A
interpretação do tema da morte de deus é uma constante na obra de
Heidegger. Aparece, pelo menos, já em “Beiträge zur Philosophie
(Vom Ereignis)”, escrito entre 1936 e 1938, e publicado em 1989. Ou
ainda antes, nos seus cursos sobre Hölderlin de 1934/35. Mas há um
momento específico que ele toca diretamente no assunto para opinar
sobre a interpretação de seu conterrâneo Friedrich Nietzsche
(1844-1900) sobre o caso. É o texto “Nietzsches Wort ‘Gott ist
tot’”, de 1943 (numa tradução livre: “A palavra de Nietzsche:
‘Deus está morto’”)1.
Esse é um
texto em que Heidegger tenta mostrar como sua própria obra é, de
certa forma, uma continuidade da de Nietzsche. Como as respostas para
os problemas apresentados ou identificados por Nietzsche podem ser
encontradas em sua filosofia. Heidegger, inclusive, consegue, por
meio de uma grande reviravolta argumentativa, encaixar o próprio
Nietzsche dentro da tradição da metafísica, que o filósofo do
martelo dizia sempre ter combatido. Para isso, Heidegger argumenta, com o seu
vocabulário tradicional, recheado de conceitos próprios a cada
linha, que a metafísica é a verdade do que é em sua inteireza, sem
ausências. A
metafísica não é a divisão, não é a separação, não é um
embate. A metafísica é o inteiro, o todo. E - na
interpretação de Heidegger - para Nietzsche, a metafísica coincide
com a sua ideia de niilismo, que poderia ser resumida na frase "deus
está morto", mas que cabe e contém muitos desdobramentos
Antes
de prosseguir, é preciso tentar
deixar um pouco mais claro que seria metafísica para
Heidegger, um dos seus termos mais caros. Para ele, na
tradição filosófica, o termo que
provavelmente apareceu pela primeira vez na obra de Aristóteles costuma ser explicado como um todo dividido entre um mundo sensorial, ou seja
táctil, factível, físico até, e um mundo suprassensorial. Além
disso, Heidegger também mostra como a decadência da essência do
suprassensorial criou um vazio. Entre
esses dois termos, o mais elevado, ou “o de maior valor” perde,
exatamente, o seu valor. Ele chama esse processo de Verwesung,
que é traduzido para o inglês como "disenssentializing",
mas que em nota o tradutor explica que o substantivo tem o sentido de
"decomposição".
Metafísica é
o espaço aberto da história em que se transforma um destino, que o
mundo suprassensorial, como as Ideias, Deus, a lei moral, a
autoridade da razão, o progresso, a felicidade do maior número, a
cultura, civilização, sofre a perda da sua força construtiva e se
transforma em vazio. Nós denominamos essa decadência na essência
do suprassensorial sua decomposição [Verwesung].
Descrença no sentido de uma diminuição da doutrina cristã da fé
é, portanto, nunca a essência e o chão, porém sempre apenas a
consequência do niilismo; por isso pode ser que o cristianismo
sozinho represente uma consequência e o encorpamento do niilismo.2
Seria
bom para uma melhor compreensão do que é metafísica que, à vista dessa explicação, tentar entender o que seria o
niilismo, sob o ponto-de-vista de Nietzsche. Ou melhor, tentar
entender o que é a compreensão de Heidegger sobre o que seria
niilismo para Nietzsche. Por um lado, diz Heidegger, o termo lembra o
sentido usual, tradicional, como se fosse a perda dos valores dos
termos suprassensíveis. Em “Nietzsche, volume IV: Nihilism”, Heidegger
diz frases como: o “niilismo é aquele processo histórico pelo
qual o domínio do 'transcendental' se torna nulo e vazio, assim
todos os seres perdem suas validades e seus sentidos”3.
Por outro lado, porém, niilismo, na interpretação heideggeriana do
termo em Nietzsche, quer dizer quase o seu inverso: a sua
substituição por termos conexos, parecidos, com valores
semelhantes. Uma revalorização - no sentido de transformação, de
remarcar, de reavaliação. Ao liberar-se dos ícones, anteriores,
esse vácuo seria preenchido por outros termos. Mas esse processo de
substituição também apresenta problema.
O
problema da substituição de um valor por outro, o que Nietzsche,
segundo Heidegger explica, chama de "niilismo incompleto",
é ainda colocar os termos anteriores numa posição antiga de de
autoridade que é mantida "gratuitamente" num campo ideal
suprassensível. Já o "niilismo completo" para Nietzsche,
Heidegger explica, "deve abolir até com o lugar do valor mesmo,
com o suprasensível como domínio, e, de acordo com isso, deve
posicionar e reavaliar valores diferentemente"4.
Heidegger
lembra que esse projeto de reavaliação, ou revalorização, se liga
ao clássico niilismo, mas ele faz questão de dizer que esse ponto
não é central. A proposta é a mudança na forma de avaliação. Para
Heidegger, "O princípio não pode mais ser o mundo em que o
suprasensível se torna sem vida". E o niilismo, visto sob essa
ótica, vai procurar o que é mais "vivo", assim niilismo é
transformado, nas palavras de Nietzsche "no ideal da vida
superabundante". Mas o que é "vida" para
Nietzsche? E ainda: o que é valor para Nietzsche?
Em
"Vontade de potência", Nietzsche escreve: "o
ponto-de-vista de 'valor' é o ponto-de-vista constituindo as
condições de intensificação-preservação com respeito às
complexas formas de relativa duração da vida dentro [enquanto] do
tornar-se [ou se constitui ou, provavelmente, "está se
transformando", no sentido de modificação, ou como explica
Heidegger: da vontade de potência]".
Valor,
portanto, seria as condições que intensificam ao mesmo tempo que
preservam a vida, em sua mais complexa forma de existência [ou em
sua forma de existência, que é complexa], durante o ato de viver em
si [e - importante - causando uma transformação, ou se
transformando].
Heidegger ainda ressalta um detalhe curioso: que a grande definição
está no fato de valor ser apenas um "ponto-de-vista"
[Gesichtspunkt]. Para ele, o valor não é algo em "si",
ganhando sua importância pelo ponto-de-vista, ou seja, pela maneira
como é vista, enxergada, interpretada. "Valor é valor contanto
que some [ou "acrescente": a palavra é "gilt", do verbo "gelten", que é
traduzido como "counts"]. E conta contanto que colocado
como aquilo que importa."
Essa
liberdade, essa não-determinação do que seria um valor a priori,
não quer dizer que não haja formas, regras a se respeitarem para
entender o que seria um valor, dentro do raciocínio apresentado.
Apenas que essas regras, essas formas são mais sutis,
interpretativas, não-fixas e relativas. Heidegger explica que é
necessário para que algo [um ente?] seja um valor pertencer a um
Ser, sendo o que ele chama de "nisus", que seria o ímpeto
"de vir à frente" [se mostrar, aparecer, "tornar-se",
talvez]. "O objetivo", em uma tradução livre,
"providencia a perspectiva em que é conformado. O objetivo na
visão é valor." [idem]
1A
versão utilizada neste ensaio é a tradução para o inglês do
texto de Heidegger publicado em The question concerning
technology and other essays, Garland Publishing, New York &
London: 1977.
2Heidegger,
1977 / 65, em tradução livre.
3HEIDEGGER,
Martin, Nietzsche, volume IV: Nihilism.
Harper & Row, New York: 1982, p. 12 [tradução livre].
4Heidegger,
1977 / 69, em tradução livre
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