terça-feira, 29 de dezembro de 2015

O Clube da encruza em 2015

Um dos anos mais complicados na política nacional [na inter também] talvez merecesse um texto que falasse sobre os desmandos de Brasília, Laranjeiras ou do Piranhão. Mas não me sentiria bem em invadir o terreno de colegas muito mais capacitados, nem gostaria de, agora, repisar assuntos considerados de difícil digestão. Não podemos baixar a guarda nunca, mas merecemos um refresco para recarregar as baterias e mirar o 2016 de frente.

Talvez o melhor seja falar sobre outro assunto que tenha ficado à sombra de todos os infortúnios e, quem-sabe?, tenha florescido exatamente por conta dessas desgraceiras todas - mais ou menos como aconteceu no período da ditadura civil-militar. Não é uma mera percepção pessoal, mas um assunto que foi conversado em vários lugares - das redes sociais às redações de jornais: como esse ano foi extremamente produtivo para a música brasileira. O pessoal do Tramp, por exemplo, conseguiu eleger 150 álbuns brasileiros no ano. Não é pouca coisa. E não estamos falando apenas de gente não tão conhecida, mas nomes que variam entre o medalhão (Gal, Djavan, Lenine etc.) até outros que estão crescendo e aparecendo entre aqueles que fogem do senso comum (Siba, Letuce, Tulipa...).

Pode-se fazer uma lista como eles fizeram, ou tentar resumir essa nova onda de maneira metonímica, elegendo algum grupo que consiga sintetizar o espírito desses tempos tão multifacetados. Minha sugestão para tentar entender esse ano de 2015, por um lado que não seja o mar de lama (literal e literário) que estamos metidos, é o Clube da encruza. São os músicos que, entre outros projetos, criaram encontros inesquecíveis como o Metá Metá e o Passo Torto; e que participaram, só neste ano, do disco da Elza Soares, produzindo talvez o grande álbum do ano, e o de Rodrigo Campos, talvez o outro grande álbum do ano. O pessoal que foi apelidado de povo do "samba sujo de São Paulo": além do Rodrigo, Kiko Dinucci, Marcelo Cabral, Thiago França, Romulo Fróes, e, claro, Juçara Marçal.

Nesse ano da desgraça de 2015, o Clube da encruza [nome que eles se deram para uma apresentação na sala Funarte - grande palco carioca - em agosto] lançou - juntos ou separados - ao menos três discos memoráveis. Além dos dois supracitados ("A mulher do fim do mundo", da Elza, e "Conversas com Toshiro", do Rodrigo Campos), podemos colocar no mesmo patamar o "Thiago França", isso, o nome do saxofonista, do Passo Torto, que contou com a participação de Ná Ozzetti (que, por sua vez, participou do disco de Rodrigo Campos). Mas não ficam só nisso.

Mais experimental, Juçara Marçal participou de dois projetos com muito noise e pitadas generosas de influência das culturas de tradição africana: "Anganga", com Cadu Tenório, de influência mais eletrônica; e "Abismu", com o parceiro de sempre Kiko Dinucci, e Thomas Harres, mais free jazz, mais rock, mais improviso.

(Um parêntese rápido: Harres não é um desconhecido; ele é baterista de Ava Rocha, que também produziu um disco incrível neste ano, o "Ava Patrya Yndia Yracema", Negro Léo (cujo último disco - de 2015 - "Niños heroes", chegou a ser elogiado até pelo NYT, para não dizer que estamos sendo benevolentes com a produção nacional) e Abayomi. As boas influências tendem a se encontrar, não?)

Se não bastasse, Thiago França, aos 30 minutos do segundo tempo desse 2015, lançou ainda um disco com seus solos de saxes e percussão para fazer versões de músicas consagradas do candomblé ou de outros estilos com forte influências africanas, o "Sambanzo, coisas invisíveis". E já em dezembro, lançou ainda outro projeto, "Boomshot", agora com Kiko, o rapper Síntese e o DJ Akilez, com músicas mais ligadas ao hip-hop. É capaz de até o dia 31, eles lançarem outras coisas.

O que todos esses discos têm em comum? Em uma primeira audição, pouca coisa, além do fato de eles compartilharem os mesmos músicos, em várias versões. Mas, ao se dar tempo ao tempo - coisa tão incomum nesse 2015 - pode-se ver que, além de beberem numa fonte que sai lá da África [aliás, outro rapper que também provou dessa água neste ano foi Emicida, com o  "Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições de casa"], misturado com a sujeira, o barulho, o noise bem comum da geração novaiorquina dos anos 1990, há uma tentativa de experimentar. Uma urgência de colocar logo no ar, de saber que uma obra nunca está verdadeiramente pronta se nós não a lançarmos. Uma tentativa de registrar as subidas e as descidas das vontades na hora que elas se apresentam. Uma intuição de que o esboço é a melhor forma de se expressar nos dias de hoje.

Isso não quer dizer que os discos são toscos, amadores, feitos nas coxas. O tamanho das produções de discos como o da Elza e do Rodrigo Campos não permitiriam dizer isso. São complexos, grandiosos, cheios de arranjos em que podemos ir descobrindo pequenas pérolas escondidas. Mas eles sabem que é necessário também mergulhar em terrenos pouco confiáveis para se oxigenar. Não é possível rodar em volta do lugar já conquistado para todo o sempre, porque aí se perde o viço. E as experimentações são os lugares perfeitos para entender a dinâmica entre erros e acertos. Perceber onde, como, quem estabelece a fronteira entre esses dois campos. Enxergar os lados todos do poliedro arrendondado em que vivemos e registrar essa história.

O Clube da encruza talvez seja a metonímia desse 2015 porque conseguiu acompanhar a quantidade gigantesca de informação sobre a qual a atualidade nos soterra, processando-a, transformando-a em algo mais perene que o simples clicar em um link da timeline. Conseguiu surfar nessa tera-onda, e, concomitantemente, interromper o fluxo de tempo, para criar um outro... tempo para se viver. Mostraram que não existe mais - se é que um dia existiu - um grupo fechado, hermético, desconectado, sem contato com outras dimensões. Que as influências podem vir de todas as partes do mundo, ao mesmo tempo e agora. Que é possível misturar punk com axé, que é possível encontrar na sujeira de uma microfonia uma doce boniteza harmônica. Que as regras são sempre estabelecidas a posteriori e que é preciso viver primeiro para conhecer quais são elas, mesmo que isso pareça mais doloroso.

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Uma interpretação para 'O homem desvairado', de Nietzsche

[Se não conhece a passagem do filósofo alemão, abra aqui em outra janela para acompanhar - e procure a tradução no meio do texto todo - ou aqui, numa outra tradução.]

O homem desvairado, de lanterna em punho, procura deus e, ante a percepção de que ele tinha desaparecido, acusa os homens de o terem assassinado. Os homens no meio da praça pública e ele, o homem desvairado, teriam matado deus. Os homens da praça e ele, eles, nós. Os homens da praça: praça – o símbolo do centro da cidade, da urbe, da aglomeração, o lugar para onde as pessoas vão saber o que acontece, quais são as novidades. “Markt”, a palavra no original alemão, que quer dizer ainda mercado, feira – lugares de comércio, das trocas, da compra e venda, do mercador, da burguesia, do mundo calculado pela matemática, dos valores, dos preços, do dinheiro. “Der tolle Mensch”: também traduzido como “o louco”, talvez uma relação com o bobo da corte, que era autorizado pelo rei a falar as “verdades” para a corte, sem por isso correr risco de vida. Provavelmente uma antecipação do Zaratustra, do personagem marginalizado, que Nietzsche gostava tanto de usar, que também dizia “verdades”, mas que raramente merecia a credibilidade dos interlocutores, jamais daqueles considerados comuns, seguidores do rebanho. O louco, o homem desvairado, com o candeeiro em punho, procurando não um homem, como Diógenes de Sínope que também andava no meio do povo segurando uma mesma lanterna mesmo durante o dia, mas deus. Os homens da praça, do mercado, caçoam do louco e ele lhes responde a frase: deus está morto. Nós o matamos. Em seguida, parece tomar consciência do alcance do que acabara de falar e se assusta: como foi possível? Como conseguimos? O desvairado, então, enumera metáforas para deus numa tentativa de captá-lo: é o mar, agora esvaziado; o horizonte, agora apagado; o sol, agora sem ligação com a terra. Em seguida, percebe a primeira reação ante a catástrofe que ele tinha percebido: sem o horizonte, sem o sol, para onde devemos ir? Após anos respeitando um caminho pré-determinado, Para que lado ir sem qualquer indicação? Não entraríamos em declínio sem um farol, sem um líder? Mas o que é exatamente declínio? Se não soubermos para onde devemos ir, o que é aclive e o que declive? Qual é a régua? Sem régua, o primeiro medo: estamos no vazio completo? Ficaremos parados à espera de morrermos nós também? Novamente se dá conta do tamanho da atitude, do momento que viviam: como sobreviver após esse ato? Como os homens, como nós conseguimos matá-lo? Como os homens tivemos força, altura, poder, para cometer o mais inacreditável dos atos? Por fim, sente que esse ato, apesar de todas as suas consequências problemáticas, também poderia ser, enfim, uma libertação. Ao olhar novamente para a sua, agora, plateia – os homens da praça, os homens comuns, os homens do rebanho – o homem desvairado percebe o óbvio. Tal ato até poderia ser uma libertação para os homens que haviam sofrido sob o manto dos autoproclamados intérpretes deste mesmo deus, mas tais homens da praça aparentemente não estão preparados para viver com essa pretensa liberdade completa. Esses homens da praça ainda não perceberam o que tinham feito, mas tinham feito. E nessa hora o homem desvairado se descola dos homens da praça por ter percebido as consequências do ato que praticaram, enquanto os demais apenas ficaram impressionados. Atordoado, o homem desvairado vai prestar homenagens ao deus morto em igrejas, como forma de demonstrar como eram anacrônicas esses templos em um tempo em que todos sabiam – mesmo que não admitissem para si – que deus estava morto.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

A mesma Torre de Babel

Uma das formas de se interpretar a parábola da Torre de Babel é a dificuldade do entendimento mútuo, a incomunicabilidade intrínseca a essa estranha espécie que é a humana. Na curta passagem bíblica, lemos que os homens sobre a terra se uniram para construir o mais alto dos edifícios, com a intenção, interpretam alguns sábios, de se igualarem a Ele. Deus, não querendo muito ter competidores, resolveu descer do paraíso e zás!, trocou os idiomas falados pelos homens. Como eles não se entenderam mais, a construção foi abortada. Perdidos em linguagens diferentes, os homens se espalharam pelo mundo.

Num primeiro olhar, parece que a sociedade ocidental, aquela que exerce sua hegemonia em quase todos os cantos do mundo nos dias de hoje, conseguiu finalmente retornar a um estado pré-babélico: fala a mesmíssima língua. Todos os povos sobre a terra que participam do jogo sistemático econômico em atuação se expressam no mesmo idioma da eficiência, do lucro, da produtividade. Seja rico ou seja pobre, ou muito pelo contrário, o dinheiro sempre vem em primeiro lugar. Claro que essa linguagem vem travestida de uma outra roupagem. Todos professamos o mesmo discurso de liberdade, de independência, de defesa do comportamento do indivíduo: "Laissez faire, laissez passer", lembra? Está tudo conectado. Todos acordamos que temos direitos e deveres - mas nos esquecemos que alguns com mais direitos que deveres, e vice-versa.

Para as classes-médias globais-liberais é fácil ver essa conexão mundial. No cotidiano, procrastinamos na mesma rede social, bradamos contra os mesmos preconceitos, participamos das mesmas campanhas de conscientização. Em inglês, discutimos as mesmas músicas, reclamamos dos mesmos spoilers das mesmas séries, compramos os mesmos gadgets nas mesmas lojas. Nas férias, viajamos para os mesmos lugares, descobrimos os mesmos destinos, frequentamos os mesmos bares secretos. Nos fins de semana, cozinhamos as mesmas receitas, bebemos as mesmas cervejas artesanais, visitamos as casas de amigos com as mesmas decorações. Reclamamos das mesmas grandes corporações, optamos pelas mesmas ações solidárias, dormimos o mesmo sono dos justos. Riqueza é riqueza, em qualquer canto.

Para conseguir essa hegemonia homogênea, claro, não é assim tão indolor. Sempre há exploração e destruição da terra, da água, do ar, do subsolo, das matas, dos seres viventes. É um jogo que jogamos cotidianamente, tentando fechar os olhos para as suas consequências, nos agarrando na ideia de que temos uma dieta mais balanceada que a de monarcas do período feudal. Mas nos esquecemos que não dá para o planeta aguentar a globalização do padrão de consumo médio de um norte-americano. Não dá nem para ter o padrão de um carioca da Zona Sul.

Os mais pobres, periféricos, menos escolarizados, independentes do sistema, ou simplesmente mais tacanhos de espírito, todos, enfim, neófitos nesse livre circular de capitais sem fronteiras, são obrigados a participar dessa partida global, mesmo que não queiram. Vide os casos dos índios expulsos das suas aldeias para a construção das feias Belos Montes e congêneres que ganharam versões modernas dos espelhinhos, como geladeiras e caminhonetes. Estes são expulsos dos seus modos de viver e viram presas fáceis para as propagandas internacionalizantes, bancadas pela elite sem-fronteiras, que torna tudo a mesma receita de um bolo anódino, cheio de corante, açúcar refinado, farinha branca e gordura hidrogenada. Assim, aumenta(m)-se a venda de carros, o lucro dos bancos, o empreendedorismo "social", o gasto de energia, as obras faraônicas, a ingestão de carne, a construção de enormes condomínios, o desmatamento de florestas, a preocupação sócio-ambiental, as monoculturas de exportação, e, novamente, a exploração, a devastação, a destruição. Tudo parte do mesmo jogo.

Só que no meio da partida, quando nós, os liberais que usamos sacola retornável, nos enganávamos de que essa não era a sociedade perfeita, mas era o melhor que já tivemos - olhe a nossa ciência! olhe a nossa tecnologia! -, zás!, acontece novamente. Voltamos para a Torre de Babel. Descobrimos que o mito da linguagem única era isso: um mito. Pobres periféricos, classes-médias globais, elites sem-fronteiras, percebemo-nos todos no mesmo prédio, temos, em tese, a mesma intenção [nos mantermos aqui, não?] mas descobrimos que não falamos a mesma língua. Temos planos completamente diversos, às vezes antagônicos, para alcançar objetivos nem sempre muito claros para ninguém. Não nos entendemos sobre nada. Não temos um fundamento em comum, aparentemente. Nada que possa servir de corrimão.

Pois como explicar para alguém que não tem um bom transporte público perto de casa, que nunca foi servido por qualquer facilidade para exercer o seu direito constitucional de ir e vir, que ter um carro hoje em dia é contribuir para a destruição do planeta? Como defender para os donos de mineradoras, de empresas de petróleo, fábrica de automóveis, que eles estão acelerando o processo dessa mesma destruição? Como contar para alguém que tem como maior forma de socialização o churrasquinho do fim de semana que a criação de gado para o consumo de carne é uma das principais causas da falta d'água [noves fora a podre política dos políticos podres]? Como dialogar com latifundiários que destroem os aquíferos para plantar a soja que vai alimentar este mesmo gado de vários países ao redor do mundo? Como deixar claro que ninguém é a favor do aborto, ao contrário, mas, sim, a favor das mulheres decidirem o que fazer com os seus próprios corpos? Como mostrar para amigos liberais que reciclar o seu lixo não adianta quase nada num mundo em que há crimes ambientais como os praticados pela Samarco no Rio Doce? Como conversar com um indivíduo que acha que sua religião tem o direito de interferir nas decisões individuais de outras pessoas, como no caso de suas "preferências sexuais"? Como convencer a máquina pública moralista que a guerra às drogas é apenas uma forma de exterminar os pretos, pobres e favelados do mundo? Enfim, como aprender a falar a língua do outro?

Não dá mais para se espalhar pelo mundo, como aconteceu lá com o povo de Deus. Mas também não dá para ficar na mesma torre sem entender o que o outro quer dizer.

Uma certeza, ao menos, se tira disso tudo: A linguagem única, da eficiência, do lucro e da produtividade, não está funcionando.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

A trajetória do sol, por Nietzsche

HISTÓRIA DE UM ERRO

1.
O mundo verdadeiro passível de ser alcançado pelo sábio, pelo devoto, pelo virtuoso. - Ele vive no interior deste mundo, ele mesmo é este mundo.
(Forma mais antiga da ideia, relativamente inteligente, simples, convincente. Transcrição da frase: "eu, Platão, sou a verdade".)

2.
O mundo verdadeiro inatingível por agora, mas prometido ao sábio, ao devoto, ao virtuoso ("ao pecador que cumpre a sua penitência").
(Progresso da ideia: ela se torna mais sutil, mais insidiosa, mais inapreensível - ela torna-se mulher, torna-se cristã...)

3.
O mundo verdadeiro inatingível, indemonstrável, impassível de ser prometido, mas já enquanto pensado um consolo, um compromisso, um imperativo.
(No fundo, o velho sol, só que obscurecido pela névoa e pelo ceticismo; a ideia tornou-se sublime, esvaecida, nórdica, königsberguiana.)

4.
O mundo verdadeiro - inatingível? De qualquer modo, não atingido. E, enquanto não atingido, também desconhecido. Conseqüentemente tampouco consolador, redentor, obrigatório: Ao que é que algo de desconhecido poderia nos obrigar?...
(Manhã cinzenta. Primeiro bocejo da razão. O canto de galo do positivismo.)

5.
O "mundo verdadeiro" - uma ideia que já não serve mais para nada, que não obriga mesmo a mais nada - uma ideia que se tornou inútil, supérflua; conseqüentemente, uma ideia refutada: suprimamo-la!
(Dia claro; café da manhã; retorno do bom senso e da serenidade; rubor de vergonha de Platão; algazarra dos diabos de todos os espíritos livres.)

6.
Suprimimos o mundo verdadeiro: que mundo nos resta? O mundo aparente, talvez?... Mas não! Com o mundo verdadeiro suprimimos também o aparente!
(Meio-dia; instante da sombra mais curta; fim do erro mais longo; ponto culminante da humanidade; INCIPIT ZARATUSTRA*.)

Trecho de "O crepúsculo dos ídolos", de Nietzsche.

* "Começa Zaratustra".

domingo, 9 de agosto de 2015

A cabeça-durice de Dilma

Encontrei com Dilma Rousseff apenas uma vez na vida. Por isso não é possível chegar a qualquer conclusão sobre sua personalidade, nem mesmo seria prudente arriscar algum tipo de interpretação de sua psiquê ou fazer paralelos entre o que aconteceu aquele dia e o que acontece hoje em dia no país. Mas nem sempre somos assim tão prudentes.

Era um debate presidencial, no Projac, entre Lula e, suspeito, Alckmin. Como jornalista de generalidades, estava responsável por cobrir o lado do PT, para o caso de algo sair do planejado. Já que raramente alguma coisa realmente sai do planejado nesse tipo de evento, minha participação se resumiu a ser um observador privilegiado de algumas figuras importantes do cenário político nacional de então e até hoje - o que já diz algo sobre nosso cenário político -, um espectador curioso do debate para que pudesse, quiçá, anos depois - hoje - deixar algumas notas irresponsáveis sobre seus bastidores.

Apesar da proximidade com os principais caciques da política brasileira, infelizmente poucas coisas dignas de notas aconteceram. Lembro do atual prefeito do Rio, Eduardo Paes, então mero deputado, apoiando Alckmin [o mesmo Paes que depois de assumir o cargo de alcaide ia pedir bênção a Lula, como quem vai ao seu pai-de-santo ou ao seu padrinho da máfia, e que hoje chama o famigerado Eduardo Cunha de "meu presidente" - coisa que não se deve fazer nem de brincadeira] e ardilosamente gostando muito de aparecer. E lembro de uma cena envolvendo Dilma.

Dilma era então uma ministra em ascensão, ligada fortemente à moralidade, após todos os escândalos do primeiro governo Lula [lembrar do mensalão]. Era um perfil técnico. A gerentona. Quem tinha feito a Petrobras [logo a Petrobras!] crescer como uma empresa privada. Começava a se consolidar com um nome de confiança, inatingível, exatamente porque não era uma política profissional [lembrar que a primeira eleição para um cargo executivo que ela concorreu foi a de 2010]. Isso tudo há, apenas, dez anos. Como as coisas mudam...

Em um momento em que Alckmin deu uma resposta considerada pelo seus pares como boa, a bancada do PSDB fez um alvoroço. Um impaciente William Bonner chamou a atenção dos presentes dizendo que essa participação exagerada era contra as regras do debate, as quais todos tinham concordado em respeitar. Os tucanos se calaram. Foi a vez de Lula, então, falar. Quando ele terminou sua participação, uma resposta quase protocolar de tão banal, Dilma, inflamada, se levantou sozinha e começou a bater palmas empolgadamente, no que foi acompanhada quase que por inércia por dois ou três petistas [não lembro quem]. Bonner repetiu a sua repreensão padrão com ainda mais dureza e fez uma cara ríspida de "já não falei sobre isso?". Dilma se sentou em seguida, não sem deixar de reclamar em um tom alto o suficiente para que eu, que estava a uns dez metros de distância, escutasse sem ruídos: "mas se eles podem, a gente também pode!"

Muitas ideias aparecem com essa pequena anedota. Para a galera que é petistofóbico, a primeira coisa deve ser: "tá vendo como ela justifica suas ações? O passado a respalda. Logo ela é corrupta, claro!" Tal conclusão chega fácil porque ela agiu imitando o comportamento anterior, sem qualquer tipo de reflexão sobre o que seria certo ou errado, quase como uma criança de 5 anos que só elogia o desenho do amiguinho caso o amiguinho o tenha elogiado antes. A conclusão do petistofóbico é falha, porém, ao se restringir a atual presidenta porque ignora o fato óbvio: mesmo que sua atitude seja bastante infantil, não modificou o que existia. Em outras palavras: ela não inventou o hábito de quebrar as regras, apenas o imitou.

Prefiro uma outra interpretação, que, para mim, consegue mostrar melhor o caráter errático do atual governo. Uma possibilidade de entender a psicologia por trás de discursos violentos feitos pelo governo e o partido da presidenta que soam, às vezes, indecodificáveis para sujeitos menos bélicos [como eu]. Em vez de baixar a guarda para fazer uma mea culpa, expurgar o mal que contaminou áreas muito importantes da máquina, tentar reconstruir suas bases abrindo a guarda e procurar reatar as conexões com a militância histórica que sustentou seu partido na sua gênese, enfim, ser de esquerda, ela continua atacando, batendo, aumentando o tom de voz.

Dilma mostrou nessa pequena cena relatada que não leva desaforo para casa. Ela não se coloca numa posição de inferioridade e quase nunca pede desculpa. Ela se sentiu agredida pela atitude do adversário, do inimigo, e queria dar o troco. Achou que agir da mesma moeda era a única forma de se sentir vingada. Que o PSDB era um protegido e que se ela não fizesse nada ali, o seu partido, o partido que, na sua opinião, estava mudando o país, tinha sido roubado. E ela tinha que defender os seus, não importando como.
Exibiu-se como uma pessoa extremamente desconfiada, quase paranoica, talvez com mania de perseguição, que só sabe retribuir agressões do mesmo jeito. Apresentou um grau de insegurança assustador para a sua posição, e uma cabeça-durice que nos tira a esperança de que ela vai mudar o ritmo ou a direção das suas ações nos próximos anos. Vimos ali sua completa inabilidade política em lidar com ataques e como ela parece perdida quando está, cada vez mais, isolada. Ou melhor, ela se engana que sabe como agir nessas oportunidades: deve devolver no mesmo tom violento que é atacada.
ps. Isso tudo, claro, não é qualquer motivo para golpes, impeachment ou xingamentos de cunho simplesmente machistas direcionados à presidenta. Nem é, para mim, razão para qualquer pessoa participar do ato de 16 de agosto, agora. Viver em sociedade é aprender a viver com o diferente, o outro - desde que o outro não seja o Eduardo Cunha.

terça-feira, 21 de julho de 2015

As casas enroladas em arame farpado

Se há uma coisa boa em viver em uma cidade cujo transporte público é basicamente o ônibus é poder observar, às vezes calmamente, a cidade, suas ruas, esquinas, gentes, enquanto se trafega de norte a sul, e vice-versa. Funciona muito bem para os raros dias em que o engarrafamento não trancou e bloqueou e enlaçou descuidadosamente toda a urbe. É de espantar como a máfia que controla os ônibus ainda não tenha feito qualquer propaganda usando isso a seu favor.

Em cidades de países ricos e sérios, você passa boa parte do seu dia-a-dia debaixo da terra, em plataformas mal ou bem cuidadas de 50, 100 anos, passeando em labirintos no ritmo das pesadas pisadas à sua frente, entrando em linhas estranhas, baldeando em estações erradas, com medo de perder a descida precisa. No Rio, nos sábados de fim da manhã ou de início de noite, do caloroso inverno de céu azul e sol seco, você observa como o comércio popular resiste mesmo no infelizmente degradado Estácio; como a notívaga Lapa respira tranquilamente com o dia claro; como pipocam, na contramão da concentração das grandes cadeias de supermercados, pequenos hortifrútis como válvulas de oxigenação; como rareia o número de pessoas que ainda insistem em combater o bom combate do lado de fora dos seus muros; como as casas - quase todas - de bairros como Méier, Maria da Graça, Del Castilho se erguem sob a miríade de arames farpados.

Parece, em alguns endereços ali perto da Igreja do Sagrado Coração, cenário de filmes de guerra. O arame farpado não é aquele fininho de fazendas, usados para demarcar o espaço de latifúndios geralmente improdutivos. São robustos círculos concêntricos cujas lâminas são dentes de cachorros cheios de raiva. São mensagens para qualquer transeunte, mais ou menos bem intencionados, dizendo para nem tentar qualquer gracinha, para se afastar e deixar aquela família de bem em paz. Os dentes do arame grosso, que nem deveria ser chamado arame de tão espesso, são símbolos de uma casa, que vive sob o signo do medo, real ou imaginado. É um caminho, não de tijolos dourados, como o de Dorothy, mas de um nível alto de desespero - des-espero, sem espera, sem esperança.

[Curiosamente há casas que optam por não se defenderem tanto ou com essas armas. Imagino: estariam estas famílias mais vulneráveis? Seriam os alvos preferenciais para os gatunos na hora que estes escolhem as suas vítimas? Ou o inverso: o marginal [lembrando: aquele que vive à margem] pensaria que essas casas não devem ser tão importantes assim porque, exatamente, não se protegem tanto. E se o ladrão quer ser desafiado pela dificuldade do arame farpado? Ou quer dar um troco naqueles que tentaram, virtualmente, o ferir? Como podemos saber como pensa um meliante qualquer?]

Há também alguns bares de esquina, padarias híbridas, pizzarias de entrega, e - novamente eles - hortifrútis que sobrevivem - sobrevivem! - nesse caminho de trincheiras dentadas que levam para o templo máximo da mentalidade de condomínio, o lugar onde todo mundo se sente seguro, protegido, relaxado como se estivesse na própria casa: o shopping center. O Norte Shopping é um dos centros comerciais que mais fatura em todo o país. Corredores sempre lotados de pessoas de carne e osso, praça de alimentação com filas com gente de verdade, lojas cheias de consumidores ávidos para brincar o jogo que o mundo está brincando.

Tudo isso nos levanta a sobrancelha esquerda perguntando: e a crise? Será que este é o único lugar que as pessoas que vivem atrás do arame farpado se sentem ligeiramente protegidas? Neste templo bem iluminado e com seguranças embaixo das árvores de plástico? Nesse ponto de encontro que venera o ato de consumir como se fosse o objetivo maior de toda a existência humana? Estamos trocando espaços privados por espaços privados por espaços privados por espaços privados? Vivendo cotidianamente o que seria considerado por outras gerações um simulacro do viver? Tudo controlado, limpo e bonito como se fosse um laboratório de experiências sociais?

O arame superlativamente farpado é um símbolo de um modo de viver que vê o outro como um problema. Como uma questão que não merece ser respondida ou pensada, mas eliminada. Um característica que não se restringe à Zona Norte, ou ao subúrbio. Muitíssimo pelo contrário. Uma tentativa cada vez mais comum em toda a cidade de se proteger de um inimigo, real ou imaginado, que vem pela televisão, pelas ruas, do asfalto, do morro, dos bueiros, das sombras, do outro lado do túnel, da imaginação neurótica que acha que o diferente de si sempre é uma ameaça. O sintoma visível de uma fantasia de segurança que só seria encontrada no âmbito do mais privado possível - de preferência em um bunker. Ou no conforto da privada. Um desejo de isolamento compulsivo, da destruição da coletividade anárquica, onde o mundo acontece sem roteiro pré-aprovado, onde o protocolo nem foi nem vai ser escrito. Uma fobia do até-mesmo ligeiramente diverso e uma adoração de tudo o que é ególatra, narcisista e excludente. Uma proposta de homogeneização das experiências cotidianas, de uma vida de gosto extremamente familiar e exageradamente confortável, que, com o tempo, tende a ir se degradando, perdendo o sabor, se anodizando, se encaminhando para o niilismo da falta de parâmetros e, consequentemente, a depressão. E tome remédios antimonotonia.

Ou nada disso. Ou simplesmente estamos aprofundando nossas existências em direção a relações cada vez mais simples e binárias, do tipo: eu x outro; casa x rua; público x privado, em que nenhum desses elementos se mistura, e um deles sempre é bom, enquanto o outro deve ser óbvia e necessariamente o inverso disso. Aprofunda-se as divisões em opostos que nunca se complementam, que têm aversão ao seu imaginário outro, aquele que talvez nem exista da maneira como esperamos. Um mundo em que sempre se odeia qualquer centímetro que saia do limite preparado com a antecedência de gerações. Há, parece, uma única forma de proteger essa identidade, que se quer-porque-quer fixa, imutável e limitada: com arame farpado.

sábado, 11 de julho de 2015

Minha rua e seus moradores

[Como sobreviver dentro de um cotidiano em que o ódio é a principal moeda de troca entre as pessoas? Em que a violência é justificada, a segregação, incentivada? Em que estamos destruindo cotidianamente os grandes formatos sem colocar nada no lugar? Como encontrar algum alento nessa atmosfera venenosa? Onde respirar quando falta o ar?]

Viver no mesmo endereço há tempos e as suas vantagens. Você começa a ganhar vizinhos, mesmo numa cidade que ainda insiste em crescer. Cumprimenta o ator olhudo, ponta de programas de humor desde Chico Anysio. Reconhece o grande pesquisador de música que vive no prédio Pixinguinha e, já bem velhinho, arrasta os pés pesadamente pelas calçadas. Pega o mesmo ônibus do travesti coroa que é careca em cima da cabeça e tem cabelo longo e louro nas laterais. Faz questão de acenar para o passeador de cachorros, que acena empolgado de volta, o mesmo que vai embora de bicicleta cantando. Escuta sem responder o português dono da mercearia suja, que sempre tenta justificar os preços altos com os problemas da economia. Enxerga os moradores da rua.

Quando se mora há muito tempo na mesma barulhenta avenida, é possível reconhecer os detalhes. Há a jovem que anda sempre sozinha, quieta carregando sacos com plástico, papelão, restos. Anda sempre com um turbante improvisado e roupas largas, como um figura saída de uma tela do Debret. É nova, magra, os olhos muito vivos e, ao mesmo tempo, tristes. Parece que está sempre a ponto de se desculpar, de começar a chorar, de desistir, de escapar - caso precise. Seu rosto é pequeno e bonito. Simples. Raramente pede dinheiro - quando acontece, faz em frente à padaria - padaria em que a atendente um dia quase pediu desculpas quando a conta de poucos itens deu R$ 50.

A moça que vive na rua dorme em lugar ignorado, mas suas coisas, seus sacos sempre estão perto do ponto de ônibus, do lado da estação de bicicletas. Ela nunca encara os olhos dos transeuntes, como se pedisse desculpas pela sua presença, pela sua existência. Seus olhos vivos e tristíssimos procuram apressadamente e ao mesmo tempo uma saída, uma via de fuga em caso de ameaça, mais matéria-prima que vai se transformar em dinheiro que vai se transformar em comida que vai lhe dar mais sobrevida. Sobrevida...

Nunca a vi comendo.

A padaria é ponto de outros moradores, como o bêbado da voz caricaturalmente grossa. Ele, ao contrário da moça jovem, está sempre tentando causar algum tipo de rebuliço. É abastecido pelo pessoal da oficina, vizinho da padaria e da auto-escola. Dorme por ali mesmo. Esse encara quem o encara. Como se nós fôssemos os culpados, os responsáveis por ele estar ali, daquele jeito. Como se nós tivéssemos obrigação de lhe dar dinheiro. Às vezes, rola uma discussão em brados com outros moradores da mesma marquise. Problemas de vizinhos... quem nunca?

Já o vi em outras latitudes, com outros mendigos também conhecidos, como o careca baixinho que vive grunhindo e que bateu até matar a bananeira que crescia ao lado do viaduto Carlota Joaquina, aquele que passa por cima da pista do Aterro do Flamengo. Não satisfeito com apenas matar a bananeira, tacou fogo no toco que sobrou. Um sujeito que carrega muita confusão dentro de si, claramente errante, sempre com uma latinha de Brahma à mão. Parece com ódio da sociedade porque não a consegue entender - essa mesma sociedade que também não fez muito esforço para o entender. Já trabalhou com o guardador de carro perto da Policlínica, mas não mais. É dos mais inconstantes.

Recentemente, apareceram dois novos, um casal, exatamente nesse viaduto, que eu sempre vi como a mais perfeita rota de fuga para os assaltantes da região. Desde que o menino foi assassinado no ponto de ônibus em frente à loja de ferragem, que fica do lado da farmácia, do lado da oficina, do lado da auto-escola, do lado da padaria, a área parece que ficou mais segura. Uma patrulhinha fica 24 horas por ali. Uma pracinha foi construída. Brinquedos de criança. Luz forte. Jardim com flores. Academia da Terceira Idade. O sentimento, talvez apenas somente o sentimento, se espalhou até mesmo o viaduto Carlota Joaquina - um nome que diz algo sobre o local.

O casal no viaduto pescou minha atenção recentemente. Todas as vezes que eu passo bem cedinho por ali, indo ao supermercado ou à feira, mesmo quando encontro o menino psicótico que passa andando à deriva e todo encasacado mesmo no mais alto verão, conversando, discutindo, brigando com os seus demônios, eles, o casal da escada do viaduto está lá, ainda dormindo. E é uma cena que se destaca do cinza do chão, mesmo que eles estejam totalmente sujos, que se descola do barulho dos carros que passam logo ali abaixo, ainda que não façam qualquer ruído.

Os dois dormem calma, profunda, justamente. Dormem sem pressa. Dormem numa realidade paralela ao que acontece sobre o viaduto. Ignorando a neurose de quem está chegando para o trabalho na IBM ou na Odebrecht. Dormem como se mostrassem que não há necessidade de muita coisa no mundo. Um com o braço sobre a outra. Encaixados em conchinha. Ela com a cabeça no ombro dele. Ele fazendo carinho nela. Desconjuntados, atrapalhados, um sobre a outra, e vice-versa, como em disputa pelo sagrado território da alcova. Um alcova pública, mas ainda uma alcova.

São dois jovens, mais novos que eu, completamente fora de qualquer padrão da exigência hegemônica de beleza. Dormem sobre o papelão nas madrugadas em que os termômetros descem a menos de 15 graus. Eles têm um à outra para se esquentar, se encostar, saber que não estão sozinhos, completamente sozinhos no mundo. Não que seja indispensável ter um alguém especial exatamente ao seu lado, mas eles não teriam nenhuma outra pessoa - nenhuma outra, em todo o mundo. O outro, a outra que está do lado dela, dele, é um contato que restou. Eles e o resto do mundo, eles e a humanidade, eles e o que os circunda.

Ainda não estão totalmente alijados da sociedade - não digo desta sociedade que os quer fora do mundo, quer apagá-los, quer que eles miraculosamente não existam mais, ou melhor: nunca tenham existido jamais. Eles mostram que há algo em comum entre as pessoas, usem ternos, tailleurs, um top vermelho encardido, uma camisa branca dois números maiores. Todos fazem parte de algo que é maior: ao fim, somos os mesmos e únicos.

Eles ainda não desistiram, não se largaram, não têm medo, raiva, não querem destruir nada, não foram para uma dimensão à parte, ainda se conectam uma com o outro, ainda enxergam em si, em ambos, no que eles construíram, no que constroem a cada instante, a cada noite, ainda encontram um fiapo de vida, algo que ainda esquenta, que aquece dentro, que derrete o gelo que insiste em matar o que vive, ainda percebem que há algo mais que a mera sobrevivência, a mera busca pela próxima refeição. Eles ainda têm algo, algo por que continuar.

ps. Dispensável dizer: de dia ou de noite, todos os mendigos são pretos.

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Sou negro

Meu primeiro "emprego" foi o de vendedor de seguro. Eu "trabalhava" dentro de uma oficina mecânica mais arrumadinha numa rua movimentada de Nova Iguaçu e abordava os motoristas que paravam ali para trocar pneus, alinhar, balancear, fazer cambagem, com toda a malemolência que eu carrego até hoje para falar com qualquer tipo de estranho. Eu, que tanto amor tenho por carros. Que adoro dirigir. Que até hoje não sei o que é cambagem. Durou um mês e um seguro vendido para um policial desconhecido, de comportamento suspeito, que eu deixei entrar no escritório na hora de contar a féria. Tinha 17 anos.

Naquele verão extremamente quente e galpão de telha de zinco sem refrigeração em que eu ainda não tinha começado na faculdade, passava a maior parte do tempo conversando com os mecânicos e funcionários da oficina. Lembro de um rapaz jovem, negro bem negro, magro, músculos torneados, bigode fino e ralo, olhar entre o desconfiado e o malandro, que fazia rimas de rap. Ele tinha orgulho de ser negro e gostava de exaltar que os negros eram superiores aos brancos.

Um dos subgerentes do lugar, um mulato bem claro, cor de café-com-leite com mais leite que café, sempre se incomodava com os comentários do mecânico. Dizia que não havia qualquer superioridade entre os dois lados, que brancos e negros eram iguais. Eu, um branco azedo de nariz fino e cabelo ondulado, adorava dizer, junto com o mecânico rapper, que era também negro. E que os negros eram superiores aos brancos. Para desespero do subgerente e prazer do mecânico.

Nos divertíamos sempre que o subgerente aparecia inventando formas diferentes de dizer como os negros eram muito melhores que os brancos. Negros, não. Dizíamos "pretos". Se cantávamos uma música, logo lembrávamos que o autor era preto. Ou o cantor. Ou falávamos sobre a cor preta era mais bonita que a branca. Tudo era motivo para fazer troça. O subgerente ficava revoltado, tentando usar argumentos racionais para explicar que não havia qualquer diferença entre um ou outro, mas nós só caçoávamos. Insistíamos no deboche, na pilhéria, na blague. A intenção era sacanear o pobre subgerente moreninho, e ele ajudava caindo na pilha facilmente.

Todos os mecânicos, se não me falha a memória, eram negros. Alguns altamente qualificados - se não por cursos específicos, pelos anos de prática. Faziam seus serviços numa presteza e velocidade que eu não conseguia acompanhar. Viviam, a maior parte do tempo, numa região escura, com ainda menos ventilação e salubridade do galpão. Graxa e poeira era os condimentos mais comuns no ar a respirar. Eu ficava a maior parte do tempo com eles, e esquecia de abordar os motoristas que entravam. Ou não tinham muitos motoristas. Ou abordava rapidamente para dizer que fiz o meu trabalho, mas ninguém queria comprar seguros. Era 1999 e vivíamos numa economia bem mais fraca que a atual: o salário mínimo era R$ 130 e subiria para R$ 136 no primeiro de maio, no mais baixo reajuste desde 1994.

De todos os vários mecânicos, me lembro também de um sujeito mais velho, alto, igualmente magro e com bigode mais grosso. Tinha o olhar de Morgan Freeman quando faz papel de o sábio que já viveu bastante e decidiu não incomodar mais. Era alguém que guardava dentro de si um mundo maior do que o que mostrava cotidianamente. Era uma espécie de "pai" mítico do mecânico-rapper. Todos respeitavam suas opiniões. Vinha gente - normalmente branca - trazer seus carros para que ele, e somente ele, trabalhasse. Não me recordo de mais ninguém.

De todos ali, eu certamente era o mais escolarizado, apesar de ser provavelmente o mais novo. Era o único que, mesmo que sendo filho de um contador já falecido e uma pensionista que trabalhava como recepcionista de uma clínica médica, portanto com baixo orçamento para os padrões da elite de uma cidade periférica, tinha acesso à teia de segurança da classe média. O subgerente devia ter um pouco mais de estudo que o mecânico, mas a diferença ali não era de anos nos bancos escolares, mas de atitude: um se comportava como o capataz, outro como um rebelde.

***

Eu não sou negro, índio, mulher, gay, trans, portador de deficiência. Moro na Zona Sul do Rio de Janeiro num apartamento que me pertence. Não sou minoria, não sei o que é não ter privilégios. Vivo com privilégios desde que nasci. As únicas vezes que senti problemas por ser quem sou foi quando estava em um ambiente completamente diferente das esferas que frequento habitualmente. Quando, por exemplo, na Índia, fui a uma favela e todas as pessoas me olhavam sabendo que eu não pertencia ao lugar. Sabendo que eu destoava. Mas ainda havia algum tipo de olhar diferenciado, exatamente porque eu sou alguém que tive sempre privilégios. Por isso me pergunto sempre: posso, tenho o direito de falar sobre o que eu não sou? Como ser o outro? Como ser negro, índio, mulher, gay, trans, portador de deficiência? Como diminuir a distância que existe entre esses polos tão distantes? Como erigir uma ponte para transformar privilégios em direitos?

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Universais

Sou um puto do pensamento de outrem
Não sou fiel a nenhum homem, mulher
Corrente ou proposta
Sou politeísta, polissexual, polimórfico
Uso os conceitos, as ideias, as noções e depois, já bem usados, jogo fora
Não sigo panelas, não respeito hierarquias, não admito limites ou rótulos
Não aceito nomes
Faço aproximações insanas, interpretações inortodoxas,
Encontro verdades momentâneas no meio do jornal enrolado no peixe
Sou onívoro, despreconceituoso
Bebo o que tem para hoje
Estou suicida, enxergando a poucos metros na horizontal
Existindo e sendo o devir
Misturando quem não se fala
Criando pontes Escher
Assustando doutrinários
Propondo sociedade indisciplinárias
Sou sem nós
Não danço conforme a música
Sou um homem composto por letras do acha-palavras
Sou canhoto, sinistro, do contra
Sou quase sempre

domingo, 14 de junho de 2015

As experiências extremas de Fernando Brant

"Tenha fé em nosso povo que ele resiste / tenha fé em nosso povo que ele insiste".
Fernando Brant e Milton Nascimento

A morte de Fernando Brant poderia passar batido, mas não deveria. Representa o que o Brasil tem de melhor e pior. Compositor de algumas das mais belas canções que já tivemos contato, ele nos lembra o poder que a música chamada de popular tem no Brasil - capaz de criar, inclusive, uma sigla para ela própria (sigla essa que tanto torce o nariz de gente que quer encontrar o que seria a verdadeira arte do verdadeiro povo brasileiro: a mais original, a mais profunda, a mais representativa dos que nunca foram representados). Mas Brant também foi capaz de defender posições que podem ser interpretadas como a tentativa de perpetuar nosso abismo social.

As letras de Brant nas músicas de Milton Nascimento confirmam aquilo que o poeta Eucanaã Ferraz diz na introdução para o livro "O mundo não é chato", de textos escritos por Caetano Veloso para jornais, capas de discos e outras crônicas mais ligeiras - sem deixar de ser profundo: "no Brasil, a música popular é a instância da vida coletiva mais apta para viver essa experiência [extrema]", que é se pensar [tomar posicionamentos, agir, ser capaz de atacar e de defender] o país.

A música popular é o quando e o onde as pessoas se reúnem, no mais próximo da política arendtiana que temos. É aquela produção - no sentido que eu entendo da poiésis grega - em que se debate o hoje, se relembra o passado, se projeta o futuro. Não temos capilarização na literatura; tradição nos estudos estritamente acadêmicos, científicos ou universitários; musculatura na artes plásticas; relevância de debates dos meios de comunicação mais ou menos populares. Nos sobra - e "sobra" no sentido de abundar - a música, que nos afeta, nos nocauteia, nos eleva, enleva, nos mexe, mexe, nos destroça e nos constrói e reconstrói.

Não é um fenômeno único brasileiro, deve ter acontecido em outros lugares, mas isso não importa. O que importa é que a música é o que temos de mais profundo, que melhor nos mostra para nós mesmos, púlpito de debates, escola de quereres, sinal da beleza que se pode fazer com a nossa história.

Entretanto Brant, na sua atuação fora do campo da produção mais ligada ao campo das sensações, também nos lembra da outra metade da laranja brasileira, do erro cotidiano da dosagem do remédio que o transforma em veneno.

Suas posições extremamente raivosas na defesa dos direitos autorais de artistas carrega, além das motivações óbvias de defesa da classe, uma possibilidade de segundas e mais verticais interpretações. Era um ato conservador, no sentido mais próprio da palavra, da defesa da conservação do estado das coisas existentes. Era uma tentativa de manter as coisas como sempre foram e nunca aceitar qualquer tipo de mudança. Era uma escolha por manter privilégios de quem conseguiu esses privilégios - e não tentar construir pontes para diminuir a distância entre as extremas pontas da sociedade.

Como um homem pode ser tão inovador em um campo (estético) e tão reacionário em outro (político)? Ou por que alguém quando ultrapassa a bolha do andar de baixo já assume as posturas do andar de cima? Ou qual miopia impede os de cima de enxergar os de baixo como se fossem iguais?

Nelson Rodrigues talvez seja o principal exemplo nessa seara: um católico moralista orgulhoso de ser reacionário que dizia que expurgava suas neuroses e sonhos em uma produção teatral que era libertária, catártica, explosiva.

Essa divisão "Dr. Jekyll and Mr. Hyde" brasileira já foi muito melhor retratada por sujeitos como Roberto DaMatta, em seu "A casa e a rua". Somos conservadores em casa e liberais na rua. Somos violentos e conciliadores, ao mesmo tempo. Somos cordiais e cordiais, como diria Sérgio Buarque de Holanda. Somos extremados, precisamos de "experiências extremas".

Num momento de tamanho conservadorismo e atitudes retrógradas, excludentes e que beiram, quando não chafurdam, num fascismo descarado, quando a gangorra dessa nossa relação tensa histórica pende para um dos lados, é bom se agarrar a, ao menos, uma certeza: a música produzida no Brasil é linda. E Brant, o compositor, nos lembra disso. Que esse seja celebrado e o outro, combatido.

sábado, 9 de maio de 2015

Maracãnã

"Próxima estação: Maracãnã", diz a moça da gravação que anuncia as paradas do trem. "Cuidado com o espaço entre o trem e a plataforma", diz ela também. Hoje o trem parador não deve em quase nada para o metrô. O ar condicionado funciona regularmente, a lotação é máxima na hora do rush, o sistema tem defeitos com uma cotidianidade impressionante. Mas o "Maracãnã" é diferente.

É uma das poucas estações em que se pode fazer a troca entre o trem de superfície e aquele que passa uma boa parte da sua existência embaixo da terra. Mas a maneira como a anunciante do trem oficialmente ao ar livre cita a estação do estádio homônimo, da saudosa Uerj, do Boulevard 28 de setembro que me fez ver pela primeira vez uma calçada musical e pensar que o poder público também podia cuidar da cidade, é totalmente diferente da sua colega do metrô.

No trem, a moça com forte sotaque carioca, que quase chia ao dizer Deodoro, acrescenta um til sobre o penúltimo "a", que "anasalisa" a letra como se a palavra fosse cantada por um baiano de Feira de Santana recém chegado à Novo Rio. Curiosamente, ninguém parece reparar. Nenhuma outra estação recebe esse tratamento. Apenas aquela que nasceu a partir do estádio que nasceu do bairro que nasceu do rio que nasceu dos inúmeros papagaios que povoavam a região quando os europeus primeiramente chegaram ali, quando a água ainda era limpa, e a mata, abundante.

Como se a moça quisesse relembrar como era a pronúncia tupi (será que é assim?).

Como se diante do estádio morto e ressuscitado num corpo que não lhe pertence, ela quisesse lembrar uma época anterior ao cimento.

Como se em frente ao esqueleto cinzento da universidade criada sobre os escombros ainda fumegantes da favela, ele relembrasse um passado em que ninguém precisava se preocupar com moradia - porque a abóboda do céu era o teto - ou educação formal.

Em Quintino, Bento Ribeiro, até no Méier ou Madureira, esses nomes tão europeus, ela capricha no sotaque carioca descolado. Maracãnã é o momento de nos lembrarmos que havia algo aqui há muito mais tempo que meros 450 anos. Não adianta acinzentar o verde.

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Lascas

Balança, balança e não sai do lançar
Planeja, planeja e nunca cai ao mar
Se joga, se joga sem qualquer descansar
Faz rima, faz rima, que sempre ficam no ar.

Movimentos em círculos concentrados
Rodam sem aviso prévio ou férias
Voando aos extremos desmeridionados
Sem passagem pelos trópicos maismolentes

Fixos no congelamento das certezas fundadoras
Se arrepiam ante o ponto de questão
Apregoam o cinema da década de 1930
Suas metáforas que sustentam a discussão.

Se desconfiassem que flutuamos sobre um abismo
O nada, único e somente, ancora
O fim, próprio, autêntico, compartilhável
Mas ninguém sabe onde fica o retorno!

Se a marca da dúvida fechasse as frases
O chão de geléia irreal nos assegura
O céu róseo de outono como desafio
Mas o horizonte com significados mutantes!

De quem faço esse retrato?
Enxergo o lago de Narciso
As lentes são caixa de lápis
Meu mundo / minha alma / meu mundo / minha alma

Carrossel sem circunferência exata
Plano de voo desconstruído às pressas
Movimentos pendulares foucaultianos
Sou a cada momento o momento que acaso sou

Transito sem responder a questão
Desdigo o que dois e dois são
Evito tentativas de afirmar o não
Construo com passos lentos um caminhão

quinta-feira, 30 de abril de 2015

Nada mais ou menos

Registro para os escafandristas
Nada também é importante
Não se deixe enganar por rostos angelicais
Nada é nada
Diminuir o ritmo, pintar uma cena do diário
Não é nada.
Branco do céu chuvoso, rede balançando
É quase nada
Nadar no natural
É um ótimo tipo de nada possível
Nada, nada mesmo, é improvável.
Nada é não responder perguntas, dúvidas, demandas
Nada que se alcança, é certo
Nada não se enxerga, mas nada ninguém viu
Em nenhum lugar.
Nada ajuda a tudo fluir melhor.
Tudo não é o oposto de nada.
Tudo é o que sobra quando nada sai de cena.
Tudo é o mundo lá fora.
Nada é o meu mundo.
Tudo é a Terra que nos engloba e nos engole
Nada não importa
Não importa - para tudo
Para tudo!
Para tudo, dizem que há uma saída.
Nada é a saída - ou a entrada
Que leva a tudo. A todos.
Tudo e todos. É enorme.
Nada é miudinho.
O nada, claro, que roçamos
O nada de que podemos falar.
O quase-nada então.
Não é exatamente o nada, mas o seu-vizinho
Indica nada
Tem cheiro e gosto de nada
É o que suspeitamos.
Nada diminui a velocidade
Até o batimento basal, natural
Tudo obriga a nós, brigamos, abriga-nos
Tudo, tudo, tudinho
Tudo que não sabemos também exatamente tudo.
Tudo, porém, é mais fácil.
Tudo, porque tudo envolve
Até onde a vista cansa
Tudo me mata de desgosto, se só tudo existe
Nada desenlaça, desengasta, desentorpe
Viver nesse mundo que exige tudo
E eu só tenho nada a declarar
É ter pernas largas e dar passos longos
Nada realmente importa
Tudo, nesse caso, e ao contrário, exporta
E importa
Tudo é um jogo, é participação no tabuleiro.
Nada é encontrar sua própria respiração
Dá para viver com nada?
Nada, não. Quase nada?
Tudo espreita.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

'O ponta driblador e o filósofo', de L. A. Simas

[...] Os que demonizam meu compadre acertam, porém, em um detalhe: – o homem é perigoso. Perigoso porque escapa das limitações do raciocínio matemático [que tem pânico do inesperado] e não compactua com fórmulas que reduzem a vida a um jogo de cartas marcadas, com desfecho previsível.
Como poderemos, na limitação de nossa tosca e arrogante visão racionalista, entender Exu, o menino que colheu o mel dos gafanhotos, mamou o leite das donzelas e acertou o pássaro ontem com a pedra que atirou hoje? Como lidar com aquele que sentado bate com a cabeça no teto e em pé não atinge nem mesmo a altura do fogareiro?
Exu é Pastinha na ginga, Garrincha no drible, Dino no sete cordas, Grande Otelo na tela, o jagunço na travessia, o sincopado do escurinho com fama de brigão, a pimenta no caruru de Dona Flor, Tia Eulália no miudinho, a rima de Aniceto na roda de partido alto, o mote de Zé Limeira, o trenzinho de seu Heitor Villa-Lobos, o manto do Bispo do Rosário, a sabedoria do professor Milton Santos, a vida severina, o infinito enquanto dure do poetinha e o provisório que se perpetua na poesia.
Posso até imaginar a cena de um verdadeiro encontro de civilizações no mais improvável dos filmes: – O filósofo Heráclito diz que viver é a arte de esperar o inesperado. Um moleque, preto retinto, filá na cabeça , pés ligeiros e pau duro, solta uma gargalhada alegre e responde ao grego, entre um gole e outro de marafo , enquanto descarna um bode, prepara o couro e dança no aço da navalha:
- Só percebeu isso agora, meu bom?
Este preto feito tiziu mora no tempo, no meu país, no mundo, na minha casa…
Texto mais que incrível do Luiz Antonio Simas.

terça-feira, 14 de abril de 2015

'O quereres', Caetano Veloso


Onde queres revólver, sou coqueiro
E onde queres dinheiro, sou paixão
Onde queres descanso, sou desejo
E onde sou só desejo, queres não
E onde não queres nada, nada falta
E onde voas bem alto, eu sou o chão
E onde pisas o chão, minha alma salta
E ganha liberdade na amplidão
Onde queres família, sou maluco
E onde queres romântico, burguês
Onde queres Leblon, sou Pernambuco
E onde queres eunuco, garanhão
Onde queres o sim e o não, talvez
E onde vês eu, não vislumbro razão
Onde queres o lobo, eu sou o irmão
E onde queres cowboy, eu sou chinês
Ah! Bruta flor do querer
Ah! Bruta flor, bruta flor...
Onde queres o ato, eu sou espírito
E onde queres ternura, eu sou tesão
Onde queres o livre, decassílabo
E onde buscas o anjo, sou mulher
Onde queres prazer, sou o que dói
Onde queres tortura, mansidão
Onde queres um lar, revolução
E onde queres bandido, sou herói
Eu queria querer-te e amar o amor
Construir-nos dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação
Tudo métrica e rima e nunca dor
Mas a vida é real de viés
E vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero e não queres como sou
Não te quero e não queres como és
Ah! Bruta flor do querer
Ah! Bruta flor, bruta flor...
Onde queres comício, flipper-vídeo
E onde queres romance, rock’n’roll
Onde queres a lua, eu sou o sol
E onde a pura natura, o inseticídio
Onde queres mistério, eu sou a luz
E onde queres um canto, o mundo inteiro
Onde queres quaresma, fevereiro
E onde queres coqueiro, eu sou obus
O quereres e o estares sempre a fim
Do que em mim é de mim tão desigual
Faz-me querer-te bem, querer-te mal
Bem a ti, mal ao quereres assim
Infinitivamente pessoal
E eu querendo querer-te sem ter fim
E, querendo-te, aprender o total
Do querer que há e do que não há em mim

quarta-feira, 1 de abril de 2015

'Backlash'

O termo inglês "backlash" quer dizer algo como "retrocesso" ou "o ato de retroceder". Muitas vezes o sentido usado é um pouquinho diferente: uma espécie de reação contra algum tipo de avanço. Dá para pensar em uma imagem poética, que daria um sentido mais claro do movimento que isso envolve: como se fosse uma onda que retrocede em direção ao mar após explodir na areia. Mas esse último tipo de interpretação só pode ser vista como otimista no atual estado de coisas do Brasil.

Desde mais ou menos 2002 até cerca de junho de 2013, o Brasil surfou uma maré progressista, como se todos os nossos problemas fossem resolvidos apenas com o passar do tempo. Noves fora uma política que transformou nossa economia em uma monocultura de exportação, com o sacrifício de florestas e ecossistemas (numa citação quase irônica da teoria da dependência do sociólogo Fernando Henrique Cardoso), havia a sensação de que, enfim, o Brasil estava dando certo. O futuro do país havia chegado. Pela primeira vez em muito tempo os pobres urbanos tinham acesso a bens de consumo - nunca serviços de cidadania - que os aproximava, mas ainda a uma distância imensa, da parte de cima da sociedade. Depois chegou junho de 2013, em seguida veio outubro de 2014 e, por fim, este março de 2015 que finalmente, esperamos, se encerrou ontem.

Não dá para pensar nesse momento histórico do Brasil sem sentir ecos de outros momentos da nossa curta trajetória de país consolidado. E esse 1º de abril, em que alguns comemoram [sic] o 51º aniversário do golpe de Estado cometido por militares com apoio maciço da elite, que conseguiu levar a população conservadora para as ruas do país, não nos deixa esquecer dessa proximidade.

Muito se fala de como João Goulart, que era fortemente atacado pela direita conservadora, demorou para se apoiar na esquerda revolucionária. E que, quando ele se apoiou, a aproximação deu mais argumentos para a direita recrudescer suas ações. Lembre-se que o inflamado discurso na Central do Brasil foi no dia 13 de março de 1964, portanto menos de 20 dias antes do golpe. Também se fala muito de como a própria esquerda era bastante radical no período, não aceitando negociar ou dialogar com o governo, pensando que o único caminho possível para melhorar a vida da população mais pobre era a via revolucionária. Goulart, apesar de ou por ter propostas muito fortemente populares, ficou sozinho e foi alvo fácil daqueles que sentiram seus privilégios ameaçados. Naquele período e espaço geográfico bem afeito a intervenções militares, deu no que deu.

Jango não foi o primeiro chefe de Estado que foi atacado pela elite por tomar atitudes políticas que podem ser consideradas populares. Seu padrinho político, Getúlio Vargas, foi outro que sofreu com acusações e mais acusações de corrupção e incompetência canalizadas nos - não deve ser coincidência - veículos de comunicação de então. O Vargas que assumiu o governo na década de 1950 era bem diferente do ditador do Estado Novo. Era um político ligado aos trabalhadores e isso deve ter desagradado o andar de cima. Segundo algumas interpretações, ele teria conseguido adiar por dez anos o golpe por conta da atitude extrema do seu suicídio, e criou o caminho perfeito para a subida ao poder de um dos políticos mais escorregadios que já tivemos, JK.

De qualquer forma, pode-se sugerir que o primeiro golpe de Estado que "endireitou" o caminho do Brasil foi ainda outro: a proclamação da República. Não se deve esquecer que o nosso segundo monarca era considerado "republicano" e que os atos da República nova podem ser vista como dignos de uma ditadura, apoiada por forças conservadoras. Basta pensar que a República só foi instituída logo após o império brasileiro ter tomado uma atitude considerada, novamente, popular: a abolição da escravatura. Não se mexe em privilégios impunemente.

Longe da teoria da conspiração, essa sucessão de acidentes nos faz pensar: e se essa crise em que vivemos foi fabricada? É muito complicado defender o governo atual, depois de tantas escolhas controversas - para dizer o mínimo, mas e se a elite sentiu que não poderia mais especular com a maior taxa de juros do mundo? Que deveria finalmente adentrar o capitalismo produtivo, com um atraso de 200 anos?  E se a elite ficou incomodada com a presença dos pobres em lugares antes exclusivos? E não quisesse mais ter que pagar caro para ter uma empregada doméstica ou um marceneiro? E se até o ano passado não houvesse reais motivos para preocupação alguma e nos foi incutido que estávamos caminhando para a bancarrota e após tantas repetições e boicotes dos mercados, começamos a acreditar nesse caminho e entramos em uma espiral decrescente?

Não teremos um golpe de Estado porque não é a moda atual, mas nos direcionamos para um país cada vez mais conservador, quase um Estado Totalitário, sem precisar de nenhuma intervenção militar - para desespero de alguns. Principalmente com o crescimento dos políticos ligados às bancadas da bala e da fé, entre outras patrocinadas por lobbies conservadores. Os primeiros sinais já estão à mostra. Algumas apostas para os próximos capítulos:

/ As pautas de segurança pública [maioridade penal, aumento de efetivo policial etc.] serão obviamente reforçadas - é a união de forças da direita religiosa com a elite de direita que acreditam que só mais força pode combater a violência.

/ A economia deverá ter uma guinada, ainda mais forte, à direita - pelo mesmo motivo: acreditam no Estado mínimo como se fosse a solução para todos os problemas. O Estado, aliás, é o problema.

/ As pautas de direitos humanos e minorias serão vistas como perfumaria: num momento de crise, alguns ovos deverão ser quebrados para o omelete da nação. A Amazônia, para essas pessoas, é um deserto.

/ As pautas comportamentais [legalização de drogas, aborto etc.] são as únicas ainda em disputa, porque a elite de direita tende a ser "liberal", no sentido de não querer se meter com a vida privada. Laissez faire, laissez passer, clássico. Mas esse é um ativo forte para a bancada religiosa. 

É sempre bom lembrar na hora do golpe de 1964, muita gente "decente" e "boa" apoiou a deposição do presidente eleito, mas ninguém sabia onde aquele processo reacionário iria dar. Não basta colocar senhoras respeitáveis se beijando na novela das 9, quando o primeiro-ministro quer instituir o dia do orgulho hétero.

O que acompanhamos neste momento é, novamente, como uma repetição de uma história que queríamos esquecer, a elite de direita e a direita religiosa fazendo uma campanha publicitária [nos meios de comunicação], usando o mesmo vocabulário [contra a corrupção], o mesmo discurso [pela moral, os bons costumes, a tradição, a família e a propriedade], movimentando as mesmas peças [classes médias conservadoras], e conseguindo o mesmo resultado: "backlash".

ps. recebi de um amigo que entende, realmente, de História a seguinte crítica: "fez total sentido. mesmo. e acho que sua avaliação tá corretíssima. a escalada conservadora, entretanto, ocorre com co-participação do próprio executivo federal, que cedeu desde sempre à ideia tradicional de "controle das classes perigosas", quando essas classes confrontam o Estado - e sentimos isso na pele em 2013 e 2014. a pauta da maioridade penal estava adormecida; o primeiro poder a colocar em marcha o crescimento do poder policial foi o executivo federal, açodado pelos executivos estaduais dos partidos aliados. tem um pouco de PT na ressurreição parlamentar da diminuição da maioridade penal." Acho que é válido o complemento.

domingo, 29 de março de 2015

Negação da individualidade

"Sentindo necessidade imediata de ordem, e de dar nome ao que existe, apelidou-a de Pequena
Flor." Quando se lê essa frase de Clarice Linspector em "A menor mulher do mundo", conto que Verissimo considera ser o melhor em língua portuguesa, muitas ideias brotam na cabeça. Principalmente quando se lê esse conto logo depois de passar por "Elegbara", a reunião de narrativas curtas de Alberto Mussa, em especial "A cabeça de Zumbi" e "O último neandertal". Há algo aí que junta as duas [ou três] pontas e que nos leva a um outro formato de pensamento.

Ao fim de "... Zumbi", Mussa escreve:
Mas não por muito tempo. Porque Zumbi, mortal eterno, atingindo o ápice do seu ideal, tinha diluído a própria individualidade, disseminando-se como um ente coletivo. Nenhum dos filhos de Deus ousou semelhante grandeza.
Assim, vez por outra, Pernambuco continuava a ver o rosto de Zumbi. Até em mulheres; até em crianças; até em brancos.
Por isso a angústia dos que vêm às cercanias de Palmares ou simplesmente contemplam a serra da Barriga: porque se esconde naquelas matas uma possível negação da singularidade dos seres e da própria ontologia humana; porque, vagando pelas brenhas, certamente ainda há algum Zumbi para morrer.
Ao fim de "... neandertal", ele deixa como moral a seguinte passagem:
Se os nomes comuns serviam para destacar do real tangível classes de entidades de existência meramente cognitiva, os nomes próprios desencadearam a sensação falsa de que cada pessoa era em si uma classe, uma entidade única, criando o artifício da personalidade. Os demais conceitos — alma, família, beleza, propriedade — surgiriam como atributos secundários dessa idéia.
Os neandertais refratários a tal perversão certamente anteviram os efeitos que iria produzir. Não cabe discutir se foram ou não foram mais inteligentes. Fique apenas a imagem do último deles, a um só tempo solitário e coletivo, como que a demonstrar que o indivíduo é uma falácia; que a consciência é uma falácia; que o próprio ser — em sua furna — também é uma falácia.
O que as três narrativas fazem é questionar, de modo brando no caso de Lispector, ou diretamente no de Mussa, a certeza da individualidade, de um existir em separado dos demais, a ideia de que há "um homem" em vez de "os homens", ou ainda "os seres". Um duvidar de que há um ente puro, isolado, em vez de ser simplesmente como que mergulhado num grande mar infinito [talvez os hindus chamem isso de brahman]; um ser em que é impossível determinar as fronteiras, demonstrando como somos unos - e a própria ideia de plural ou singular se torna complicada, já que não haveria nenhuma diferença em relação a isso.

Lispector mostra a surpresa do explorador francês Michel Petre ao encontrar um mulher negra de 45 centímetros no meio de uma tribo de pigmeus na África equatorial. Ele está tomado de um espanto que o leva para longe de todas as certezas acumuladas por anos de ciência racional europeia. Encontra algo que desafia a sua lógica, o que estava acostumado, as verdades assentadas dentro de si. Seu deus, nesse momento, morreu. Não tinha mais em que se apoiar. Era só dúvida. Espalhado, perdido, vagando, sem um porto. Era puro devir. Seu incômodo cresce, não pode trafegar nessas águas tão turbulentas sem algum tipo de apoio. "Na certa, apenas por não ser louco, é que sua alma não desvairou nem perdeu os limites", escreve Lispector. Decide dar à pequena mulher um nome, algo que a retira desse fundo em que ela se confundia, em que ela se sentia parte integrante, e criar uma perspectiva em relação aos demais, como um pintor renascentista. Na necessidade de criar uma "ordem", uma direção, um sentido; fazer um recorte no mundo para que essa parte em separado pudesse ser enxergada. "E, para conseguir classificá-la entre as realidades reconhecíveis, logo passou a colher dados a seu respeito."

Os pigmeus não teriam necessidade de se identificar: "Os Likoualas usam poucos nomes, chamam as coisas por gestos e sons animais." Uma senhora, mãe de uma noiva, personagem do conto, sugere que a tristeza que ela exala não é "humana", mas de "animal". Nós e eles. Uma separação, um limite, uma borda, uma fronteira que nos coloca sobre os demais, hierarquicamente. Já o pai de outra família imagina a pigmeu servindo a sua mesa. Um escravo, um menor, um outro. O mesmo raciocínio.

O explorador sente mal-estar porque sua Pequena Flor sorri. Sorri sem motivo - para ele - sem razão, que ele enxergue. Sorri porque está viva. Está feliz simplesmente por se percebe viva e não morta. Por ser e por não não-ser. Ela não precisa de mais nada além disso, não precisa de qualquer outra bengala para se apoiar e justificar para si sua vida. Ela vive e é isso. Essa falta de motivo aparente violenta o explorador que tem seus apoios, seus objetivos, seus futuros a cumprir. "Esse riso, o explorador constrangido não conseguiu classificar." Como assim sorrir sem razão? Ela sorria porque o amava - e não amava a ele, explorador, simplesmente, mas amava o que o mundo lhe apresentava, amava, por fim, a vida, o viver, o estar viva. Ele fica constrangido e sorri de volta, querendo entender como funciona o diálogo, mas logo volta a si, à razão, à sua História, se recompõe. Toma notas, organiza, classifica. Tenta estabelecer novamente um limite entre um e outro, a divisão da comunhão que havia se estabelecido. A volta a si, dentro de si, o mergulho em sua individualidade, sua subjetividade.

Mussa é explícito no seu argumento: "os nomes próprios desencadearam a sensação falsa de que cada pessoa era em si uma classe, uma entidade única, criando o artifício da personalidade. Os demais conceitos — alma, família, beleza, propriedade — surgiriam como atributos secundários dessa idéia." No seu conto, ele mostra como o neandertal negou a separação do seu entorno, se misturando com o fundo, que todos eram apenas um e um era todos. Ou como o objetivo de vida de Zumbi era não ser ele, apenas, mas ser muitos, todos serem ele e ele ser todos - todos serem todos.

Não é uma defesa de uma forma mais sábia de lidar com o mundo, de viver, de existir enfim, apenas a demonstração que, com esse prognóstico, afirma-se a ideia de um ser único em separação do restante, "como que a demonstrar... que o próprio ser — em sua furna — também é uma falácia". O ser como momento em que o devir é aprisionado, um limite para o espraiar de vida, de força, de vontade nietzschiana - não como uma possibilidade infinita, tal qual Heidegger defende na sua obra capital. Mas um ser que fosse uma fronteira estabelecida, uma determinação de algo que existe independentemente dos demais. Um ser que é quase um não-ser por ser a cristalização de um determinado modo de ser, em vez de se deixar flutuar, navegar, nadar ao sabor do tempo. Um ser que, mesmo que em alguns casos seja momentâneo, permite que se separe, se torne único.

É possível em nossa sociedade extremamente neurotizada e neurotizante ainda se pensar sem a noção do indivíduo? Não é indispensável se pensar movimentos que girem de um lado para o outro, que demonstrem que há a necessidade também de uma constituição para depois haver uma destituição? O equilíbrio dinâmico entre os pontos cardeais? Como perder a soberba de se imaginar único?

sábado, 28 de março de 2015

'O equilibrista', de Eucanaã Ferraz



Traz consigo resguardada
 certa idéia que lhe soa
clara, exata.

 No entanto, hesita: que palavra
a mais bem medida e cortada
para dizê-la?

Enquanto não lhe vem o verso, a frase, a fala,
segue lacrada a caixa
no alto da cabeça.

Eucanaã Ferraz

quarta-feira, 25 de março de 2015

'Quem sou eu?', de Luís Gama

Quem sou eu? Que importa quem?
Sou um trovador proscrito,
Que trago na fronte escrito
esta palavra "Ninguém!"
A.E. Zaluar - "Dores e Flores"

Amo o pobre, deixo o rico,
Vivo como o Tico-tico;
Não me envolvo em torvelinho,
Vivo só no meu cantinho;
Da grandeza sempre longe
Como vive o pobre monge.
Tenho mui poucos amigos,
Porém bons, que são antigos,
Fujo sempre à hipocrisia,
À sandice, à fidalguia;
Das manadas de Barões?
Anjo Bento, antes trovões.
Faço versos, não sou vate,
Digo muito disparate,
Mas só rendo obediência
À virtude, à inteligência:
Eis aqui o Getulino
Que no pletro anda mofino.
Sei que é louco e que é pateta
Quem se mete a ser poeta;
Que no século das luzes,
Os birbantes mais lapuzes,
Compram negros e comendas,
Têm brasões, não - das Kalendas;
E com tretas e com furtos
Vão subindo a passos curtos;
Fazem grossa pepineira,
Só pela arte do Vieira,
E com jeito e proteções.
Galgam altas posições!
Mas eu sempre vigiando
Nessa súcia vou malhando
De tratante, bem ou mal,
Com semblante festival
Dou de rijo no pedante
De pílulas fabricante
Que blasona arte divina
Com sulfatos de quinina
Trabusanas, xaropadas,
E mil outras patacoadas.
Que, sem pingo de rubor
Diz a todos que é DOUTOR!
Não tolero o magistrado,
Que do brio descuidado,
Vende a lei, trai a justiça
- Faz a todos injustiça -
Com rigor deprime o pobre
Presta abrigo ao rico, ao nobre,
E só acha horrendo crime
No mendigo, que deprime.
- neste dou com dupla força,
Té que a manha perca ou torça.
Fujo às léguas do lojista,
Do beato e do sacrista -
Crocodilos disfarçados,
Que se fazem muito honrados
Mas que, tendo ocasião,
São mais feros que o Leão
Fujo ao cego lisonjeiro,
Que, qual ramo de salgueiro,
Maleável, sem firmeza
Vive à lei da natureza
Que, conforme sopra o vento,
Dá mil voltas, num momento
O que sou, e como penso,
Aqui vai com todo o senso,
Posto que já veja irados
Muitos lorpas enfurnados
Vomitando maldições,
Contra as minhas reflexões.
Eu bem sei que sou qual Grilo,
De maçante e mau estilo;
E que os homens poderosos
Desta arenga receosos
Hão de chamar-me Tarelo
Bode, negro, Mongibelo;
Porém eu que não me abalo
Vou tangendo o meu badalo
Com repique impertinente,
Pondo a trote muita gente.
Se negro sou, ou sou bode
Pouco importa. O que isto pode?
Bodes há de toda casta
Pois que a espécie é muito vasta...
Há cinzentos, há rajados,
Baios, pampas e malhados,
Bodes negros, bodes brancos,
E, sejamos todos francos,
Uns plebeus e outros nobres.
Bodes ricos, bodes pobres,
Bodes sábios importantes,
E também alguns tratantes...
Aqui, nesta boa terra,
Marram todos, tudo berra;
Nobres, Condes e Duquesas,
Ricas Damas e Marquesas
Deputados, senadores,
Gentis-homens, vereadores;
Belas damas emproadas
De nobreza empantufadas;
Repimpados principotes,
Orgulhosos fidalgotes,
Frades, Bispos, Cardeais,
Fanfarrões imperiais,
Gentes pobres, nobres gentes
Em todos há meus parentes.
Entre a brava militança
Fulge e brilha alta bodança;
Guardas, Cabos, Furriéis
Brigadeiros, Coronéis
Destemidos Marechais,
Rutilantes Generais,
Capitães de mar-e-guerra
- Tudo marra, tudo berra -
Na suprema eternidade,
Onde habita a Divindade,
Bodes há santificados,
Que por nós são adorados.
Entre o coro dos Anjinhos
Também há muitos bodinhos.
O amante de Syringa
Tinha pêlo e má catinga;
O deus Mendes, pelas costas,
Na cabeça tinha pontas;
Jove, quando foi menino,
Chupitou leite caprino;
E segundo o antigo mito
Também Fauno foi cabrito.
Nos domínios de Plutão,
Guarda um bode o Alcorão;
Nos lundus e nas modinhas
São cantadas as bodinhas:
Pois se todos têm rabicho,
Para que tanto capricho?
Haja paz, haja alegria,
Folgue e brinque a bodaria;
Cesse pois a matinada,
Porque tudo é bodarrada!

mais infos aqui.

domingo, 22 de março de 2015

Epidemia de opinião

É quase uma contradição dizer que vivemos em uma epidemia de opinião. Melhor dizendo: é uma contradição. Mas alguém tem que incorrer nessa contradição na tentativa certamente vã de acender não mais uma luz amarela, mas algo ainda mais intenso que o vermelho. O sacrifício é por conta da casa.

O momento é de grande confusão de vozes, de um emaranhado de chiados como uma sobreposição de distorções. Todos falam e poucos se escutam. Todos opinam, poucos leem outras opiniões. Todos escrevem grandes tratados no Facebook, poucos frequentam ambientes contraditórios. Todos são autores, poucos são leitores. Todos têm certezas, poucos duvidam de si. Todos são portadores de alguma verdade, poucos são aqueles que desconfiam daquilo que sabem.

Temos que ter alguma solidez para cumprir nossas metas cotidianas, sem dúvida. Alguma coisa que nos faça levantar da cama e enfrentar oito horas de trabalho nem sempre recompensador, chefes às vezes pouco amigáveis, salários quase nunca abonados. Seja o lazer que o dinheiro suado proporciona das noites de sexta à música de abertura do "Fantástico", a compra de um apartamento de dois quartos, duas vagas na garagem e churrascaria na varanda, ou o futuro de engenheiro, advogado ou médico dos filhos. Também não cabe ficar, a todo momento, duvidando se estamos certos ou errados em relação às nossas decisões. Por que temos que pensar se votamos corretamente, se poluímos o planeta, se estamos ajudando o mundo, se só pensamos em nós mesmo, se o egoísmo é a única forma de convivência dentro de uma cidade caótica? Certezas são importantes para o cotidiano, sem dúvida. Mas não duvidar de si, em nenhum momento, nos torna pouco maleáveis, nos estabiliza, nos estaciona no tempo. O que pode ser um problema para um mundo que corre cada vez mais veloz.

Se a era moderna recebeu como epígrafe um trecho do famoso monólogo de "Hamlet", o tal "Ser ou não ser, eis a questão", que simbolizaria a dúvida existencial do ser humano frente à infinidade de possibilidades que a vida lhe traz, o momento atualíssimo nos parece trazer um outro temperamento, não mais baseado numa peça de teatro, mas em personagens de videogames: somos imaginados como personagens estanques, com três estrelinhas na característica de velocidade, meia estrelinha nas habilidades de lutas, duas estrelinhas na quantidade de força, quatro coraçõezinhos cheios de vida e três armas de calibres cada vez maiores. Diferentemente dos personagens dos games atuais, não temos "continues" infinitos nem podemos salvar uma fase para voltar depois.

Determinado nosso caráter, como uma escolha customizada num guarda-roupa virtual, a partir das nossas mais variadas formações e defesas, o próximo passo é bradar essa escolhas fixas. O facebook se transformou em um canal interessante para isso, principalmente por conta de seu algoritmo que vai, aos poucos, filtrando opiniões contrárias às suas. Quanto mais nos afirmamos, mais angariamos curtidas, que no linguajar atual quer dizer reconhecimento. O se expressar, podemos suspeitar a partir disso, está ligado diretamente à construção da nossa própria imagem. Pensamos ser o que escolhemos ser, o que pudemos escolher ser, e o espelho da internet só nos mostra o reflexo de Narciso.

É possível suspeitar, porém, que o mundo seja mais flexível, mais multifacetado, do que nos mostra a nossa própria vontade de ser. Não basta construir família, ser bem sucedido, viajar para lugares cada vez mais exóticos, fazer parte de um programa social que ajuda os menos afortunados no fim de ano, para sentir esse sentimento que o seu Aristóteles chamou de "eudaimonia", palavra complicada de traduzir, que recebeu versões bem diferentes no português que vão da simples felicidade, passando pelo "bem-estar" e chegando ao "desenvolvimento humano". É complicada porque "felicidade" não é um porto de chegada, não é uma linha final, não é a completude de uma caminhada. Se você acredita nisso, você pode se considerar devedor das religiões que acreditam em paraíso. Mas, pense: qualquer ambiente que não se modifica, que permanece o mesmo, é, em pouco tempo, absorvido, se torna sem vida, chocho, sem graça. Mesmo a melhor das festas não pode durar naturalmente para sempre. Ela tem que acabar. Todo o carnaval tem que ter o seu fim.

Se você, ainda assim, se mantém muito seguro de suas certezas, de suas verdades, é bem provável que vai gritá-las para, inclusive, se convencer delas. O pensamento quando transformado em palavras e sons é mais poderoso que quando apenas isolado dentro da cabeça, onde fica matutando, maturando, batucando, indo de um lado a outro como um pinball. Ao se tornar expressão, o pensamento se cristaliza, se transforma, mesmo que momentaneamente, em uma verdade. Fixa, imutável. É possível se apoiar nela. Você, que quase duvidou de si mesmo, tem que se apoiar nela. É sua única jangada no meio de um oceano nada pacífico.

Há ainda os que acreditam que essa difusão de vozes cada vez mais violentas e em volume mais alto seria apenas a indicação de uma muito incipiente formação do novo tipo de praça pública, agora virtual. Um lugar onde estaríamos debatendo para chegar aos nossos melhores consensos possíveis. O problema é que ninguém quer abrir mão de suas convicções, porque elas não são apenas opiniões, elas são a Verdade - ditadas por deus, o diabo, o pastor, a globo, o colunista da veja, o site patrocinado pelo pt, o meme do facebook, o vídeo do whatsapp.

Inventamos uma nova forma de interação: em vez de diálogos, diversos monólogos. O "eu" vem sempre à frente do "tu", do "ele" e só não vem à frente do "nós", caso o "nós" envolva gente muito, mas muito próxima mesmo, porque o pirão deve ser servido para mim primeiramente, mesmo se a farinha estiver sobrando. Nesse tempo de epidemia de opinião, descobrimos o óbvio: não há forma de conversar quando todos só falam.

quinta-feira, 5 de março de 2015

Rio 450 anos: o que temos para comemorar?

Em qualquer viagem, é inevitável fazer comparações com o seu país, seu estado, sua cidade. Você fica pensando, a cada curva no mapa, a cada estátua desvendada, o que é diferente da sua casa e o que é igual de todos endereços tão familiares. Tenta fazer uma brincadeira de espelho e encaixar a alameda da sua casa dentro da avenida do hotel. Colocar o boteco no pub. A Medina na favela. O Cristo na Torre. Lembra da dificuldade de tomar um ônibus na hora que enfrenta a dificuldade de tomar um trem. Percebe os tempos - longos, curtos, médios, ondulados. Os gostos. As temperaturas. Os cheiros que te remetem para as memórias mais longínquas, em cascatas. As pessoas andando nas ruas. Como se olham. Como se tocam. Como se vestem. Você compara, converte, mede com uma fita métrica do seu bairro, tenta falar com o mesmo alfabeto, léxico e gramática que você usa cotidianamente. É uma tentativa de tornar próximo aquilo que é, a cada momento, estrangeiro. Isso tudo acontece sempre, sempre que você toma um avião para sair do mesmo lugar de sempre. Mas uma viagem a Lisboa multiplica esse sentimento exponencialmente. São tantas familiaridades, tantos traços em comum, que às vezes o caminho é exatamente o oposto: o que temos de diferente?

***

Quando Pessoa, travestido de Bernardo Soares - o heterônimo mais próximo do autor, segundo os entendidos -, diz que a sua "pátria é a língua portuguesa", percebo o quanto temos - portugueses e brasileiros - de diferente aí. O contexto da citação até pode não ser exatamente este, mas pode-se sugerir que há, aí, um elogio da literatura, da palavra escrita. Dessa tradição tão europeia de passar as suas histórias e a História ao longo do tempo por essa mídia chamada papel. Língua, literatura, cultura escrita, essa tradição tão vindo nas caravelas para o resto do mundo.

***

Os brasileiros não podemos - no sentido de "deveríamos" - falar que compartilhamos a mesma pátria. Nossa pátria não é formada das mesmas letras, nem da mesma terra. Temos, sim, essa herança, o que é inegável  - e a capacidade de se emocionar ao ler o próprio Pessoa nos mostra o quanto deste passado está presente.

***

Se pudesse sugerir onde fica nossa pátria, eu arriscaria: na música. É lá onde o povo-popular se encontra. Foi lá que o Brasil oficialmente desobedeceu os impostos ibéricos de maneira mais clara, e tal qual Édipo, começamos a caminhar, cegos e sozinhos (mas qual caminhar sozinho não é uma metáfora para a cegueira?).

***

Não quer dizer que não tivemos Glauber, Machado [Machado!], Oiticica, todos grandes Macunaímas. Mas é na música que estabelecemos mais claramente nossas fronteiras sentimentais nacionais. E, de certa forma, é o que nos mantém unidos.

***

Isso mostra como nós somos diferentes da tradição estritamente europeia. Todo país europeu tem o seu Cervantes, Goethe, Shakespeare. Nós, claro, temos Machado, temos Drummond, que as pessoas adoram tirar fotos e arrancar seus óculos, mas a representatividade da literatura em nosso cotidiano é irrisória. Pense, como um entre tantos exemplos, em nossas tiragens para lançamentos de um livro grande [sem ser um Paulo Coelho ou "50 tons de cinza" da vida] e compare com o que acontece em Portugal.

*** 

Nossa tradição tem muito, mesmo que nós, brasileiros-preconceituosos, não queiramos, de índio e africano: somos muito mais corpo que alma. Muito mais rua que casa. Somos muito mais ginga, requebrado, rebolado. Samba, xaxado, afoxé. Mesmo o pessoal mais ao sul, mais ligado à Europa. [E, sim, estou generalizando para efeito de divagação.] Nosso pensamento não é cartesiano. Nosso tempo não respeita o horário. Nossas estações são diferentes. Não somos europeus em exílio, como disse Borges sobre sua Buenos Aires - e ele mesmo estava errado.

***

Por isso não entendo a comemoração dos 450 anos do Rio. Quer dizer, entendo, mas não concordo. Comemorar o quê? Comemorar o início de uma cidade que tentava ser europeia? Comemorar o marco inicial da expulsão dos índios que aqui estavam? O genocídio? A destruição do sistema ecológico daqui? O maior porto de escravos das Américas? A elite que sempre governou para a própria elite?

***

O pessoal do andar de baixo teve que se virar. A necessidade de sobrevivência fez com que eles criassem, inventassem, transformassem a massa que era entregue para eles em algo novo. Sem muito planejamento, sem muita visão do todo, sem pensar muito no amanhã. Era o que tinha para aquele hoje. Tinham que desviar das pedras e pedregulhos e montanhas no meio do caminho.

***

O que ficou disso, o que é comemorado agora nos 450 anos? O folclórico, o vazio, o malandro sem malandragem, o sambista de panamá da Uruguaiana e camisa listrada azul pronto para se exibir para a câmera do turista gringo. Falta sangue nas veias. Mas não falta nas ruelas.

***

Perto da minha casa, o filho do Andrei Bastos, que eu tive a honra de entrevistar certa vez, Alex Schomaker Bastos, foi assassinado por assaltantes. Os pais e amigos do menino fizeram uma homenagem a ele, com cartazes colados no ponto onde ele esperava o ônibus. Parece que os cartazes foram retirados, mas a família colou tudo de novo. Agora, há uma patrulhinha parada ao lado para dar mais "segurança" ao lugar. E o prefeito prometeu transformar o lugar e construir uma pracinha. No primeiro caso, uma medida paliativa que apenas empurra o problema da violência para alguns metros adiante ou para trás. No segundo caso, uma medida hipócrita.

***

O que temos para comemorar? A Baía de Guanabara e as praias constantemente poluídas? Os ônibus caríssimos e ineficientes? As contas dos donos das empresas de ônibus na Suíça? A violência em crescimento vertiginoso nas áreas menos privilegiadas? A crise de abastecimento de água? O futebol e as escolas de samba caídos em descrença? O custo de vida estratosférico e subindo? O prefeito mentindo sobre as obras para as Olimpíadas? A inexistente herança da passagem da Copa do Mundo? O que temos para comemorar?

quarta-feira, 4 de março de 2015

Para lá e para cá de Marrakesh

Andar pelas ruas da Medina de Marrakesh assusta às primeiras passadas de um turista acostumado com a organização das cidades europeias contemporâneas. A melhor e a mais simples definição é a de um labirinto, "maze" em inglês, que faz lembrar a origem da palavra "amazing". Um espanto. São ruelas, e ruelíssimas, que levam a lugar nenhum, ou a casas de pessoas que vivem suas vidas como viviam seus antepassados há dezenas de dezenas de anos. São pequenas vias onde passam burros, motonetas e até carros de pequeno porte. Onde os verdureiros dividem espaço com o senhor que só fala berber e vende arruda e alecrim murchos que parecem ter sido colhidos há dias em sua própria horta. São lojinhas de quinquilharias em que os atendentes não lembravam como se chamava fósforo em francês. Vendinhas de frutas onde pode-se encontrar uma criança de 9, 10 anos carregando uma faca com um papelão fazendo as vezes de punho, para cortar um cacho de bananas que será devida ou indevidamente, não se sabe, pesado numa balança antiga que ele mesmo segura. E há os souks, os mercados intrincados, em zigue-zague, com vários boxes, onde se encontra todos os produtos tradicionais do norte da África: chá, temperos, tecidos, couro, artesanatos, pinturas, açougue, etc. Perder-se na Medina é uma regra e, após o costume, uma regra bem-vinda.

A Medina é como um bairro histórico, preservada à maneira marroquina, dentro da grande cidade que é Marrakesh. Do lado de fora dos seus muros, parece uma urbe qualquer. Ocidentalizada, europeizada, americanizada. A Globalização é uma troca desigual de forças. Sair da Medina faz lembrar "A vila", o filme de Shyamalan. Pulamos alguns séculos de um instante para o outro.

Essa região cresceu em volta da Jemaa el-Fna, a praça central que por séculos reúne todo o tipo de gente do Marrocos e além. Sempre um lugar de concentração. O coração da cidade. No final do século XIX, parece, tentaram transformar o lugar para um estacionamento. Não deu certo e as pessoas continuaram a frequentá-la. De dia, vendedores de suco de laranja, frutas secas, encantadores de serpentes, malabaristas, videntes, poetas e contadores de história que repetem os relatos ouvidos há gerações. De noite, restaurantes que vendem os tradicionais tajine e cuscuz, mas também frituras de frutos do mar, espetos de todos os animais, cabeças inteiras de novilho - onde as famílias marroquinas se reúnem nos fins de semana para apreciar a iguaria, como se num estrela Michelin, e quase ninguém fala francês (uma exceção no lugar em que quase todos os atendentes conseguem arranhar ao menos algumas palavras em muitas línguas).

O preparo da cabeça do novilho, à vista de todos, é de espantar. Coloca-se inteira dentro de um panelão, onde será cozido, num caldo feito com os ossos de outras cabeças e especiarias. Após, corta-se ao meio, em sentido meridional, arranca o couro, e se retira todas as carnes moles: bochecha, língua, cérebro. Corta-se até o triturar e joga-se tudo dentro de uma panela com um caldo para refogar. Na versão "mixture", come-se com pão e sem talheres. Aconselha-se estar com a mão, direita, limpa. O guardanapo parece os papéis de refugo dos jornais que cobrem mesas dos bares mais tradicionais do Rio. Espalha em vez de absorver a gordura. O prato não surpreende: é excepcional.

Marrakesh é a última cidade importante do Marrocos (é uma das cidades imperiais) antes da chegada ao Saara. Para lá de Marrakesh, o deserto-mor. Para lá de Marrakesh, a África negra, o coração das trevas. Os europeus, pode-se suspeitar, tinham receio de ultrapassar essa fronteira - mais um motivo para nos espantarmos com a coragem dos portugueses, que iniciaram a circunavegação da África nos primórdios do século XV, quase como uma continuação das guerras de reconquistas. Parece que se empolgaram.

Andar por esses becos e travessas é uma afronta ao pensamento único ocidental. Tão próximos da Europa, e ao mesmo tempo tão distantes. As ruas tortuosas que funcionam de um jeito menos organizado se os mirarmos pelos nossos olhos cartesianos, limpinhos e assépticos, são metáforas imperfeitas, como todas as metáforas. Lembram favelas. Lembram a área de Londres anterior ao incêndio de 1666, o que faz pensar o quanto esse grande fogo não teria sido proposital para fazer uma "higiene social". Lembram um mundo antes das revoluções, principalmente antes da revolução científica, que tudo calcula, tudo metrifica. É uma organização orgânica, que cresce à medida que a necessidade exige. Não há planejamento. Há sobrevivência. Há uma inteligência que se pode encontrar, em menor ou maior grau, em lugares pobres: ginga, malandragem, balanço. Um raciocínio mais intuitivo, mais ligado à corporalidade.

Isso não quer dizer que a Medina de Marrakesh é o melhor lugar para se morar - porque não é. Nem próximo. É, isso sim, um desafio a uma imposição de se comportar, e pensar, de uma única e exclusiva maneira ao redor de todo o globo. É um grito para dizer que não devemos seguir as mesmas regras, que não devemos respeitar o mesmo tempo, que o Ocidente, a Europa, os EUA não dão conta - nunca deram - de todo o mundo. É a tentativa de mostrar que outras formas de viver são mais que possíveis, são necessárias.

O projeto hegemônico ocidental-europeu-norte-americano chegou, ou, ao menos, deveria ter chegado, ao seu fim.