Sou um leitor apaixonado por escritores enciclopédicos. Gente que esconde significados ocultos e eu vou atrás, que nem em um jogo de esconde-esconde, tentando achar as pistas para o Graal. Outros que fazem referências a conhecimentos que não são do saber geral - quanto mais obscuro e antigo, melhor. Gente que simplesmente descreve assuntos completamente inúteis, mas com uma quantidade de informação e detalhes que inunda o outro lado da página. Textos que transbordam conhecimento. Autores que se entendem como leitores antes de serem escritores. Não preciso dizer que Borges é o meu autor favorito, né?
Alberto Manguel é outro desses escritores para quem a leitura é mais importante que a escrita. Anteontem, em sua palestra na biblioteca de Botafogo, pudemos ver um autor tranquilo, engraçado, com uma cultura bem acima da média, mesmo entre os escritores, que falou durante quase duas horas basicamente sobre o simples e cada vez mais raro ato de ler.
"Para construir a imaginação", ele argumenta, "nós contamos histórias, contos, usando as palavras como raiz, forma para poder passar a experiência para que outra pessoa possa entender", diz ele, o que me fez lembrar que a acepção da palavra "cuento" no espanhol é maior que a que comumente usamos no português-brasileiro. "Cuento" é qualquer história que se conta, mesmo oral ou informalmente.
Mais ou menos por isso que Borges - novamente ele, e ele ainda vai aparecer bastante aqui por vários motivos - acreditava que o "cuento" era a forma original da literatura e, por isso, a que tinha mais chance de sobreviver ao longo dos anos. Ele dizia que podia até ver o romance ou a novela [que são diferentes] acabando, já o conto, não.
Entre muitos momentos incríveis da palestra de Manguel, o que mais me chamou a atenção foi aquele em que ele lembrou da mágica que há na literatura. Uma mágica que cria suas próprias características a partir do universo que o próprio autor, caso tenha essa capacidade, consiga criar. A mágica da ambiguidade, que, ao invés de dificultar a nossa compressão das coisas, alarga o nosso conhecimento, nos faz "entender mais", como Manguel argumentou. Ele citou Borges - outra vez - e o seu ensaio "O falso problema de Ugolino", um de seus "Nove ensaios dantescos" para exemplificar.
Manguel, citando Borges, contextualizou a passagem do canto penúltimo de "A divina comédia": no Inferno, Ugolino de Pisa rói a nuca do arcebispo traidor Ruggieri degli Ubaldini, que o havia encarcerado com os seus filhos. "Ugolino", escreve Borges, "movido pela dor, morde-se as mãos; os filhos creem que o faz pela fome e lhe oferecem a própria carne" com as seguintes palavras:
Alberto Manguel é outro desses escritores para quem a leitura é mais importante que a escrita. Anteontem, em sua palestra na biblioteca de Botafogo, pudemos ver um autor tranquilo, engraçado, com uma cultura bem acima da média, mesmo entre os escritores, que falou durante quase duas horas basicamente sobre o simples e cada vez mais raro ato de ler.
"Para construir a imaginação", ele argumenta, "nós contamos histórias, contos, usando as palavras como raiz, forma para poder passar a experiência para que outra pessoa possa entender", diz ele, o que me fez lembrar que a acepção da palavra "cuento" no espanhol é maior que a que comumente usamos no português-brasileiro. "Cuento" é qualquer história que se conta, mesmo oral ou informalmente.
Mais ou menos por isso que Borges - novamente ele, e ele ainda vai aparecer bastante aqui por vários motivos - acreditava que o "cuento" era a forma original da literatura e, por isso, a que tinha mais chance de sobreviver ao longo dos anos. Ele dizia que podia até ver o romance ou a novela [que são diferentes] acabando, já o conto, não.
Entre muitos momentos incríveis da palestra de Manguel, o que mais me chamou a atenção foi aquele em que ele lembrou da mágica que há na literatura. Uma mágica que cria suas próprias características a partir do universo que o próprio autor, caso tenha essa capacidade, consiga criar. A mágica da ambiguidade, que, ao invés de dificultar a nossa compressão das coisas, alarga o nosso conhecimento, nos faz "entender mais", como Manguel argumentou. Ele citou Borges - outra vez - e o seu ensaio "O falso problema de Ugolino", um de seus "Nove ensaios dantescos" para exemplificar.
Manguel, citando Borges, contextualizou a passagem do canto penúltimo de "A divina comédia": no Inferno, Ugolino de Pisa rói a nuca do arcebispo traidor Ruggieri degli Ubaldini, que o havia encarcerado com os seus filhos. "Ugolino", escreve Borges, "movido pela dor, morde-se as mãos; os filhos creem que o faz pela fome e lhe oferecem a própria carne" com as seguintes palavras:
... tu ne vestistiqueste misere carni, e tu le spoglia
[na tradução publicada no ensaio:Segundo Borges, há uma "inutile controversia" para se saber se Ugolino cometeu canibalismo, e, agravante, servindo-se dos próprios filhos, já que Dante é ambíguo nesse sentido. Borges sugere uma resposta: "Dante não quis que pensássemos, mas que suspeitássemos. A incerteza é parte do seu desígnio". Ele supõe ainda que, diferentemente do que se pensa dos autores como os grandes criadores de universos perfeitos e irretocáveis, provavelmente o escritor italiano "não soube mais de Ugolino além do que os seus terceto relatam" [O que me lembra a citação que Manguel diz ter escutado de Borges: "la gran diferencia entre escritores y lectores es que el escritor escribe lo que puede, mientras que el lector lee lo que quiere"]:
"Que desta carne, de que nos vestiste,
comesses, que ela à origem voltaria!"]
No tempo real, na história, cada vez que se depara com diversas alternativas, o homem deve optar por uma e elimina ou perde as outras; mas não no ambíguo tempo da arte, que se parece ao da esperança e ao do esquecimento. Hamlet, nesse tempo, é são e é louco. Na treva de sua Torre da Fome, Ugolino devora e não devora os amados cadáveres, e essa ondulante imprecisão, essa incerteza, é a estranha matéria do que é feito. Assim, com duas possíveis agonias, sonhou-o Dante e assim sonharão as gerações.Dito isso, fica decretado que Capitu traiu e não traiu Bentinho.
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