domingo, 18 de dezembro de 2011

Conto de fada tailandês


Em vez de fazer comentários esparsos, vou fazer diferente. Vou contar uma história, uma história que eu vi em um filme tailandês, bem ilustrativa. Um conto de fadas que começa com “Era uma vez...”.

Era uma vez... um caçador que, noite após noite, é acordado em sua cabana, no meio de um sonho, o mesmo sonho, um sonho em que ele está na floresta atrás de um fantasma, um fantasma que devora as suas caças e que não deixa nada para ele caçar quando acorda. O fantasma bate à janela sobre sua cama, derruba frutos sobre o telhado, faz barulhos à porta, tenta de todas as maneiras que ele não durma. O caçador, depois de dias com dificuldade para adormecer, resolveu matar o fantasma. Pegou sua arma e foi para a floresta caçar essa diferente caça.

Mas como achar um fantasma, ele se perguntou apreensivo? Tentou procurar pegadas, mas percebeu que fantasma pode ter qualquer tipo de pegada, já que ele assumia as formas de todos os animais possíveis. Tentou escutar os seus sons, mas a floresta encobria qualquer barulho do fantasma. Apelou para os animais, perguntando-os onde estava o fantasma que ele queria caçar para poder dormir novamente, mas os animais se recusaram a contar-lhe – ele era um caçador, ora!

O caçador, então, decidiu deixar de dormir. Ficou na floresta sem voltar para sua cabana. Subiu em uma árvore bem alta e tentou observar todo o movimento da floresta. Ele imaginou que logo iria encontrar o fantasma e, aí, poderia atirar nele e, finalmente, voltar para sua cabana e descansar. Ele percebia os macacos pulando pelos cipós e lhes perguntava se tinham visto o fantasma, e os macacos o ignoravam. Ele tentava conversar com a cobra, mas a cobra avisava que não tinha qualquer informação, e se tivesse, não lhe passaria. Ele continuava de tocaia, com a arma envolta nos braços, pronto para atirar, caso avistasse o fantasma. Ele queria dormir, novamente, sem qualquer problema.

Depois de diversas noites em claro e sem qualquer sinal do fantasma – que era bastante inteligente e conseguia se esconder do caçador –, ele acabou caindo no sono e sonhando. Sonhou que consegue achar a trilha do fantasma e está logo atrás dele, pronto para matá-lo e assim se libertar, e poder voltar para a cabana e dormir em paz. Ele escuta as folhas se mexendo logo à sua frente e corre na mesma direção. Sabe que o fantasma não pode estar longe. Ele já sente a presença do fantasma. O fantasma não é tão rápido como ele imaginava, é possível alcançá-lo, está logo ali à frente. O caçador vai encontrá-lo, em instantes – ele acredita – ele vai encontrá-lo. Basta ser mais ágil, e estar pronto para agir ao menor sinal do fantasma, porque o fantasma pode desaparecer de uma hora para outra. Ele não pode pensar, tem que ser automático, instantâneo. Ao avistar o fantasma, deve atirar. Deixa a arma já engatilhada. Quando tiver o menor sinal do fantasma, aperta o gatilho. Assim, imediatamente. Falta pouco. Dá para sentir. Falta pouco. Aperta o passo, correndo como uma lebre pelas folhas. Os galhos estão se mexendo cada vez mais, o fantasma está perto, ele sabe que está se aproximando, ele sabe. Tem que ficar pronto, não pode pensar muito, tem que ser instantâneo. Ver o fantasma e apertar o gatilho, não pode deixar o fantasma escapar, ele quer voltar para a cabana, ele quer dormir! Falta pouco. As folhas, os galhos estão balançando cada vez mais forte. É agora! Ele vê o vulto do fantasma: é agora! Está sobre uma árvore: é agora! Se prepara, aponta, e atira.

Acorda o caçador, acorda com uma ferida na barriga, de um tiro. Olha para frente e não entende muito bem. Está zonzo, confuso. Ele se vê. É ele mesmo, o próprio caçador, olhando para si próprio, abaixando a arma, que ainda saía a fumaça do tiro, satisfeito com o tiro certeiro que dera, enquanto ele sangra, até que cai da árvore, morto.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Empatia é humana

Rüdiger Safranski, em sua biografia comentada sobre Schopenhauer, ressalta que o filósofo sempre abordou a necessidade de, de certa forma, doutrinar as suas próprias vontades - mesmo que conscientemente ele soubesse que isso fosse de todo impossível. De qualquer forma, ele ressalta um caso específico, que ele não apelidava de vontade, mas eu tomo a liberdade para fazê-lo, em que diz como a solidariedade é intrínseca ao ser humano. Mesmo que não quisermos, somos sempre levados a compartilhar um pouco do que o outro está sentindo - seja para o bem ou para o mal.

Já ouvi dizer, também, que o amor-fraterno, que é um outro nome para a solidariedade, assim como, veremos, empatia, e não o amor-erótico, seria o maior dos sentimentos humanos.

Isso tudo me veio à mente quando li, no início do "Do the androids dream of electric sheep", o narrador do livro de Philip K. Dick falando sobre como a única forma de identificar os androides que têm o sistema operacional mais avançado é aplicar um determinado teste - aquele que, no "Blade runner", tem um ponto fixo de luz vermelha - em que mede a empatia da pessoa. Nesse mundo, os androides não teriam empatia, que é um sentimento próprio para os que querem - ou precisam - viver em comunidade.

O problema, no livro, e um problema que, aparentemente aparece em diversas obras de Dick, é avaliar sob esses critérios os doentes mentais que não tem capacidade de produzir afecções, como os esquizofrênicos ou os esquizoides, conforme ele mesmo cita. Medir a humanidade pelas suas mais nobres características é, portanto, injusto. Ou, melhor dizendo, medir a humanidade é sempre injusto.  

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Ensinamentos


“Quando voltamos para a cidade, perdi logo contato com Klaus. Nunca mais o vi. Desapareceu como se eu nunca o tivesse conhecido. Às vezes, pensava que ele talvez não tenha existido mesmo, aí, começo a rir, sozinho, percebendo o que ele me ensinou.

“Voltei e quis viajar, quis sair de casa, quis mudar de vida. A minha casa já não me pertencia, já não podia ficar ali, estava completamente caustrofóbico, me sentia sufocado, sem ar. Decidi sair pelo Brasil, pelo interior, atrás de gente que pudesse me ensinar alguma coisa. Queria aprender, e não era a escola que me ensinaria o que eu queria aprender. A escola, esse formato, não era para mim, como não é para muita gente. Peguei um dinheiro que tinha economizado, juntei algumas roupas e fui. Saí de casa. Saí de casa para nunca mais voltar.

“Andei muito, conheci muitos lugares, aprendi com muita gente e também me tentaram enganar também, algumas vezes. Sempre haverá charlatães, como a minha mãe, que dizia que falava com os mortos, que incorporava espíritos. Uma mulher, uma vez, falou que para me ensinar eu deveria confiar nela. Ela me levou para a linha de trem e mandou eu ficar lá, em pé, até que ela me mandasse sair. Subi nos trilhos e fiquei parado. Ela disse para olhar para ela, para olhar só para frente. E eu fiquei lá. Horas. Sem nada a acontecer. O sol forte na minha cabeça, e eu com sede, mas não podia me mexer. Estava sem sentir os pés, de tanto tempo parado. E ela à minha frente. Depois de horas imóvel, escutei o trem se aproximando. E ela, impassível à minha frente. O trem vinha, apitava, e ela não fazia nada. O trem continuava, escutava os freios sendo acionados, e ela, sem mexer um músculo. No último instante, olhei com o meu canto de olho, usei a minha visão periférica, e pulei à frente, sentindo o trem passar raspando, logo atrás de mim. Quando caí, ela apenas disse, antes de ir embora: nunca confie em ninguém e siga apenas os seus instintos.

“Das coisas mais impressionantes que eu vi, eu lembro de uma mulher, no meio do sertão, acho que era Pernambuco ou Bahia, que matava com uma bacia d’água.

“Ela recebia a incumbência, colocava uma bacia de água na sua frente e ficava olhando para o líquido, quieta, entrando num transe, descendo mais e mais, até que a água não mais refletia o seu rosto, mas o rosto de quem quer que fosse o futuro morto, e ela prendia a respiração e a pessoa do outro lado começava a ter dificuldade de respirar até que caía no chão, azulada, sem ar, morta. A mulher também quase morria nesse processo, porque tinha que ficar tanto tempo quanto o outro sem respirar. Mas ela era velha, treinada, experiente, sabia se controlar.

“Fiquei com ela por quase quatro meses e só consegui, só fui autorizado a ver uma de suas mortes, e apenas na última semana. Ela era uma mulher que vivia só com uma sobrinha, que a ajudava nas tarefas caseiras, numa casa de palha, com chão de terra batida. Subia uma poeirada toda vez que alguém entrava. Era seco o lugar, mas tinha um açude perto, onde a sobrinha ia buscar água.

“Ela era velha, rosto enrugado, sempre com um pano prendendo o cabelo. Se dizia devota de Maria, mas também dizia que tinha essa maldição, que ela tinha que colocar em prática, se não a consumia, se não ela iria apodrecer por dentro e ia cair dura, seca, ela mesma. Nunca aceitava dinheiro pelas suas mortes e tinha que ser convencida pelo interlocutor de que o morto merecia morrer.

“Agora, ela dizia que não queria mais viver, e estava negando os pedidos de todo mundo que vinha até ela. Por isso, inclusive, disse ela, estava enrugada. Porque tinha perdido sua água. Ela só aceitou o pedido de uma mãe, sua vizinha, cuja filha tinha sido abusada por um primo. A velha se apiedou da mãe que chegou com ódio no coração, mas se sentia incapaz de matar o primo, que era mais forte e vivia numa casa grande, rica.

“A mãe morava também numa dessas casas de pau-a-pique e tinha vários filhos para criar. Só não tinha mais filho porque o marido tinha morrido, de um dia para o outro. O coração parou. A velha dizia que tinha sido um trabalho. Desde então, a mãe aceitava a ajuda do primo, rico, que morava na cidade. O primo sempre tinha se interessado pela filha mais velha, de 10 anos, mas ela imaginava que era coisa de família. Chamava a garota para passar o fim de semana com ele, na cidade, e até tinha levado a garota para a praia.

“Na volta de um desses passeios, a menina chorou dois dias e duas noites, sem parar. A mãe, depois de muito insistir, conseguiu que a menina desembuchasse o que lhe aperreava, mas a menina se sentiu culpada, como toda criança. O primo disse para a menina que se ela contasse algo para a mãe que ele nunca mais ia ajudar a família. A menina, porém, falou tudo para a mãe,  que foi em busca da velha. A velha me deixou assistir a essa morte.

“Ela foi para o quintal, com o sol a pino, tinha que ser ao meio-dia, com o horizonte amarelo de tanto calor. Trazia a bacia d’água, a colocou no chão, pegou um cadeira de madeira, sentou, e começou a olhar para a água. E respirou fundo, e inspirou e expirou, e o ar entrou e saiu, e ela segurou o ar nos pulmões por mais tempo, e ela soltou o ar, e o ar foi e veio, veio e foi, até a água começar a tremer, como se uma pedra tivesse caído no meio e as ondas tivessem saído do centro para as bordas, a água ficava cada vez mais nervosa, tremendo, balançando como em uma tempestade, até que a figura do primo apareceu: de bigode, cabelo gordurento com gel, para trás, barriga proeminente, sorriso largo de quem acha que é superior aos outros, camisa suada, moscas em volta dele, andando como se fosse um coronel, agindo como se fosse o dono do mundo. A velha começou a respirar mais fundo. Entrou o ar e não saiu mais. Ela só inspirava agora, parou de expirar. O corpo da velha cresceu, como se fosse uma bola, um balão, inflando. Ela parecia outra pessoa, o corpo enrugado agora se esticara. E o primo, do outro lado da bacia, começou a sentir a garganta apertar, segurou no colarinho da camisa de botão, e puxou para o lado, pigarreou, parou de andar, tentou inspirar e nada, se abaixou, se ajoelhou, abriu o último botão da camisa, arfou, mas nada acontecia, as pessoas se aproximaram dele, e ele foi ficando mais vermelho, mais vermelho, e a velha parou de respirar, trancou a garganta, apertou o pulmão, olhando  fixamente para a água, e o primo ficando mais vermelho, e agora roxo, se tremendo, se estrebuchando, tendo um ataque, era possível ver a vida saindo do corpo dele, era possível perceber como ele estava se perdendo, até que parou de se mexer. Era morto.

“A velha expirou todo o ar que tinha dentro de si, e uma ventania agitou todo o seu quintal, levantou poeira, como se fosse uma tempestade de areia, não foi possível ver nada a um palmo de distância. Eu me levantei para me proteger. Quando a poeira desceu, a velha está ainda sentada, respirando com dificuldade, com a sua sobrinha do seu lado, amparando, porque ela estava cansada. A velha foi levada para dentro da casa, para dormir um pouco.”

O que podemos saber?


“Eu também encontrei um dos nossos quando tinha mais ou menos a sua idade. De vez em quando, encontramos um dos nossos, um desses homens que, se quiser, nunca encontra a mortalidade, que não morre nem se a cabeça for cortada, melhor que o Highlander. Estava fora de casa, como eu sempre estava, para evitar encontrar as pessoas que viviam lá em casa – eu odiava ficar em casa, era sempre muito bagunçado, confuso, escuro, fedido – estava andando pela nossa vizinhança, a esmo, sem qualquer destino, apenas para matar o tempo e a angústia.

“Eu o vi na esquina, em frente à padaria. Dava para ver que era um homem pobre, mas ele tinha uma elegância incomum. Usava um terno púrpura que, apesar de gasto, estava alinhado. Sua postura foi o que mais me impressionou. Era magro, alto, parecia ter mais de dois metros, mas na verdade não tinha mais que um metro e oitenta. Estava apoiado no poste, olhando o vazio, mas sem ver. Destacava-se do seu entorno, como se fosse a única figura com cor, num ambiente sépia, a única pessoa em movimento, onde todos apenas eram fotografias congeladas, de um passado que insiste em se repetir. Era louro, de olhos claros. Usava um chapéu – no meu tempo de moleque, as pessoas usavam terno e chapéu, não ria.

“Era um dia morno, sem sol, mas a umidade castigava. Percebi que, aparentemente, ele também me enxergou. Depois de uns instantes, fixou os seus olhos em mim e me fez ir até ele. O seu olhar era tranquilo, não tinha qualquer interpretação. Era simples, direto, comunicava que ele queria falar comigo, que ele queria apenas me conhecer, que ele me achou diferente de todos os em nossa volta.

“Atravessei a rua e fui em direção a ele. Ele me ofereceu um cigarro. Eu não fumava, mas aceitei. Ele me disse o seu nome, Klaus. Era alemão, tinha vindo para o Brasil na época da Guerra. Na Alemanha, ele estudava o cérebro e os limites do pensamento. O governo nazista gostava do assunto e o incentivava, mas quando acabou a guerra, ele foi visto como um traidor e tinha sido condenado à morte. Como ainda achava que poderia prosseguir com suas pesquisas, decidiu fugir. Conseguiu chegar ao Brasil e vivia de bicos, de conseguir que os outros pagassem as coisas para ele. E ele falou que isso era fácil. Eu duvidei – era novo, não sabia ainda nada – e ele sorriu para mim, como quem dissesse: inocente. Ele decidiu, então, me mostrar. Fomos ao supermercado do lado da padaria. Entramos e ele andou pelos corredores até encontrar uma fila de pessoas, comprando algum produto escasso, carne ou algo assim. Ele entrou na fila e começou a conversar com aquelas senhorinhas que estavam na fila antes dele e, em menos de cinco minutos, já tinha convites para almoçar ou jantar de duas senhorinhas de cabelos brancos.

“Decidi aproveitar e aprender tudo o que eu podia com esse homem. Voltei em casa, peguei a chave da nossa casa de praia e fomos, naquele mesmo dia, para lá. Ficamos três semanas lá. A primeira coisa que ele fez ao chegar e nos instalarmos foi perguntar o que eu queria saber. Eu, ainda muito cru, perguntei o que é a verdade. Ele olhou para mim, sorriu ternamente, com carinho, e respondeu: é uma mentira.

“Aquela resposta ficou rodando dentro da minha cabeça e eu não consegui perguntar mais nada naquele momento. Fiquei desconcertado. Ainda acreditava em algo que fosse a emanação de todas as outras coisas. Por um lado, é um pensamento mais simples, que, se não nos esforçarmos muito, acabaremos tendo. Por outro, não há como fugir de nosso ambiente, de nosso entorno e sempre repetimos o que estamos acostumados a ouvir, até que conseguimos nos livrar disso, nos libertar, nos tornarmos independentes. Portanto, eu ainda repetia, sem perceber a ideia de um deus, que fosse o dono, o criador das demais coisas, fosse a verdade, e o restante fosse apenas o reflexo dele, um reflexo opaco, sem comparação com o brilho original, quando na verdade, somos um erro, somos o máximo que a evolução chegou – mas o mundo já viveu gerações e gerações sem que nenhum ser vivo aparecesse, e o mundo pode continuar sem nenhum ser vivo. Somos coadjuvantes, somos colaterais.

“Dias depois, após raciocinar muito sobre a resposta dele, sem chegar a qualquer conclusão, sem entender bem o que ele tinha dito, apenas achando a frase estilosa, como tudo o que ele fazia – era um homem elegante – tomei coragem e o perguntei, diretamente, o que ele queria dizer, o que quis dizer com a verdade ser mentira. Novamente ele me deu um sorriso de ternura, como se achasse engraçado eu estar passando por esses tipos de dúvidas, mas também entendesse que era algo normal para mim, como se ele, de certa maneira, se visse em mim, como se eu estivesse seguindo, sem saber, o caminho que ele tinha trilhado um dia, lá na Alemanha. A verdade é uma invenção, disse ele, a verdade não existe, só existe mentiras, ficções, que nós acreditamos. Mas não é ruim não existir nenhuma verdade?, tentei ainda perguntar, mas já completamente confuso. Ele respondeu que não, não havia nem bom nem ruim. Isso também era invenção. Perguntei se a vida, se o mundo não era ruim, ele disse que a vida não era boa nem ruim, a vida é.

“A vida é. Aquela frase, aquela frase, interrompida, assim, no meio dela, como se faltasse algo, como se pedisse que alguém a completasse, como se causasse propositalmente um estranhamento para despertar um interlocutor, mas apenas o interlocutor razoavelmente curioso, porque o adormecido iria passar sem perceber que a frase acabou antes de terminar. A vida é. A vida é o quê?, me perguntava, sem saber que estava fazendo a pergunta errada. Sem saber que essa pergunta não existia, sem saber que qualquer resposta poderia se encaixar ali, sem saber que a vida é o que ela é, no momento que ela está sendo, para quem for que esteja vivendo.

“Minha cabeça ficava cada vez mais confusa. Meus raciocínios não chegavam a qualquer conclusão. Eu queria clareza, mas uma clareza a que eu estava acostumado, com uma luz fraca, enquanto ele acendia um farol para onde eu não conseguia olhar diretamente, porque não estava acostumado, porque tinha medo de ficar cego. Nós temos medo de saber, de conhecer porque pode nos desconectar com a nossa vida, pode nos levar a um mundo onde o chão é gelatinoso, onde o ar é duro, onde tudo o que conhecemos é diferente, e teremos que nos adaptar, teremos que nos modificar – e raros são os que querem mudar, raros os que querem sair do chão, mudar de ar, se movimentar. O resto gosta de raízes que o identifiquem com o ambiente, que ele não precise fazer qualquer esforço. Eu quero remar contra a maré – como diz o Cazuza, para me exercitar. Eu quero mais sofrimento, para fortalecer esse meu músculo, esse músculo que não existe fisicamente, mas que é o único que nos faz andar, realmente. Enquanto as pernas caminham, mas não saímos do chão, esse músculo, que é treinado, que é exercitado com o sofrimento, com os problemas, ele é o que nos faz avançar, é o que nos fortalece, nos prepara.

“Extremamente confuso, perdido nos meus raciocínios que não chegavam a qualquer conclusão, interrompi o café dele na manhã e o metralhei com diversas perguntas. Hahaha. Eu era tão inocente. Até curioso pensar nisso, hoje. Perguntei o que havia no mundo, antes do mundo existir. Perguntei para que nós existimos. Perguntei como sabemos se estamos fazendo a coisa certa. Perguntei qual caminho tomar. Ele me ofereceu um cigarro. Tomou mais um gole do café e falou para segui-lo.

“Fomos andar na praia. Eu sei, é meio clichê, mas estávamos em frente ao mar, e era 1950, quando os nossos atuais clichês foram criados. Ele me perguntou: por que o mar tem ondas? Porque a gravidade da lua afeta a água, respondi, cheio de mim. Ele sorriu, ternamente. E por que é ritmado? Por que há uma onda e depois outra, por que há um balanço? Eu não sabia responder. E ele também não dizia nada, apenas me olhava, ternamente, no que eu interpretei na hora como se fosse uma cobrança. Aquilo me angustiava. Não saber o que de alguma coisa, o motivo, o porquê, aquilo me consumia, aquilo começou a me fazer mal. Era um dia nublado e frio, típico do inverno na costa, com céu cinzento e vento constante. Mas eu sentia um calor que não tinha razão de ser, sentia um peso, a minha vista escurecendo a cada piscadela, até que uma hora eu quase desfaleci. Me abaixei, ajoelhado, cansado, como se tivesse gasto toda a minha energia procurando uma resposta de algo que eu nem mais lembrava o que era.

“Ele esticou a mão para me ajudar a levantar e disse apenas: tente focar sua energia naquilo que você pode saber. No que você não tem como saber, espere até a resposta vir a você. E quando levantamos, eu estava ainda um pouco confuso, eu olhei para o mar e fiquei muito impressionado, fiquei o mais impressionado que já fiquei na minha vida, antes daquilo e até hoje, quase 50 anos depois, eu olhei para o mar e não havia uma única onda,  o mar estava mais parado que uma piscina, estava quieto, tranquilo, calmo.

“Ele me levou para casa e eu ainda pude dar uma olhada no mar, antes de entrar, e o mar continuava sem qualquer movimento.  Entrei e apaguei no sofá, como se eu não dormisse há semanas, como se eu estivesse gasto todas as minhas energias, como se estivesse esgotado. Quando eu acordei, a primeira coisa que eu fiz foi olhar o mar e ele estava agitado como sempre esteve.”

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Rússia negra

No sábado, íamos a uma festa no Sul de Londres, e decidimos pegar um ônibus no Centro, perto do Parlamento. Saímos do metrô e tivemos uma grande surpresa: toda a rua estava fechada. Vimos diversos policiais vestidos para o choque e suspeitamos que era um protesto grande, mas não tínhamos ideia do que era. Como Londres é a capital do mundo, no lado oriental do Atlântico, a primeira sugestão era de russos, que estão reclamando uma fraude nas eleições parlamentares.

Chegando próximo a Trafalgar Square, vimos que os manifestantes eram todos negros. Ficamos assustados quando um deles foi preso. Vimos que eles estavam encurralados em um pequeno quadrado embaixo da estátua de Nelson. Nos aproximamos e um homem grande, corpulento, se aproximou e nos disse: "não tenham medo, nós estamos aqui apenas protestando por nosso país". Explicamos que não estávamos com medo, mas curiosos, porque queríamos saber o que estava realmente acontecendo, em vez de apenas passar ali sem qualquer relação. E ele contou que eles estavam protestando contra uma suposta fraude nas eleições presidenciais.

Com toda a diferença histórica, a importância econômica e relevância no cenário internacional entre as duas nações - para usar apenas alguns detalhes - achei curioso que ninguém - no meu círculo, claro - estivesse comentando esse caso do Congo, enquanto o da Rússia era razoavelmente corrente.

Isso me lembrou um filme de advogado baseado num bestseller do John Grisham, "A time to kill". O fim, a pior parte do longa, mostra a fala do advogado de defesa que quer absolver um pai que matou os acusados de estupro de sua filha, assim que eles foram absolvidos pelo caso. O livro é situado no Sul dos EUA e mostra o racismo como um problema ainda não resolvido na região. A menina estuprada era negra, os acusados, brancos, rednecks.

O advogado começa a sua preleção descrevendo de maneira genérica, sem dar nomes ou relacionar diretamente com o caso em questão, toda a cena do ataque à garotinha, com requintes de detalhes, mostrando o quão cruel e ignóbeis foram os dois acusados e como era revoltante aquela situação. Só que, ao fim, num twist de retórica, e demonstrando como as pessoas estão entranhadas no preconceito, ele pede para que as pessoas imaginem que a menina do caso que ele estava narrando não era a filha do seu cliente, mas uma criança branca.

Imagine o Congo branco.

Energia solar

"Desertec", a largely German-led initiative that aims to provide 15% of Europe's electricity by 2050 through a vast network of solar and wind farms stretching right across the Mena region and connecting to continental Europe via special high voltage, direct current transmission cables, which lose only around 3% of the electricity they carry per 1,000km. The tentative total cost of building the project has been estimated at €400bn (£342bn).
O "Guardian" fala sobre um projeto no deserto do Saara de energia limpa. Segundo um estudo de 1986 - que eu não sei qual é, nem sei a confiabilidade - o deserto do tamanho de Gales receberia mais energia do sol em seis horas que toda a humanidade consume em um ano.

É uma boa lenha para a fogueira das vaidades de Belo Monte

sábado, 10 de dezembro de 2011

Esculacho

Temos – quem tem essa prática de escrever, sejam escritores, jornalistas ou qualquer amador que traça linhas mais a sério – uma propensão à linguagem mais dura, mais antiga, mais tradicional, mais gramatical, mais registrada em outros livros, em vez de abrir os ouvidos para o que está acontecendo lá fora, nas ruas, nesse momento.

Claro que há grandes escritores com ótima audição que conseguem transformar o que escuta em palavras, dando ritmo e coloquialismo a frases que não foram registradas. Mas admito que, talvez por ter esse passado de letras, é muito difícil para mim escrever coisas simples como um “tá”, sendo que ninguém que eu conheça diz, hoje em dia, “está”. Escrevo e não sei bem como deixar, ou como conjugar, ou como fazer para que soe, ao mesmo tempo, natural e correto.

Esses dias ouvi uma palavra que é do vocabulário comum de qualquer pessoa, ao menos, de qualquer carioca, e que eu raramente vi em um jornal, quiçá – ou nem mesmo, já que é um espaço para experiências – em um livro: esculachar.

Todo mundo sabe o que é, não precisa que eu a explique, mas quase ninguém a usa formalmente. Por que isso acontece? Bem, provavelmente por uma lentidão dinossáurica dos meios escritos em assumir a oralidade, dicionarizando novos vocábulos.

No caso de esculachar, há até uma curiosidade: a palavra está dicionarizada. Segundo o Houaiss, a provável etimologia vem do italiano “sculacciare (1598) 'dar palmadas nas nádegas, especialmente em crianças', derivação parassintético de culo 'cu, ânus, nádegas'”. Por que, então, não se usa esse tipo de palavra?

Lembro de um uso, quando prenderam um criminoso famoso e ele pediu para não ser “esculachado” pela polícia. Há casos de músicas, que aceitam melhor a oralidade, mas, pensando ainda de uma maneira massificada, a palavra não é usada comumente nos meios escritos mais tradicionais. Por quê?

Uma possibilidade é a interpretação da palavra como algo muito pueril – não, pueril não é a palavra –, como algo raso – hum, também não – algo simples – quase lá – popularesco. Como algo popularesco. Acho que é isso. Há uma conotação social na palavra.

Só quem é pobre que a fala, comumente. O rico, quando a fala, está querendo usar os códigos relacionados aos pobres, como a malandragem, a fácil assimilação social, a camaradagem generalizada, etc. etc. etc..

E, como se sabe, no nosso país, os meios escritos são, claro, tradicionalmente um meio mais elevado, voltado para poucos e bons.

Um esculacho isso.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Pubs preferidos

"Saving pubs is now a policy in my 2012 mayoral campaign. 
In the 1960s, if you wanted to drink you went to the pub. People didn't used to have booze in the house back then and there seemed to be a pub on every block."
Ken Livingstone, candidato trabalhista para a prefeitura de Londres nas eleições do ano que vem.
O "Guardian" fez uma homenagem a George Orwell - que, além de ser autor de clássicos como "1984", trabalhou na BBC e foi colunista do "London Evening Standard" [!!!], onde escreveu um texto intitulado "The Moon Under Water", em que imaginava como era o pub perfeito, e que, por sua vez, inspirou um livro recém-lançado chamado exatamente "The search for the perfect pub: looking for the Moon Under Water" - e perguntou a figuras de renome qual era o pub preferido deles. Coincidência o primeiro nome ser o do moço aí em cima e o jornal ser de tendência liberal. Fora ele, só há músicos. É uma ótima oportunidade para os groupies de plantão saber onde encontrar gente como Carl Barat {Libertines], James Dean Bradfield [Manic Street Preachers], Guy Garver [Elbow], Liela Moss [Duke Spirit].

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Remix literário

"O leitor mais atento vai perceber que a passagem anterior passa por várias citações de um determinado filósofo que me interessa muito, e que, por acaso, estou lendo agora. Não, não tenho intenção de dizer quem é. Estou aqui para ajudar, mas com todo o respeito que eu tenho por você, meu querido e estimado leitor, sugiro que se levante de onde está e procure você mesmo. Use a internet e tenho certeza de que não será that hard, além de, talvez, bem mais recompensador. Ao vagar pelo espaço cibernético sem muito destino ir descobrindo assuntos correlatos e textos instigantes até o grand finale – que deve [no sentido de “tem que”] ser apenas um novo início.

 A única dificuldade que eu imagino que deva existir está no fato de eu ter retrabalhado as citações do filósofo. Peguei a frase e a tirei do seu entorno, tentando, porém, manter um pouco do contexto, ou adicionando a minha interpretação. O que, no caso, modifica muitas coisas, claro, mas é como se fosse um acréscimo, um avanço, um se adiantar um pouco. Ou, ao menos, um sair do lugar. Também pode atrapalhar um pouco o fato de eu ter usado uma edição cuja tradução foi bastante criticada, já. [Antes que me perguntem porque eu a comprei, já respondo: era a mais barata. Sou tradutora, tenho orgulho dos meus pares, mas o meu salário não condiz com as minhas intenções.] Já chegaram a dizer que a tradução é um plágio de outras traduções! Ou, melhor, um amálgama! Pega-se daqui um pouco, acrescenta-se ali um tanto, retira de outro lugar e [quase] ninguém vai reparar, já que raramente as pessoas leem duas versões da mesma obra e a ficam comparando – como eu, às vezes, me pego fazendo.

Além do problema ético – roubo da propriedade intelectual – e econômico – está deixando de pagar os verdadeiros tradutores por seus trabalhos, há o maior deles, provavelmente: a mudança de tom na tradução, o que é agravado no caso de livros de filosofia – mas não só os de filosofia, claro. Imagine você que o Tradutor 1 use uma palavra X para designar o conceito Y. Durante a leitura da versão da tradução feita por 1, estamos acostumados com a palavra X. E todas as vezes que a lemos, pensamos em Y. Porém, o Tradutor 2 entende o conceito Y diferentemente e o traduz como Z. Então, quando formos ler a versão-amálgama, nos perderemos sem saber se Z é um novo ou o mesmo conceito de X. Não tendo acesso ao original, a situação pode ser ainda pior caso o Tradutor 3 use a palavra Z para o conceito W. Ou seja, para uns casos, Z quer dizer Y, para outros, W. E em alguns casos, Z é igual a X. Enfim. Após essa sopa de letras, dá para entender como a questão é problemática.

Fiquei pensando agora sobre o que eu fiz acima. Também peguei uma versão e a mexi. E a retrabalhei. Não é um plágio. Mas não estou dando o devido crédito para o seu autor primeiro. Mas o que eu fiz foi sair desse caminho e partir para outro. Mas isso, de certa forma, também é apropriação indevida. Mas eu fiz apenas um colagem, uma citação, uma referência. Um remix. Remix. Que medo de usar essa palavra e parecer que estou tentando parecer moderna.

“E como ficou chato ser moderno / agora serei eterno”, já dizia Drummond, num dos típicos casos em que a internet se presta ao exemplo de demonstrar como a questão da autoria é complexa demais para se resumir à assinatura do texto: nas buscas pela web em português essa frase é mais atribuída a Picasso que ao próprio autor, mas quando se procura em espanhol, a frase volta a ser de Drummond. No fundo, se a mensagem for passada, qual é a importância – para o mundo – de quem a escreveu? Claro que se olharmos para um caso específico, para o do autor, himself, talvez ele seja menos reconhecido e, assim, tenha mais dificuldades de sobreviver. Um artista basea boa parte de sua busca pela sobrevivência em seu nome. Quanto mais conhecido for, maior é a probabilidade de ser mais fácil viver, conseguir vender mais, trabalhar com outros negócios correlatos. A questão principal é: isso não modifica em nada a produção da frase. Afora o fato de que o único objetivo do artista é produzir arte – nada além disso, mesmo que isso soe extremamente romântico e que sugira que o artista deva passar fome para sobreviver ou trabalhar em outros empregos – o artista não muda o que foi dito, escrito, desenhado, tocado, construído, após o ponto final. Ele pode jogar fora o que escreveu, mas se tornar público, se mostrar ao público, já não pertence mais a ele, ou apenas a ele. O leitor, o espectador, o receptor, não apenas hoje em dia, mas sempre, é parte tão fundamental na construção da obra como o próprio produtor, quem mete a mão na massa. É um típico caso de interrelação – de jogo – em que um não sobrevive sem o outro, e que a arte faz o intermédio entre os dois lados, que não necessariamente são opostos, mas raramente estão no mesmo corner.

Ao ter contato com um texto, o leitor o recria em sua cabeça, de maneira que ele se torne único, um objeto diferente do que foi passado, do que existiu. Ele busca em sua caixa de referências os modos de decifrar esses códigos e abrir a porta que vai lhe proporcionar o deleite, o gozo, o prazer. Por conta destas consequências, aliás, essa procura interna por ferramentas não pode ser algo exatamente racional, ou mediada por uma intenção, um propósito, mas algo que tenha bastante do intuitivo, que trabalhe com o impulso, com o que há de primeiro, de espontâneo, de explosivo dentro de nós, para que possa ir – pensei em escrever circular, mas a melhor é opção é serpentear [ou torcicolar, palavra que eu achei um luxo] – para que possamos seguir ondulantemente, ou melhor ainda, sinuosamente, com curvas côncavas e convexas tendendo ao infinito em que cada raio diminui ao passar pelo meridiano imaginário que separa os dois hemisférios.

Por isso, talvez, esse nome “remix”, que hoje é tão incensado [palavra dúbia que quer dizer tanto “elogiado” quanto “ludibriar”] é apenas uma nova forma de chamar algo que sempre existiu. O hábito de revisitar o que já foi dito-produzido, e re-produzir – que é diferente de reproduzir. Se no último caso é uma questão de cópia, de repetir os mesmos códigos nos mesmo lugares – o que, como veremos, já é uma tarefa impossível em si – no segundo, é saber que se vai produzir um novo material a partir do que já fora produzido. “Novo”, no caso, é uma figura de linguagem, ou força do hábito – mas no sentido de que algo que não existia fisicamente antes e agora há.

Sobre a impossibilidade de se “reproduzir” algo, temos diversos exemplos bons na história da literatura. Basta pensar que a provável mais conhecida peça teatral do mundo não é original – ou não é a primeira a contar a história do príncipe da Dinamarca. Há relatos que Shakespeare teria copiado uma outra versão anterior de “Hamlet” – isso sem contar com toda a central de boatos envolvendo o maior bardo inglês. Porém gosto de citar sempre o caso de Pierre Ménard , esse homem que em pleno século XX tentou a tarefa inglória de escrever – reparem, não tentou reescrever, mas escrever – o “Quixote”. Ao fim, conseguiu alguns lampejos de originalidade, mas o caso era complexo demais para ter uma solução simples e totalmente satisfatória. E, last but not least, de um amigo meu, escritor pouco conhecido, chamado Ronaldo Pelli que sofreu com acusações de plágio por conta de um de seus contos, em que ele, sem qualquer conhecimento da versão anterior do tema, repete frases inteiras de outro conto, de um outro escritor, esse sim de renome, relevante, reconhecido e, como já disse, uma espécie de meu avô literário, Jorge Luis Borges – que, aliás, dizia que não existe “originalidade”, porque não há origem, nem “versão final”, porque não há fim."

Bourdain x Jamie Oliver

Anthony Bourdain, sobre Jamie Oliver, em 2001:

"Every time I watch his show, I want to go back in time and bully him at school."

Sobre Nigela, no mesmo artigo:

"While she may not look like too many cooks I know, she does seem to cook a lot of exuberantly cheesy, fatty, greasy stuff - not shying away from the butter and cream - which puts her on the side of the angels in my book. How many upper-crust widows do you know who say, "Fuck it! Let's eat what's good!" Not many. I like her."

O artigo todo, sensacional como sempre, aqui.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Polos opostos e similares

"Meu pai entendeu que eu queria ser um escritor, respeitou isso e me permitiu não fazer nada além de ler -me dava até um dinheirinho para comprar livros-, enquanto minha mãe achava que eu não seria ninguém."
Orhan Pamuk, no Brasil, explicando como se transformou no que ele é.

[Mais Pamuk aqui, onde ele fala que ser escritor não foi a sua primeira escolha artística]

'Procrastinação' (trecho): Citações religiosas


“Quando surgiu, o cristianismo se valeu da imensa vontade de suicídio que havia entre as pessoas. Imagine viver em uma época em que não havia qualquer conforto. Viver era um terror, era uma constante privação, era um eterno sofrimento. O cristianismo fez desse desejo pela morte, pela auto-aniquilação, uma alavanca para o seu poder: carregou de culpa, de uma espécie de pré-culpa, uma culpa de algo que você nem fez, mas que pensou em fazer, de uma culpa pelo pensamento – o cristianismo foi um mestre em culpar o pensamento, até o mais inocente dos pensamentos –, carregou de culpa todos os tipos de suicídio, multiplicando imaginariamente a sensação do incômodo do real, da vida real na cabeça das pessoas, trabalhando com a fantasia, com a criação de cada uma das pessoas para que elas soubessem, ou imaginassem, ou vivenciassem o que seria, como seria a vida delas caso se matassem, caso eles interrompessem suas vidas, caso eles tomassem uma atitude contrária ao dogma pregado. E o que eles viram era pior que choro e ranger de dentes.

“Os homens viviam constantemente agoniados, porque não conseguiam enxergar uma saída, porque estavam sempre vivendo vidas miseráveis e convivendo com o sofrimento alheio. A única forma de se aliviar era a Igreja, era a confissão, era o desabafo no ouvido do padre que, dessa forma, tinha acesso a todos os segredos da comunidade, e portanto poderia controlar o que acontecia porque conhecia os mais íntimos segredos de cada um dos habitantes de seu vilarejo. Tinha acesso à informação, e não podia contar a ninguém, porque a confissão deve ser secreta. Mas, em uma posição privilegiada, o clero podia controlar as demais pessoas – e era o que acontecia.

“Para falar a verdade, a igreja não negou todas as possibilidades de suicídio: negou todas as possibilidades de saída, de escolha, de decisão. Porque ela manteve duas formas de suicídio, apenas duas, e as revestiu das mais altas esperanças e da mais importante dignidade: o martírio lento e o aniquilamento dos ascetas.

“Em todas as religiões, o homem religioso é uma exceção. A oração foi inventada pelos homens que nunca tiveram pensamentos próprios. Não sabem o que fazer nos momentos importantes de suas vidas, nos momentos mais elevados, quando eles percebem que deveriam se comportar com alguma dignidade. Eles não sabem o que fazer.  Foram anos sendo catequizados para não pensar nada além do que era autorizado. Doutrinados para apenas repetir, para ser o moto-contínuo, para repetir o que vinha de trás e jamais colocar a cabeça para fora.

“Os fundadores das religiões, para evitar maiores problemas, criaram a oração como forma de doutrinar o pensamento, adestrar o homem comum, o homem do bando, o homem da manada. A oração é a etiqueta do pensamento. É a cela vazia, é o caminho estreito, é a repetição que esvazia o raciocínio. É o dizer sem querer dizer, é o afirmar sem ter completa noção do que se está falando. Proibir ao homem menor de dizer suas orações seria roubar-lhes suas religiões.

“Quando encontramos a defesa da moral, quando ouvimos das pessoas a necessidade de moralizar as ações, quando percebemos que há um anseio por uma doutrinação, estamos escutando os argumentos do pensamento de rebanho. Quando há um argumento de que a necessidade da maioria é mais importante que a vontade de um único indivíduo, que esse único indivíduo deveria baixar a cabeça, não voar mais alto, porque, por outro lado, estaria atrapalhando o funcionamento de todo o grupo. O pensamento de rebanho é um pensamento de preservação da espécie, que não afirma a vida em todas as suas possibilidades. Limita o ser humano até onde ele acha que pode ir, para não atrapalhar, para não despertar a inveja dos demais, para não desestabilizar a ordem, a falsa ordem que falsamente organiza o rebanho. Pela moral, o indivíduo é instruído a viver em função do rebanho. Quando o indivíduo sai de um rebanho e vai para outro, deve se aclimatar às novas morais. Ele sempre é limitado, ele sempre se deixa limitar, sempre se diminuindo, se apequenando pelo seu entorno, não tentando encontrar o próprio caminho, descobrir qual é o seu verdadeiro tamanho, perceber a direção para onde o seu vento sopra, qual é o formato de sua pegada. A moralidade é o instinto de rebanho no indivíduo. Por isso, sou contra toda a moral, sou amoral, sou a favor da ética.

“Faça aquilo que você acha que deve fazer, e tenha coragem e força para aguentar todas essas consequências. Não pense que elas te trazem apenas felicidade imediata, elas têm consequências, mas apenas o homem sem visão, o homem míope, que joga com as regras de outras pessoas em vez de impor as próprias, pensa que essas consequências podem ter uma conotação – seja negativa ou positiva. Elas apenas são. Nada além disso. Acontece o que tem que acontecer. Não é um destino, é o inverso. Não existe a possibilidade de fazer algo diferente do que aconteceu. Não é possível voltar, não é possível retornar e tomar outra oportunidade. Assim que se tomou uma decisão, vá em frente, siga adiante.

“O mundo dança entre os dois polos e nunca podemos congelar um instante. Estamos em constante mutação. Pensar que um momento ruim é ruim apenas é não perceber que até os momentos ruins têm coisas boas, assim como o inverso. O bom tem dentro de si o ruim, como o seu inverso, como se fosse uma bola, um círculo, um grande cubo em que as características estão constantemente misturadas, e são, em si, mescláveis, podem ser uma coisa e logo são outras, e elas podem se transformar, e elas são diversas coisas ao mesmo tempo, sempre mudando, nunca podendo se congelar o momento.

“Imagine uma ampulheta que em vez de duas meias-bolas tivesse apenas uma e inteira e que estivesse em constante mutação, em constante movimento. E que cada grão de areia não fosse apenas areia, mas a antiareia, o inverso da areia, e todos os estados fluidos entre a areia e a antiareia. E conforme a bola-ampulheta se movimentasse, porque é impossível ficar parado, nada fica parado, tudo está em constante movimento, os grãos mudariam a todo momento de areia para antiareia, passando por todos os estágios intermediários.

“A pior coisa que a Revolução Francesa fez foi matar o Lavoisier, que conseguiu resumir em uma frase o que eu quero dizer: nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Foi acusado logo pelo Marat, pelo Marat, que é mais conhecido fora da França por aquela pintura do Jean-Louis David, de quando ele foi morto pela partidária dos girondinos; pois bem, Lavoisier foi acusado de vender tabaco de baixa qualidade! O grande cientista foi acusado de vender tabaco de baixa qualidade! Foi guilhotinado. Perdeu a cabeça. O curioso, o curioso nessa história é que Marat, um jacobino, extremista, morreu antes, quase um ano antes. E sua morte desencadeou o período do terror, que você sabe melhor que eu como aconteceu.

“Outra curiosidade é que essa mesma máxima, que ninguém sabe realmente se foi dita pelo Lavoisier, mas que ficou associada à figura desse homem morto na guilhotina por causa de tabaco de má qualidade, é que mesma essa frase, também não é uma criação sua, mas uma transformação de outra, de um grego chamado Anaxágoras, que dizia que ‘Nada nasce nem morre, as coisas já existentes se combinam e depois se separam’. É curioso que mesmo a frase, mesmo essa coisa simplória como uma frase, um pedaço de código, uma sentença perdida, uma combinação quase aleatória de palavras, nem isso pode ser original, não é novo, não aparece, não brota da terra, não não-existe e depois existe, ela sempre existiu e vai mudando, vai se adaptando, vai se encaixando aos ouvidos de seu tempo, os ouvidos que nunca querem escutá-lo, que se tapam, que criam pálpebras para evitar que as palavras estranhas, palavras que possam modificar, que possam desestabilizar, que deixem o chão mexido, que trema sua vida, para impedir que esse tipo de palavra entre, para impedir que as palavras que poderiam ir contra à ordem, à moral, ao rebanho, que pratiquem a tentação. Como a história da maçã.

“Lúcifer foi o único anjo que desafiou Deus. Lúcifer vem do latim lucem ferre – aquele que suporta a luz. Era assim como os romanos, herdeiros da tradição grega, que não respeitava uma moral que impunha a vergonha da culpa, era assim que os romanos chamavam Vênus, o planeta que anunciava o sol, o arauto de um novo dia. É fácil. Luz, sol = Deus. Lúcifer, aquele que o anuncia, aquele que o suporta, aquele, que, de certa forma, vem antes, que é mais forte, Lúcifer = antideus, ou, pior, Lúcifer > Deus. Não poderia dar certo.

“O homem tinha que ser doutrinado a não desafiar deus, e, por consequência quem fosse o portador de sua mensagem. Por isso, mostrou-se, foi imbuído nas mentes de todas as pessoas que por conta da Eva, da mulher, coitada, que aceitou a maçã-proibida, da árvore proibida, todos agora sofreríamos. Essa passagem é tão forte que dá para vê-la por dois pontos cruciais. Primeiro se propõe que estamos pagando uma conta que não é nossa, mas que, por conta de uma semelhante, e logo a mulher, que é mais forte, que naturalmente aguenta mais as dores, que carrega dentro de si as gerações seguintes, que é a responsável pela prole, portanto a mais perigosa dos seres, já que pai do filho nunca é óbvio como a mãe o é, portanto que deve ser combatida, diminuída, humilhada, colocada por baixo, sobre todas as responsabilidades do mundo, a mulher, por conta dessa mulher, nós sofreríamos, nós não viveríamos mais – e eu sublinho essa palavra – num paraíso – incrível como a palavra aqui parece se encaixar perfeitamente, mas que não diz muita coisa, já que não sabemos o que era esse paraíso, ou essa definição é uma definição moral, datada à moral de uma época e não algo atemporal, ética.

“Além dessa culpa que amarra, que acorrenta na perna uma bola de ferro, que prende a uma masmorra, além disso, essa mesma anedota, esse mesmo conto propõe ainda uma atitude passiva, que seja contrária à ação, que se espere que aconteça, que viva sobre a influência de deus e de seus mensageiros, de seus enviados, que são escolhidos pelos seus superiores, sob que tipo de critério, não sabemos, e sob quais circunstâncias, podemos apenas intuir. Portanto o homem e principalmente a mulher devem se martirizar pela pretensa burrice de si mesmo – porque quem garante que você também não cairia em tentação? – e deve esperar os padres da igreja para tentar se resguardar para, talvez, um dia, entrar novamente nesse paraíso perdido, nesse lugar idílico que é, por si, totalmente moral.

“Em vez disso, por que não se orgulhar da decisão de Eva, que queria pensar maior que o paraíso lhe permitia? Por que não perceber em Eva a primeira mulher, a primeira pessoa que desafiou uma moral estabelecida? Que queria apenas saber como era algo que não conhecia? E nem vamos voltar à questão de Lúcifer, que caiu porque desafiou esse deus todo poderoso, que não aceita nem o diálogo. Não me assusta que as ditaduras tenham uma inclinação ao catolicismo.

“Quando nasceu, Zaratustra sorriu e por isso o sacerdote da vila mandou o pai dele matá-lo. Onde já se viu uma criança sorrir em vez de chorar ao nascer? E o pior: o seu pai o colocou na fogueira. Mas ele não se queimou. Depois, colocou a criança para ser pisoteada por uma manada de bois, mas um animal o protegeu. Depois, o colocou no meio da floresta, mas Zaratustra sobreviveu a tudo.

“Antigamente, o que havia de pior era viver isolado, porque queria dizer que era quase a morte. Hoje, com toda a nossa tecnologia, isso chega até a ser engraçado, mas se você pensar que houve um tempo em que as pessoas dependiam uma das outras para tudo, para trabalhar na lavoura, para construir novas casas, para costurar roupas, para combater os invasores, se tem acesso ao motivo pelo qual a moral nasceu. O homem abria mão de sua liberdade, de seu sentimento de poder fazer o que ele bem queria para viver dentro dessa sociedade. A moral, portanto, sempre nivelou por baixo, sempre se prestou ao mais baixo nível para que todos estivessem incluídos.

"Imagine um mundo em apenas de duas dimensões – você pode escolher quais dimensões quiser: comprimento, profundidade, altura, qual você quiser, mas só duas. Imagine um mundo só com comprimento e profundidade, sem altura, por exemplo. Tudo é completamente raso, plano, não existe nada acima de nada, não existe o abaixo, todo mundo só vive em duas dimensões, são totalmente comprimento e profundidade, só isso e nada além. E então, um dia, chega um helicóptero, um objeto voador, algo que não está dentro do que as pessoas estão acostumadas. É sobre isso que estou falando.”

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Entendendo os riots

"[...] Em vez de achar que é o fim do mundo, as pessoas deveriam achar que essa é a uma ótima oportunidade para se pensar os problemas da sociedade inglesa." Assim, eu deixava uma sugestão singela, ainda no calor dos riots, sobre o que se devia fazer para entender o acontecimento e, por consequência, o seu entorno - isto é, a Inglaterra.

Parece que eu não fui o único a pensar isso. O "Guardian" começou a publicar uma série de reportagens sobre o evento que aconteceu no verão e assustou a tão resguardada sociedade inglesa. Junto com um laboratório de jornalismo de uma universidade local, eles entrevistaram um grupo de pessoas que participou da série de quebra-quebras e protestos e chegaram a conclusões diferentes das publicadas na época.


Para começar, eles não concluíram que houve um motivo, mas vários. Entre eles o horror à polícia - eles alegam que há uma perseguição -, incerteza sobre o futuro, grande marasmo, falta do que fazer, e até a simples vontade de roubar, de ter certos produtos que eles não teriam grana para comprar. São explicações bem genéricas, porém bem longe das conclusões de que os riots eram coisas de gangues, como se chegou a ser dito. Ou que eram coisas de gente pobre, adolescente, sem instrução, da população negra. Eles até são pobres, adolescentes, sem instrução e negros, na sua maioria, mas em nenhum momento usam isso como justificativa para os ataques. Enfim. Bela reportagem.

As escolas cervejeiras

Foi apenas uma coincidência nós termos visitado apenas países que têm uma tradição em comum muito particular: Inglaterra, Bélgica e Alemanha são conhecidas como as grandes escolas de cerveja do mundo. Foi uma coincidência, mas uma boa coincidência.

Após a passagem - relâmpago, no caso da Alemanha, mas bastante intensa - por todos esses destinos cervejísticos, dá para pinçar algumas curiosidades, que dizem bastante sobre a cultura desses países, não apenas no ramo da cerveja.

Começamos, sem muito motivo, pela Inglaterra. Lugar da cerveja quente, amarga e sem gás. Onde se bebe, quase que exclusivamente, no pub, que originalmente queria dizer "public house", onde se faz amizades instantâneas, onde é impossível ficar sozinho. Os pubs vendem, via de regra, as real ales, ou cask ales, e, agora, o que eles chamam de "continental lagers" - além de cidras, que já me pregaram três peças. Nos últimos anos, os mais jovens - aqueles com paladares menos exigentes, ou que ainda estão acostumados com alimentos mais doces, ou que não querem passar por privações, ou que preferem sabores mais simples... enfim -  têm preferido marcas importadas da Alemanha [Beck], França [Kronenbourg], Bélgica [Stella Artois] e até Jamaica [Red Stripes]. Realmente, a ale é uma cerveja difícil, talvez a mais difícil de todas as escolas. Fora da ilha de Albion, não estamos acostumados às suas principais características. Por isso, há uma associação que tenta defendê-las, que incentiva seu consumo e sua produção. É comum que as pessoas torçam o nariz para ela, no primeiro gole e, depois, ao se acostumarem com sua maneira única de refrescar, tenham dificuldades de encarar as outras escolas.

Na Bélgica, por outro lado, há todas as experimentações possíveis e imagináveis. Cerveja com coco, com limão, cerveja em que não se coloca fermento, cerveja com fermentação natural. Dizer apenas "cerveja belga" é limitar a quantidade de possibilidades que eles produzem, e não dizer muita coisa - já que não dá para passar uma informação muito clara sobre o que seria isso. Não é o lugar onde se têm mais cervejarias - essa posição, pelo que escutei, fica com a Alemanha -, mas certamente é a que tem mais variedade. Principalmente porque os alemães respeitam, e muito, a Reinheitsgebot - a famosa lei de pureza alemã, que só permite a produção da cerveja com os ingredientes "originais": malte, água, lúpulo - e, depois, fermento. Os belgas experimentam, erram, e, não por acaso, têm a Westvleteren 12, a cerveja sempre votada como a melhor do mundo, e seis das sete trapistas. Se é por uma questão de dificuldade de acesso, se é porque há todo uma lenda em volta da cerveja, se é porque há um mistério envolvido, ou se é porque a Westvleteren é realmente boa, depende de cada paladar aprovar.

Os alemães, certamente, não concordarão. Vão achar que é muito doce. Se há uma coisa que eles evitam é a cerveja mais maltada. Geralmente tomam weiss, bock ou até mesmo döppelbock acompanhadas de alguma comida, para compensar o açúcar. E, se a pils é uma invenção tcheca, da cidade de Pilzen, temos que lembrar que todo o leste europeu foi e é ainda muito influenciado pelos alemães, principalmente por conta do Sacro Império Germânico, que dominou áreas grandes da região. Só lembrar que Kafka, tcheco, escrevia em alemão, ainda no século XX. Que Schopenhauer, filósofo que se considerava alemão, nasceu na cidade de Dantzig, que hoje pertence à Polônia, sob o nome de  Gdańsk. E que Kant, que ninguém imagina ser outra coisa que não alemão, nasceu e viveu toda a vida na pacata Königsberg, que hoje pertence à Rússia.

A cerveja alemã é infinitamente mais barata que em qualquer outro lugar que já estive. Como se informasse por meio de seu preço que todo mundo tem direito à cerveja. Como se mostrasse que cerveja faz parte da dieta básica de qualquer ser-humano - ou, ao menos, de qualquer alemão. Uma garrafa de 500 ml em uma supermercado não passa de 50 centavos de euro - para efeito de comparação, mesmo as latas mais baratas da Inglaterra esbarram no £ 1. Por outro lado, eles não têm tanta variedade. Todos têm direito à cerveja, mas para que todos tenham direito, não é possível fazer grandes apostas. É preciso baratear os custos. A Alemanha é o país do "carro do povo" - lembremos. É o país que, mesmo com uma população de mais de 80 milhões de habitantes, ainda tem um índice de Gini - que mede a desigualdade social dos países - quase igual ao da Suécia, a campeã. É o país onde não há uma grande empresa entre as maiores do mundo, mas há inúmeras no segundo escalão - como se mostrasse que eles não querem ter apenas uma companhia em que dependessem toda a sua economia, mas diversas. É o país que não tem uma metrópole, com uma população gigantesca, mas que há diversos centros urbanos ricos, com os seus entornos igualmente ricos, que são conectados por trens inigualáveis de bons e por autobahns, onde não há qualquer limite de velocidade.

Não tenho - nem quero ter - uma escola preferida. Para que decidir por uma melhor cerveja do mundo, para sempre, se é possível mudar sempre, dependendo do humor?

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Antidogmático

É uma suposição razoável afirmar que a morte de Deus é o maior tema dos escritos de Nietzsche. Não o Deus cristão, por vezes católico, ou não apenas esse Deus. Mas como um sinônimo de absoluto, no sentido de proferir certezas inabaláveis. Por isso ele usa, vez por outra, a expressão "sombra de Deus" para abordar outros temas em que as pessoas tendem a crer - a palavra é aleatória - em determinados dogmas sem qualquer reflexão.

"Antidogmática" seria outro adjetivo ligado à sua filosofia. E nesse sentido cabe perguntar se esse processo, de certa forma, não seria um tipo de dogmatismo - ser contra dogmas. O que vale acrescentar, em favor de Nietzsche e contra os seus detratores, é que ele não seguia uma ideia por muito tempo, serpenteando por extremos, usando o mesmo conceito de maneiras inversas e até contraditórias, como se já tivesse a consciência de que poderia cair no erro que ele estava condenando. Por isso, ou melhor, prova disso é, talvez, sua sugestão de como o caos é a única norma da vida - "a única condição do mundo", em suas palavras. Porque, inclusive, ele sugere, como eco para a sua proposta "caótica", que a vida é uma parte ínfima da morte - sendo "morte" aqui todos os estados naturais, não apenas o fim da vida, mas o início, e todas as outras eras.

Nessa interpretação, ele destrói o dogma do humanismo - no sentido de colocar o homem como medida para o resto da natureza/cosmos. Ou, para usar uma expressão que poderia ser do agrado de Nietzsche, do homem como imagem e semelhança de Deus.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Brazil of nowadays, an introduction

I decide to start an introduction about Brazil of nowadays for a foreigner. To interpret the country by a non-traditional Brazilian point of view.

First, I assume I could not escape from the usual beginnings of such a post. All of the general articles giving an overview about countries start with the same kind of sentence: "[Country's name] is a land of contrasts". For me, it is always a surprise to discover that countries so different like UK or India can have the description. We Brazilians are so used to use this sentence for our homeland that it sounds they are exaggerating. Like: They are talking about that because they don't know Brazil...

This epithet is so Brazilian mainly for one big and dishonourable reason: besides the recent boom, we still have one of the biggest difference between the richest and poorest in the world [see the Gini index]. Considering we are almost the sixth richest country in the world, it appears even worse.

Other way to start such a text is: "[Country's name] is not just one country, but many inside its borders". It's also a kind of natural thing, if you know Brazil is the fifth largest country in the world [like, more than the double of India], and the fifth in population [more than three times UK pop.]. It is fair to think we have particularities around our territory.

But foreigners normally summarize Brazil at its stereotype. What they know is a mix from the Southeast [more Rio, less São Paulo] with the North [the Amazon forest, which most of Brazilians have never visited], and a bit from the Northeast [the beaches].

Of course Brazil has beaches [the most famous Copacabana and Ipanema], samba, carnival, football, feijoada, caipirinha, mulatas, tiny bikinis and all the things you expected to find in Brazil. And one of the biggest homicide taxes in the world - but it has improved a lot last years, and the trend is to get better, in the next years, with the World Cup [the final will be in a polemic refurbished Maracanã, which is in Rio] and the 2016 Olympics.

Rio is the home of almost all last paragraph features, and main entrance of the country. But, starting the demystification, Rio is not just sand-sea-samba. The marvellous city ["cidade maravilhosa" is the way cariocas call Rio; "carioca" is who was born in Rio or who adopted the city as its home] is where companies such Petrobras and Vale, two of the biggest companies in the world, are situated.

Outside the country, these characteristics gives foreigner a very good view about Brazil. I have never known someone who dislike it. They just love Brazil even if they don't know the difference from Sugar Loaf and the Corcovado Mountains [the first has the cable car, the second, the Christ Redeemer]. I guess they think all Brazilians have the same state of mind, the same way of be, a synonym to joy, happiness, party, and coolness. Is that true? As true as the Germans only drink beer all day long. Or as the Parisians are rude with tourists. It's a generalization, not a whole true, but part of that.

Though, the recent national growth - mainly pushed by the trade of some commodities as soy and iron to China -, can affects this national behaviour. From a country where the only possibility to have a good life was to emigrate,  we can became the new land for Spanish, Portuguese, or other Latin-american people who want to have another opportunity to live and work. In São Paulo, there are Bolivian markets. In Rio, you can find Equatorians or Peruvians selling Andean products on the sidewalks of downtown. We are, so, at a crossroad. How Brazilians will treat this people, who are not just coming as tourists, but trying to compete for jobs and all this way of life? Are we going to follow the US tradition and avoid the immigrants, or to allow people their "human right to migrate", as I have recently read from the National Justice secretary? Will we still be cool or show a new façade of xenophobia? That's a question that will be answered only in the future.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

O que é romance?


"Ontem saí com um cara. Falei que não iria comentar a minha vida pessoal, mas ela ilustra bem um outro episódio, uma outra promessa, um outro assunto que me afeta pessoalmente. Conheci o rapaz – sem nomes, ok? – num show e ontem seria a segunda vez que nos encontraríamos. Ele é fisioterapeuta. Nada contra fisioterapeutas, mas ele é completamente diferente de mim. Me perguntou o que eu fazia. Disse que era tradutora. Depois, tomei fôlego e pratiquei a minha proposta de levar esse trabalho, isso aqui, essas minhas escritas, a sério, mesmo que não me leve a nada – o fato de escrever, mas escrever o melhor que eu puder, é o que eu quero. Disse a ele que estava escrevendo um livro. Primeiro ele me olhou com um ar de surpresa como se dissesse: você? Nunca imaginei. Mantive-me quieta, porque não tinha nada a acrescentar, mesmo que tenha ficado com uma vontade de tentar me justificar, ou mesmo me defender, ou explicar que eu poderia, sim, escrever um livro, que escritores não são seres que vivem em outro planeta, que eles podem ir a shows e sair com fisioterapeutas.  Depois ele foi simpático, como os homens, quando minimamente maduros e malandros, são, no início de qualquer relacionamento: “Poxa, que legal.” Novo silêncio. Ele procurava as palavras para continuar a conversa, eu ficava quieta, porque não tinha, ainda, o que falar. Ia responder: “Sim, é legal”? Não, não é muito a minha cara. Porque não gosto – como diz uma amiga minha atriz – de jogar texto fora. “Sobre o que é?” ele engatou uma pergunta. Agora, sim, poderia respondê-lo. Porém, apesar de saber exatamente sobre o que é, fiquei na dúvida. Acho que essa é a pior pergunta a se fazer a um escritor, a alguém que está escrevendo. Tentar resumir a história em poucas linhas, em poucas frases, uma história que está em mais de cem páginas, que já ganhou tantas histórias dentro dela, que pode ser vista de diversas maneiras. Resumi-la é apenas dispensar uma parte significativa do seu trabalho, e isso não é fácil. Não é agradável, e se você puder evitar – e por que não poderia? –, você vai. Você vai querer contar tudo e aí não vai passar a informação de maneira clara, porque, se é para contar tudo, a pessoa deveria ler o próprio livro, que não merece ser recontado, oralmente, pelo próprio escritor, sem qualquer recurso literário. Percebendo o meu silêncio, ou simplesmente querendo falar um pouco mais, ou ainda tentando me ajudar, ele fez uma nova pergunta: “É um romance?”.

Lembrei da história de um amigo que lançou seu primeiro livro, uma coletânea de contos, e a sua mãe perguntou: “Mas é um romance?”, e ele respondia: “São contos, mãe”, e ela perguntava novamente: “Mas é um romance?” – e eles ficavam assim, sem que houvesse uma maneira de interromper esse jogo cíclico. Até cogitei a possibilidade de contar esse episódio a ele, mas achei melhor passar.

Isso aqui é um romance? O que é um romance?, me veio à cabeça. Acho que não há uma definição única para o que é romance. Pensei em Goethe e o seu “Wilhelm Meister”. Pensei no Córtazar e o seu “Jogo de amarelinhas”. Pensei em Joyce e o seu “Ulisses”. Não. O meu livro não era mesmo um romance, qualquer a definição que eu possa imaginar. “Não, não é romance”, respondi a ele. Então, ele, rapidamente, me perguntou novamente – agora parecia interessado, como se tivesse ficado intrigado com a possibilidade de existir outra coisa que não romance no ramo dos livros, ou ainda como se pensasse que eu poderia estar escrevendo a minha vida, como se tivesse interessado em meus segredos sexuais mais escondidos que eu só iria revelar por meio do livro: “Ah, então é realidade...” E aí eu percebi o meu erro: quando ele me perguntou se era romance, ele queria perguntar se era “ficção”, o que as pessoas chamam de ficção, normalmente, uma história “inventada”. Eu deveria ter respondido que era um romance e encerraria a questão. Agora, não dava para voltar. Como eu iria afirmar que eu tinha me confundido e que o meu livro era, sim, romance? Ou como iria dizer para ele que de acordo com o que eu considero como romance o meu livro estava longe de ser encaixado nessa categoria. Pensei numa alternativa: “Não, também não é ‘realidade’, é uma ficção”, tentei explicar, simplistamente. “Então é um romance”, voltou ele, me lembrando novamente a mãe do meu amigo, e me brochando. Como eu iria explicar a ele que, de certa forma, eu estava fazendo uma regalia, abrindo uma exceção nas minhas crenças por ele. Que eu nem acredito na possibilidade do real, que, para mim, vivemos em constantes ficções criadas por nós mesmos ou por outras pessoas, que podemos habitar essas ficções e depois sairmos, que o que chamam de realidade é apenas uma forma de ficção, e que eu chamo de ficção pode ser entendido como uma interpretação, ou como interpretações do que as pessoas em geral chamam de realidade. Eu não queria prolongar a conversa, não queria confundi-lo, não queria nem ter iniciado essa conversa, mas não dava para eu ficar nesse jogo com ele, como o meu amigo fica com a mãe. O meu amigo tem que aguentar a mãe, eu não precisava aguentar nem esse meu companheiro nem ninguém. “Bem, é complicado...”, tentei responder, mas fui salva pela chegada a nosso destino."

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Internet livre x fechada


Sul fronte opposto stanno sistemi come quelli adottati da Apple e Facebook?
"C'è una battaglia, o meglio, una tensione costruttiva, fra l'esigenza di fare soldi e quella di innovare. Un'azienda può avere la necessità di controllare l'intero sistema per fornire buone prestazioni e acquisire clienti e quindi pagare bene i propri programmatori. Ma se finisce con l'essere troppo dominante e chiusa limitando la libertà della gente, perderà mercato. Un giardino meraviglioso ma chiuso non può competere con la bellezza di una folle e indomita giungla".
[entrevista inteira aqui, tradução aqui.]

Tem um pouco de exercício de fé, de esperança, essa resposta do Tim Berners-Lee sobre as atitudes de empresas que fecham os caminhos da www que, para quem não sabe, foi Berners-Lee quem criou. Não é muito o que estamos vendo hoje em dia. Mas professo o mesmo credo que ele, apenas com mais ceticismo e menos otimismo.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Romantismo

"Ah o amor. L’amour, l’amore, el amor, love, liebe, αγάπη, حب, maitasuna, каханне, любовь, عشق, 熱愛, tình yêu, אהבה, aşk, ást.  Várias palavras em várias línguas para designar sentimentos parecidos que nem sempre são iguais – mas são traduzidos com o mesmo símbolo: “amor”. Já disseram que não há sinônimos perfeitos. Quem seria euzinha, portanto, para dizer que haveria palavras com correspondentes exatamente iguais em diferentes línguas e culturas? fora.

No Ocidente, no que chamamos de Ocidente – essa área estranha que não respeita necessariamente a geografia, que tem a ver mais com política que com localização –, dizia, no Ocidente, há uma valorização desse sentimento, do amor, que eu não entendo a razão. Ou melhor, entendo, mas não compreendo. Ou melhor, compreendo, mas não gosto do que vejo. E isso ocorre desde o século XIX, suspeito. Por ocasião – levanto essa hipótese – da decadência da igreja como a reguladora do mundo. Um ícone substituiu o outro. Você sabe, as pessoas precisam saber claramente o que devem fazer na vida, para que servem, precisam receber suas obrigações e maneira precisa, de preferência em um livro, para poder retornar, caso tenham dúvidas, precisam se prender a alguma ideal – ideologia? – se não se sentem perdidas, desesperadas, cabisbaixas. Essas coisas. Hoje, quando os horizontes estão cada vez mais esmaecidos, vemos o resultado de uma grande desilusão generalizada. Dizem – não tenho como afirmar se é verdade – que essa desilusão é a causa de doenças como a depressão. Pode ser.

A verdade é que a literatura tem uma grande parcela de responsabilidade nisso, nesse comportamento generalizado, nesse meio de viver, de encarar o mundo de maneira “romântica”. Há um grande culpado, que estava na hora errada no lugar errado, contando as histórias mais açucaradas e sentimentais possíveis: A literatura do século XIX – não por acaso “romântica”. Nessa literatura, vale a pena morrer pela mulher amada. Nessa literatura, a moça espera virgem o homem voltar da guerra. Nessa literatura, o fim é o momento em que eles viveram felizes para sempre [sempre imaginei que isso era uma grande sacada da edição: ao interromper no auge da felicidade, não vemos as oscilações de um relacionamento normal]. É claro que eles também pregavam a luta por uma causa nobre, o engajamento nas guerras justas, a defesa dos mais necessitados. Mas o que mais marcou foi a relação homem-mulher, e o viveram felizes para a sempre. O conto-de-fadas. Vide as novelas que até hoje terminam com cerimônias de casamento.

Antes, era pior, mas as pessoas ainda não liam. Só com o romantismo, que veio apenas com o fim do Antigo Regime, portanto após a Revolução Francesa, que se proporcionou a possibilidade de qualquer um [quase qualquer um] ter acesso à leitura, à escola, ao conhecimento, só aí que o problema se democratizou. A praga se alastrou em toda a sociedade.

Hoje, isso me dá enjoo. E me surpreende que não dê enjoo em todas as pessoas, após anos repetindo a mesma ladainha. O “amor” se tornou a resposta para todas as perguntas. Por que devemos trabalhar? Para ter dinheiro para podermos encontrar a mulher perfeita. Por que devemos estudar? Para poder arranjar uma emprego bom, que nos dê dinheiro para podemos encontrar a mulher perfeita. E, para as mulheres, o papel era ainda mais passivo e simplista. Por que devemos existir? Ora, para casar. E se não casar? “The horror, the horror.” O amor, na vida real, apesar do discurso, se resumia ao ato de se casar. E continua sendo assim para muita gente. A busca pela pessoa amada, pelo par perfeito, pelo companheiro idealizado. Do príncipe encantado. Vocês sabem o que eu estou dizendo.

Tenho um certo pudor em escrever cenas sobre isso. Uma vergonha, mesmo. Como abordar um assunto que já foi massacrado, de todas as maneiras, ao longo de séculos? Como entrar nesse terreno rosa-bebê- vestido-de-noiva, sem cair numa cena kitsch? Como não ser brega? Tenho uma certa inveja do que o Saramago fez em “Memorial do convento”, juntando Blimunda – aliás, ótimo personagem – e Baltasar em poucas linhas, sem qualquer sentimentalismo excessivo.

Evitei,  consegui evitar até agora o assunto. É só reparar no que foi escrito. Nenhuma cena de... [calma, calma, respira, respira] amor. Até a própria palavra “amor” perdeu o seu significado, não concordam? Se antes era algo imponente, profundo, agora é batido, simples, comum, banal. Parece um chiclete que, de tanto mastigado, foi ficando sem gosto, sem gosto, sem gosto, até que hoje não é mais que uma borracha colorida, que algumas pessoas insistem em mastigar por um simples cacoete, por um hábito que não conseguem largar.

Evitei até me ver numa situação... Como não falar sobre as primeiras paixões de um garoto de 15, 16 anos? Como não mostrar como esse menino dá importância para as descobertas amorosas?
[Acaba de me ocorrer que há um problema de amarudescimento entre as pessoas que ainda se mantém românticas, hoje em dia. Elas continuam adolescentes no âmbito dos relacionamentos sexuais.]

E, antes que falem qualquer coisa: não, não sou uma encalhada mal amada. Apenas acho que esse assunto ocupa um espaço superdimensionado na sociedade. Vejo como ele tem diminuído nos últimos tempos – principalmente no quesito que separa o amor do sexo [ainda bem!], mas ainda continua com um tamanho fora de suas proporções.

Se eu pudesse escolher, simplesmente não abordaria esse assunto. “Seria uma covardia” – a minha consciência repete no meu ouvido. “Os problemas – as dificuldades – devem ser encarados de frente”, ela diz. “Estufe o peito e empine a bunda e siga adiante.”

Ah, consciência...  Me deixa porque esse negócio de coragem é coisa de gente romântica."

Contra o porte de armas

Como se sabe, a polícia inglesa não usa armas - só em situações muito, muito raras. Há até uma reclamação da falta de energia no combate à criminalidade em episódios como os riots, em que os policiais só foram autorizados a usar balas de borracha depois de dias de confusões, o que foi tido como pouco efetivo.

Essa semana, os jornais começaram a falar sobre o pedido do chefe da polícia para que todos os agentes metropolitanos usem uma arma que dispara dardos que dão choque. A razão para tal seria o fato de alguns policiais terem se ferido gravemente na tentativa de parar um suspeito armado com uma faca de açougueiro. Outros meios de comunicação, por outro lado, disseram que tal proposta recebeu críticas de ONGs, como a Anistia internacional.

Mesmo sabendo dessa tradição de não ter armas, esse cenário é curioso para quem veio de um país onde todos soldados PMs podem ter qualquer arma - e geralmente usam dessa prerrogativa para ter logo rifles de guerra, para "combater", nas palavras mais comuns, os "soldados do tráfico". Realidades diferentes, me dirão. Eu, que ignoro a realidade, prefiro falar, agora, sobre os frios números, que provam o que nós quisermos provar. Vou provar, então, que menos armas querem dizer menos homicídios.

Não pode ser coincidência que a Inglaterra tenha uma das menores taxas de homicídio por arma de fogo no mundo. Em 2000, ficava em 0,12 para cada 100.000 pessoas. Para efeito de comparação, o Canadá tem 0,54, a Finlândia tem 0,43, a Dinamarca, 0,26. Do outro lado da tabela, a Colômbia fica com 51.77. O nosso Brasil brasileiro fica com 18,2, nesse mesmo período - até 2008, a conta não tinha mudado muito. Se juntarmos outras formas de homicídio, a taxa inglesa sobe para 1,45, ainda abaixo do Canadá, por exemplo [1,58].

No mesmo ano de 2000, o Brasil apresentava taxa de 26,7 [a atual é um pouco menor: 25,6]. Se dividirmos por estados, e pegarmos o Rio como exemplo - porque está mais à mão - ficaremos impressionados que, em 2000, a taxa de homicídios só por armas de fogo era de 42,6. Nos últimos anos, tem melhorado e o número de 2008 foi 23,9 - mas, ainda assim, altíssimo. De todos os homicídios em 2008, 81,4% eram cometidos por armas de fogo - o segundo maior número do Brasil. Voltando ao exemplo inglês, essa taxa fica em 8%.

Nos últimos anos, em números absolutos, as taxas de homicídio no Brasil só tiveram queda em 2004. Caíram de novo em 2005 e depois voltaram a crescer em 2006, caíram novamente em 2007 e subiram em 2008.

Vou me permitir interpretar esses números, do meu jeito. Vou afirmar que a queda de 2004 foi exatamente no ano seguinte ao da promulgação da nova lei do desarmamento. E que a subida de 2006 foi logo após o plebiscito que propunha acabar com a venda de armas do Brasil, mas que foi encampada por setores da imprensa como uma forma de interferir nas liberdades pessoais.

Lembro da minha mãe falando que a polícia inglesa era a melhor do mundo e não precisava usar armas para isso. Usava a inteligência. Mesmo que o mundo não seja tão mais inocente desse jeito - e casos como o de Jean Charles nos dão provas disso - continuo achando que um mundo sem armas seria melhor.

Tive três parentes de primeiro grau que foram mortos por armas de fogo - todos pobres, todos moradores da periferia, mesmo que uma periferia no meio dos centros mais ricos. Dois deles [um tio, irmão da minha mãe, e um primo, filho de uma irmã de minha mãe] não eram próximos, eu pouco tinha contato. O terceiro [também um primo, também filho de outra irmã da minha mãe] era bem próximo, talvez o meu primo mais próximo. Poderia estar usando esses casos para fazer proselitismo. Mas não é o caso. Estou usando apenas a matemática.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Comida e literatura


"Às vezes penso que cozinhar e escrever são bastante parecidos. Assim como há sujeito, verbo e objeto, eu divido os elementos da cozinha em três categorias: o principal, o acompanhamento e a ligação. Às vezes, você nem precisa utilizar um desses elementos, mas ele está ali, implícito. O principal – o sujeito –, normalmente, é uma carne – em suas mais variadas formas e nomes, inclusive, as que não são de origem animal, como a soja, ou alguns tipos de cogumelos.

Como o sujeito da frase, o principal é quem guia o caminho. O restante do prato – da oração – deve acompanhar sua toada. Não adianta ter uma carne gordurosa e um acompanhamento idem – um dos dois vai sair perdendo e não teremos a experiência inteira. Assim como um bom personagem deve mostrar um pouco de sua vida, e em outros momentos, apenas se apagar para que a ação continue. Outras vezes, o principal é mais delicado e é o acompanhamento – uma bela salada, ou um gratinado com um queijo grande – quem chama mais atenção. Rara, e, na minha opinião, infelizmente, porém, a ligação é quem chama a atenção da maioria.

A ligação, o verbo, a síntese de qualquer prato, de qualquer sentença, é onde mora o núcleo, a parte mais importante da refeição ou de uma frase, para mim. Se eu estudasse para ser uma cozinheira de verdade, uma chef, optaria por ser uma saucer, uma especialista em molhos, que controla os humores de todos os ingredientes, que conecta os dois lados da oração. Pode ser humilde e desaparecer no meio de carnes suculentas, ou pode ser o rei da operação e incrementar o mais sem graça dos macarrões, por exemplo.

Aliás, massa é um bom exemplo. Gosto mais das longas – mas aprecio um penne e um fusilli também. As longas, eu divido em duas categorias bem próprias [e, admito, um pouco escatológicas]: nematelmintos [como o espaguete, o meu preferido] e platelmintos [o ninho, por exemplo]. São, para mim, um acompanhamento que não tem principal. Os italianos, por conta disso, acredito, a colocam no “primo piatto”, mas eu não vejo como um problema me alimentar só de massa, sem um “principal”, um “secondo” vindo em seguida. E, assim, as massas dependem basicamente do molho para fazer o par. Digamos o ragu, que, no Brasil se costuma chamar genericamente de bolonhesa: o molho, a ligação, faz as vezes de principal, nesse caso.

Os verbos também mostram sua importância ao descobrirmos suas subdivisões. São de ligação ou de acordo com a sua transitividade: intransitivo, ou transitivo direto ou ainda indireto. Eles ordenam o restante da senteça. Se será objeto direto, indireto, ou se terá apenas um advérbio, ou nada, são auto-suficientes.
 “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”, já diria João, o Evangelhista, o que está sentado à direita de Jesus na “Última ceia” de Da Vinci, o mais novo dos apóstolos, logo no início do seu evangelho. Treze versículos à frente, ele acrescenta: “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade.” Claro que está falando de Cristo. Verbo é a figura de linguagem para a mensagem, é metonímia para a história, para toda a tradição contada, falada, e também escrita. O verbo, indispensável. A ligação da literatura."

terça-feira, 22 de novembro de 2011

A grande farsa do aquecimento global




Fé tipo exportação

Não tenho nenhuma conclusão sobre o assunto, nem mesmo uma teoria. Todavia, não deve ser apenas coincidência que eu já tenha encontrado uma Igreja da Nova Vida [em Kensal Rise], uma Assembleia de Deus [perto de Paddington] e uma Igreja Universal do Reino de Deus [em Kilburn] aqui. O sistema de franquias da religião está expandindo para a velha Albion.

Uma curiosidade: todas essas igrejas ficam em áreas menos abastadas.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

História budista


O livro era sobre formas de se chegar a iluminação. Vários contos, pequenas histórias, passadas no mesmo cenário: O Japão zen budista, num tempo imemorial, que alimenta nossa imaginação com imagens de lagos plácidos, cerejeiras em flor, montanhas com neve eterna. Nenhum conto lhe chamou a atenção. Nenhum, com a exceção do último.

A monja Kaeda era a mais aplicada do monastério de Koya. Queria mais que todos os outros discípulos atingir a iluminação, queria despertar, atingir a completa e perfeita sanidade, fugir do círculo do Samsara, acabar com o seu karma. E para isso, ela estudava incessantemente, meditava, praticava todos os exercícios que conhecia, lia sobre outras iluminações.

No meio de suas leituras, Kaeda descobriu que o monge Oshoguzo havia despertado por meio de um jejum de três dias, em que ficou apenas meditando dentro de uma cabana no meio da floresta, no inverno. Pois ela esperou a primeira neve do ano cair para ir para uma pequena casa de madeira, que ficava a meio dia de caminhada do monastério, sem levar nada além da roupa do corpo. No início, ela sentia frio, mas conseguiu, por meio de exercícios, controlar seu corpo. Depois foi a vez da fome: no primeiro dia, não percebeu nada de anormal, mas, a partir do segundo, começou a escutar seu estômago roncando a cada minuto. Concentrou-se e controlou sua necessidade de comer. Depois, à noite, ouviu lobos do lado de fora da cabana e sentiu medo. Fez outros exercícios até acalmar o corpo e esperar que os lobos fossem embora. Ao fim de três dias, estava exausta, e desmaiou. Acordou de volta no monastério e descobriu que o monge Yamada  percebeu sua ausência e desconfiou que ela poderia estar em perigo. Foi em busca dela e a levou de volta para o monastério. A monja ficou doente e demorou semanas até se restabelecer.

Depois de voltar a ter saúde, ela pediu uma audiência com o mestre Murakami, que, sabendo da ansiedade da menina, disse a ela, sem muita explicação, que não poderia atendê-la. Kaeda não sabia o que fazer. Insistiu na semana seguinte, e na outra, até que resolveu não mais voltar para o seu alojamento e ficar na escada de acesso ao dormitório de Murakami. Um dia, enquanto ela dormia apoiada na lateral, Murakami abriu sua porta. Ela acordou na hora e se virou para a casa. Levantou-se com receio e foi em direção, pé ante pé, para dentro da sala. Murakami estava ajoelhado, de costas para a entrada, olhando um riacho que passava por fora de seu dormitório.

“Você quer chegar a iluminação, eu imagino” – ele falou.

“Sim, mestre, o que eu devo fazer?” – ela pergunta.

“Você deve querer isso mais que qualquer coisa.”

“Mas eu quero mais que qualquer coisa.”

“Então, você não deve fazer nada.”

“Como assim?”

“Vamos dar um passeio.”

Os dois saíram do dormitório e começaram a andar pelo pequeno monastério, que estava cheio de neve nessa época do ano.

“Onde estão os animais da floresta?” – ele pergunta.

“Estão na floresta” – ela responde.

“E por que eles não estão aqui conosco?”

“Porque eles vivem na floresta”, ela responde rapidamente, mas fica em dúvida sobre se era o certo e tenta outra resposta, “Porque é inverno”, ainda em dúvida sobre a resposta correta, tenta uma terceira, “Porque eles têm medo da gente.”

O mestre não esboçou qualquer reação ante a nenhuma das respostas de Kaeda. Continuou caminhando vagarosamente, sob o pesado manto que usava para se esquentar.

“Mestre, como é a iluminação?”, Kaeda se atreveu a perguntar, após alguns instantes de silêncio.

“É o nada” – Murakami respondeu, pouco antes de chegar a um poço, onde os monges buscavam água.

“Você só vai chegar à iluminação”, disse ele, “quando quiser mais que respirar.”

A partir de então, a monja foi ainda mais aplicada aos estudos. Queria provar que queria mais que qualquer coisa, mesmo que respirar, alcançar a iluminação. Soube, nesse período, que o monge Aoki, um dos mais desleixados na sua opinião – não meditava todos os dias por seis horas, nem estudava os ensinamentos sagrados como ela fazia –, havia alcançado a iluminação e ficou intrigada. Ela queria mais que ele queria alcançar a iluminação. Tinha certeza disso e não havia nada que a fizesse duvidar dessa certeza. Começou a ficar em dúvida sobre se ela seria capaz de alcançar a iluminação. Então, pensou que se até Aoki havia alcançado a iluminação, ela também alcançaria. Nem que parasse de respirar.

Fez exercícios para parar de inspirar e expirar. Ficou até 15 minutos em completa apneia, diminuindo o seu metabolismo a quase zero, com o coração parando de bater. Até que um dia, novamente, viu o mundo escurecer. Acordou sobressaltada sob os cuidados do monge Aoki, que aparentava uma nova pessoa para ela.

“Como é a iluminação?”, ela lhe perguntou.

“É tudo”, ele respondeu.

Kaeda ficou confusa, estava inquieta. Deitava no seu aposento e não conseguia parar de pensar na iluminação. Como seria? Tudo ou nada? Como ela poderia alcançá-la? Como ela sairia desse ciclo de vida e morte, o que ela deveria fazer para pagar o seu karma. O seu pensamento só se concentrava nesse objetivo. Virara uma obsessão. Não falava com mais ninguém, só fazia as suas obrigações e voltava para o seu dormitório para estudar. Enquanto fazia suas tarefas domésticas também não conseguia parar de pensar sobre o assunto. Como deveria ser a iluminação?, se perguntava enquanto carregava um jarro para buscar água no poço. O que mudava na sua vida? Ela andava com o jarro de cerâmica, pesado, antigo, e se imaginava atingindo a iluminação. Chegou ao poço e, em vez de encher o vaso, decidiu mergulhar o rosto na água gelada. Eu quero mais a iluminação que respirar, pensou, ecoando mentalmente as palavras de Murakami. Afundou o rosto e logo abriu os olhos debaixo da água. Era escuro, não havia nada lá embaixo, além de água. Ela não enxergava nada e sentiu o seu pulmão reclamando a falta de oxigênio. Eu quero mais a iluminação que respirar, repetiu o pensamento anterior, eu quero mais a iluminação que respirar. As primeiras bolhas de ar começavam a sair de seu nariz e ela não sabia como pará-las, eu quero mais a iluminação que respirar, começou a sentir escurecer e ela percebeu que iria, novamente, desmaiar, eu quero mais a iluminação que respirar, repetia, enquanto ia perdendo a consciência, até que num ato completamente involuntário o seu corpo se ergueu velozmente e ela saiu da água dando uma grande e desesperada inspirada.

Sem forças, ela se senta, com as costas coladas ao poço de pedras, ainda ofegante. Está completamente molhada, ainda mais confusa, se sentindo derrotada, pensando que jamais alcançaria a iluminação. Os seus olhos se enchem de lágrimas, mas ela engole o choro que chegara à sua garganta. Lentava-se, se recompõe, e enche o jarro no poço. Vira-se e começa a caminhar levando o jarro para dentro do monastério. No caminho, troca o vaso de lado, para compensar o peso. Em uma dessas trocas, tropeça numa pedra que havia no chão e o vaso é arremeçado ao chão, se quebrando por completo. Nesse momento, Kaeda encontra a iluminação.