quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Brazil of nowadays, an introduction

I decide to start an introduction about Brazil of nowadays for a foreigner. To interpret the country by a non-traditional Brazilian point of view.

First, I assume I could not escape from the usual beginnings of such a post. All of the general articles giving an overview about countries start with the same kind of sentence: "[Country's name] is a land of contrasts". For me, it is always a surprise to discover that countries so different like UK or India can have the description. We Brazilians are so used to use this sentence for our homeland that it sounds they are exaggerating. Like: They are talking about that because they don't know Brazil...

This epithet is so Brazilian mainly for one big and dishonourable reason: besides the recent boom, we still have one of the biggest difference between the richest and poorest in the world [see the Gini index]. Considering we are almost the sixth richest country in the world, it appears even worse.

Other way to start such a text is: "[Country's name] is not just one country, but many inside its borders". It's also a kind of natural thing, if you know Brazil is the fifth largest country in the world [like, more than the double of India], and the fifth in population [more than three times UK pop.]. It is fair to think we have particularities around our territory.

But foreigners normally summarize Brazil at its stereotype. What they know is a mix from the Southeast [more Rio, less São Paulo] with the North [the Amazon forest, which most of Brazilians have never visited], and a bit from the Northeast [the beaches].

Of course Brazil has beaches [the most famous Copacabana and Ipanema], samba, carnival, football, feijoada, caipirinha, mulatas, tiny bikinis and all the things you expected to find in Brazil. And one of the biggest homicide taxes in the world - but it has improved a lot last years, and the trend is to get better, in the next years, with the World Cup [the final will be in a polemic refurbished Maracanã, which is in Rio] and the 2016 Olympics.

Rio is the home of almost all last paragraph features, and main entrance of the country. But, starting the demystification, Rio is not just sand-sea-samba. The marvellous city ["cidade maravilhosa" is the way cariocas call Rio; "carioca" is who was born in Rio or who adopted the city as its home] is where companies such Petrobras and Vale, two of the biggest companies in the world, are situated.

Outside the country, these characteristics gives foreigner a very good view about Brazil. I have never known someone who dislike it. They just love Brazil even if they don't know the difference from Sugar Loaf and the Corcovado Mountains [the first has the cable car, the second, the Christ Redeemer]. I guess they think all Brazilians have the same state of mind, the same way of be, a synonym to joy, happiness, party, and coolness. Is that true? As true as the Germans only drink beer all day long. Or as the Parisians are rude with tourists. It's a generalization, not a whole true, but part of that.

Though, the recent national growth - mainly pushed by the trade of some commodities as soy and iron to China -, can affects this national behaviour. From a country where the only possibility to have a good life was to emigrate,  we can became the new land for Spanish, Portuguese, or other Latin-american people who want to have another opportunity to live and work. In São Paulo, there are Bolivian markets. In Rio, you can find Equatorians or Peruvians selling Andean products on the sidewalks of downtown. We are, so, at a crossroad. How Brazilians will treat this people, who are not just coming as tourists, but trying to compete for jobs and all this way of life? Are we going to follow the US tradition and avoid the immigrants, or to allow people their "human right to migrate", as I have recently read from the National Justice secretary? Will we still be cool or show a new façade of xenophobia? That's a question that will be answered only in the future.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

O que é romance?


"Ontem saí com um cara. Falei que não iria comentar a minha vida pessoal, mas ela ilustra bem um outro episódio, uma outra promessa, um outro assunto que me afeta pessoalmente. Conheci o rapaz – sem nomes, ok? – num show e ontem seria a segunda vez que nos encontraríamos. Ele é fisioterapeuta. Nada contra fisioterapeutas, mas ele é completamente diferente de mim. Me perguntou o que eu fazia. Disse que era tradutora. Depois, tomei fôlego e pratiquei a minha proposta de levar esse trabalho, isso aqui, essas minhas escritas, a sério, mesmo que não me leve a nada – o fato de escrever, mas escrever o melhor que eu puder, é o que eu quero. Disse a ele que estava escrevendo um livro. Primeiro ele me olhou com um ar de surpresa como se dissesse: você? Nunca imaginei. Mantive-me quieta, porque não tinha nada a acrescentar, mesmo que tenha ficado com uma vontade de tentar me justificar, ou mesmo me defender, ou explicar que eu poderia, sim, escrever um livro, que escritores não são seres que vivem em outro planeta, que eles podem ir a shows e sair com fisioterapeutas.  Depois ele foi simpático, como os homens, quando minimamente maduros e malandros, são, no início de qualquer relacionamento: “Poxa, que legal.” Novo silêncio. Ele procurava as palavras para continuar a conversa, eu ficava quieta, porque não tinha, ainda, o que falar. Ia responder: “Sim, é legal”? Não, não é muito a minha cara. Porque não gosto – como diz uma amiga minha atriz – de jogar texto fora. “Sobre o que é?” ele engatou uma pergunta. Agora, sim, poderia respondê-lo. Porém, apesar de saber exatamente sobre o que é, fiquei na dúvida. Acho que essa é a pior pergunta a se fazer a um escritor, a alguém que está escrevendo. Tentar resumir a história em poucas linhas, em poucas frases, uma história que está em mais de cem páginas, que já ganhou tantas histórias dentro dela, que pode ser vista de diversas maneiras. Resumi-la é apenas dispensar uma parte significativa do seu trabalho, e isso não é fácil. Não é agradável, e se você puder evitar – e por que não poderia? –, você vai. Você vai querer contar tudo e aí não vai passar a informação de maneira clara, porque, se é para contar tudo, a pessoa deveria ler o próprio livro, que não merece ser recontado, oralmente, pelo próprio escritor, sem qualquer recurso literário. Percebendo o meu silêncio, ou simplesmente querendo falar um pouco mais, ou ainda tentando me ajudar, ele fez uma nova pergunta: “É um romance?”.

Lembrei da história de um amigo que lançou seu primeiro livro, uma coletânea de contos, e a sua mãe perguntou: “Mas é um romance?”, e ele respondia: “São contos, mãe”, e ela perguntava novamente: “Mas é um romance?” – e eles ficavam assim, sem que houvesse uma maneira de interromper esse jogo cíclico. Até cogitei a possibilidade de contar esse episódio a ele, mas achei melhor passar.

Isso aqui é um romance? O que é um romance?, me veio à cabeça. Acho que não há uma definição única para o que é romance. Pensei em Goethe e o seu “Wilhelm Meister”. Pensei no Córtazar e o seu “Jogo de amarelinhas”. Pensei em Joyce e o seu “Ulisses”. Não. O meu livro não era mesmo um romance, qualquer a definição que eu possa imaginar. “Não, não é romance”, respondi a ele. Então, ele, rapidamente, me perguntou novamente – agora parecia interessado, como se tivesse ficado intrigado com a possibilidade de existir outra coisa que não romance no ramo dos livros, ou ainda como se pensasse que eu poderia estar escrevendo a minha vida, como se tivesse interessado em meus segredos sexuais mais escondidos que eu só iria revelar por meio do livro: “Ah, então é realidade...” E aí eu percebi o meu erro: quando ele me perguntou se era romance, ele queria perguntar se era “ficção”, o que as pessoas chamam de ficção, normalmente, uma história “inventada”. Eu deveria ter respondido que era um romance e encerraria a questão. Agora, não dava para voltar. Como eu iria afirmar que eu tinha me confundido e que o meu livro era, sim, romance? Ou como iria dizer para ele que de acordo com o que eu considero como romance o meu livro estava longe de ser encaixado nessa categoria. Pensei numa alternativa: “Não, também não é ‘realidade’, é uma ficção”, tentei explicar, simplistamente. “Então é um romance”, voltou ele, me lembrando novamente a mãe do meu amigo, e me brochando. Como eu iria explicar a ele que, de certa forma, eu estava fazendo uma regalia, abrindo uma exceção nas minhas crenças por ele. Que eu nem acredito na possibilidade do real, que, para mim, vivemos em constantes ficções criadas por nós mesmos ou por outras pessoas, que podemos habitar essas ficções e depois sairmos, que o que chamam de realidade é apenas uma forma de ficção, e que eu chamo de ficção pode ser entendido como uma interpretação, ou como interpretações do que as pessoas em geral chamam de realidade. Eu não queria prolongar a conversa, não queria confundi-lo, não queria nem ter iniciado essa conversa, mas não dava para eu ficar nesse jogo com ele, como o meu amigo fica com a mãe. O meu amigo tem que aguentar a mãe, eu não precisava aguentar nem esse meu companheiro nem ninguém. “Bem, é complicado...”, tentei responder, mas fui salva pela chegada a nosso destino."

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Internet livre x fechada


Sul fronte opposto stanno sistemi come quelli adottati da Apple e Facebook?
"C'è una battaglia, o meglio, una tensione costruttiva, fra l'esigenza di fare soldi e quella di innovare. Un'azienda può avere la necessità di controllare l'intero sistema per fornire buone prestazioni e acquisire clienti e quindi pagare bene i propri programmatori. Ma se finisce con l'essere troppo dominante e chiusa limitando la libertà della gente, perderà mercato. Un giardino meraviglioso ma chiuso non può competere con la bellezza di una folle e indomita giungla".
[entrevista inteira aqui, tradução aqui.]

Tem um pouco de exercício de fé, de esperança, essa resposta do Tim Berners-Lee sobre as atitudes de empresas que fecham os caminhos da www que, para quem não sabe, foi Berners-Lee quem criou. Não é muito o que estamos vendo hoje em dia. Mas professo o mesmo credo que ele, apenas com mais ceticismo e menos otimismo.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Romantismo

"Ah o amor. L’amour, l’amore, el amor, love, liebe, αγάπη, حب, maitasuna, каханне, любовь, عشق, 熱愛, tình yêu, אהבה, aşk, ást.  Várias palavras em várias línguas para designar sentimentos parecidos que nem sempre são iguais – mas são traduzidos com o mesmo símbolo: “amor”. Já disseram que não há sinônimos perfeitos. Quem seria euzinha, portanto, para dizer que haveria palavras com correspondentes exatamente iguais em diferentes línguas e culturas? fora.

No Ocidente, no que chamamos de Ocidente – essa área estranha que não respeita necessariamente a geografia, que tem a ver mais com política que com localização –, dizia, no Ocidente, há uma valorização desse sentimento, do amor, que eu não entendo a razão. Ou melhor, entendo, mas não compreendo. Ou melhor, compreendo, mas não gosto do que vejo. E isso ocorre desde o século XIX, suspeito. Por ocasião – levanto essa hipótese – da decadência da igreja como a reguladora do mundo. Um ícone substituiu o outro. Você sabe, as pessoas precisam saber claramente o que devem fazer na vida, para que servem, precisam receber suas obrigações e maneira precisa, de preferência em um livro, para poder retornar, caso tenham dúvidas, precisam se prender a alguma ideal – ideologia? – se não se sentem perdidas, desesperadas, cabisbaixas. Essas coisas. Hoje, quando os horizontes estão cada vez mais esmaecidos, vemos o resultado de uma grande desilusão generalizada. Dizem – não tenho como afirmar se é verdade – que essa desilusão é a causa de doenças como a depressão. Pode ser.

A verdade é que a literatura tem uma grande parcela de responsabilidade nisso, nesse comportamento generalizado, nesse meio de viver, de encarar o mundo de maneira “romântica”. Há um grande culpado, que estava na hora errada no lugar errado, contando as histórias mais açucaradas e sentimentais possíveis: A literatura do século XIX – não por acaso “romântica”. Nessa literatura, vale a pena morrer pela mulher amada. Nessa literatura, a moça espera virgem o homem voltar da guerra. Nessa literatura, o fim é o momento em que eles viveram felizes para sempre [sempre imaginei que isso era uma grande sacada da edição: ao interromper no auge da felicidade, não vemos as oscilações de um relacionamento normal]. É claro que eles também pregavam a luta por uma causa nobre, o engajamento nas guerras justas, a defesa dos mais necessitados. Mas o que mais marcou foi a relação homem-mulher, e o viveram felizes para a sempre. O conto-de-fadas. Vide as novelas que até hoje terminam com cerimônias de casamento.

Antes, era pior, mas as pessoas ainda não liam. Só com o romantismo, que veio apenas com o fim do Antigo Regime, portanto após a Revolução Francesa, que se proporcionou a possibilidade de qualquer um [quase qualquer um] ter acesso à leitura, à escola, ao conhecimento, só aí que o problema se democratizou. A praga se alastrou em toda a sociedade.

Hoje, isso me dá enjoo. E me surpreende que não dê enjoo em todas as pessoas, após anos repetindo a mesma ladainha. O “amor” se tornou a resposta para todas as perguntas. Por que devemos trabalhar? Para ter dinheiro para podermos encontrar a mulher perfeita. Por que devemos estudar? Para poder arranjar uma emprego bom, que nos dê dinheiro para podemos encontrar a mulher perfeita. E, para as mulheres, o papel era ainda mais passivo e simplista. Por que devemos existir? Ora, para casar. E se não casar? “The horror, the horror.” O amor, na vida real, apesar do discurso, se resumia ao ato de se casar. E continua sendo assim para muita gente. A busca pela pessoa amada, pelo par perfeito, pelo companheiro idealizado. Do príncipe encantado. Vocês sabem o que eu estou dizendo.

Tenho um certo pudor em escrever cenas sobre isso. Uma vergonha, mesmo. Como abordar um assunto que já foi massacrado, de todas as maneiras, ao longo de séculos? Como entrar nesse terreno rosa-bebê- vestido-de-noiva, sem cair numa cena kitsch? Como não ser brega? Tenho uma certa inveja do que o Saramago fez em “Memorial do convento”, juntando Blimunda – aliás, ótimo personagem – e Baltasar em poucas linhas, sem qualquer sentimentalismo excessivo.

Evitei,  consegui evitar até agora o assunto. É só reparar no que foi escrito. Nenhuma cena de... [calma, calma, respira, respira] amor. Até a própria palavra “amor” perdeu o seu significado, não concordam? Se antes era algo imponente, profundo, agora é batido, simples, comum, banal. Parece um chiclete que, de tanto mastigado, foi ficando sem gosto, sem gosto, sem gosto, até que hoje não é mais que uma borracha colorida, que algumas pessoas insistem em mastigar por um simples cacoete, por um hábito que não conseguem largar.

Evitei até me ver numa situação... Como não falar sobre as primeiras paixões de um garoto de 15, 16 anos? Como não mostrar como esse menino dá importância para as descobertas amorosas?
[Acaba de me ocorrer que há um problema de amarudescimento entre as pessoas que ainda se mantém românticas, hoje em dia. Elas continuam adolescentes no âmbito dos relacionamentos sexuais.]

E, antes que falem qualquer coisa: não, não sou uma encalhada mal amada. Apenas acho que esse assunto ocupa um espaço superdimensionado na sociedade. Vejo como ele tem diminuído nos últimos tempos – principalmente no quesito que separa o amor do sexo [ainda bem!], mas ainda continua com um tamanho fora de suas proporções.

Se eu pudesse escolher, simplesmente não abordaria esse assunto. “Seria uma covardia” – a minha consciência repete no meu ouvido. “Os problemas – as dificuldades – devem ser encarados de frente”, ela diz. “Estufe o peito e empine a bunda e siga adiante.”

Ah, consciência...  Me deixa porque esse negócio de coragem é coisa de gente romântica."

Contra o porte de armas

Como se sabe, a polícia inglesa não usa armas - só em situações muito, muito raras. Há até uma reclamação da falta de energia no combate à criminalidade em episódios como os riots, em que os policiais só foram autorizados a usar balas de borracha depois de dias de confusões, o que foi tido como pouco efetivo.

Essa semana, os jornais começaram a falar sobre o pedido do chefe da polícia para que todos os agentes metropolitanos usem uma arma que dispara dardos que dão choque. A razão para tal seria o fato de alguns policiais terem se ferido gravemente na tentativa de parar um suspeito armado com uma faca de açougueiro. Outros meios de comunicação, por outro lado, disseram que tal proposta recebeu críticas de ONGs, como a Anistia internacional.

Mesmo sabendo dessa tradição de não ter armas, esse cenário é curioso para quem veio de um país onde todos soldados PMs podem ter qualquer arma - e geralmente usam dessa prerrogativa para ter logo rifles de guerra, para "combater", nas palavras mais comuns, os "soldados do tráfico". Realidades diferentes, me dirão. Eu, que ignoro a realidade, prefiro falar, agora, sobre os frios números, que provam o que nós quisermos provar. Vou provar, então, que menos armas querem dizer menos homicídios.

Não pode ser coincidência que a Inglaterra tenha uma das menores taxas de homicídio por arma de fogo no mundo. Em 2000, ficava em 0,12 para cada 100.000 pessoas. Para efeito de comparação, o Canadá tem 0,54, a Finlândia tem 0,43, a Dinamarca, 0,26. Do outro lado da tabela, a Colômbia fica com 51.77. O nosso Brasil brasileiro fica com 18,2, nesse mesmo período - até 2008, a conta não tinha mudado muito. Se juntarmos outras formas de homicídio, a taxa inglesa sobe para 1,45, ainda abaixo do Canadá, por exemplo [1,58].

No mesmo ano de 2000, o Brasil apresentava taxa de 26,7 [a atual é um pouco menor: 25,6]. Se dividirmos por estados, e pegarmos o Rio como exemplo - porque está mais à mão - ficaremos impressionados que, em 2000, a taxa de homicídios só por armas de fogo era de 42,6. Nos últimos anos, tem melhorado e o número de 2008 foi 23,9 - mas, ainda assim, altíssimo. De todos os homicídios em 2008, 81,4% eram cometidos por armas de fogo - o segundo maior número do Brasil. Voltando ao exemplo inglês, essa taxa fica em 8%.

Nos últimos anos, em números absolutos, as taxas de homicídio no Brasil só tiveram queda em 2004. Caíram de novo em 2005 e depois voltaram a crescer em 2006, caíram novamente em 2007 e subiram em 2008.

Vou me permitir interpretar esses números, do meu jeito. Vou afirmar que a queda de 2004 foi exatamente no ano seguinte ao da promulgação da nova lei do desarmamento. E que a subida de 2006 foi logo após o plebiscito que propunha acabar com a venda de armas do Brasil, mas que foi encampada por setores da imprensa como uma forma de interferir nas liberdades pessoais.

Lembro da minha mãe falando que a polícia inglesa era a melhor do mundo e não precisava usar armas para isso. Usava a inteligência. Mesmo que o mundo não seja tão mais inocente desse jeito - e casos como o de Jean Charles nos dão provas disso - continuo achando que um mundo sem armas seria melhor.

Tive três parentes de primeiro grau que foram mortos por armas de fogo - todos pobres, todos moradores da periferia, mesmo que uma periferia no meio dos centros mais ricos. Dois deles [um tio, irmão da minha mãe, e um primo, filho de uma irmã de minha mãe] não eram próximos, eu pouco tinha contato. O terceiro [também um primo, também filho de outra irmã da minha mãe] era bem próximo, talvez o meu primo mais próximo. Poderia estar usando esses casos para fazer proselitismo. Mas não é o caso. Estou usando apenas a matemática.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Comida e literatura


"Às vezes penso que cozinhar e escrever são bastante parecidos. Assim como há sujeito, verbo e objeto, eu divido os elementos da cozinha em três categorias: o principal, o acompanhamento e a ligação. Às vezes, você nem precisa utilizar um desses elementos, mas ele está ali, implícito. O principal – o sujeito –, normalmente, é uma carne – em suas mais variadas formas e nomes, inclusive, as que não são de origem animal, como a soja, ou alguns tipos de cogumelos.

Como o sujeito da frase, o principal é quem guia o caminho. O restante do prato – da oração – deve acompanhar sua toada. Não adianta ter uma carne gordurosa e um acompanhamento idem – um dos dois vai sair perdendo e não teremos a experiência inteira. Assim como um bom personagem deve mostrar um pouco de sua vida, e em outros momentos, apenas se apagar para que a ação continue. Outras vezes, o principal é mais delicado e é o acompanhamento – uma bela salada, ou um gratinado com um queijo grande – quem chama mais atenção. Rara, e, na minha opinião, infelizmente, porém, a ligação é quem chama a atenção da maioria.

A ligação, o verbo, a síntese de qualquer prato, de qualquer sentença, é onde mora o núcleo, a parte mais importante da refeição ou de uma frase, para mim. Se eu estudasse para ser uma cozinheira de verdade, uma chef, optaria por ser uma saucer, uma especialista em molhos, que controla os humores de todos os ingredientes, que conecta os dois lados da oração. Pode ser humilde e desaparecer no meio de carnes suculentas, ou pode ser o rei da operação e incrementar o mais sem graça dos macarrões, por exemplo.

Aliás, massa é um bom exemplo. Gosto mais das longas – mas aprecio um penne e um fusilli também. As longas, eu divido em duas categorias bem próprias [e, admito, um pouco escatológicas]: nematelmintos [como o espaguete, o meu preferido] e platelmintos [o ninho, por exemplo]. São, para mim, um acompanhamento que não tem principal. Os italianos, por conta disso, acredito, a colocam no “primo piatto”, mas eu não vejo como um problema me alimentar só de massa, sem um “principal”, um “secondo” vindo em seguida. E, assim, as massas dependem basicamente do molho para fazer o par. Digamos o ragu, que, no Brasil se costuma chamar genericamente de bolonhesa: o molho, a ligação, faz as vezes de principal, nesse caso.

Os verbos também mostram sua importância ao descobrirmos suas subdivisões. São de ligação ou de acordo com a sua transitividade: intransitivo, ou transitivo direto ou ainda indireto. Eles ordenam o restante da senteça. Se será objeto direto, indireto, ou se terá apenas um advérbio, ou nada, são auto-suficientes.
 “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”, já diria João, o Evangelhista, o que está sentado à direita de Jesus na “Última ceia” de Da Vinci, o mais novo dos apóstolos, logo no início do seu evangelho. Treze versículos à frente, ele acrescenta: “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade.” Claro que está falando de Cristo. Verbo é a figura de linguagem para a mensagem, é metonímia para a história, para toda a tradição contada, falada, e também escrita. O verbo, indispensável. A ligação da literatura."

terça-feira, 22 de novembro de 2011

A grande farsa do aquecimento global




Fé tipo exportação

Não tenho nenhuma conclusão sobre o assunto, nem mesmo uma teoria. Todavia, não deve ser apenas coincidência que eu já tenha encontrado uma Igreja da Nova Vida [em Kensal Rise], uma Assembleia de Deus [perto de Paddington] e uma Igreja Universal do Reino de Deus [em Kilburn] aqui. O sistema de franquias da religião está expandindo para a velha Albion.

Uma curiosidade: todas essas igrejas ficam em áreas menos abastadas.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

História budista


O livro era sobre formas de se chegar a iluminação. Vários contos, pequenas histórias, passadas no mesmo cenário: O Japão zen budista, num tempo imemorial, que alimenta nossa imaginação com imagens de lagos plácidos, cerejeiras em flor, montanhas com neve eterna. Nenhum conto lhe chamou a atenção. Nenhum, com a exceção do último.

A monja Kaeda era a mais aplicada do monastério de Koya. Queria mais que todos os outros discípulos atingir a iluminação, queria despertar, atingir a completa e perfeita sanidade, fugir do círculo do Samsara, acabar com o seu karma. E para isso, ela estudava incessantemente, meditava, praticava todos os exercícios que conhecia, lia sobre outras iluminações.

No meio de suas leituras, Kaeda descobriu que o monge Oshoguzo havia despertado por meio de um jejum de três dias, em que ficou apenas meditando dentro de uma cabana no meio da floresta, no inverno. Pois ela esperou a primeira neve do ano cair para ir para uma pequena casa de madeira, que ficava a meio dia de caminhada do monastério, sem levar nada além da roupa do corpo. No início, ela sentia frio, mas conseguiu, por meio de exercícios, controlar seu corpo. Depois foi a vez da fome: no primeiro dia, não percebeu nada de anormal, mas, a partir do segundo, começou a escutar seu estômago roncando a cada minuto. Concentrou-se e controlou sua necessidade de comer. Depois, à noite, ouviu lobos do lado de fora da cabana e sentiu medo. Fez outros exercícios até acalmar o corpo e esperar que os lobos fossem embora. Ao fim de três dias, estava exausta, e desmaiou. Acordou de volta no monastério e descobriu que o monge Yamada  percebeu sua ausência e desconfiou que ela poderia estar em perigo. Foi em busca dela e a levou de volta para o monastério. A monja ficou doente e demorou semanas até se restabelecer.

Depois de voltar a ter saúde, ela pediu uma audiência com o mestre Murakami, que, sabendo da ansiedade da menina, disse a ela, sem muita explicação, que não poderia atendê-la. Kaeda não sabia o que fazer. Insistiu na semana seguinte, e na outra, até que resolveu não mais voltar para o seu alojamento e ficar na escada de acesso ao dormitório de Murakami. Um dia, enquanto ela dormia apoiada na lateral, Murakami abriu sua porta. Ela acordou na hora e se virou para a casa. Levantou-se com receio e foi em direção, pé ante pé, para dentro da sala. Murakami estava ajoelhado, de costas para a entrada, olhando um riacho que passava por fora de seu dormitório.

“Você quer chegar a iluminação, eu imagino” – ele falou.

“Sim, mestre, o que eu devo fazer?” – ela pergunta.

“Você deve querer isso mais que qualquer coisa.”

“Mas eu quero mais que qualquer coisa.”

“Então, você não deve fazer nada.”

“Como assim?”

“Vamos dar um passeio.”

Os dois saíram do dormitório e começaram a andar pelo pequeno monastério, que estava cheio de neve nessa época do ano.

“Onde estão os animais da floresta?” – ele pergunta.

“Estão na floresta” – ela responde.

“E por que eles não estão aqui conosco?”

“Porque eles vivem na floresta”, ela responde rapidamente, mas fica em dúvida sobre se era o certo e tenta outra resposta, “Porque é inverno”, ainda em dúvida sobre a resposta correta, tenta uma terceira, “Porque eles têm medo da gente.”

O mestre não esboçou qualquer reação ante a nenhuma das respostas de Kaeda. Continuou caminhando vagarosamente, sob o pesado manto que usava para se esquentar.

“Mestre, como é a iluminação?”, Kaeda se atreveu a perguntar, após alguns instantes de silêncio.

“É o nada” – Murakami respondeu, pouco antes de chegar a um poço, onde os monges buscavam água.

“Você só vai chegar à iluminação”, disse ele, “quando quiser mais que respirar.”

A partir de então, a monja foi ainda mais aplicada aos estudos. Queria provar que queria mais que qualquer coisa, mesmo que respirar, alcançar a iluminação. Soube, nesse período, que o monge Aoki, um dos mais desleixados na sua opinião – não meditava todos os dias por seis horas, nem estudava os ensinamentos sagrados como ela fazia –, havia alcançado a iluminação e ficou intrigada. Ela queria mais que ele queria alcançar a iluminação. Tinha certeza disso e não havia nada que a fizesse duvidar dessa certeza. Começou a ficar em dúvida sobre se ela seria capaz de alcançar a iluminação. Então, pensou que se até Aoki havia alcançado a iluminação, ela também alcançaria. Nem que parasse de respirar.

Fez exercícios para parar de inspirar e expirar. Ficou até 15 minutos em completa apneia, diminuindo o seu metabolismo a quase zero, com o coração parando de bater. Até que um dia, novamente, viu o mundo escurecer. Acordou sobressaltada sob os cuidados do monge Aoki, que aparentava uma nova pessoa para ela.

“Como é a iluminação?”, ela lhe perguntou.

“É tudo”, ele respondeu.

Kaeda ficou confusa, estava inquieta. Deitava no seu aposento e não conseguia parar de pensar na iluminação. Como seria? Tudo ou nada? Como ela poderia alcançá-la? Como ela sairia desse ciclo de vida e morte, o que ela deveria fazer para pagar o seu karma. O seu pensamento só se concentrava nesse objetivo. Virara uma obsessão. Não falava com mais ninguém, só fazia as suas obrigações e voltava para o seu dormitório para estudar. Enquanto fazia suas tarefas domésticas também não conseguia parar de pensar sobre o assunto. Como deveria ser a iluminação?, se perguntava enquanto carregava um jarro para buscar água no poço. O que mudava na sua vida? Ela andava com o jarro de cerâmica, pesado, antigo, e se imaginava atingindo a iluminação. Chegou ao poço e, em vez de encher o vaso, decidiu mergulhar o rosto na água gelada. Eu quero mais a iluminação que respirar, pensou, ecoando mentalmente as palavras de Murakami. Afundou o rosto e logo abriu os olhos debaixo da água. Era escuro, não havia nada lá embaixo, além de água. Ela não enxergava nada e sentiu o seu pulmão reclamando a falta de oxigênio. Eu quero mais a iluminação que respirar, repetiu o pensamento anterior, eu quero mais a iluminação que respirar. As primeiras bolhas de ar começavam a sair de seu nariz e ela não sabia como pará-las, eu quero mais a iluminação que respirar, começou a sentir escurecer e ela percebeu que iria, novamente, desmaiar, eu quero mais a iluminação que respirar, repetia, enquanto ia perdendo a consciência, até que num ato completamente involuntário o seu corpo se ergueu velozmente e ela saiu da água dando uma grande e desesperada inspirada.

Sem forças, ela se senta, com as costas coladas ao poço de pedras, ainda ofegante. Está completamente molhada, ainda mais confusa, se sentindo derrotada, pensando que jamais alcançaria a iluminação. Os seus olhos se enchem de lágrimas, mas ela engole o choro que chegara à sua garganta. Lentava-se, se recompõe, e enche o jarro no poço. Vira-se e começa a caminhar levando o jarro para dentro do monastério. No caminho, troca o vaso de lado, para compensar o peso. Em uma dessas trocas, tropeça numa pedra que havia no chão e o vaso é arremeçado ao chão, se quebrando por completo. Nesse momento, Kaeda encontra a iluminação.

domingo, 20 de novembro de 2011

Leste europeu

Ontem, fomos ao "London Jazz festival", para ver uma banda que não tem nada de jazz: Emir Kusturica [descobri que se pronuncia "kusturitza"] & No Smoking Orchestra. Resumindo em uma linha: é tudo o que o Gogol Bordello queria ser, mas nunca teve suavidade para tal. Não quer dizer que eles sejam "suaves" no palco - não, usam do esquema balcãs + ciganos + punk + danças estilizadas + recursos pirotécnicos + um vocalista elétrico + interação com o público + músicas incidentais. Porém, usam de mais delicadeza, de mais inteligência, para tratar desses... temas, desses assuntos. Talvez porque contam com o moço que dá nome para metade da banda, o tal Emir Kusturica, que, para quem não sabe, é duas vezes ganhador da palma de ouro de Cannes [só vi dele "Underground", que é de uma loucura muito saudável].

De qualquer forma, como dizem aqui, não é o meu "cup of tea". Não me empolga. É um show animado, em que as pessoas sobem ao palco, que o violinista toca seu instrumento usando a boca, que o guitarrista faz um truque com a guitarra... mas, ao fim, pensamos mais nesses recursos que na música em si. O bielorusso que estava conosco ficou revoltado porque, em tom de galhofa, esses sérvios, ex-iugoslavos, que sacaneavam o marechal Tito em Belgrado, tocaram o hino da União Soviética. A russa nem reparou, assim como o búlgaro - que fazia aniversário de 23 anos - e a romena, que tem 22. Imagino que eram muito novos para saber o que foi viver sob a cortina.

Todo o ingresso, contudo, já tinha valido a pena na banda de abertura. Com o péssimo nome de Gabby Young and other Animals [Gabby é a vocalista, uma branquela, com cabelos ruivos de comercial de tintura, que domina completamente o palco, desde o primeiro instante], eles também misturam a tradição do leste europeu, mas muito mais vezes passada pelo filtro de ingleses que vivem numa Londres multicultural, sim, mas que tem uma fortíssima tradição na música pop. É simplesmente incrível. O mesmo bielorusso disse que foi a melhor banda de abertura que ele já tinha visto na vida. As pessoas, no intervalo, ficavam cantando o refrão da última música ["Whose house", incrível]. Melhor que ler sobre, é ouvir.



ps. semana que vem temos uma festa "gipsy". Já sei como importunar o DJ.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Roda

"É isso, então. A partir de agora, esse é o meu trabalho, é o meu foco, é onde eu mais vou depositar forças. Esses livros, esse esforço, isso. Essas setenta e poucas páginas que eu vinha rascunhando até agora despreocupadamente, sem qualquer pretensão além de passar o tempo, de criar algo que não fosse melancólico. Isso. É onde eu passarei mais tempo. Onde eu vou pensar quando estiver em outros lugares, o que eu vou acordar para fazer.  Vou me esforçar para fazer os melhores livros que eu puder. E vou me considerar uma escritora – não sei se boa, ou ruim, isso depende de como vou ser avaliada. Se as pessoas todas podem escrever, todas poderiam ser escritoras, assim como todo mundo que sabe matemática poderia entrar numa faculdade e ser engenheiro. Claro que estou generalizando, aproximando situações aparentemente distantes demais. Escritor não precisa passar por qualquer faculdade, estudar qualquer coisa, para ser. Apenas precisa escrever. E por que as demais pessoas não escrevem? Porque não querem. Porque ninguém produz conteúdo. Hoje, só se compartilha, se passa. Ninguém absorve, apenas é uma corrente, um impulso para que a roda que não pode parar continue a girar. A roda que esmaga quem não corre mais rápido que ela. A roda que vem atrás perseguindo. E quanto mais rápido se corre, mais rápido ela gira, e mais rápido ela se aproxima e aí você tem que correr mais rápido. É cada vez mais assim. Eu quero sair da roda, quero ficar ao lado, deixá-la passar. E se perdê-la de vista, dar de ombros. Não me importo com ela. Ela é o cão correndo atrás do rabo: nunca se chegará a nada. É a certeza de que, sem ela, a vida fica sem sentido para o mundo, perigosamente sem sentido. Corre-se porque não há outra alternativa, porque “sim”, porque não sabe o que seria se parasse, porque tem-se medo, porque a causa vira consequência, porque se parar, é amassado, fica para trás. Porque se parar, perde-se o emprego, fica-se isolada, perdida. São os fantasmas que rondam a roda. Eu quero sair, sentir o meu pulso, conhecer a minha velocidade, sem ter nada imposto de fora para dentro. Quero aproveitar a minha vida do meu jeito, sem nada nem ninguém dizendo o que eu devo estudar ou ler, ou no que devo trabalhar."

sábado, 12 de novembro de 2011

A última ceia, de Leonardo

Na exposição da National Gallery sobre o Da Vinci, a maior exibição da história sobre o renascentista, há uma ausência clara. Não é a "Mona Lisa", que não foi produzida no período em foco - quando Leonardo vai para  Milão, sob o comando de Sforza. Mas a "Última ceia". Por motivos óbvios, não foi possível transladar uma das paredes do convento onde o artista pintou diretamente sua obra. De qualquer forma, há duas maneiras, entre diversas, de ter contato com "Il cenacolo", como os italianos a chamam [italiano, para demonstrar uma espécie de posse pela tradição, de familiaridade com as produções de seus conterrâneos, tende a chamar certas obras por outros nomes que não os mundialmente conhecidos, como é o caso de "La Gioconda"].

Além de diversos desenhos de estudos para se chegar às expressões diferentes de cada um dos apóstolos e de Jesus, há uma cópia do original, impressa na parede de entrada que [se a original já está bastante degradada] está bastante esmaecida. E uma cópia produzida por um dos seus discípulos, feita logo depois da obra começar a se deteriorar. Nessa segunda versão, de Giampetrino, porém, falta toda a graça natural que emana da obra de Da Vinci. Os personagens são quase grosseiros, os movimentos são bruscos, tudo parece talhado em madeira.


De qualquer forma, é muitíssimo impressionante comparar - e imaginar - as reações de cada um dos apóstolos ao escutar que um deles iria trair o salvador. Em Mateus 14:18-20, há a famosa passagem:
"E, quando estavam assentados a comer, disse Jesus: Em verdade vos digo que um de vós, que comigo come, há de trair-me. E eles começaram a entristecer-se e a dizer-lhe um após outro: Sou eu? E outro disse: Sou eu? Mas ele, respondendo, disse-lhes: É um dos doze, que põe comigo a mão no prato." 
Gosto dessa porque há a indicação de que os apóstolos ficaram tão assustados que começaram a se perguntar - e a perguntar a Jesus quem seria o traidor. E é possível ver essa reação em alguns personagens, principalmente em André - o terceiro, da esquerda para a direita, ou Filipe, o quarto, da direita para a esquerda.

Aliás, fiz uma ligeira pesquisa para saber se as reações refletiriam o comportamento, a psiquê dos apóstolos e descobri que a Bíblia não traz muitas informações sobre a maioria - coincidentemente, ou não, os que estão mais nos cantos da tela. O que se sabe, baseia-se em lendas, ou em informações posteriores. Pela fonte que eu consultei, também há uma informação de que há poucas referências ao número de "12" apóstolos - mas há textualmente o nome de cada um deles, em certas passagens bíblicas. Isso me levou a imaginar que "12" poderia ser um número para "nem muito nem pouco", assim como, no inglês, existe o "couple", que pode ser um "par", mas também "um pouco". De qualquer forma, temos sempre que lembrar que a Bíblia não foi escrita nos anos seguintes à morte de Jesus - se esse personagem existiu, mesmo - e pode-se ter sido usada a informação que se queria.

O que podemos nos assegurar é que havia um livro, um livro famoso, muito lido, onde Da Vinci poderia se basear e nesse livro não havia muitas informações sobre os personagens secundários. O artista teve que imaginar como seriam aqueles homens de biografia obscura, de personalidade desconhecida. Olhando para a cópia sem-graça de Giampetrino, fiz um outro exercício: imaginar o que cada um estava pensando. A ordem será da esquerda para a direita, da posição da cabeça, não do corpo na mesa.

O primeiro é Bartolomeu. Soube que seu nome pode ser apenas uma corruptela de Bar + Ptolomeu, sendo "bar" a expressão usada por hebreus para designar o "filho de", e "Ptolomeu", portanto, o nome de seu pai. Não é de se estranhar que ele tenha um pai com nome grego no meio da Judeia - as cidades da Grécia ainda tinham bastante influencia sobre a região, e era comum adotar um nome grego - imagino é parecido com a atual influência americana no Brasil, e a francesa, no início do século xx. Bartolomeu se levanta, revoltado, perguntando "o quê?", como isso poderia ter acontecido, querendo tomar satisfação.

Tiago, o pequeno, um dos mais obscuros, está boquiaberto. Aparentando ser bem novo [não era o mais novo, este era João, do lado direito de Jesus] parece querer chamar Pedro, o mais velho, como se pedisse conforto de uma voz mais experiente, que lhe disse que tudo não era verdade, como um filho que busca o pai quando tem um pesadelo.

Em seguida, André, irmão de Pedro - que está ao seu lado. Levanta as mãos, como em sinal de defesa, como se quisesse afirmar que não tinha sido ele, mas vira o rosto em contradição: "agora chega, acabou". Os dois tinham uma empresa de pesca, em que alugavam barcos, e trabalhavam com João e Thiago, o maior, também pescadores.

Depois, Judas. O único que não está de frente para o espectador. Sua expressão é vista de soslaio. Dizem - mas não é possível ver nas cópias - que sua musculatura está tesa, demonstrando tensão. No pouco rosto que podemos ver, está nervoso, como se tivesse sido descoberto, mas também surpreso. Na cópia de Giampetrino, segura um saco de sal - supõe-se -, como se fosse a única coisa sólida a se apoiar, ou como referência ao dinheiro que receberia para delatar Jesus.

Pedro, cujo nome original é Simão, mas que Jesus lhe rebatizou, para fazer um trocadilho, ao afirmar que sobre Pedro [petrus é pedra, rocha, tanto em latim como em grego] ele iria erguer sua igreja, parece puxar João para perto dele, como se lhe quisesse lhe dar um sermão. Ou Pedro usa o ombro de João para tentar chegar perto de Jesus e o proteger. É considerado o mais temperamental, mais enérgico. Pedro, João e Thiago, o maior, são visto como os apóstolos mais queridos de Jesus. Os que, quando Jesus queria se dirigir a poucas pessoas, eram escolhidos. Pedro vai ser o fundador da Igreja Católica, mesmo sem ter conseguido fugir da profecia de que iria renegar Jesus três vezes antes do galo cantar duas; João, apóstolo evangelista, como Mateus, e Thiago terá a lenda de Compostela para ornar sua biografia futura.

João, por sua vez, parece escutar placidamente o que Pedro tem a lhe dizer. Ou parece desfalecer - é o mais novo, estaria menos preparado para as artimanhas dos seres humanos. Ou parece meditar sobre a informação que acabam de lhe passar, como as mãos cruzadas à sua frente sugerem.

Tomé - ou Tomás - é o que só acreditava vendo, que, depois, só reconheceu Jesus quando tocou em suas chagas. Ao contrário de sua versão materialista, ele aponta o céu, como se dissesse que Deus não permitiria tal coisa, ou como se estivesse esbravejando contra esse traidor, que ainda nem tinha traído.

Thiago, o grande, é, para mim, a melhor figura: braços abertos, expansivo, enérgico, sanguíneo. Quer resolver o problema dele naquela hora. Quer que Jesus lhe diga quem é o traidor que ele vai ter uma conversinha com ele. Aparentemente, há uma passagem que ele já tinha se comportado com essa energia, na Bíblia - o que é curioso é saber que o seu irmão, que na pintura quase desfalece, teria também tomado essa atitude mais drástica no episódio pregresso relatado.

Filipe é outro que pergunta se será ele a trair Jesus, numa atitude até bastante defensiva, para não dizer covarde, como se se oferecesse para o martírio em seu lugar, como se já estivesse com vergonha da própria atitude, mesmo que não soubesse com certeza.

Mateus, o outro evangelista, que era um agiota, pergunta para Simão [o último] "como é possível que isso esteja acontecendo?" Tadeu também faz a mesma pergunta, mas, insinua alguma resposta, reflete sobre o que ouviu e Simão está completamente perdido.

E assim os apóstolos foram imortalizados.

Se a versão de Giampetrino funciona bem para termos acesso a detalhes sumidos - como os pés de Jesus, por exemplo - em comparação com a original, ou mesmo com a cópia fotográfica do original, podemos perceber como ela é menor. A de Leonardo, mantém um certo mistério, uma delicadeza que não se vê na sua versão.

Leonardo, o procrastinador

Dizem que Leonardo da Vinci era uma pessoa muito dispersiva. Começava um trabalho e logo era distraído para fazer outra coisa, e deixava inacabado o trabalho inicial. De seus quadros, quase todos não estão finalizados, em diferentes modos de acabamento. Há histórias de que ele teve que voltar quase uma década depois para acabar o quadro que iniciara e já tinha sido pago – o caso da segunda versão da “Virgem das rochas”, por exemplo. Em outros casos, era comum que ele desenvolvesse um material para ser usado na pintura que se conservasse fresco por um tempo maior, para que ele pudesse produzir suas obras na velocidade que ele quisesse. Poderia dar uma pincelada hoje e ir para casa. Passar uma semana fora, voltar, e apenas observar o que já tinha sido feito, refletindo sobre o próximo passo a dar. Retornar no dia seguinte e passar quatro dias pintando, sem se alimentar de nada. Afirmam que esse foi o caso da “Última ceia”, e, inclusive, o motivo da sua ruína: ter usado uma mistura de tinta a óleo com ovo que pereceu em poucos anos.

Leonardo é ainda hoje um personagem curioso. Se por um lado é visto como o grande nome do Renascimento, quase uma síntese desse movimento, um homem que trafegava por áreas de atuação das mais variadas possíveis, por outro, esquece-se que, até os 30 anos – já uma idade avançada, para a época, salvo em casos exemplares e exceções, como Michelangelo, que viveu mais de 90 anos – ele não tinha produzido nada realmente relevante no campo da pintura para ser considerado um gênio. Quando se oferece para o Sforza, o duque de Milão, se vende – no sentido de mostrar suas qualidades – como um engenheiro [segundo a maioria das versões que eu ouvi], como alguém que conseguia produzir equipamentos militares, armas que tornariam a cidade-estado mais poderosa.

Sforza era um homem que não estava na lista da sucessão do trono, mas que dá um golpe no seu sobrinho, de 7 anos, filho do seu irmão mais velho que acabara de falecer, e sobe ao poder. Era um homem educado nas artes militares, o que não era comum entre os príncipes distantes do verdadeiro comando. Eles geralmente estudavam apenas o clássico: artes, línguas, matemáticas. Por isso, talvez, ele aproveita o talento artístico de Leonardo para recriar, ou emular, a academia de Platão, com Da Vinci como chamariz principal, e principal nome. Foi o primeiro a descobrir a força dessa “marca” – e a partir de então, o mundo vem venerando.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Colective Hypnotic Brass Ensemble

Era a segunda vez que íamos ver o Hypnotic Brass Ensemble - a primeira tinha sido no Canecão, durante um PercPan, em que os oito irmãos dos sopros mais o baterista não fizeram muito sucesso. O motivo: eles tocaram pouco e fizeram muita gracinha para o público. Coisas do nível turma da Xuxa: “quem é o mais animado, o grupo da esquerda ou o da direita?” Ou, “vamos dar uma abaixadinha; agora levanta e toque o céu”. Ou, “acenda o seu celular porque a próxima música é lenta”. Cenas de constrangimento explícito, ou porque os brasileiros não os entendíamos direito, ou porque o público carioca desse tipo de evento / show é blasé demais para se imaginar numa micareta.

Os irmãos Cohran fazem a sua dança de desenho animado
Aqui, em Londres, ontem, no meio da principal rua de Camden, o bairro mais boêmio que conhecemos até agora, dentro de uma casa de shows intimista chamada Jazz Café, entretanto, foi completamente diferente. A plateia, que já estava devidamente aquecida pela Hackney Colliery Band, obedeceu a todos os comandos, para o delírio dos meninos [são todos muito novos] e nossa surpresa.

Era o último show da Cath Roberts, que toca aqui o saxofone barítono, igual
o da Lisa Simpson, ao lado de seu amigo Tom Ward
Assim como o Hypnotic, os garotos e o coroa de Hackney são nove músicos, mas com dois na percussão. São todos bem novos – assim como os meninos de Chicago – com a exceção do senhor que toca o sousaphone [um tipo de tuba usado por bandas de sopros, feito para locomoção], Jeff Miller, que era o mais animado de todos. Como eram razoavelmente desconhecidos, fizeram um show curto, de pouco mais de uma hora, optando por diversos covers, em versão sopro, como uma música do Kings of Leon. Fizeram bastante sucesso numa plateia que não estava ali para vê-los, a ponto de pedirem bis.

Logo em seguida, por volta das 21h30, subiram os nove americanos com cara de gangsta rappers. Cumprimentaram as pessoas da turma do gargarejo e, antes de começar a tocar, foram conversar com as pessoas. Nossas esperanças de que eles tocassem mais e falassem menos estavam fadadas ao fracasso. Todas as gracinhas do Brasil se repetiram, além de outras como uma competição de rima, uma discussão com a produção por conta da luz e do retorno, uma piada em relação aos pedidos recorrentes da plateia para tocarem seu principal hit [“Nós somos contra ‘War’, nós somos de paz”], e o pior momento de todos: quando vários irmãos decidiram tirar a camisa e mostrar seus músculos mirrados e suas tatuagens de presidiários americanos.

'Tira a camisa' [da esquerda para direita: Yoshi, Smoov, Hudah - nos trompetes - e
L.T. no sousaphone - vai dizer que você não chamava esse instrumento de tuba?]
Contudo, talvez por terem mais identificação com o público, suas brincadeiras acabaram na metade da apresentação. Na segunda parte, aí sim, eles mostraram por que são referência de um jazz que não é velho, que não é esnobe, que não é para “apreciar”, que é, como sempre foi no início dos tempos, para se dançar, para se largar, deixar o corpo enlouquecer com a metaleira. Se até o meio, a cada interrupção eu temia que o menino que tocava o sousaphone [L.T.] desplugasse o seu microfone – era a dica de que a falação iria começar –, do meio para o fim, eu me despreocupei: quase não houve parada. E, até as dancinhas que eles insinuaram nesse segundo capítulo foram simpáticas. Aliás, o jeito de eles tocarem, com movimentos sincronizados, de um lado para o outro, é quase uma marca registrada. Lembra aqueles desenhos animados da década de 1970 em que, por falta de frames, se repetiam uns dois, dando um ritmo com relação à música – o que é bem divertido.

[Acho que...] Rocco, em seu momento rapper
Uma hipótese que apareceu para explicar esse comportamento deles foi: eles têm uma influência forte do hip hop, em que os MCs são, como o nome em português sugere, mestres de cerimônia. São jazzistas mas queriam ser funqueiros. No fundo, sem saber, são a mesma coisa.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Laurence Sterne's body snatcher

Laurence Sterne e o seu "Tristram Shandy" apareceram novamente na biografia de Schopenhauer - e apenas nessa segunda oportunidade houve uma nota de pé-de-página contextualizando quem era esse tal de Sterne - ou, apenas nessa segunda oportunidade a nota era tão esdrúxula que me chamou a atenção para ela a ponto de não me fazê-la esquecer. Dizia que o cadáver do escritor havia sido roubado e vendido para estudos, quando foi reconhecido, no momento da dissecação, pelo professor de anatomia da Universidade de Cambridge, que seria amigo de Sterne, e que providenciou um segundo enterro para ele. Típico caso que se pode aplicar o epiteto que serve de título para o "Quincas Berro D'Água": a morte e a morte de Sterne.

A questão é: por que o tradutor da obra decidiu que essa seria uma informação interessante para se ressaltar e tentar explicar quem era Sterne? Ele já tinha dito que o escritor também era um pastor, que tinha nascido em uma cidadezinha irlandesa, já tinha dado o ano de nascimento e morte - assim como ele tinha feito com diversos outros nomes aparentemente desconhecidos para mim - e resolveu acrescentar a informação sui generis sobre o destino de seu corpo. Por que ele fez isso?

Já tinha lido - até no "Lonely planet" - que os "body snatchers" eram um problema grave na Inglaterra até o século xix. Há diversos artigos na internet contando sobre esse episódio estranho da história inglesa - de como os mortos eram desenterrados e vendidos para as faculdades de medicina, para serem usados nas aulas de anatomia, e de como isso foi chocante quando se tornou público. Há, aliás, uma insinuação que o fato de terem descoberto Sterne teria motivado essa mudança de comportamento, criando até uma lei que proibia essa prática mórbida. Outros textos tentam - não justificar, mas - contemporizar afirmando que, por conta desses cadáveres roubados, a medicina progrediu bastante [não vamos entrar no mérito dos fins justificando os meios].

A questão de Sterne, apesar de descrita com bastante clareza na nota do livro, não aparece exatamente dessa maneira em seu verbete no "Guardian", que chama o fato de "lenda" e conta teria sido um aluno a reconhecê-lo, não um professor. De qualquer forma, seu "Tristram Shandy" já era um dos livros mais famosos em toda a Europa - não apenas na Inglaterra - no momento do lançamento. Sterne, portanto, não era alguém completamente desconhecido - talvez, não fosse um rosto comum, numa época em que a cultura de celebridade não era, assim, tão avançada, mas, no meio de um público escolarizado, como a faculdade de medicina, era possível que houvesse alguém que soubesse como era o seu rosto.

Uma suspeita para a responder à pergunta do motivo que levou o tradutor da obra de Rüdiger Safranski a comentar o caso em seu espaço: William Lagos achou curioso, curioso a ponto de querer dividir a história com outras pessoas. O nascimento da literatura, propriamente dito, tem essa conotação. O cara que achou que tal história era boa o suficiente para compartilhar com outras pessoas. Ele apenas cumpriu uma função de passar adiante o conto.

'Brave new world'

Claro que eu me confundi com a data e deixei passar a efeméride dos 400 anos da primeira exibição de "The tempest" - havia pensado que tinha sido no dia 6, quando fora no primeiro de novembro de 1611, dia de todos os santos, com a presença do King James, no seu Whitehall.

De qualquer forma, vale o registro. Vale o registro como efeméride para nós brasileiros porque mostra como, entre outras diversas possibilidades de leitura, Shakespeare anotou em sua obra o encontro do Novo Mundo.

"The tempest", segundo o comentário introdutório da minha edição da Royal Shakespeare Company, foi a última peça em que o bardo escreveu sozinho. Já era um autor reconhecido e que tinha relevância - mas ainda vivia em um estado absolutista e sabia que não podia desagradar o seu chefe-mor. Portanto, as referências a essa relação Velho-Novo Mundo são sutis ou, ao menos, inferidas. A bela introdução - não assinada - porém anota as diversas citações que não deixam muitas dúvidas sobra a vontade de Shakespeare tratar desse assunto. Numa tradução livre: "a chegada a uma ilhada inabitada por europeus, a fala sobre 'plantation', o encontro com um 'selvagem' em que o álcool é trocado por habilidades de sobrevivência, um processo de aprendizado da linguagem em que é claro quem é o mestre e quem é o escravo, o medo do escravo em engravidar a filha do mestre, o desejo de fazer o selvagem procurar a graça cristã [além também de proporem que ele deveria ser enviado para a Inglaterra para ser exibido e ganhar um dinheiro com isso], referências ao clima perigoso das Bermudas, e ao 'bravo novo mundo': em todos esses aspectos, 'A tempestade' conjura o espírito do colonialismo europeu".

A introdução segue tratando do papel de Caliban, o tal "selvagem", e de como ele representou para gerações de escritores caribenhos anglófilos uma forma de superar o que foi apelidado de "complexo de Caliban", que seria uma forma de subordinação - ou, traduzindo poeticamente para o português-brasileiro-pós-Nelson-Rodrigues, a síndrome de vira-lata. Como os habitantes dessas áreas sempre se sentiram inferiorizados, simplesmente por terem nascido fora dos grandes centros urbanos, e como isso influenciava sua produção. Conhecemos bem isso.

Eu me interesso, porém, pelas frases - versos - linhas que ficam marcadas, como se fossem tatuagem, na memória da humanidade, nas sentenças que as pessoas repetem sem saber de quem era, como se fosse um ditado que sempre existiu sem qualquer relação de autoria, que tivessem brotado simplesmente do nada, espontaneamente. Shakespeare é um craque nesse aspecto. Só nesse livro há três frases que vão ficar para sempre - ao menos, na minha memória.

A primeira é de Prospero - o protagonista da peça, aquele que comanda todas as ações - falando sobre a perenidade das coisas, num discurso analisado diversas vezes e bastante interpretado como uma autorreferência ao próprio teatro, sua intrínseca fantasia-vazia, e o fim de sua vida produtiva: "We are such stuff / As dreams are made on " - que não cabe uma tradução, sem perder a força dos versos originais, mas que diz que somos pueris, feitos da mesma substância que os sonhos são feitos - vagos, nebulosos, inexatos, obtusos.

A segunda é a frase de Miranda, filha de Prospero, que intitula esse post, e está sob o seguinte contexto: "O, wonder! / How many goodly creatures are there here! / How beauteous mankind is! O brave new world, / That has such people in't!". Já ao fim da peça, ela descobre outros habitantes - visitantes - na ilha onde ela cresceu apenas com o pai e Caliban. Portanto, o "brave new world" se referia, metaforicamente, a abertura de um novo mundo, mas não-diretamente à ilha em que ela vivia. Se relaciona ao conhecimento de coisas que ela não sabia que existia, de "tais pessoas" que vivem fora dela, da maravilha que é a espécie humana.

E a melhor frase, na minha humilíssima opinião, mas que, coincidentemente, também é a dos editores do livrinho, que a estamparam na capa, além de escreverem essa conclusão explicitamente na introdução, lembrando para o fato de ela ser dita, exatamente, por Caliban, o tal selvagem, numa referência à ilha, portanto, por associação, ao novo mundo mesmo, em si, como se mostrasse que apenas os que vivem aqui sabem como é a vida nessas bandas - nem melhor nem pior, apenas diferente: "Be not afeard; the isle is full of noises, Sounds and sweet airs, that give delight and hurt not." É o mundo do completo desconhecido, que dá medo, por não sabermos como é, ou o que é. O mundo dos novos barulhos, das novas formas de música, dos novos sabores, cheiros, dos novos extasiantes, de novas morais, e que, vivendo sem lutar contra, aceitando-o como é, não machuca.

ps. Como o texto foi apresentado em 1611, portanto, antes do início mais forte da colonização inglesa nas Américas - como a introdução, inclusive, deixa claro - fico imaginando o quanto de influência Shakespeare teve sobre o King James. Seríamos os mesmos sem que essa peça existisse?

pps. para ler, no original, a peça: aqui.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Das vantagens de se ter uma TV

Desde que chegamos aqui, ouvimos diversas pessoas dizendo que os ingleses não trabalham tanto como os brasileiros ou os indianos. Tivemos um exemplo na hora de tentar instalar o combo da sky para tv, internet e telefone. A companhia terceirizada responsável pela televisão veio aqui duas vezes, mas arranjou desculpas em ambas para não resolver o problema. Conclusão: cancelamos a assinatura e optamos por uma tv de graça - precisamos apenas comprar uma caixa de decodificação do sinal para o digital [cara] e cabos hdmi [caríssimos], além de ter que montar nós mesmos o esquema. Internet e telefone, fomos para outra companhia, que marcou de começar o serviço no dia 18 de novembro...

De posse da tv, tivemos algumas surpresas, though. Por ser um país em que a televisão pública é forte, rica e razoavelmente independente, a programação não respeita apenas a diretriz da audiência. Anteontem, nosso primeiro dia com televisão em casa desde a nossa mudança, no horário nobre, enquanto a BBC1 passava um documentário sobre animais marinhos, a BBC2 mostrava como está o Paquistão, depois de tanto tempo sendo associado a um celeiro de terroristas. Não imagino nada parecido no Brasil - seja no âmbito de ter dois canais para poder passar o que quiser [na verdade, eles têm quatro], seja na escolha dos assuntos a serem transmitidos.

A melhor surpresa, porém, foi ver, ontem, também em horário nobre, o filme "Life in a day", do diretor [razoavelmente desconhecido] Kevin Macdonald. Razoavelmente, porque ele já fez, entre outros, "The last king of Scotland", que ganhou uma bela repercussão. O longa de uma hora e meia, mais ou menos, produzido pelo Ridley Scott [esse sim, grande nome] ficou famoso, antes mesmo de ser lançado, porque pedia a colaboração de internautas do mundo inteiro para sua produção. Quem quisesse, deveria se filmar, ou produzir algo de caráter pessoal, no dia 24 de julho de 2010 e enviar para eles. Segundo minha amiga Wikipedia [há, aliás, uma bela homenagem à enciclopédia no filme], foram enviados mais de 4,5 mil horas de filmagens, e 80 mil arquivos de 140 países. Estreou recentemente em Sundance e, a partir do último dia 31, estava disponível no youtube [vide abaixo]. Passar na TV aberta, com um gap de poucos dias para o lançamento na internet, com qualidade de imagem incrível, e no conforto do sofá, mostra que a TV pode ser, ainda, incrivelmente surpreendente.



Sobre o filme. A grande dúvida que tivemos era se foi utilizada alguma imagem de apoio. Os takes eram tão bonitos, tão bonitos, que duvidamos que as pessoas pudessem ter produzido um material tão incrível. Aparentemente, só usaram mesmo os vídeos enviados - o que me faz renovar a fé no ser humano, de certa forma.

A proposta dos produtores era mostrar um dia na vida da humanidade - um dia aleatório. O primeiro sábado após o fim da Copa do Mundo, como disse o editor Joe Walker para a "Wired". Por isso, se eles começam "cronologicamente", mostrando a noite, o nascer do sol, os diferentes e, ao mesmo tempo, similares hábitos matinais de cada canto do planeta, depois, eles tomam outros caminhos.

Os vídeos mais dramáticos são privilegiados, mas sem deixar de lado o humor e mesmo uma certa leveza, mesmo quando os assuntos mais carregados são mostrados - aparentemente há alguns temas centrais, ou vídeos que aparecem mais, para dar uma sustentação no todo, para criar uma espinha dorsal do projeto, como a família cuja mãe está enfrentando câncer, ou o coreano que está andando de bicicleta pelo mundo há seis anos.

O diretor optou por usar música externa, mas aproveitou quando os próprios personagens estão cantando ou fazendo uma música própria, como quando mostram mulheres africanas que, ao socar a farinha, cantam e batucam ritmadamente.

O filme também não fugiu do zeitgeist, pelo contrário. Quis mostrar quais eram as preocupações das pessoas nesse exato dia. Faz, por exemplo, uma comparação entre um fotógrafo que vive no Afeganistão, que tenta mostrar, apesar dos pesares, como a vida continua em Cabul, e uma mulher americana cujo marido está lutando em uma guerra fora do país. Ou mostra um cara que está sofrendo com a crise imobiliária americana, que até hoje reflete na economia mundial.

Esse esquema de "claro-escuro", em que se compara uma situação com o seu oposto é diversas vezes utilizado, como quando se coloca "lado a lado" uma família de dezenas pessoas que vivem em um cemitério, sem qualquer rendimento certo, e a opulência de países ricos, com um cara falando de sua Lamborghini.

O longa usa também bastante a proposta de capítulos divididos em temas. Três quartos de todo material foi recebido diretamente, sem qualquer intervenção. O restante foi recebido depois que a produção enviou câmeras para países pobres e pediu para eles cobrirem certos assuntos, como o que tinham no bolso ou do que tinham medo e o que amavam.

Sem qualquer medo de comparação, me lembrou "O homem com uma câmera", do Vertov. Junta imagens aparentemente sem nexo e criar, assim, uma conexão, um caminho, mesmo que não óbvio, nem, certamente, linear. Mesmo que o "Life in a day" caia na vala comum do esquecimento cibernético, aquele que o ontem se apagou, tamanha a quantidade de informações que temos de hoje, o filme já cumpriu o seu papel de registrar para quando os "escafandristas" vierem como era a humanidade nesse início de século xxi.

ps. BBC quer fazer um vídeo semelhante chamado "Britain in a day", que deve ser gravado agora, no dia 12 de novembro. A ver.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Biografia - Schopenhauer

Nunca fui muito fã de biografias, por puro preconceito. Todas as que eu li, ou as que eu lembro ter lido, foram boas.  Sempre imaginei que a vida da pessoa não mostrava nada do que ele – ou ela – escreveu, produziu, criou. Claro que há um espelhamento aí, mas há tanta reflexão entre a vida e a obra final, que a vida pode simplesmente ser desimportante para analisar a obra em si. Ou seja, é possível até enxergar a vida desse criador na obra, mas ela é indiferente para a sua interpretação.

Também, talvez pelo mesmo motivo, sempre não gostei do que eu apelidei de literatura de personagem – em contraposição à de trama. A de personagem geralmente é centrada em um protagonista central, e narra a vida – toda ou um trecho – dessa pessoa. A de trama é focada na ação, ou no que está acontecendo. Novamente, voltamos a discussão sobre chatice, mas em outro formato. Geralmente, a de personagem é “psicológica”, interior – o que não é, para mim, em princípio, um problema. Porém, como regra, os autores tendem a valorizar os sentimentos sofríveis e/ou de sofrimento, em vez de mostrar raciocínios intrincados, ou mesmo humor. Por exemplo, Machado de Assis só narra por meio de seu “autor-defunto”, ou melhor, “defunto-autor” as “Memórias póstumas...”, mas nem por isso torna o ritmo mais lento. Ritmo, alguns livros carecem de ritmo. Ou melhor, tocam um ritmo que não me agrada – para continuar na metáfora musical, que, acho, funciona bem aqui. Assim como não gosto de samba de fossa, não gosto de gente que sente pena de si mesmo, ou uma narração enorme que mostra como certo personagem sofreu horrores porque matou uma mulher que considerava cruel. Não falemos mais mal dos russos, por favor, antes que tenhamos um problema diplomático.

Hum, acabei de me lembrar de um caso exemplar em relação às biografias. Dois títulos de um mesmo autor, brasileiro, erudito, conhecido, sucesso, que  tiveram recepções bem diferentes por mim – e eu imagino o porquê: “O anjo pornográfico” e “Estrela solitária”, ambos do Ruy Castro. A pesquisa de ambos é impecável – e se não fosse, pouco me importaria, já que eu não estou procurando a verdade quando leio uma biografia, mas uma verdade – e a escrita, incrível, como se lêssemos um romance, como se Nelson Rodrigues ou o Mané fossem invenções da cabeça de Ruy – curiosamente, também li a única obra de ficção dele, “Olhai estrelas”, que peca pelo vício da grande pesquisa, atravancando a narração. Todavia, acho o “... anjo...” uma obra-prima, que serviu para me tornar fã de Nelson Rodrigues, enquanto o sobre o pernas-tortas me distanciou do jogador. São vidas diferentes a ponto de as suas particularidades terem influenciado no meu julgamento? Sim e não.

No “...anjo...”, Ruy, além de descrever a trágica vida de Nelson, que sozinho daria um romance bem dramático, também não se furta a tecer seus comentários sobre as obras rodrigueanas. Ele mesmo diz que não é um Sábato Magaldi, mas que iria se permitir um hábito que os jornalistas – por medo, por descostume, por precaução – evitam: opinar. Assim, você tem uma primeira visão crítica da obra de Nelson, um apanhado, não tão profundo, mas jamais raso, de cada uma das peças e livros que o dramaturgo, que dizia que era necessário sorte até para chupar um chicabon, escreveu. Há uma vivência desse lado “alto” da vida Nelson com intensidade, sabemos de seus sucessos e, até nos seus fracassos, percebemos um gênio – no sentido de produtor – criativo atuando. Mesmo quando Castro fala sobre as peças mais açucaradas, os contos mais bobos, mesmo assim, percebemos alguém produzindo, agindo, saindo do lugar. Quando chega a velhice e a sequência de problemas – de ordem moral [o que podemos desprezar um pouco] e de saúde –, já estamos descendo a ladeira, já passamos pelo ápice da obra, e estamos esperando apenas o livro voltar ao início, ao chão, à planície. Como se os problemas não tivessem ocupado um espaço [temporal] grande na biografia [com duplo sentido] de Nelson.

Já a sobre Garrincha, talvez por respeitar o mesmo procedimento cronológico - comum a inúmeras biografias, mas não uma regra intransponível -, mostra pouco do homem que foi apelidado a alegria do povo e bastante sobre o seu fim lastimável. Fica-se com a impressão, ao final, de que o jogador quase não existiu, de que ele passou semidespercebido pela vida, que ele teve uma importância apenas mediana, ao se comparar o espaço dado ao sofrimento que foi o término da sua vida. Aquele Garrincha que aparece nas imagens driblando os zagueiros, com o seu jogo de corpo, indo e voltando, perdeu o viço, acabou escurecido e se transformando numa sombra do homem que era internado, dia sim, dia não, no hospital por conta da bebida. Nem a sugestão de justificativa que Castro faz sobre a razão do alcoolismo de Garrincha – que ele teria sido viciado ainda criança, num costume bizarro [para nossos olhos “civilizados”] dos seus pais de dar bebida para os filhos – melhora a vida dele. No fim, em vez de um ídolo humanizado, ele se torna um coitado, alguém que não merece outro sentimento além da pena.

Castro deveria ter omitido as “derrotas” de Garrincha? Jamais. Aliás, não sei exatamente o que fazer – ou como resolver esse problema. Estou apenas descrevendo o sentimento que duas obras de um mesmo autor, sobre personagens diferentes me trazem. Isso porque queria falar sobre uma outra biografia, que também ultrapassa o simples narrar de fatos, para fazer uma interpretação, ou um releitura, ou um comentário sobre a obra do biografado. Chama-se “Schopenhauer – e os anos mais selvagens da filosofia” – num subtítulo estranho – de um alemão, que já havia escrito livros sobre Nietzsche e Heidegger, chamado Rüdiger Safranski.

Antes, acho interessante – hum, não – necessário – hum, talvez – importante – hum, só se for no sentido de contextualização – explicar o que, ou quem representa Schopenhauer na minha vida. Meu pai morreu quando eu era pequeno – tinha 11 anos. Não tive muito contato com ele, não me lembro bem de sua fisionomia, e o que eu lembro dele é uma gargalhada que não combina bem com o que dizem dele para mim – sempre descrito como um homem taciturno, que jamais dava um sorriso para um desconhecido e que era rígido ao extremo. O fim de sua vida foi, como todo fim de vida, dramático e cheio de significados para todos da família, inclusive para mim – mas não é o caso de escrever sobre isso, ou, pelo menos, não agora.

O fato é que, assim que ele morreu – odiava essa palavra, porque era banal;  gostava de relacionar a morte do meu pai com a palavra “falecer”, que, para mim, parecia mais nobre; era meu pai, não? Merecia toda a nobreza, a exclusividade, o sentimento de ser o único do mundo – assim que ele morreu, passamos pelo processo doloroso e comum a todas as mortes de ter que nos desfazer das suas coisas. Mesmo pequeno, era bastante “adulto” para a minha idade e minha mãe me deixou ajudá-la com os procedimentos mais simples – e menos emotivos. Como, por exemplo, esvaziar as caixas e malas em que ele guardava papéis velhos. Documentos antigos sem valor, papéis do seu trabalho que já tinham caducado, maços de desimportância generalizada. Em uma das maletas, encontrei uma surpresa, porém, que, posso dizer, hoje, depois de anos, moldou um pouco a minha vida. Ou muito. Fez ser o que eu sou, hoje. Trabalhar onde trabalho, ter estudado o que eu estudei, escrever o que eu escrevo. Iniciou um caminho de onde não saí mais. Encontrei recortes de jornal com inúmeras crônicas e desenhos do Luis Fernando Verissimo.  Pode parecer bobo, sem importância, reles, mas aqueles pequenos textos, recheados de – humor [sempre] e – inteligência foram um tipo de substituto para o meu pai. Talvez ele não me desse todos os conselhos que eu buscaria com o meu pai, mas saber como ele pensava, como se comportava, como ele criava os filhos, me dava um parâmetro para eu me apoiar e saber para onde estava indo. Claro que não fiquei apenas nos recortes. Assim que tive idade e dinheiro, comprei tudo o que encontrei do autor gaúcho filho de um dos nossos ícones literários. Mesmo sem tê-lo conhecido, e o tendo visto pouquíssimas vezes, eu o sinto como um pai para mim, alguém que estaria ali quando eu precisasse.

Verissimo, por sua vez, também tinha os seus ícones e, por meio de uma de suas obras, encontrei o meu “avô”, digamos assim: Jorge Luis Borges [se eu tivesse um filho, ele se chamaria “Luis”]. Foi em uma obra com título meio bobo [“Borges e os orangotangos eternos”] e em uma crônica maior que o normal chamada “Borgeanas” que “ouvi” pela primeira vez o nome desse argentino de Buenos Aires – não é coincidência que a minha primeira viagem internacional tenha sido para a Argentina. Num ímpeto de coragem, e sem-noçãozismo, antes de ler qualquer coisa dele, comprei o primeiro volume de suas obras completas. Penei para passar pelos primeiros livros de poesia, sofri na obra sobre “Evaristo Carriego”, mas esse caminho me preparou para o ápice, que começaria em “Ficções”, logo após “História universal da infâmia”. Borges me confirmou a trilha de Verissimo, me embaçou as fronteiras entre o vivido e o lido, entre a arte e a realidade, entre a verdade e as verdades. Criou uma literatura que era, ao mesmo tempo, interrogativa e filosófica. Era um jogo que nós aceitávamos participar ao ler a primeira linha e que nos puxava como um elástico até o fim, mesmo que passássemos sem absorver tudo. Porque reler Borges era ainda melhor que lê-lo. Já perdi as contas de quantas vezes passei pelas suas “Ficções” e pelo seu “Aleph”, além de inúmeros dos seus outros textos [pensei em escrever “não-ficcionais”, mas achei que seria uma injustiça]. E foi Borges quem, seguindo essa tradição familiar, me apresentou meu bisavô, com uma frase em que dizia que ele, meu “bisavô”, talvez, tenha explicado o mundo: Arthur Schopenhauer.

Por ser uma leitura mais complexa – tanto no sentido de ser mais difícil de ser encontrada, quanto na ausência de proposta de entretenimento – tenho que dizer que, de toda a minha família, sou / estou menos familiarizada com “bivô” Schopenhauer. Daí a vontade de ler essa biografia que, como já disse, vai além de narrar os episódios da vida do alemão que nasceu em uma cidade que hoje fica na Polônia, mas que quase veio ao mundo na Inglaterra. Fiz umas anotações em determinado momento dessa sua biografia, que vou reproduzir abaixo. Já peço desculpas adiantadas se se tornar deveras chato:
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Rüdiger Safranski , além de lembrar a ligação de Schopenhauer com o brahmanismo [ele chega a fazer uma piada citando “O mundo como Brahma e Maya”, fazendo referência à obra principal do alemão “O mundo como Vontade e Representação”], sugere que o sistema schopenhaureano não tinha como intenção “explicar” um sistema filosófico novo, mas compreendê-lo. Explicar, como Safranski mesmo diz com outras palavras, envolveria a “representação” da “representação”, ou em outros termos, a cristalização dos conceitos, a transformação do sentimento em um código que pode ser identificado por outros. Já compreender/entender, é sentir. É trazer esse raciocínio, repeti-lo e tentar fazer com que cada pessoa o vivencie, já que a vontade é única, pessoal, mas comum a todas as pessoas.
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“A vontade é um impulso primário e vital e um movimento que pode tomar consciência de si mesmo somente em um caso limite; e só então a consciência assume um alvo, um propósito ou um objetivo”. [375]
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“Spinoza disse que uma pedra movida por um impulso qualquer, caso dispusesse de consciência, acreditaria que se movia por sua própria vontade. Pois aqui eu acrescento que essa pedra teria razão” – Schopenhauer, tirado da página 376.

E novamente voltamos a Spinoza o filósofo que parece sobreviver ao tempo praticamente incólume – ou que na média sai na vantagem – ou que foi citado tanto por Schopenhauer como Nietzsche [marginais da tradição filosófica].

Se Schopenhauer comparava a sua “Vontade” com o conceito de Brahma, em que seria o ponto central [não-geográfico] do nosso ser, naquele momento em que não somos representação, e nesse sentido, seríamos iguais a todos, como pequenos retalhos de uma grande e única colcha de retalhos, Spinoza dizia que tudo fazia parte da mesma essência, ou Deus, ou natureza.
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“A vontade, que se encontra na base de tudo, não é absolutamente um espírito em processo de autorrealização, porém um impulso cego incessante, sem meta e devorador de si mesmo, sem deixar transparecer através de si nenhum impulso diretor, nenhum pensamento deliberado, sem sequer apresentar o menor sentido.” [379]
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Melhor consciência – negação da vontade. Para Rüdiger Safranski, as duas ideias são a mesma, apenas com nomes diferentes. Porém, essas alcunhas não deixam de passar um certo raciocínio que não pode deixar de ser levado em conta. A “melhor consciência” nasce da época em que Arthur faz grandes caminhadas a montanhas – ela é o resultado de uma mente livre e desapegada. Parece a conclusão de um processo, enquanto a “negação da vontade” é o caminho a ser trilhado. Como se somente por meio da “negação da vontade” – no sentido dado por Schopenhauer – se pudesse alcançar a “melhor consciência”.
Isso é apenas uma suposição. De qualquer maneira, há uma ligação direta com Nietzsche quando ele diz que Schopenhauer era um pessimista por negar essa força – ou potência, em suas palavras – que sua vontade lhe proporcionava. Há aí um racha entre os dois filósofos. Ambos identificam a Vontade e a sua força /potência – mas um a nega enquanto o outro a afirma.
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Outro fato que separa Nietzsche e Schopenhauer é a crença-sugestão deste na Vontade como aquilo que existe além das representações, o que pode ser interpretado como uma espécie de “essência”. Nietzsche, por sua vez, jamais aceitaria que existe algo além das “aparências” [seria a sua “representação”?], desdenhando do conceito “ideal” platônico, que, numa interpretação poética, veio a dar na coisa-em-si kantiana.
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Para Schopenhauer, a Vontade cumpria, ao menos, duas funções: uma de caráter “essencial”, de essência; outro de “impulsividade”, de força. A primeira, Nietzsche desdenha, a segunda, abraça.
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Um segundo problema encontrado no sistema schopenhaureano mostra que todas as vontades dos seres são a mesma vontade – como o conceito poético brahmânico. Mas além de fazer refência ao Brahmanismo, e à coisa-em-si kantiana, não está claro o motivo dessa igualdade. Por que não se poderia ter vontades individuais, singulares? Ou o simples fato de cada um dos elementos possuir esse elemento impulsivo-seminal já é possível para torná-los, em algum grau, iguais?
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Schopenhauer dá exemplos de como as coisas, abandonadas, são impelidas a fazerem o que elas fariam “normal” e “naturalmente”, para demonstrar que as vontades seriam essas “vontades de viver” – sendo tautológico [ele mesmo admite o problema]. E aí a crítica de Nietzsche faz sentido: por que negar essa vontade? Por que negar a vontade de viver?
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Ainda não terminei de ler a biografia, mas o melhor momento para se escrever sobre um livro é no meio dele, em seu ápice, na parte que sua energia criativa está no auge e que não sobra tempo para você pensar sobre outra coisa.