Conforme a minha editora-particular sugeriu, divido este post em dois - já que a paciência das pessoas fica cada vez menor, à medida que se pega mais ônibus na vida. Continuemos a viagem:
5ª/ Onde se sentar?
Você entra no ônibus e vê apenas alguns lugares vazios. Mapeia o lugar em seu cérebro. Cria, instantaneamente, um logaritmo que avalia as vantagens e desvantagens de cada um dos espaços. Aquele ali do lado esquerdo deve bater sol, já que é de manhã e esse ônibus vai passar pela praia. E tá muito calor, principalmente para quem não está acostumado. Esse outro... hum... não. Eu não tenho preconceito, nem sou racista, mas não me sentar do lado desse cara. Já vi muito assalto nessa vida e é uma experiência que eu não aconselho para ninguém. Aquele outro... Bem, a senhora está um pouco, digamos, sem querer ser, como direi, explícito, a senhora está acima do peso. Acho que não vou caber. Aquele lá atrás, então, não dá para nem colocar as pernas direito - e olha que sou baixinho. Esse, esse aqui, bem na frente, do lado do trocador [porque se alguém for assaltar o ônibus, vai preferir roubar o dinheiro do próprio ônibus que o meu, que só carrego trocados], e ainda do lado que dá para ver a praia, que insiste em aparecer em todo o trajeto, para lembrar que você - que nem gosta de praia - não está lá.
6ª/ Como se entreter durante a viagem?
Música é a melhor pedida. Um dos conselhos mais repetidos por especialistas, assim como por qualquer um com um mínimo de bom senso, é a necessidade do uso de fones de ouvido. É tão importante para segurança, como, sei lá, cinto de segurança. Vai que você está atrás de um lutador de vale-tudo que não gosta das amáveis letras do funk que você [e todo mundo no ônibus] está escutando e resolve resolver a questão com a sua versão um pouco mais física do que ele chama de diálogo.
Leitura é também uma pedida, mas com a velocidade imposta pelo motorista, o filho exemplar que é o único que pode salvar o pobre pai, é capaz de você sentir um daqueles enjoos que você tinha quando era bem pequeno e o seu pai pegava uma estrada deveras sinuosa.
Caso isso aconteça, uma sugestão de solução: se estiver à janela, abra-a - caso, obviamente, seja o seu dia de sorte, já que o normal é ela estar emperrada [e então, ao saltar/soltar {veja abaixo}, procure o bicheiro mais próximo e jogue o número da placa do ônibus lá; talvez sua sorte não demore muito a acabar] - abra a janela e respire o mais profundamente possível, até a passageira do banco de trás reclamar que o vento está embolando o seu [dela] cabelo, que acabou de passar por uma escova marroquina. Se estiver longe da janela, a opção é rezar - lembre-se que estamos no maior país católico do mundo.
7ª/ Como saltar / soltar do ônibus?
Em primeiro lugar, saiba que ninguém sabe ao certo se o certo é "saltar" ou "soltar" do ônibus - já que ambas acepções têm defensores e fazem um sentido capenga. Na verdade, o certo deve ser "descer", mas como o processo para sair do coletivo é mais parecido com um "salto", ou com o fato de você ter passado o tempo todo segurando em algum corrimão - por segurança, já que o motorista ainda não chegou para salvar o pai, cujo pescoço deve ser o mais resistente da história [outro caso de objeto de estudo desperdiçado] ninguém usa o certo.
É claro que ao fazer o sinal, o motorista vai escolher aleatoriamente o lugar onde parar. Considere-se um sortudo se ele parar no raio de cem metros do seu ponto. Há casos de gente que é deixada no ponto seguinte, após, claro, a "discussão diária"* no ônibus.
Uma das possibilidades para se tentar diminuir o caminho a ser percorrido, antes de saltar do ônibus, é tentar gritar, lá de trás, da porta traseira, para o motorista. O que nos leva ao...
7.1ª/ Como se dirigir ao motorista?
Ignore o lembrete do lado do motorista que está escrito: "fale ao motorista somente o indispensável". Pense que, um/ você pode ser considerado indispensável [na dúvida, pergunte à sua mãe], dois/ o que você vai falar é indispensável, se não você não passaria por esse constrangimento de ter que gritar de uma ponta a outra do ônibus para tentar atingir o sujeito que está dirigindo esse veículo.
Também evite a tentação de dizer o que você realmente quer dizer ao motorista, após ter sido sacudido, e tratado como cavalo [mentira, cavalos são muito mais bem tratados]. Evite ser o protagonista da "discussão diária"*, já que há estudos de universidades americanas que apontam que a taxa de infarto entre os partidários da "discussão diária" é ligeiramente superior aos dos demais passageiros.
Por fim, escolha um modo carinhoso de se dirigir ao condutor desse veículo coletivo. A opção preferida, segundo recente pesquisa de institutos de opinião, é "Piloto". Você pode ainda optar por: "Motô", "Motorista", "Chefe", "Camarada", "Cumpadi", "Bróder", e demonstrar um pouco da sua personalidade, criação e educação nesse diálogo.
Em seguida, tente ser sucinto: lembre-se que, além do fato de o motorista estar apressado para o compromisso mais importante da vida dele, ele está do outro lado do carro, com trocentos barulhos e poluições sonoras - inclusive o fulano que escuta música sem fone de ouvido - entre vocês. Portanto, é capaz dele não escutar bulhufas, ou, na melhor das hipóteses, ter uma ligeira noção do que você tá falando. Faça gestos, assovie, acene, aponte, use a sua linguagem corporal. Se nada disso der certo, tente o trocador, para ser o seu tradutor, ou o portador da boa-nova, mas saiba que ele vai estar dormindo.
8ª/ Saí do ônibus, e agora?
Em primeiro lugar, se você for religioso, agradeça ao[s] seu[s] deuses. Se não for, comece a duvidar da sua ateísmo - você acabou de passar por um verdadeiro milagre diário. Sobreviver, praticamente intacto, a uma viagem como essa não deveria ser, estatisticamente falando, o usual. Pense em sugerir para aquele seu amigo matemático fazer o cálculo da probabilidade de acidentes com não somente o seu ônibus, mas todos correndo do jeito que eles correm [os pais dos motoristas devem sofrer perseguições, só pode ser, para todos estarem, sempre, à beira da morte...].
Em seguida, tente descobrir o quão longe o ponto é do seu destino final. E sinta-se um privilegiado se não saltou/soltou no lugar errado - já que não há qualquer informação sobre os pontos, dentro do ônibus. Porque, imagine, a opção a andar é pegar outro ônibus, já que é o único exemplo de transporte público. E dois milagres, assim, quase sucessivos... é mais fácil ganhar no jogo do bicho.
* "Discussão diária" é o termo técnico usado para descrever o momento em que duas ou mais pessoas começam a discutir entre si, ou contra o motorista. Os motivos, geralmente, são os mesmos: a incompreensão por parte dos passageiros da necessidade do motorista em manter sua velocidade para conseguir salvar o próprio pai, cujo pescoço é feito de uma qualidade rara de borracha que só aparece em pais de motoristas de ônibus.
5ª/ Onde se sentar?
Você entra no ônibus e vê apenas alguns lugares vazios. Mapeia o lugar em seu cérebro. Cria, instantaneamente, um logaritmo que avalia as vantagens e desvantagens de cada um dos espaços. Aquele ali do lado esquerdo deve bater sol, já que é de manhã e esse ônibus vai passar pela praia. E tá muito calor, principalmente para quem não está acostumado. Esse outro... hum... não. Eu não tenho preconceito, nem sou racista, mas não me sentar do lado desse cara. Já vi muito assalto nessa vida e é uma experiência que eu não aconselho para ninguém. Aquele outro... Bem, a senhora está um pouco, digamos, sem querer ser, como direi, explícito, a senhora está acima do peso. Acho que não vou caber. Aquele lá atrás, então, não dá para nem colocar as pernas direito - e olha que sou baixinho. Esse, esse aqui, bem na frente, do lado do trocador [porque se alguém for assaltar o ônibus, vai preferir roubar o dinheiro do próprio ônibus que o meu, que só carrego trocados], e ainda do lado que dá para ver a praia, que insiste em aparecer em todo o trajeto, para lembrar que você - que nem gosta de praia - não está lá.
6ª/ Como se entreter durante a viagem?
Música é a melhor pedida. Um dos conselhos mais repetidos por especialistas, assim como por qualquer um com um mínimo de bom senso, é a necessidade do uso de fones de ouvido. É tão importante para segurança, como, sei lá, cinto de segurança. Vai que você está atrás de um lutador de vale-tudo que não gosta das amáveis letras do funk que você [e todo mundo no ônibus] está escutando e resolve resolver a questão com a sua versão um pouco mais física do que ele chama de diálogo.
Leitura é também uma pedida, mas com a velocidade imposta pelo motorista, o filho exemplar que é o único que pode salvar o pobre pai, é capaz de você sentir um daqueles enjoos que você tinha quando era bem pequeno e o seu pai pegava uma estrada deveras sinuosa.
Caso isso aconteça, uma sugestão de solução: se estiver à janela, abra-a - caso, obviamente, seja o seu dia de sorte, já que o normal é ela estar emperrada [e então, ao saltar/soltar {veja abaixo}, procure o bicheiro mais próximo e jogue o número da placa do ônibus lá; talvez sua sorte não demore muito a acabar] - abra a janela e respire o mais profundamente possível, até a passageira do banco de trás reclamar que o vento está embolando o seu [dela] cabelo, que acabou de passar por uma escova marroquina. Se estiver longe da janela, a opção é rezar - lembre-se que estamos no maior país católico do mundo.
7ª/ Como saltar / soltar do ônibus?
Em primeiro lugar, saiba que ninguém sabe ao certo se o certo é "saltar" ou "soltar" do ônibus - já que ambas acepções têm defensores e fazem um sentido capenga. Na verdade, o certo deve ser "descer", mas como o processo para sair do coletivo é mais parecido com um "salto", ou com o fato de você ter passado o tempo todo segurando em algum corrimão - por segurança, já que o motorista ainda não chegou para salvar o pai, cujo pescoço deve ser o mais resistente da história [outro caso de objeto de estudo desperdiçado] ninguém usa o certo.
É claro que ao fazer o sinal, o motorista vai escolher aleatoriamente o lugar onde parar. Considere-se um sortudo se ele parar no raio de cem metros do seu ponto. Há casos de gente que é deixada no ponto seguinte, após, claro, a "discussão diária"* no ônibus.
Uma das possibilidades para se tentar diminuir o caminho a ser percorrido, antes de saltar do ônibus, é tentar gritar, lá de trás, da porta traseira, para o motorista. O que nos leva ao...
7.1ª/ Como se dirigir ao motorista?
Ignore o lembrete do lado do motorista que está escrito: "fale ao motorista somente o indispensável". Pense que, um/ você pode ser considerado indispensável [na dúvida, pergunte à sua mãe], dois/ o que você vai falar é indispensável, se não você não passaria por esse constrangimento de ter que gritar de uma ponta a outra do ônibus para tentar atingir o sujeito que está dirigindo esse veículo.
Também evite a tentação de dizer o que você realmente quer dizer ao motorista, após ter sido sacudido, e tratado como cavalo [mentira, cavalos são muito mais bem tratados]. Evite ser o protagonista da "discussão diária"*, já que há estudos de universidades americanas que apontam que a taxa de infarto entre os partidários da "discussão diária" é ligeiramente superior aos dos demais passageiros.
Por fim, escolha um modo carinhoso de se dirigir ao condutor desse veículo coletivo. A opção preferida, segundo recente pesquisa de institutos de opinião, é "Piloto". Você pode ainda optar por: "Motô", "Motorista", "Chefe", "Camarada", "Cumpadi", "Bróder", e demonstrar um pouco da sua personalidade, criação e educação nesse diálogo.
Em seguida, tente ser sucinto: lembre-se que, além do fato de o motorista estar apressado para o compromisso mais importante da vida dele, ele está do outro lado do carro, com trocentos barulhos e poluições sonoras - inclusive o fulano que escuta música sem fone de ouvido - entre vocês. Portanto, é capaz dele não escutar bulhufas, ou, na melhor das hipóteses, ter uma ligeira noção do que você tá falando. Faça gestos, assovie, acene, aponte, use a sua linguagem corporal. Se nada disso der certo, tente o trocador, para ser o seu tradutor, ou o portador da boa-nova, mas saiba que ele vai estar dormindo.
8ª/ Saí do ônibus, e agora?
Em primeiro lugar, se você for religioso, agradeça ao[s] seu[s] deuses. Se não for, comece a duvidar da sua ateísmo - você acabou de passar por um verdadeiro milagre diário. Sobreviver, praticamente intacto, a uma viagem como essa não deveria ser, estatisticamente falando, o usual. Pense em sugerir para aquele seu amigo matemático fazer o cálculo da probabilidade de acidentes com não somente o seu ônibus, mas todos correndo do jeito que eles correm [os pais dos motoristas devem sofrer perseguições, só pode ser, para todos estarem, sempre, à beira da morte...].
Em seguida, tente descobrir o quão longe o ponto é do seu destino final. E sinta-se um privilegiado se não saltou/soltou no lugar errado - já que não há qualquer informação sobre os pontos, dentro do ônibus. Porque, imagine, a opção a andar é pegar outro ônibus, já que é o único exemplo de transporte público. E dois milagres, assim, quase sucessivos... é mais fácil ganhar no jogo do bicho.
* "Discussão diária" é o termo técnico usado para descrever o momento em que duas ou mais pessoas começam a discutir entre si, ou contra o motorista. Os motivos, geralmente, são os mesmos: a incompreensão por parte dos passageiros da necessidade do motorista em manter sua velocidade para conseguir salvar o próprio pai, cujo pescoço é feito de uma qualidade rara de borracha que só aparece em pais de motoristas de ônibus.
5 comentários:
Depois que eu leio o post inteiro, você quebra em dois?! Quero que entre na conta como dois posts vistos por mim, portanto. Ótimo texto, fez bem em quebrar. Também sofro desse mal, de escrever demais (ainda bem que posso comentar aqui, e não ficar enchendo o meu blog de bobagem), mas textos curtos realmente são melhores para os leitores eletrônicos.
minha editora-particular disse que não conseguia ler tudo. não que ela leia tudo, sempre, mas era uma indicação que eu tinha escrito demais. agora, o meu limite é 4,6 mil caracteres. Pode parecer aleatório, mas não é: é o limite da coluna. :-)
Da coluna do Globo? Faz sentido. Compreendo sua decisão e o que te levou a ela. Também tenho uma editora particular, elas são mesmo muito duras. A minha, por exemplo, detesta essa minha mania de colocar links nos comentários. Blogueiro é um ser incompreendido mesmo, mais do que jornalistas, eu diria.
você se transforma em blogueiro para ver se consegue fugir dos editores, mas sempre aparece a editora-particular para acabar com os seus sonhos. [No fundo, elas até estão certas, mas quem quer estar certo em tudo?]
[Elas querem. E normalmente estão.]
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