domingo, 12 de maio de 2013

Ensaio do ensaio

[Agora, segurem. É o início do ensaio do projeto. Sua primeira página. Só para registrar.]

Um homem amargurado que aceita dar a entrevista com a intenção de se defender das acusações contra a sua biografia. De seu envolvimento com o nazismo. Sua única condição é que a entrevista seja publicada apenas após a sua morte, que vai acontecer quase dez anos depois. Durante esse primeiro momento da conversa, ele ainda se mostra razoavelmente empolgado. Suas respostas são longas, ele cita de memória nomes, situações, passagens de sua própria obra. Depois, quando o assunto recai sobre filosofia e o seu pensamento, ele aparenta cansaço. Fica quase monossilábico. Desvia de qualquer conclusão, ou de qualquer sugestão mais assertiva. Parece decepcionado. Parece derrotado. Como se nada do que ele tivesse dito, ou escrito, tivesse valido a pena. Ou tivesse causado qualquer modificação na sociedade ou no homem. Ou no Dasein. Diz que a filosofia está em um fim. Acredita que o papel da filosofia foi tomado hoje em dia pelas ciências, que o lugar de pensamento da filosofia vai ser tomado pela cibernética. No provável único momento em que é traído por uma frase que poderia ser interpretada como estranhamente esperançosa, Martin Heidegger (1889 - 1976) diz que “Apenas um deus pode nos salvar”. “A única possibilidade disponível para nós é que pelo pensamento e pela poetização nós preparemos uma prontidão / disposição [eine Bereitschaft] para a aparição do deus”, diz ele na entrevista concedida à revista Der Spiegel dia 23 de setembro de 1966 e publicada dia 31 de maio de 1976, que completa o raciocínio: “ou para a ausência de um deus em [nosso] declínio, na medida em que na visão da ausência de deus nós estamos em estado de declínio.”

Claro que o ateu Heidegger não está falando do deus cristão. Ou não está falando apenas dele. Mas de uma ideia de um ente transcendental, portanto além do homem, que dê um “sentido” ou um “valor” para a vida do homem. É como se, na entrevista, Heidegger não acreditasse mais na possibilidade de um deus aparecer. Ou de um deus novo aparecer. Como se após quase um século após Nietzsche ter escrito a sentença que para sempre ficaria associada à sua biografia, “Deus está morto”, nenhum outro ícone tivesse se apresentado para substituí-lo. Daí a sua pouca confiança no papel da filosofia no tempo em que deu a entrevista, e daí, igualmente, a crença de que a cibernética seria a forma de pensar que a substituiria. Seríamos uma sociedade cada vez menos humana e cada vez mais tecno-científica. Era um Heidegger, como dito, decepcionado com os caminhos tomados pela humanidade.

O interpretação do tema da morte de deus é uma constante na obra de Heidegger. Aparece, pelo menos, já em “Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis)”, escrito entre 1936 e 1938, e publicado em 1989. Ou ainda antes, nos seus cursos sobre Hölderlin de 1934/35. Mas há um momento específico que ele toca diretamente no assunto para opinar sobre a interpretação de seu conterrâneo Friedrich Nietzsche (1844-1900) sobre o caso. É o texto “Nietzsches Wort ‘Gott ist tot’”, de 1943 (numa tradução livre: “A palavra de Nietzsche: ‘Deus está morto’”.

Como explica Benedito Nunes, em “Crivo de papel”, num primeiro momento da filosofia de Heidegger, ele se diz favorável à ideia de uma filosofia apartada de deus, ou uma filosofia ateia, simplesmente para dar vazão à sua preocupação, pelo que parece, fenomenológica, de se ater às questões materiais, ou melhor, factíveis, factuais, relativas ao que existe. Portanto, não nega, em princípio e/ou necessariamente, a existência de deus, mas não o considera como o seu principal tema de estudo ou de foco de pensamento. Nesse primeiro momento, Heidegger veda a participação da fé cristã. Mas, de acordo com Nunes, essa atitude ateística de Heidegger problematiza a fé - porque não explica nem acaba com a existência do deus, apenas o coloca em suspenso -, e aponta para como a ideia do deus hebraico-cristão penetrou na concepção do homem, como nós o conhecemos atualmente, ou o Dasein, na terminologia heideggeriana.

[Continua...]

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