Um dos aspectos mais citados de "Ulysses" é a capacidade de Joyce em fazer trocadilhos. Muitos passam despercebidos por mim. Não consigo pescar todos, mas fico muito orgulhoso, tal qual uma criança pequena que fez a lição de casa, quando, sozinho, descubro um jogo de palavras escondido por baixo de uma frase aparentemente inócua. É meio infantil, eu sei, mas por que a literatura deve ser sempre adulta?
A última das oportunidades aconteceu com Molly Bloom, a mulher de nosso Ulisses do cotidiano moderno, Leopold. Famosa por, além de ser a protagonista do monólogo que encerra a monumental obra, ser apresentada como uma cantora promíscua que tem um caso com o seu impresário.
Em certo momento, deitada ainda na cama, enquanto Leopold faz o café da manhã, ela pede para ele pegar um livro, sobre o novo show que ela vai apresentar. Eles conversam sobre as músicas e, depois, Leopold pergunta se Molly quer outro livro. A resposta de Molly é essa:
—Yes. Get another of Paul de Kock's. Nice name he has.
Como vocês podem ver, o trocadilho é dos mais simples, banais, fáceis de pescar. A safadinha Molly gosta do nome do escritor francês, que realmente existiu, na virada do século XVIII para o XIX, e cujos livros são descritos como "vulgar but not unmoral", por conta do "Kock", claro. Remete a "cock", que como se sabe é uma gíria para pênis. Caso encerrado. Mas, então, eu descobri que há muito mais trocadilhos nesse simples nome.
Harry Blamires, em seu "The new Bloomsday book", lembra que "Paul de" é sonoramente igual a "Poldy", a maneira como Molly chama Leopold. Ele acrescenta que "Poldy", aliás, é a "desleonização", a retirada do "Leo", portanto da virilidade de Leopold, de seu nome. Como se ela tratasse o marido de maneira quase infantilizada, sem a parte felina, masculina. Combina com essa interpretação o histórico de comportamento do casal.
Eu acrescentaria que "Paul de Kock", ou "Poldy Cock", assim, seria a volta dessa masculinização, o acréscimo desse elemento sexual ao seu marido - no caso, que só acontece pela idealização, ou pela mediação da leitura, nunca "realmente".
Além disso, e numa interpretação já mais problemática e arriscada, podemos ver que não há uma tradução para "Poldy" - a palavra, aparentemente, não existe. Mas me lembra "poultry", que é toda ave doméstica que não "cock" ["galo", numa tradução direta], tipo, "frango". E o dicionário urbano sugere que "Poldy" pode ser visto como um "tipo de sujeito falsa e exageradamente intelectual" ["a garish faux intellectual sort of fellow"], muito parecido como Leopold pode ser descrito, por um lado.
É ele, por exemplo, quem é chamado por Molly para explicar o que seria "Metempsychosis" que, saberemos depois, Molly escuta como "met him pike hoses" - o que numa tradução para lá de livre, e tentando manter a sonoridade - seria "metem a picose", com "picose" fazendo a vez de "pica" [digamos, a tradução da gíria "cock"] + sufixo "ose" [como uma forma de exagerar a palavra]. Aliás, como o último tradutor de "Ulysses" para o português, Caetano Galindo, lembra em sua tese, Molly talvez nunca tenha pronunciado tal palavra dessa forma, já que só ouviremos essa interpretação via lembrança do Poldy Bloom. É um frango, mesmo.
Angeline Ball interpretou Molly Bloom no versão de Sean Walsh |
Em certo momento, deitada ainda na cama, enquanto Leopold faz o café da manhã, ela pede para ele pegar um livro, sobre o novo show que ela vai apresentar. Eles conversam sobre as músicas e, depois, Leopold pergunta se Molly quer outro livro. A resposta de Molly é essa:
—Yes. Get another of Paul de Kock's. Nice name he has.
Como vocês podem ver, o trocadilho é dos mais simples, banais, fáceis de pescar. A safadinha Molly gosta do nome do escritor francês, que realmente existiu, na virada do século XVIII para o XIX, e cujos livros são descritos como "vulgar but not unmoral", por conta do "Kock", claro. Remete a "cock", que como se sabe é uma gíria para pênis. Caso encerrado. Mas, então, eu descobri que há muito mais trocadilhos nesse simples nome.
Harry Blamires, em seu "The new Bloomsday book", lembra que "Paul de" é sonoramente igual a "Poldy", a maneira como Molly chama Leopold. Ele acrescenta que "Poldy", aliás, é a "desleonização", a retirada do "Leo", portanto da virilidade de Leopold, de seu nome. Como se ela tratasse o marido de maneira quase infantilizada, sem a parte felina, masculina. Combina com essa interpretação o histórico de comportamento do casal.
Eu acrescentaria que "Paul de Kock", ou "Poldy Cock", assim, seria a volta dessa masculinização, o acréscimo desse elemento sexual ao seu marido - no caso, que só acontece pela idealização, ou pela mediação da leitura, nunca "realmente".
Além disso, e numa interpretação já mais problemática e arriscada, podemos ver que não há uma tradução para "Poldy" - a palavra, aparentemente, não existe. Mas me lembra "poultry", que é toda ave doméstica que não "cock" ["galo", numa tradução direta], tipo, "frango". E o dicionário urbano sugere que "Poldy" pode ser visto como um "tipo de sujeito falsa e exageradamente intelectual" ["a garish faux intellectual sort of fellow"], muito parecido como Leopold pode ser descrito, por um lado.
É ele, por exemplo, quem é chamado por Molly para explicar o que seria "Metempsychosis" que, saberemos depois, Molly escuta como "met him pike hoses" - o que numa tradução para lá de livre, e tentando manter a sonoridade - seria "metem a picose", com "picose" fazendo a vez de "pica" [digamos, a tradução da gíria "cock"] + sufixo "ose" [como uma forma de exagerar a palavra]. Aliás, como o último tradutor de "Ulysses" para o português, Caetano Galindo, lembra em sua tese, Molly talvez nunca tenha pronunciado tal palavra dessa forma, já que só ouviremos essa interpretação via lembrança do Poldy Bloom. É um frango, mesmo.
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