Nietzsche:
"Nós possuímos arte a fim de que não pereçamos da verdade".
Nietzsche: "Ao redor do herói, tudo se torna tragédia; ao
redor do semi-deus, uma peça sátira; e ao redor de Deus - o quê? -
talvez o 'mundo'?" Como é bem claro nessas citações
escolhidas por Heidegger para discutir o pensamento nietzschiano, o
princípio metafísico de Nietzsche tem a ver com a arte - sob o
ponto de vista dele - e verdade. Para o filósofo autor de “Gaia
ciência”, há uma conexão clara entre a vontade de potência e a
"arte". Sendo que arte, para ele, não se resume ao que é
exposto nos museus de belas-artes, nem às salas de cinema, nem às
melhoras literaturas - nada de conceitos tão fechados cujas
fronteiras se tornam um problema para o próprio conceito, porque, ao
serem estabelecidas já se tornam obsoletas, antigas, antiquadas,
paradas no tempo. Para Nietzsche, arte é algo mais simples, é toda
a possibilidade de criação.
Ou seja,
se acompanharmos esse raciocínio, ao se colocar em prática a
vontade de potência, todo indivíduo, ou como Heidegger gosta de
denominá-lo, todo Dasein, se tornaria um artista. Explicando melhor:
ao se colocar em prática, para fora de si, sua vontade, ao tornar
essa potência [no caso, agora, de latente], em realidade, o
indivíduo, o Dasein, necessariamente criaria algo. Mesmo que
abstratamente, mesmo que apenas no campo dos conceitos. É uma
criação.
Esse
conceito de “arte”, visto dessa forma, então, se torna mais
popular. Tira completamente a carga de diferenciação que existe
entre aqueles que se consideram superiores por produzirem objetos
valorizados pelos outros [ou por determinados grupos que se entronam
no papel de juízes do que é bom, ruim e indiferente] e os demais
indivíduos. Nietzsche, assim, mostra que todas as pessoas são
“artistas” em potencial. São criadoras. Basta, claro, seguir a
sua vontade, colocá-la para fora de si. O que, bem, não é
exatamente algo exatamente fácil, já que ao produzir “algo”,
esse algo provavelmente vai alargar os conceitos anteriores, os
limites pré-estabelecidos, e assim desagradar aqueles que querem
manter, conservar as relações, a sociedade, o ambiente, como elas
são e sempre foram. Criar, ou nas palavras de Nietzsche, produzir
arte é desestabilizar o que há.
Porque arte é "o grande estimulante da vida"
para Nietzsche. Já Heidegger a conceitualiza de outra forma,
bastante parecida: arte é a condição para a vontade se tornar
capaz de ascender à potência e aumentar essa potência. Ou seja, é
excita, exercita, empurra a potência, massageia, tonifica. É o
"primeiro valor que abre todas as alturas de ascenção",
diz ele para concluir: "Arte é o máximo valor" – como
se mostrasse que a arte, essa criação, é a produção, o resultado
prático da vontade de potência [para Nietzsche], do Ser [para
Heidegger]. Mais à frente no texto, Heidegger dá novamente voz ao
Nietzsche já do livro “Vontade de potência”: "Arte é mais
válida que a verdade"1.
ps. A
frase final é forte o bastante para terminar o capítulo, mas antes
de continuar, seria curioso lembrar uma passagem de “Crimes e
pecados”, filme de Woody Allen, que ele revisita o mito
desenvolvido por Dostoiévski sobre a moralidade de um mundo sem
deus. Após Judah Rosenthal, o personagem de Martin Landau, ter já
matado sua amante, vivida por Anjelica Houston, ele se rói em culpa.
Começa a revisitar o seu passado, de criação religiosa judaica,
com todas as suas culpas envolvidas, e escuta o seu pai dizer uma
frase, que encerra a discussão à mesa sobre moralidade: “eu
prefiro deus à verdade”.
1Conforme
Heidegger, 1977 / 86, em tradução livre.
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