer aferição profissional da temperatura. Fiquei o dia inteiro internado nessa criação genial de Willis Carrier - aliás, criada na cidade de minha outra irmã, Buffalo -, mas no único momento que saí às ruas, senti o pior calor da minha vida. E olha que já estive no deserto do Rajastão indiano num dia em que os termômetros marcaram oficialmente 48º C.

Em Nova Iguaçu, andei um espaço de menos de 500 metros e senti essa energia [negativa] pesada, como se a atmosfera tivesse aumentado de peso e eu, perdido minhas forças. Como se eu estivesse dentro de um forno, cozinhando em banho-maria. A umidade é o que torna a nossa sensação térmica pior. Mas não é só isso. A combinação de asfalto [que absorve a energia térmica], saídas de ar-condicionado nas lojas [que chupam o calor de dentro dos ambientes e o joga para fora - para a calçada] e falta de árvores [que ajudam a absorver a quentura], aumentava ainda mais a sensação infernal.

Como não é possível tirar o asfalto, ou acabar com os ar-condicionados, poderíamos, ao menos, incentivar o plantio de árvores em todas as áreas cinzentas-escuras. O Rio ainda é uma cidade bem verde, com uma floresta particular para chamar de sua, com ruas cheias de copas altas, mas, imagino, poderíamos fazer mais e melhor. Caso não seja possível, poderíamos criar mais coberturas pelas calçadas, que nos forneceriam mais sombras. Colocar, como no calçadão de Bangu, umidificadores pelas ruas. Exigir que todos os ônibus tenham refrigeração. Criar bebedores e banheiros públicos. Incentivar pesquisas científicas que lidem com o assunto. Para ficar nas ideias que me ocorreram apenas nos últimos cinco minutos. Não deve ser difícil pensar em outras, ainda mais eficientes. Imagino que nem mesmo os grandes apreciadores do calorão seriam contra essas iniciativas.