quarta-feira, 29 de maio de 2013
terça-feira, 28 de maio de 2013
'Qualquer brasileiro poderá governar esse Brasil'
Qualquer brasileiro poderá governar esse Brasil
lenhador
lavrador
pescador
vaqueiro
marinheiro
funileiro
carpinteiro
contanto que seja digno do governo do Brasil
que tenha olhos para ver pelo Brasil,
ouvidos para ouvir pelo Brasil
coragem de morrer pelo Brasil
ânimo de viver pelo Brasil
mãos para agir pelo Brasil
mãos de escultor que saibam lidar com o barro forte e novo dos Brasis
mãos de engenheiro que lidem com ingresias e tratores
[europeus e norte-americanos a serviço do Brasil
mãos sem anéis (que os anéis não deixam o homem criar nem trabalhar)
mãos livres
mãos criadoras
mãos fraternais de todas as cores
mãos desiguais que trabalhem por um Brasil sem Azeredos,
sem Irineus
sem Maurícios de Lacerda.
Sem mãos de jogadores
nem de especuladores nem de mistificadores
[trecho de "O outro Brasil que vem aí", poema de Gilberto Freyre, de 1926, antes, portanto, da sua "Casa grande & senzala"]
lenhador
lavrador
pescador
vaqueiro
marinheiro
funileiro
carpinteiro
contanto que seja digno do governo do Brasil
que tenha olhos para ver pelo Brasil,
ouvidos para ouvir pelo Brasil
coragem de morrer pelo Brasil
ânimo de viver pelo Brasil
mãos para agir pelo Brasil
mãos de escultor que saibam lidar com o barro forte e novo dos Brasis
mãos de engenheiro que lidem com ingresias e tratores
[europeus e norte-americanos a serviço do Brasil
mãos sem anéis (que os anéis não deixam o homem criar nem trabalhar)
mãos livres
mãos criadoras
mãos fraternais de todas as cores
mãos desiguais que trabalhem por um Brasil sem Azeredos,
sem Irineus
sem Maurícios de Lacerda.
Sem mãos de jogadores
nem de especuladores nem de mistificadores
[trecho de "O outro Brasil que vem aí", poema de Gilberto Freyre, de 1926, antes, portanto, da sua "Casa grande & senzala"]
segunda-feira, 27 de maio de 2013
Música do momento n. 43: "Your hand in mine"
Ontem o show do Explosions in the sky deveria ser exibido, na íntegra, para o pastor e deputado federal Marcos Feliciano como prova de que a beleza também pode conter o demoníaco. Veja como tudo começou [e como o guitarrista Munaf Hainif fala bem português e dança muito estranhamente]:
sexta-feira, 24 de maio de 2013
Economia dos afetos
É
importante destacar aqui que o caminho que nos guiava a deus, esse
deus que iluminou os homens-até-aqui, era um caminho que, para usar
um vocabulário cartesiano, racional. Obedecíamos às regras desse
deus porque tínhamos uma recompensa no fim dele. Ou acreditávamos
que a teríamos. Era uma troca, uma barganha. Uma ação racional
agora, portanto que negasse a emoção, a impulsividade, a força
interna, a vontade, enfim, a vida, nos dava direito a um determinado
tipo de privilégio no futuro. Era uma troca entre o não-viver agora
e uma possibilidade de vida depois. Era uma poupança de vida.
Economizava-se neste momento para quando realmente precisarmos, nós
teríamos acesso.
O que
Nietzsche fala, com a frase “deus está morto” é que o banco
faliu. Que, aliás, ele nunca realmente existiu. Nós renunciamos à
vida, economizamos vida, negamos as nossas vontades em função de
nada. É claro que esse processo, em um primeiro momento, vai
proporcionar um desespero, que é identificado como o niilismo. Mas
Nietzsche sugere que utilizemos essa falta de perspectiva, essa dor
que causa saber que fomos enganados por tanto tempo, que foquemos
essa revolta para a vida. Tentemos, agora que descobrimos que não
existe banco, que não há qualquer tipo de poupança dos afetos, que
gastemos os nossos afetos o máximo possível agora.
Ele ainda
sugere que quanto mais gastamos esses afetos, mais teremos afetos.
Como se para estimulá-lo precisássemos mexer nele.
É então
que Heidegger explica: podemos até mesmo seguir um deus, mas para
esse deus ser um deus que não está morto, ou seja, um deus contra a
vida, devemos seguir um deus a partir da nossa vontade de potência,
do que vem de dentro da gente, ou, para usar uma palavra dele, do
Ser.
Seguir um
deus não é um problema em si. Seguir um deus porque somos obrigados
a isso, ou porque não enxergamos outra possibilidade, ou por
preguiça, falta de autoconhecimento, etc. é. O deus, ou os deuses,
devem ser seguidos conscientemente, sendo dominados, ou ao menos
estando sob a vigília, o controle de nossa vontade de potência.
Melhor dizendo, é a nossa vontade de potência, essa força interna,
esse vulcão que explode e nos faz nos movimentar, que escolhe o deus
para o qual nós vamos genuflexionar. Com prazer.
quinta-feira, 23 de maio de 2013
Deus está morto, longa vida ao Ser
Deus não
é um deus vivo quando [nas palavras de Heidegger]:
1/
insistimos em tentar conquistar o real sem levar em conta deus e
colocando-o como um problema antes de mais nada;
2/
insistimos nessa conquista do real sem ponderar se o homem já
amaduresceu para essa essência em que, de fora do Ser, ele está
sendo arrastado;
3 / o
homem pode evitar e superar o destino que vem de fora de sua essência
e não ser arrastado apenas com a ajuda fraca de meros expedientes.
Ou seja,
Heidegger não é contra a ideia de um deus – como, aliás, deixa
bem claro na entrevista que dá para a revista Der Spiegel.
O ponto, para ele, é não deixar ser escravizado – para usar um
termo caro a Nietzsche – por esse deus. Heidegger, inclusive,
acredita na necessidade de um deus – ele demonstra que deus está
morto quando o vemos como um problema, por exemplo. Mas ele também
mostra que para dominar esse deus vivo, o homem deve estar preparado,
o homem não pode ser o homem-até-aqui, que se deixa levar. Ele tem
que enxergar e agir de acordo com a vontade de potência. Porque, se
não for, ele acabará “arrastado” com a “ajuda fraca de meros
expedientes”, a saber, as ordens saídas de um deus qualquer.
Para
Heidegger, com a morte do Deus ou deuses, e com a liberação da
vontade de potência como o princípio que que governa o que for,
então a dominação sobre o que quer que seja, passa a ser a nova
vontade do homem determinada pela vontade de potência. Ou em outras
palavras, como o próprio Heidegger explica, citando Nietzsche:
"Mortos estão todos os deuses: agora nós desejamos que o
além-do-homem viva!". Deus, esse deus novo, vivo, deve estar
dentro do homem, representado pela vontade de potência.
Mas,
reparem, Heidegger não está substituindo um termo por outro, não
está atribuindo uma função que não deveria existir para o homem,
um peso para ele carregar, uma responsabilidade maior do que as sua
pernas poderiam aguentar. Ele afirma que quem acredita que o homem
iria substituir deus nessa posição central não sabia quais eram as
verdadeiras atribuições de deus. A posição de deus, ele explica,
o papel de deus é que traz e preserva o que quer que seja. A função
de deus é, portanto, para Heidegger, a preservação. Conhecer os
limites, saber o que se pode e o que não se pode fazer. E essa
posição pode ficar vazia. Em vez desta posição divina, digamos
assim, uma outra posição correspondente metafisicamente pode se
aproximar no horizonte, um lugar que não é idêntico nem com o
domínio essencial que pertence a deus, nem com o do homem. Porém é
idêntica [em relação a função, não com relação à posição
central, que emana força única, como se fosse contra os demais] ao
homem que se apresenta com uma relação distinta, o além-do-homem.
Porque o
além-do-homem nunca entra totalmente, ou exatamente, no lugar de
deus. Em vez disso, o lugar que sua vontade entra, o que ele
realmente deseja é um outro domínio, pertencente a um outro
fundamento que é neste outro Ser. E esse outro Ser se tornou
subjetividade. E é neste momento que, para Heidegger, marcamos o
início da metafísica moderna.
O início
da moderna metafísica acontece após a morte de deus, decretada por
Nietzsche. O além-do-homem não substitui deus, em sua totalidade de
funções, como um farol que emana luz para todos os homens, mas
individualmente, sua vontade é o seu próprio Ser. Sua vontade faz
um papel idêntico, que no caráter individual é idêntico. Como se
não houvesse mais limites, ou situações limitadoras, ou algo que o
impedisse de seguir seu Ser, sua vontade. Como se dissesse que deus está
morto, longa vida ao Ser.
quarta-feira, 22 de maio de 2013
Além-do-homem x homem-até-aqui
O tradutor
para o inglês dessa versão de “Nietzsches Wort ‘Gott ist tot’” que eu estou usando,
professor William Lovitt [1881-1972], chama o famoso termo
nietzschiano Übermensch de "overman", ou seja, ao
invés da tradução para o português de super-homem, ele usa
além-do-homem. Faz mais sentido. Considera ele que na interpretação
de Heidegger, esse “homem” [fosse “super” ou “além-do”]
não seria apenas um personagem, um sujeito, mas o homem, como
instituição, como segmento, série, que nasce com a morte do
Deus. Alguém, ou algo que vem após o fim de uma era, ou a
suplantação de um ideal. Um além-do-homem, enfim,
porque essa espécie chega com a partida do homem. O
além-do-homem, visto assim, seria a categoria em que se encontram
todos os homens-indivíduos que praticam a vontade de potência, que
agora, após a morte de deus, e dos deuses, impulsiona o homem. Em seguida, no texto, há esse trecho:
"O
homem-até-aqui considerou que modo do Ser-do-que-é apareceu até
então? O homem-até-aqui se assegurou que sua essência tenha a
maturidade e a força para corresponder ao chamado do Ser? Ou o
homem-até-aqui simplesmente se deu bem com a ajuda dos expedientes e
desvios que o direcionaram para longe sempre novamente da experiência
do-que-é? […] O homem-até-aqui gostaria de permanecer homem até
aqui [...] Homem-até-aqui não está, em sua essência, nada
preparado para o Ser."1
Heidegger
cria uma expressão, e a usa bastante a partir de agora, que é
traduzida para o inglês como “man hitherto”, o "homem-até-aqui",
para deixar claro que houve, na sua opinião, uma modificação a
partir de "aqui" – a saber, a partir da morte de deus.
Nesse sentido o homem-até-aqui seria a oposição do além-do-homem,
isto é, o homem ainda sobre a influência de uma moral exterior. O
homem-até-aqui não experimentou, não pôde ter experienciado, a
vontade de potência como a sua principal característica, porque
ainda está preso aos ícones anteriores que o anulam, determinando
seus limites, de fora para dentro.
Segundo
Heidegger, dentro uma cadeia de importantes auto-conquistas, é a lei
estabelecida no Ser, que está fazendo o homem ficar maduro o
suficiente para saber, para encarar o que é pertencer ao Ser. E essa
lei é, nada mais, nada menos, que a vontade de potência, que é
pessoal, interior, única, e cuja essência está se mostrando como
vontade. Para Heidegger, esse comportamento, a caracterização do
homem como “além-do-homem”, cuja marca principal é respeitar
sua vontade de potência, e não ficar sob o comando do deus, marca
um período: a última época da metafísica.
O fim da
fé cristã resulta na mudança do comportamento do homem. Agora,
desde que ele não tenha substituído a fé cristã por nenhuma outra fé aprisionadora, sua vontade é a vontade de potência. Que determina e
condiciona a essência do homem. A norma perdeu seu poder de efetiva
ação via propostas incondicionais e imediatas, onipresente e infalível. Esse mundo suprassensível, baseado nesses elementos
exteriores que não se importam com as vontades de cada um dos
homens, não mais apoia a vida. Esse mundo se tornou sem vida. Daí o
termo usado "Deus está morto".
1Heidegger,
1977 / 97, em tradução livre
terça-feira, 21 de maio de 2013
Música do momento n. 42: "All My Friends"
Porque essa música do LCD Soundsystem é tão alto-astral...
Deus, arte e verdade
Nietzsche:
"Nós possuímos arte a fim de que não pereçamos da verdade".
Nietzsche: "Ao redor do herói, tudo se torna tragédia; ao
redor do semi-deus, uma peça sátira; e ao redor de Deus - o quê? -
talvez o 'mundo'?" Como é bem claro nessas citações
escolhidas por Heidegger para discutir o pensamento nietzschiano, o
princípio metafísico de Nietzsche tem a ver com a arte - sob o
ponto de vista dele - e verdade. Para o filósofo autor de “Gaia
ciência”, há uma conexão clara entre a vontade de potência e a
"arte". Sendo que arte, para ele, não se resume ao que é
exposto nos museus de belas-artes, nem às salas de cinema, nem às
melhoras literaturas - nada de conceitos tão fechados cujas
fronteiras se tornam um problema para o próprio conceito, porque, ao
serem estabelecidas já se tornam obsoletas, antigas, antiquadas,
paradas no tempo. Para Nietzsche, arte é algo mais simples, é toda
a possibilidade de criação.
Ou seja,
se acompanharmos esse raciocínio, ao se colocar em prática a
vontade de potência, todo indivíduo, ou como Heidegger gosta de
denominá-lo, todo Dasein, se tornaria um artista. Explicando melhor:
ao se colocar em prática, para fora de si, sua vontade, ao tornar
essa potência [no caso, agora, de latente], em realidade, o
indivíduo, o Dasein, necessariamente criaria algo. Mesmo que
abstratamente, mesmo que apenas no campo dos conceitos. É uma
criação.
Esse
conceito de “arte”, visto dessa forma, então, se torna mais
popular. Tira completamente a carga de diferenciação que existe
entre aqueles que se consideram superiores por produzirem objetos
valorizados pelos outros [ou por determinados grupos que se entronam
no papel de juízes do que é bom, ruim e indiferente] e os demais
indivíduos. Nietzsche, assim, mostra que todas as pessoas são
“artistas” em potencial. São criadoras. Basta, claro, seguir a
sua vontade, colocá-la para fora de si. O que, bem, não é
exatamente algo exatamente fácil, já que ao produzir “algo”,
esse algo provavelmente vai alargar os conceitos anteriores, os
limites pré-estabelecidos, e assim desagradar aqueles que querem
manter, conservar as relações, a sociedade, o ambiente, como elas
são e sempre foram. Criar, ou nas palavras de Nietzsche, produzir
arte é desestabilizar o que há.
Porque arte é "o grande estimulante da vida"
para Nietzsche. Já Heidegger a conceitualiza de outra forma,
bastante parecida: arte é a condição para a vontade se tornar
capaz de ascender à potência e aumentar essa potência. Ou seja, é
excita, exercita, empurra a potência, massageia, tonifica. É o
"primeiro valor que abre todas as alturas de ascenção",
diz ele para concluir: "Arte é o máximo valor" – como
se mostrasse que a arte, essa criação, é a produção, o resultado
prático da vontade de potência [para Nietzsche], do Ser [para
Heidegger]. Mais à frente no texto, Heidegger dá novamente voz ao
Nietzsche já do livro “Vontade de potência”: "Arte é mais
válida que a verdade"1.
ps. A
frase final é forte o bastante para terminar o capítulo, mas antes
de continuar, seria curioso lembrar uma passagem de “Crimes e
pecados”, filme de Woody Allen, que ele revisita o mito
desenvolvido por Dostoiévski sobre a moralidade de um mundo sem
deus. Após Judah Rosenthal, o personagem de Martin Landau, ter já
matado sua amante, vivida por Anjelica Houston, ele se rói em culpa.
Começa a revisitar o seu passado, de criação religiosa judaica,
com todas as suas culpas envolvidas, e escuta o seu pai dizer uma
frase, que encerra a discussão à mesa sobre moralidade: “eu
prefiro deus à verdade”.
1Conforme
Heidegger, 1977 / 86, em tradução livre.
segunda-feira, 20 de maio de 2013
Música do momento n. 41: "Enjoy Your Rabbit"
Há quanto tempo não escutava uma música do Sujfan Stevens? Esse disco, homônimo, é dos mais estranhos dele. Mas ainda assim fora da média.
Música do momento n. 40: "Thistle & Weeds"
Como é o nosso momento histórico. Já tinha me esquecido que essa música e esse disco ["Sigh No More"] do Mumford & Sons eram incríveis. E é de 2009! Aliás, essa nova geração de folk-rock vindo da Inglaterra é, talvez, a minha única decepçãozinha do período que eu vivi lá: ter visto menos shows do que eu gostaria. Mas não se pode ter tudo na vida.
O que é justiça?
Nietzsche aborda o conceito de justiça apenas em 1884 quando diz que o termo é uma das “mais altas representações da vida em si mesma". Mas é claro que o conceito não é interpretado por ele da mesma forma como o é comumente. Para Nietzsche, justiça é encarada “como a função de um poder tendo uma ampla gama de visão, que vê além da estreita perspectiva de bom e mau, assim tem um horizonte mais largo de interesse - o objetivo de preservar Alguma-coisa que é mais que esta ou aquela pessoa em particular"1.
Assim, não tem a ver com uma moralidade, ou com conceitos que estamos acostumados pela tradição a associar. Está, para usar um termo caro a Nietzsche, além do bem e do mal. É claro: não tem a ver com “esta ou aquela pessoa em particular”, mas com “Alguma-coisa”, com a ideia de preservação, de manutenção dessa “Alguma-coisa”, que é claro que é especial, única, digna de ser mantida, apesar, ou com o risco que isso pode [no sentido de ser capaz de] trazer para um ou outro indivíduo. A justiça, dessa forma, é uma força que aumenta as possibilidades de pensamento – exatamente como faz a "vontade de potência".
Heidegger interpreta as passagens de Nietzsche dizendo que a "justiça é a verdade do que quer que seja, a verdade determinada pelo SER ele mesmo". Ou seja, a justiça se torna uma espécie de justificativa, de explicação, de item correlato à Vontade de potência. É mais que importante, é necessário, indispensável agir de acordo com a sua vontade, interna, ou, segundo a expressão de Heidegger, de acordo como Ser, quando se pode - ou seja, quando a potência é interpretada no sentido de “poder”, e, “poder”, no sentido de ser apto, capaz, permitido, autorizado a fazer algo. Como se dissesse que, quando se pode fazer algo que se sabe capaz, e que se tem vontade, é justo fazê-lo. Ou melhor dizendo: é uma questão de justiça fazê-lo [e, por consequência, de injustiça não fazê-lo].
É claro que saber quando se pode ou não seguir apenas a própria vontade não é um ato exatamente simples a todos os momentos. Poder, nesse caso, é ser livre para agir de acordo com as suas próprias convicções. Seguir sua própria vontade, sem precisar dar qualquer tipo de satisfação. Mas há casos em que esses limites são bastante tênues e discutíveis. Onde termina o seu poder [ou, para usar uma expressão do senso comum, sua liberdade] e começa o do outro? Essas fronteiras não são bem sinalizadas e, assim, são extremamente controversas. É importante, inclusive, testar sempre esses limites, não pelo simples fato de apenas tentar alargá-los, mas para por em prática, em ação, as vontades. Como resultado é capaz de se perceber que os limites que se pensava como fixamente estabelecidos nem existem na realidade, fora da própria cabeça. E se os limites existirem, saber que será mais fácil aguentar as suas consequências, por ter colocado em prática suas vontades, tendo feito, seguindo o raciocínio de Nietzsche, a Justiça.
Além disso, se os limites entre o que é o seu poder, onde fica a sua própria jurisdição, são difíceis de se enxergar a olho nu em diversos casos, há outros exemplos em que simplesmente carregamos os conceitos herdados de um ou outro dos deuses e nem percebemos. Ideias como o próprio deus-religião, mas também o deus-justiça [obviamente não o nietzschiano], e até o deus-ciência, por exemplo, nos marcaram ao longo da tradição, do percurso do tempo, de uma maneira que nem sempre percebemos. Mas esses conceitos carregam moralidades, carregam limites antigos baseados muitas vezes em superstições que, se nunca realmente foram importantes para o bem da sociedade, hoje parecem, além de completamente inúteis, anacrônicos. É mais um motivo para sempre se tentar colocar em prática a vontade. Esses limites que se apresentam como sólidos mantenedores da tradição, e que levamos dentro de nós por pura inércia, sem nunca realmente considerarmos suas validades, são, podem ser, fracos, furados, permeáveis. Podem estar a espera de alguém, de uma vontade potente o suficiente [como todas são], para se abrir, para se modificar o patamar, para alargar os limites próprios.
Com o fim do maior conceito moral, dos valores exteriores, da baliza que nos mediria sem que nós quiséssemos, dos parâmetros externos impostos, dos conceitos que dizem o que é certo e errado a priori, podemos agir de acordo com as nossas vontades, desde que possamos fazer isso. Colocando de outra forma: não agir de acordo com as nossas vontades, sempre que pudermos agir de acordo com ela, seria agir de maneira injusta. Resumindo: com a morte de Deus o homem está livre para agir de acordo com a sua "vontade de potência".
1Conforme Heidegger, 1977 / 91-92, em tradução livre.
Assim, não tem a ver com uma moralidade, ou com conceitos que estamos acostumados pela tradição a associar. Está, para usar um termo caro a Nietzsche, além do bem e do mal. É claro: não tem a ver com “esta ou aquela pessoa em particular”, mas com “Alguma-coisa”, com a ideia de preservação, de manutenção dessa “Alguma-coisa”, que é claro que é especial, única, digna de ser mantida, apesar, ou com o risco que isso pode [no sentido de ser capaz de] trazer para um ou outro indivíduo. A justiça, dessa forma, é uma força que aumenta as possibilidades de pensamento – exatamente como faz a "vontade de potência".
Heidegger interpreta as passagens de Nietzsche dizendo que a "justiça é a verdade do que quer que seja, a verdade determinada pelo SER ele mesmo". Ou seja, a justiça se torna uma espécie de justificativa, de explicação, de item correlato à Vontade de potência. É mais que importante, é necessário, indispensável agir de acordo com a sua vontade, interna, ou, segundo a expressão de Heidegger, de acordo como Ser, quando se pode - ou seja, quando a potência é interpretada no sentido de “poder”, e, “poder”, no sentido de ser apto, capaz, permitido, autorizado a fazer algo. Como se dissesse que, quando se pode fazer algo que se sabe capaz, e que se tem vontade, é justo fazê-lo. Ou melhor dizendo: é uma questão de justiça fazê-lo [e, por consequência, de injustiça não fazê-lo].
É claro que saber quando se pode ou não seguir apenas a própria vontade não é um ato exatamente simples a todos os momentos. Poder, nesse caso, é ser livre para agir de acordo com as suas próprias convicções. Seguir sua própria vontade, sem precisar dar qualquer tipo de satisfação. Mas há casos em que esses limites são bastante tênues e discutíveis. Onde termina o seu poder [ou, para usar uma expressão do senso comum, sua liberdade] e começa o do outro? Essas fronteiras não são bem sinalizadas e, assim, são extremamente controversas. É importante, inclusive, testar sempre esses limites, não pelo simples fato de apenas tentar alargá-los, mas para por em prática, em ação, as vontades. Como resultado é capaz de se perceber que os limites que se pensava como fixamente estabelecidos nem existem na realidade, fora da própria cabeça. E se os limites existirem, saber que será mais fácil aguentar as suas consequências, por ter colocado em prática suas vontades, tendo feito, seguindo o raciocínio de Nietzsche, a Justiça.
Além disso, se os limites entre o que é o seu poder, onde fica a sua própria jurisdição, são difíceis de se enxergar a olho nu em diversos casos, há outros exemplos em que simplesmente carregamos os conceitos herdados de um ou outro dos deuses e nem percebemos. Ideias como o próprio deus-religião, mas também o deus-justiça [obviamente não o nietzschiano], e até o deus-ciência, por exemplo, nos marcaram ao longo da tradição, do percurso do tempo, de uma maneira que nem sempre percebemos. Mas esses conceitos carregam moralidades, carregam limites antigos baseados muitas vezes em superstições que, se nunca realmente foram importantes para o bem da sociedade, hoje parecem, além de completamente inúteis, anacrônicos. É mais um motivo para sempre se tentar colocar em prática a vontade. Esses limites que se apresentam como sólidos mantenedores da tradição, e que levamos dentro de nós por pura inércia, sem nunca realmente considerarmos suas validades, são, podem ser, fracos, furados, permeáveis. Podem estar a espera de alguém, de uma vontade potente o suficiente [como todas são], para se abrir, para se modificar o patamar, para alargar os limites próprios.
Com o fim do maior conceito moral, dos valores exteriores, da baliza que nos mediria sem que nós quiséssemos, dos parâmetros externos impostos, dos conceitos que dizem o que é certo e errado a priori, podemos agir de acordo com as nossas vontades, desde que possamos fazer isso. Colocando de outra forma: não agir de acordo com as nossas vontades, sempre que pudermos agir de acordo com ela, seria agir de maneira injusta. Resumindo: com a morte de Deus o homem está livre para agir de acordo com a sua "vontade de potência".
1Conforme Heidegger, 1977 / 91-92, em tradução livre.
domingo, 19 de maio de 2013
A metafísica da subjetividade
"Visto que dentro da moderna metafísica o Ser de o que quer que seja determinou-se como vontade e com isso como auto-vontade, e, mais que isso, auto-vontade é já inerentemtente auto-conhecimento, portanto o que aquilo é, o hypokeimenon, o subiectum, vem à presença no modo de auto-conhecimento."1
Mais um dos trechos em Heidegger dobra e desdobra a língua para tentar dar conta, mostrar exatamente o que ele quer dizer, além de utilizar conceitos que ele cria ou que foram formulados por outros pensadores na tradição filosófica, como hypokeimenon e subiectum. Como ele já tinha feito antes, ele equipara o seu conceito de Ser com o de Vontade, que nasceu com Schopenhauer, mas encontrou seu apogeu de popularidade com Nietzsche, mas não apenas. Ser e Vontade de potência seriam os dois primeiros termos da dupla que compõem a metafísica, os supersensíveis do par, assim como ente e o eterno retorno seriam os dois termos do casal. Mas o que ele explica nesse trecho é que, além de comparar os termos supersensíveis com hypokeimenon e subiectum [algo como "aquilo que subjaz", em grego e latim respectivamente, ou seja, aquele que é, logo o Ser das coisas, dos entes], é que o Ser, e a vontade também, é/são maneiras de se autocompreender, de se desvendar, ter noção do que se é.
Ele sugere, nessa passagem, que ao agirmos impulsionados pela vontade, pelo ser, somos, estamos sendo, mesmo que inconsciente ou não propositalmente, verdadeiros, puros, internos, não-influenciados. A ação que é feita a partir da vontade, do ser, demonstra, dessa forma, e portanto, nosso conhecimento sobre nós mesmos. Porque, se agimos sem a influência externa, só podemos ter como base para essas ações nosso interior. E, para isso, devemos conhecê-lo – antes, ou durante o processo.
O pensador alemão argumenta inclusive que esse "autoconhecimento" se dá pelo processo que Descartes sintetizou no "ego cogito", ou, "eu penso". O que passa pela racionalidade e, por consequência, pelo campo da "representação" do sujeito. Mas a subjetividade desse sujeito [desse sujeito que pensa, representa, forma uma imagem do próprio eu, imagina, no sentido de formar uma imagem, quem ele é, isto é, se conhece] dessa maneira, é a junção, nas palavras de Heidegger de co-agitação [e “cogitatio” - que seria “pensamento” em latim], consciência [no sentido de junção de saber e no sentido de percepção das coisas] e saber [Ge-wissen, sendo "gewissen" alguns, e Wissen igualmente saber]. Em outras palavras, tentando ser mais claro: a subjetividade seria a união de pensamento, consciência, saber.
Além disso, o "pensamento", nesse sentido, não teria diferença para o “saber” e a “consciência”, para Heidegger. Todos seriam sinônimos, ou maneiras de se entender a subjetividade do Ser. Sendo que essa co-agitação, ou seja, essa cogitação, esse pensamento que tem dentro de si a agitação, seria, para Heidegger já o ter-vontade. Ou seja, para o filósofo esse pensamento que é também uma agitação, esse pensamento que balança, que empurra, que desestabiliza, que mexe com o sujeito, com sua forma de encarar o mundo, enfim, com a sua subjetividade. Vontade, portanto, seria nada mais nada menos que a a essência dessa subjetividade. Donde se pode sugerir que, entre as suas várias possibilidades, a metafísica na sua versão moderna é a metafísica da subjetividade.
Nasce daí, inclusive, o seu problema.
1Heidegger,
1977 / 88, em tradução livre.
A geração da mamãezinha
É claro que o Facebook passa pelo exibicionismo: é uma forma de transformar em espetáculo a sua vida, ou pelo menos a parte dela que você escolhe para mostrar ao mundo lá fora. Os filhos são uma importante realização na vida de alguém e, indiscutivelmente, a mais importante realização – o que não significa que eles sejam quem você é. Pode-se argumentar, é claro, que a vaidade das novas gerações representa um tipo de narcisismo ainda pior e mais sinistro, com as postagens sobre o tipo de chá que estão bebendo. Mas essa forma específica de narcisismo, a exposição destes querubins para criar uma imagem do eu, é para mim mais perturbadora pela verdade que revela. A mensagem subliminar é clara: Eu sou os meus filhos.Noves fora um certo exagero de acreditar que a situação antiga era, via de regra, melhor que a atual, não posso concordar mais com esse texto de Katie Roiphe sobre "A derrota do feminismo no facebook".
sábado, 18 de maio de 2013
Música do momento n. 39: "Feito pra acabar"
Eu conhecia essa música na versão do Marcelo Jeneci, mas eis que descubro que a autoria da música é compartilhada [pelo que eu pude apurar] com, ninguém menos, ninguém mais, que José Miguel Wisnik, esse sujeito que tem tantos talentos quanto um homem do Renascimento [para usar um clichê]. Grande versão.
sexta-feira, 17 de maio de 2013
Preconceito contra preconceito: o ocaso de Marina Silva
Em primeiro lugar, quero deixar claro que não votei nem tenho a intenção neste momento de votar em Marina Silva para a presidência, caso ela consiga criar o seu partido, o Rede. Isso posto, tenho que dizer que fiquei estarrecido com o linchamento moral que ela vem sofrendo.
Há dois dias, ela fez um discurso na Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) em que afirmava que "é um erro criticar o pastor Marco Feliciano por ser evangélico. Não devemos combater um preconceito com outro preconceito." Marco Feliciano, como se sabe, é um pastor de uma igreja que ele mesmo fundou, já apresentou ideias bastante retrógradas, foi homofóbico, racista e hoje é o presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal. Marina continua:
No vídeo que mostra o trecho em que ela aborda o assunto [abaixo], a expressão que ela mais repete é "Estado laico". E "Estado laico", como ela explica, não é "Estado ateu", mas Estado em que as pessoas têm liberdade de crença, até para não professar nenhuma das crenças conhecidas. É tratar as pessoas como iguais. O que, claro, o Feliciano não faz, e ela não chamou a atenção para isso.
Marina é evangélica. Ela se diz pessoalmente contrária a temas caros ao pensamento progressista, como legalização do aborto, por exemplo. Mas fala que quer um debate maior sobre o assunto - o que é mais do que nós temos agora. Ou seja, ela está disposta a abrir mão das suas convicções pessoais - ou promete isso - em prol do bem maior. Mas, por ser evangélica, ela está ligada no imaginário das pessoas a um comportamento em geral mais conservador. Como se todos os evangélicos fossem iguais. Qualquer escorregão que ela der, vai ser encarado dessa maneira. Qualquer frase dúbia, vai ter a sua pior interpretação possível.
Por outro lado, falar mal do Feliciano só porque seria "politicamente correto" [no sentido mais estrito do termo] é se vender para o eleitorado. Começa dessa forma e termina fazendo malabarismo com orçamentos em rede nacional. É bom ser maleável, mas nunca quebrar.
Aliás, tratar Feliciano como a encarnação do coisa-ruim só dá poder para ele. Porque parece que, em primeiro lugar, ao conseguirmos eliminá-lo, o problema do conservadorismo estaria resolvido. O que é mentira. Em segundo, porque ao dar essa importância para ele, chama a atenção para os seus aspectos mais nefastos, o que só atrai mais gente que pensa igual a ele, e que o torna ainda mais forte para não sair da Comissão. Basta pensar quem era Feliciano há um ano e quem ele é agora. Política é um jogo de xadrez em sinuca de bico.
Marina poderia ter abordado os pontos mais controversos de Feliciano? Poderia. Mas não falou. E criticar o fulano por aquilo que ele não fez é complicado. Eu também acho que ela deveria ter apontado como seria a composição ministerial em relação aos direitos humanos, no caso. Mas ela não falou e nem por isso acho que ela se saiu pior - nem melhor. O fato de ela não ter falado sobre os pontos baixos de Feliciano não caracteriza, na minha interpretação, uma conivência dela com o pastor-deputado.
O que ela defendia - e esse é o ponto principal, me parece - era o fim do preconceito. Seja do pastor contra o casamento entre gays, seja da intelligentsia contra outras formas de viver que não a sua própria, inteligente, culta, liberal, que viaja todos os anos para a Europa e conhece Paris como a palma da mão. Porque "se há despreparo em Marina, se estou despreparada, não é por ser evangélica. Não se pode combater um preconceito com outro". É bom que Marina, a autora dessa frase, saiba bem disso.
Há dois dias, ela fez um discurso na Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) em que afirmava que "é um erro criticar o pastor Marco Feliciano por ser evangélico. Não devemos combater um preconceito com outro preconceito." Marco Feliciano, como se sabe, é um pastor de uma igreja que ele mesmo fundou, já apresentou ideias bastante retrógradas, foi homofóbico, racista e hoje é o presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal. Marina continua:
Tenho uma posição de que esse debate (sobre Feliciano) está sendo feito de forma equivocada. A crítica ao deputado não deve ser pelo fato dele ser evangélico, assim como se ele fosse ateu, não deveria ser pelo fato dele ser ateu, assim como se fosse católico, espírita ou judeu. A crítica deveria ser quanto ao equívoco de suas posições políticas, devido ao despreparo de não ser uma pessoa que não tem tradição na área da defesa dos direitos humanos. O presidente desta comissão deveria ter um acúmulo de conhecimento e experiências nessa área que envolve outros temas complexos, como a questão indígena e os desaparecidos políticos.Ou seja, ela até pôde ter desconsiderado em sua fala as declarações mais polêmicas de Feliciano, contra negros e homossexuais, mas ela jamais defendeu a permanência do deputado à frente dessa comissão. Curiosamente, foi assim que a sua fala saiu - não em grandes veículos de imprensa, mas no rastro de pólvora das redes sociais como o Twitter. Logo foi repercutido em alguns blogs e sites: "Marina Silva defende deputado pastor Marco Feliciano", diz um; "Em agenda no Recife, Marina Silva sai em defesa do pastor Marco Feliciano", diz outro. Outros, mais exaltados, disseram que "Marina Silva morreu abraçada a Feliciano". Outros, menos exaltados enxergam que "Marina Silva ataca movimento LGBT que confronta Marcos Feliciano". O deputado Jean Willys, um grande adversário de Feliciano, um pouco pouco mais centrado [mas só um pouco], afirma que [Dilma e] Marina se comporta[m] como "reféns da covardia" e está[ão] de "olho em eleitorado conservador".
No vídeo que mostra o trecho em que ela aborda o assunto [abaixo], a expressão que ela mais repete é "Estado laico". E "Estado laico", como ela explica, não é "Estado ateu", mas Estado em que as pessoas têm liberdade de crença, até para não professar nenhuma das crenças conhecidas. É tratar as pessoas como iguais. O que, claro, o Feliciano não faz, e ela não chamou a atenção para isso.
Marina é evangélica. Ela se diz pessoalmente contrária a temas caros ao pensamento progressista, como legalização do aborto, por exemplo. Mas fala que quer um debate maior sobre o assunto - o que é mais do que nós temos agora. Ou seja, ela está disposta a abrir mão das suas convicções pessoais - ou promete isso - em prol do bem maior. Mas, por ser evangélica, ela está ligada no imaginário das pessoas a um comportamento em geral mais conservador. Como se todos os evangélicos fossem iguais. Qualquer escorregão que ela der, vai ser encarado dessa maneira. Qualquer frase dúbia, vai ter a sua pior interpretação possível.
Por outro lado, falar mal do Feliciano só porque seria "politicamente correto" [no sentido mais estrito do termo] é se vender para o eleitorado. Começa dessa forma e termina fazendo malabarismo com orçamentos em rede nacional. É bom ser maleável, mas nunca quebrar.
Aliás, tratar Feliciano como a encarnação do coisa-ruim só dá poder para ele. Porque parece que, em primeiro lugar, ao conseguirmos eliminá-lo, o problema do conservadorismo estaria resolvido. O que é mentira. Em segundo, porque ao dar essa importância para ele, chama a atenção para os seus aspectos mais nefastos, o que só atrai mais gente que pensa igual a ele, e que o torna ainda mais forte para não sair da Comissão. Basta pensar quem era Feliciano há um ano e quem ele é agora. Política é um jogo de xadrez em sinuca de bico.
Marina poderia ter abordado os pontos mais controversos de Feliciano? Poderia. Mas não falou. E criticar o fulano por aquilo que ele não fez é complicado. Eu também acho que ela deveria ter apontado como seria a composição ministerial em relação aos direitos humanos, no caso. Mas ela não falou e nem por isso acho que ela se saiu pior - nem melhor. O fato de ela não ter falado sobre os pontos baixos de Feliciano não caracteriza, na minha interpretação, uma conivência dela com o pastor-deputado.
O que ela defendia - e esse é o ponto principal, me parece - era o fim do preconceito. Seja do pastor contra o casamento entre gays, seja da intelligentsia contra outras formas de viver que não a sua própria, inteligente, culta, liberal, que viaja todos os anos para a Europa e conhece Paris como a palma da mão. Porque "se há despreparo em Marina, se estou despreparada, não é por ser evangélica. Não se pode combater um preconceito com outro". É bom que Marina, a autora dessa frase, saiba bem disso.
quinta-feira, 16 de maio de 2013
Música do momento n. 38: "Black heart"
Há muito tempo não escutava essa música do Calexico. Se "Feast of wire" já é um disco um pouco diferente da tradição do grupo americano, por usar muitos elementos além da grande influência da fronteira Califórnia-México, que eles representam no seu nome, essa música é ainda mais exótico. Em vez do sol escaldante, sombras. Muitas sombras. É a noite no deserto.
Certezas demais, deus desconfia
Dois
termos principais aparecem na metafísica nietzschiana: Wille zur
Macht [vontade de potência] e
o ewige Wiederkunft des Gleichen [eterno
retorno do mesmo]. Segundo Heidegger, esses termos não mudam
muito a ideia do que se vem falando na metafísica desde os tempos
mais antigos. Porque Heidegger coloca [se eu entendi bem] o Wille
zur Macht como a "essência", aquilo que somos
"idealmente", ou que somos em si, dentro de nós, sem a
influência do externo; e o "eterno retorno do mesmo" como
nossa "existência", no sentido de - ainda se eu entendi
direito - ao retornar a si mesmo, criamos uma identidade, uma
identificação pessoal, única. O que acabamos sendo no cotidiano,
com todas as concessões que devemos fazer.
Ele
justifica essa posição polêmica afirmando que não há muita
diferença entre o que fez a tradição metafísica, com a separação
em, no caso de Platão por exemplo, mundo sensível [real] e mundo
ideal [idealizado], e o que Nietzsche faz. Para Heidegger, há uma
escala de valores, firme, fixa e que permanece, entre o Wille zur
Macht e o eterno retorno.
Nietzsche
se manteria na tradição da metafísica, apesar de todas as suas
propostas de mudanças e revalorizações, por conta do fato da sua
"Wille zur Mach" estar ligada ao *Ser*, ou o que é ser, ou
verdade [mesmo que esses últimos conceitos tenham mudado muito ao
longo dos tempos]. Porque, para Heidegger, "verdade é uma
condição apresentada na essência da vontade de potência, a saber,
a condição da preservação do poder"1.
Mas a
verdade não é mais algo fixo, imutável, exterior, independente da
opinião do próprio ser que a vive – esse ser que é mais comumente chamado de "sujeito". Explicando de
outra maneira: o Wille zur Macht, com a sua posição de
"preservação", via processo de sempre querer mais poder,
como vimos, é algo que, no linguajar heideggeriano,
"aguarda-para-ser-verdade". Como se dissesse que há uma
potência latente nessa vontade, que ainda não existe na vida real, ou ainda não
há, ou melhor, ainda não é. E que, ao ser liberada, se tornaria verdade.
É o que
Heidegger diz se chamar "certeza", [as palavras em alemão
usadas relacionadas a esse conceito são Gewiss,
Gewisse e Gewissheit,
respectivamente algo como “certamente”, “certo”, “certeza”],
que seria o princípio, a base da metafísica moderna, como foi antes
a “verdade”, travestida em seus mais diferentes nomes, teóricos,
como o ícone, o alvo, a direção, ou práticos, como democracia,
deus, tradição. “Certeza” - no sentido de "segurança do
ser" - é a forma moderna da "verdade".
Ou seja: a
vontade de potência torna o ser seguro de si, ou potente, para agir
de acordo com a sua vontade, com o seu querer, com a sua impulsão
[no sentido de "passível de impulsionar"]. Em vez de ter uma
“verdade”, que remete à ideia de algo fixo, imutável, digno de
um ser exterior, que influenciaria de maneira fria e impessoal as
vontades dos seres, a “certeza”, que é pessoal, intransferível
por completo, interna, e que empurra para frente, que impulsiona. É como se engolíssemos deus.
1Heidegger,
1977 / 84, em tradução livre
quarta-feira, 15 de maio de 2013
Música do momento n. 37: "Fragment two"
Nova música do novo disco desses novos puritanos. Segundo fonte fidedigna, sai no dia 10 de junho. Se for como essa aí, vai ser um discão.
Vontade de quero mais
Heidegger fala sobre a dualidade da relação "intensificação-preservação" para definir "valor" e argumenta, além da importância de estarem conectados, que a intensificação é condição necessária para a preservação da vida, e que qualquer vida que não tentar se intensificar, se restringe a meramente se preservar está fadado ao declínio. É um argumento que lembra bastante os momentos mais "bélicos" de Nietzsche, quando ele sugere aos mais fortes (em suas diversas denominações empregadas) não se sujeitarem aos mais fracos. Mas, um pouco mais à frente no texto, Heidegger, citando Nietzsche, afirma que a vontade “tem vontade” de si mesma. Ela quer se tornar "mais forte", que seria ter “mais poder”, ou, melhor, mais potência, e sempre querer mais e mais potência - nunca deixar de querer mais. O que é importante frisar nesse caso é que, de acordo com Heidegger, o poder não almeja "mudar de nível", o que poderia ser interpretado como interferir em outra esfera de ação, no caso outros sujeitos: simplesmente almeja mais poder. É uma questão que, levando em conta essa intepretação, não tem consequências nem objetivos fora da própria ação, não é um caminho para uma outra conclusão. É uma condição em sua essência.1
O autor de “Ser e tempo” mostra que as relações entre estabilidade [preservação] e instabilidade [intensificação] criam um curioso movimento na forma de encarar o que é chamado no texto de "complexas formas de vida". A vontade de potência ["Wille zur Macht"] é a característica fundamental da "vida": "Vontade de potência", "tornar-se", "vida" e "Ser", no seu sentido mais amplo, - querem dizer, na linguagem de Nietzsche o MESMO. E esse MESMO quer dizer, para Heidegger, resumidamente, algo como pertencer ao mesmo tempo. O ato de estar vivo se baseia em centros da Vontade de Potência, particulares de cada tempo. Esses centros são configurações, são ícones, são métricas, objetivos, formas de se regular cada tempo, ou seja, uma espécie de fonte de criação de moral, para usar uma terminologia mais batida. Assim Nietzsche entende, por exemplo, a arte, o Estado, a religião, a ciência, a sociedade, o Ser. Para Nietzsche, valor é o ato de se dar mais ou menos importância ao ponto-de-vista, à forma como se encara, a esses centros dominantes.
E há uma conexão clara entre vontade de potência e valores, para Heidegger. Valores mudam à medida que poder aumenta. É como se pensássemos que no momento em que o poder segue o seu processo natural de preservação, que é querer mais poder, os valores devem se adaptar a essa nova realidade. Mas há uma conexão no sentido inverso também: valores são as condições para a vontade de potência. Quando a Vontade de potência se torna "real", se "materializa", se torna "verdade", arriscando, se torna poder em si, em vez de sua vontade, conseguimos saber quais são seus valores. Porque o poder para querer mais poder deve se basear em algum parâmetro – no caso, nos valores - para saber o que é mais poder. É uma relação de mão dupla em que o poder alarga os limites dos valores e os valores criam esses próprios limites para serem ultrapassados. Daí também a necessidade de aumentar o poder para a sua própria preservação. Ao ficar encapsulado, parado, os valores se cristalizariam e se tornariam sólidos, tornando o seu alargamento cada vez mais complicado, exigindo, digamos assim, uma vontade de potência mais potente.
E vontade de potência, segundo interpretação de Heidegger, é a vontade de tomar o poder, de ser o ser superior – Heidegger vai usar expressão parecida para designar “deus” (e é aqui que está o objetivo do texto, mas vamos chegar lá). Mas, antes, o ente deve primeiramente comandar a si mesmo. E a vontade sempre tem vontade de algo - pelo simples fato de ter vontade, não necessariamente para atingir o objetivo. A vontade é o objetivo em si. Mesmo quando tem vontade de "nada", ela ainda prefere ter essa vontade do que não ter. Como se almejasse alcançar algo maior, seguir uma trilha em direção a um objetivo, empurrar à frente, seguir adiante. Vontade de potência é a "mais interna essência do Ser", segundo Nietzsche, sendo Ser, aqui, o "todo", não dividido, já unido.
Daí a interpretação do niilismo como a possibilidade não de desvalorizar todos os valores, mas de revalorizá-los, ou seja, dar outros valores, criar novas marcas, novos limites. O niilismo seria então um processo, uma transformação, uma relação entre a vontade de potência, que se materializa em poder em si, e os valores que a permeiam, a limitam e dão sentido para ela. Ou seja, o niilismo como uma possibilidade de não aceitar os valores como eles são, mas de, a partir de uma interpretação pessoal, única, mediada pela Vontade de potência, dar aos valores o tamanho que achamos que eles devem ter. Para Heidegger, há uma conexão direta entre o niilismo e o pronunciamento de que "Deus está morto".
1Heidegger, 1977 / 77 e 78, em tradução livre
O autor de “Ser e tempo” mostra que as relações entre estabilidade [preservação] e instabilidade [intensificação] criam um curioso movimento na forma de encarar o que é chamado no texto de "complexas formas de vida". A vontade de potência ["Wille zur Macht"] é a característica fundamental da "vida": "Vontade de potência", "tornar-se", "vida" e "Ser", no seu sentido mais amplo, - querem dizer, na linguagem de Nietzsche o MESMO. E esse MESMO quer dizer, para Heidegger, resumidamente, algo como pertencer ao mesmo tempo. O ato de estar vivo se baseia em centros da Vontade de Potência, particulares de cada tempo. Esses centros são configurações, são ícones, são métricas, objetivos, formas de se regular cada tempo, ou seja, uma espécie de fonte de criação de moral, para usar uma terminologia mais batida. Assim Nietzsche entende, por exemplo, a arte, o Estado, a religião, a ciência, a sociedade, o Ser. Para Nietzsche, valor é o ato de se dar mais ou menos importância ao ponto-de-vista, à forma como se encara, a esses centros dominantes.
E há uma conexão clara entre vontade de potência e valores, para Heidegger. Valores mudam à medida que poder aumenta. É como se pensássemos que no momento em que o poder segue o seu processo natural de preservação, que é querer mais poder, os valores devem se adaptar a essa nova realidade. Mas há uma conexão no sentido inverso também: valores são as condições para a vontade de potência. Quando a Vontade de potência se torna "real", se "materializa", se torna "verdade", arriscando, se torna poder em si, em vez de sua vontade, conseguimos saber quais são seus valores. Porque o poder para querer mais poder deve se basear em algum parâmetro – no caso, nos valores - para saber o que é mais poder. É uma relação de mão dupla em que o poder alarga os limites dos valores e os valores criam esses próprios limites para serem ultrapassados. Daí também a necessidade de aumentar o poder para a sua própria preservação. Ao ficar encapsulado, parado, os valores se cristalizariam e se tornariam sólidos, tornando o seu alargamento cada vez mais complicado, exigindo, digamos assim, uma vontade de potência mais potente.
E vontade de potência, segundo interpretação de Heidegger, é a vontade de tomar o poder, de ser o ser superior – Heidegger vai usar expressão parecida para designar “deus” (e é aqui que está o objetivo do texto, mas vamos chegar lá). Mas, antes, o ente deve primeiramente comandar a si mesmo. E a vontade sempre tem vontade de algo - pelo simples fato de ter vontade, não necessariamente para atingir o objetivo. A vontade é o objetivo em si. Mesmo quando tem vontade de "nada", ela ainda prefere ter essa vontade do que não ter. Como se almejasse alcançar algo maior, seguir uma trilha em direção a um objetivo, empurrar à frente, seguir adiante. Vontade de potência é a "mais interna essência do Ser", segundo Nietzsche, sendo Ser, aqui, o "todo", não dividido, já unido.
Daí a interpretação do niilismo como a possibilidade não de desvalorizar todos os valores, mas de revalorizá-los, ou seja, dar outros valores, criar novas marcas, novos limites. O niilismo seria então um processo, uma transformação, uma relação entre a vontade de potência, que se materializa em poder em si, e os valores que a permeiam, a limitam e dão sentido para ela. Ou seja, o niilismo como uma possibilidade de não aceitar os valores como eles são, mas de, a partir de uma interpretação pessoal, única, mediada pela Vontade de potência, dar aos valores o tamanho que achamos que eles devem ter. Para Heidegger, há uma conexão direta entre o niilismo e o pronunciamento de que "Deus está morto".
1Heidegger, 1977 / 77 e 78, em tradução livre
terça-feira, 14 de maio de 2013
Música do momento n. 36:"Giorgio by Moroder"
Talvez a melhor música do novo disco do Daft Punk, Random Access Memories. Mas não vá esperando algo dançante como os álbuns anteriores. Está mais para "trilha de piano bar de novela dos anos 80". Mas eu gostei.
Deus está vivo para Heidegger
A
interpretação do tema da morte de deus é uma constante na obra de
Heidegger. Aparece, pelo menos, já em “Beiträge zur Philosophie
(Vom Ereignis)”, escrito entre 1936 e 1938, e publicado em 1989. Ou
ainda antes, nos seus cursos sobre Hölderlin de 1934/35. Mas há um
momento específico que ele toca diretamente no assunto para opinar
sobre a interpretação de seu conterrâneo Friedrich Nietzsche
(1844-1900) sobre o caso. É o texto “Nietzsches Wort ‘Gott ist
tot’”, de 1943 (numa tradução livre: “A palavra de Nietzsche:
‘Deus está morto’”)1.
Esse é um
texto em que Heidegger tenta mostrar como sua própria obra é, de
certa forma, uma continuidade da de Nietzsche. Como as respostas para
os problemas apresentados ou identificados por Nietzsche podem ser
encontradas em sua filosofia. Heidegger, inclusive, consegue, por
meio de uma grande reviravolta argumentativa, encaixar o próprio
Nietzsche dentro da tradição da metafísica, que o filósofo do
martelo dizia sempre ter combatido. Para isso, Heidegger argumenta, com o seu
vocabulário tradicional, recheado de conceitos próprios a cada
linha, que a metafísica é a verdade do que é em sua inteireza, sem
ausências. A
metafísica não é a divisão, não é a separação, não é um
embate. A metafísica é o inteiro, o todo. E - na
interpretação de Heidegger - para Nietzsche, a metafísica coincide
com a sua ideia de niilismo, que poderia ser resumida na frase "deus
está morto", mas que cabe e contém muitos desdobramentos
Antes
de prosseguir, é preciso tentar
deixar um pouco mais claro que seria metafísica para
Heidegger, um dos seus termos mais caros. Para ele, na
tradição filosófica, o termo que
provavelmente apareceu pela primeira vez na obra de Aristóteles costuma ser explicado como um todo dividido entre um mundo sensorial, ou seja
táctil, factível, físico até, e um mundo suprassensorial. Além
disso, Heidegger também mostra como a decadência da essência do
suprassensorial criou um vazio. Entre
esses dois termos, o mais elevado, ou “o de maior valor” perde,
exatamente, o seu valor. Ele chama esse processo de Verwesung,
que é traduzido para o inglês como "disenssentializing",
mas que em nota o tradutor explica que o substantivo tem o sentido de
"decomposição".
Metafísica é
o espaço aberto da história em que se transforma um destino, que o
mundo suprassensorial, como as Ideias, Deus, a lei moral, a
autoridade da razão, o progresso, a felicidade do maior número, a
cultura, civilização, sofre a perda da sua força construtiva e se
transforma em vazio. Nós denominamos essa decadência na essência
do suprassensorial sua decomposição [Verwesung].
Descrença no sentido de uma diminuição da doutrina cristã da fé
é, portanto, nunca a essência e o chão, porém sempre apenas a
consequência do niilismo; por isso pode ser que o cristianismo
sozinho represente uma consequência e o encorpamento do niilismo.2
Seria
bom para uma melhor compreensão do que é metafísica que, à vista dessa explicação, tentar entender o que seria o
niilismo, sob o ponto-de-vista de Nietzsche. Ou melhor, tentar
entender o que é a compreensão de Heidegger sobre o que seria
niilismo para Nietzsche. Por um lado, diz Heidegger, o termo lembra o
sentido usual, tradicional, como se fosse a perda dos valores dos
termos suprassensíveis. Em “Nietzsche, volume IV: Nihilism”, Heidegger
diz frases como: o “niilismo é aquele processo histórico pelo
qual o domínio do 'transcendental' se torna nulo e vazio, assim
todos os seres perdem suas validades e seus sentidos”3.
Por outro lado, porém, niilismo, na interpretação heideggeriana do
termo em Nietzsche, quer dizer quase o seu inverso: a sua
substituição por termos conexos, parecidos, com valores
semelhantes. Uma revalorização - no sentido de transformação, de
remarcar, de reavaliação. Ao liberar-se dos ícones, anteriores,
esse vácuo seria preenchido por outros termos. Mas esse processo de
substituição também apresenta problema.
O
problema da substituição de um valor por outro, o que Nietzsche,
segundo Heidegger explica, chama de "niilismo incompleto",
é ainda colocar os termos anteriores numa posição antiga de de
autoridade que é mantida "gratuitamente" num campo ideal
suprassensível. Já o "niilismo completo" para Nietzsche,
Heidegger explica, "deve abolir até com o lugar do valor mesmo,
com o suprasensível como domínio, e, de acordo com isso, deve
posicionar e reavaliar valores diferentemente"4.
Heidegger
lembra que esse projeto de reavaliação, ou revalorização, se liga
ao clássico niilismo, mas ele faz questão de dizer que esse ponto
não é central. A proposta é a mudança na forma de avaliação. Para
Heidegger, "O princípio não pode mais ser o mundo em que o
suprasensível se torna sem vida". E o niilismo, visto sob essa
ótica, vai procurar o que é mais "vivo", assim niilismo é
transformado, nas palavras de Nietzsche "no ideal da vida
superabundante". Mas o que é "vida" para
Nietzsche? E ainda: o que é valor para Nietzsche?
Em
"Vontade de potência", Nietzsche escreve: "o
ponto-de-vista de 'valor' é o ponto-de-vista constituindo as
condições de intensificação-preservação com respeito às
complexas formas de relativa duração da vida dentro [enquanto] do
tornar-se [ou se constitui ou, provavelmente, "está se
transformando", no sentido de modificação, ou como explica
Heidegger: da vontade de potência]".
Valor,
portanto, seria as condições que intensificam ao mesmo tempo que
preservam a vida, em sua mais complexa forma de existência [ou em
sua forma de existência, que é complexa], durante o ato de viver em
si [e - importante - causando uma transformação, ou se
transformando].
Heidegger ainda ressalta um detalhe curioso: que a grande definição
está no fato de valor ser apenas um "ponto-de-vista"
[Gesichtspunkt]. Para ele, o valor não é algo em "si",
ganhando sua importância pelo ponto-de-vista, ou seja, pela maneira
como é vista, enxergada, interpretada. "Valor é valor contanto
que some [ou "acrescente": a palavra é "gilt", do verbo "gelten", que é
traduzido como "counts"]. E conta contanto que colocado
como aquilo que importa."
Essa
liberdade, essa não-determinação do que seria um valor a priori,
não quer dizer que não haja formas, regras a se respeitarem para
entender o que seria um valor, dentro do raciocínio apresentado.
Apenas que essas regras, essas formas são mais sutis,
interpretativas, não-fixas e relativas. Heidegger explica que é
necessário para que algo [um ente?] seja um valor pertencer a um
Ser, sendo o que ele chama de "nisus", que seria o ímpeto
"de vir à frente" [se mostrar, aparecer, "tornar-se",
talvez]. "O objetivo", em uma tradução livre,
"providencia a perspectiva em que é conformado. O objetivo na
visão é valor." [idem]
1A
versão utilizada neste ensaio é a tradução para o inglês do
texto de Heidegger publicado em The question concerning
technology and other essays, Garland Publishing, New York &
London: 1977.
2Heidegger,
1977 / 65, em tradução livre.
3HEIDEGGER,
Martin, Nietzsche, volume IV: Nihilism.
Harper & Row, New York: 1982, p. 12 [tradução livre].
4Heidegger,
1977 / 69, em tradução livre
segunda-feira, 13 de maio de 2013
Música do momento n. 35: "Blowin' in the Wind"
How many roads must a man walk down
Before you can call him a man?
Só por esses dois versos iniciais a música de Bob Dylan já valeria. Qual é o limite, qual é a forma, qual é a marca?
A fuga dos deuses
Como explica Benedito Nunes, em “Crivo de papel”, num primeiro momento da filosofia de Heidegger, ele se diz favorável à ideia de uma filosofia apartada de deus, ou uma filosofia, em tese, ateia, simplesmente para dar vazão à sua preocupação fenomenológica, ou a uma visão que seria “apenas” fenomenológica, de se ater às questões materiais, ou melhor, factíveis, factuais, relativas ao que “existe”. Portanto, não nega, em princípio e/ou necessariamente, a existência de deus, mas não o considera como o seu principal tema de estudo ou de foco de pensamento. Nesse primeiro momento, assim sendo, Heidegger vedaria a participação da fé cristã. Mas, de acordo com Nunes, essa atitude ateística de Heidegger problematiza a fé - porque não explica nem acaba com a existência do deus, apenas o coloca em suspenso -, e aponta para como a ideia do deus hebraico-cristão penetrou na concepção do homem, como nós o conhecemos atualmente, ou o Dasein, na terminologia heideggeriana.
A questão de Deus vem depois do problema do Ser e do Tempo na trajetória de pensamento de Heidegger, diz Nunes. Como se o alemão precisasse primeiro entender o que ou quem é o Dasein para depois estudar o, nas próprias palavras de Heidegger, o Ser-maior. E a questão não é, para Nunes, a existência ou não de Deus, mas a relação do Dasein com Deus: "Gottesverhältnis" é a palavra usada por Heidegger, algo como “relacionamento com deus”. "Trata-se de saber o que, depois do esclarecimento ontológico, significa Deus, que existe na vida do homem, seja polarizando a religião, objeto de fé e culto, seja simples ideia, pressentimento ou alvo de negação"1.
Para Nunes, Deus está dentro da filosofia, e não há como escapar dele. O próprio Heidegger admite a importância de Deus dentro de seu olhar sobre metafísica contido nos seus volumes sobre Nietzsche (escritos de 1936 a 1946), quando diz no seu capítulo sobre a concepção de cosmologia e psicologia de Nietzsche que a “metafísica ocidental é teológica, mesmo quando se opõe à teologia da igreja”. Dentro da interpretação de Nunes sobre Heidegger, Deus é o "arché", o princípio do Ser, mas como ente supremo.
O problema da Metafísica – e tratando a Metafísica como a trajetória da filosofia ocidental - é exatamente separar o ente do Ser, explica Nunes interpretando o texto “Überwindung der Methaphysik” de Heidegger. Esse problema começa com o primeiro grego que se tornou filósofo ao perguntar sobre o ente, quando na verdade queria saber o que era o Ser, e se mantém até hoje, exatamente seguindo esse mesmo processo paradoxal, em que um se esconde e se confunde - se encobre, na linguagem de Heidegger - no outro.
Segundo Nunes, o ateísmo de Heidegger responsabiliza o cristianismo pelo niilismo, porque ao se aliar à filosofia grega, se aliou também à Metafísica. Porque, ao pensarem o ente, em vez do Ser contradiz e confunde o pensamento com a fé. Como se dissesse que ao focar na "razão", que é a origem da Metafísica platônica-aristotélica, não poderia abordar, não haveria espaço para sugerir exatamente o seu oposto.
Cristo foi a figura que torna a "razão" elemento central na religião. Ao encarnar, tornar-se palavra, homem, sua trajetória foi elemento de interpretação, logo, da razão, o que abriu o caminho para o processo que veio a dar no desencantamento com o mundo. Nunes fala na "saída do religioso", com o processo de cristianização: a perda da "fé" como elemento central. Seria a fé, no sentido amplo, da crença, a única forma possível para se enxergar o Ser, o verdadeiro Ser das coisas? Seria necessário usar outros olhos?
A cristianização desencanta o mundo, começa uma tentativa de resposta direta Nunes. Conduz, por meio dessa valorização do logos, da "razão", ao "desvalorização de todos os valores" (como diz Nietzsche, pela interpretação de Heidegger, sobre o niilismo). A substituição, ou como Nunes chama, derivação da interpretação de Deus em outros grandes ícones, ou em outros deuses, como [exemplos dele] "Felicidade, Progresso, Cultura, Civilização" tendem ao niilismo [no sentido de falta sentido], porque são escolhas dadas pela "razão", pelo logos, não é algo que vem de "dentro", da "emoção", da "Vontade" ou "Vontade de potência", ou do "Ser". Com a racionalização, o deus vira imagem, eco de um passado, cujo som não mais se escuta, mas se tenta acreditar, "perde o sagrado", como escreve Nunes, sobre o Entgötterung (desdivinização) e a Flucht der Götter: a fuga dos deuses. E isso acontece quando o Ser não é mais encarado, nem considerado. Quando a preocupação com o ente é a única importância, que, como explica Nunes, se manifesta "na essência da técnica, Gestell", que o torna um bem a ser explorado. A racionalização superlativa. "Esquecido o ser, esfuma-se o sagrado", escreve Nunes.
1NUNES, 1999 / 31
A questão de Deus vem depois do problema do Ser e do Tempo na trajetória de pensamento de Heidegger, diz Nunes. Como se o alemão precisasse primeiro entender o que ou quem é o Dasein para depois estudar o, nas próprias palavras de Heidegger, o Ser-maior. E a questão não é, para Nunes, a existência ou não de Deus, mas a relação do Dasein com Deus: "Gottesverhältnis" é a palavra usada por Heidegger, algo como “relacionamento com deus”. "Trata-se de saber o que, depois do esclarecimento ontológico, significa Deus, que existe na vida do homem, seja polarizando a religião, objeto de fé e culto, seja simples ideia, pressentimento ou alvo de negação"1.
Para Nunes, Deus está dentro da filosofia, e não há como escapar dele. O próprio Heidegger admite a importância de Deus dentro de seu olhar sobre metafísica contido nos seus volumes sobre Nietzsche (escritos de 1936 a 1946), quando diz no seu capítulo sobre a concepção de cosmologia e psicologia de Nietzsche que a “metafísica ocidental é teológica, mesmo quando se opõe à teologia da igreja”. Dentro da interpretação de Nunes sobre Heidegger, Deus é o "arché", o princípio do Ser, mas como ente supremo.
O problema da Metafísica – e tratando a Metafísica como a trajetória da filosofia ocidental - é exatamente separar o ente do Ser, explica Nunes interpretando o texto “Überwindung der Methaphysik” de Heidegger. Esse problema começa com o primeiro grego que se tornou filósofo ao perguntar sobre o ente, quando na verdade queria saber o que era o Ser, e se mantém até hoje, exatamente seguindo esse mesmo processo paradoxal, em que um se esconde e se confunde - se encobre, na linguagem de Heidegger - no outro.
Segundo Nunes, o ateísmo de Heidegger responsabiliza o cristianismo pelo niilismo, porque ao se aliar à filosofia grega, se aliou também à Metafísica. Porque, ao pensarem o ente, em vez do Ser contradiz e confunde o pensamento com a fé. Como se dissesse que ao focar na "razão", que é a origem da Metafísica platônica-aristotélica, não poderia abordar, não haveria espaço para sugerir exatamente o seu oposto.
Cristo foi a figura que torna a "razão" elemento central na religião. Ao encarnar, tornar-se palavra, homem, sua trajetória foi elemento de interpretação, logo, da razão, o que abriu o caminho para o processo que veio a dar no desencantamento com o mundo. Nunes fala na "saída do religioso", com o processo de cristianização: a perda da "fé" como elemento central. Seria a fé, no sentido amplo, da crença, a única forma possível para se enxergar o Ser, o verdadeiro Ser das coisas? Seria necessário usar outros olhos?
A cristianização desencanta o mundo, começa uma tentativa de resposta direta Nunes. Conduz, por meio dessa valorização do logos, da "razão", ao "desvalorização de todos os valores" (como diz Nietzsche, pela interpretação de Heidegger, sobre o niilismo). A substituição, ou como Nunes chama, derivação da interpretação de Deus em outros grandes ícones, ou em outros deuses, como [exemplos dele] "Felicidade, Progresso, Cultura, Civilização" tendem ao niilismo [no sentido de falta sentido], porque são escolhas dadas pela "razão", pelo logos, não é algo que vem de "dentro", da "emoção", da "Vontade" ou "Vontade de potência", ou do "Ser". Com a racionalização, o deus vira imagem, eco de um passado, cujo som não mais se escuta, mas se tenta acreditar, "perde o sagrado", como escreve Nunes, sobre o Entgötterung (desdivinização) e a Flucht der Götter: a fuga dos deuses. E isso acontece quando o Ser não é mais encarado, nem considerado. Quando a preocupação com o ente é a única importância, que, como explica Nunes, se manifesta "na essência da técnica, Gestell", que o torna um bem a ser explorado. A racionalização superlativa. "Esquecido o ser, esfuma-se o sagrado", escreve Nunes.
1NUNES, 1999 / 31
domingo, 12 de maio de 2013
Ensaio do ensaio
[Agora, segurem. É o início do ensaio do projeto. Sua primeira página. Só para registrar.]
Claro que o ateu Heidegger não está falando do deus cristão. Ou não está falando apenas dele. Mas de uma ideia de um ente transcendental, portanto além do homem, que dê um “sentido” ou um “valor” para a vida do homem. É como se, na entrevista, Heidegger não acreditasse mais na possibilidade de um deus aparecer. Ou de um deus novo aparecer. Como se após quase um século após Nietzsche ter escrito a sentença que para sempre ficaria associada à sua biografia, “Deus está morto”, nenhum outro ícone tivesse se apresentado para substituí-lo. Daí a sua pouca confiança no papel da filosofia no tempo em que deu a entrevista, e daí, igualmente, a crença de que a cibernética seria a forma de pensar que a substituiria. Seríamos uma sociedade cada vez menos humana e cada vez mais tecno-científica. Era um Heidegger, como dito, decepcionado com os caminhos tomados pela humanidade.
O interpretação do tema da morte de deus é uma constante na obra de Heidegger. Aparece, pelo menos, já em “Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis)”, escrito entre 1936 e 1938, e publicado em 1989. Ou ainda antes, nos seus cursos sobre Hölderlin de 1934/35. Mas há um momento específico que ele toca diretamente no assunto para opinar sobre a interpretação de seu conterrâneo Friedrich Nietzsche (1844-1900) sobre o caso. É o texto “Nietzsches Wort ‘Gott ist tot’”, de 1943 (numa tradução livre: “A palavra de Nietzsche: ‘Deus está morto’”.
Como explica Benedito Nunes, em “Crivo de papel”, num primeiro momento da filosofia de Heidegger, ele se diz favorável à ideia de uma filosofia apartada de deus, ou uma filosofia ateia, simplesmente para dar vazão à sua preocupação, pelo que parece, fenomenológica, de se ater às questões materiais, ou melhor, factíveis, factuais, relativas ao que existe. Portanto, não nega, em princípio e/ou necessariamente, a existência de deus, mas não o considera como o seu principal tema de estudo ou de foco de pensamento. Nesse primeiro momento, Heidegger veda a participação da fé cristã. Mas, de acordo com Nunes, essa atitude ateística de Heidegger problematiza a fé - porque não explica nem acaba com a existência do deus, apenas o coloca em suspenso -, e aponta para como a ideia do deus hebraico-cristão penetrou na concepção do homem, como nós o conhecemos atualmente, ou o Dasein, na terminologia heideggeriana.
[Continua...]
sábado, 11 de maio de 2013
'Fla-flus sem beleza'
Algo do Brasil atual, com seus emergentes e suas zonas de exclusão, com sua indecisão entre o arranque e a regressão, dá sinais de uma aproximação galopante e não consciente à verdade de sua história escravista através de confrontos não politicamente formalizados nem simbolicamente elaborados, que se expressam no conflito entre os poderes de Estado, na loucura religiosa, nos tribunais do Facebook, nas facções discursivas, no alarde das opiniões, nos fla-flus sem beleza, sem perspectiva e sem regras. São a marca viciosa daquilo que na nossa sociedade vai mudando sem mudar, que se transforma sem transformar, e que resiste a encarar tanto o real de suas violências constitutivas e de suas desigualdades profundas quanto o real de sua potência inovadora.José Miguel Wisnik, em texto sobre a proposta de diminuição de maioridade penal, aborda a questão das polarizações cada vez mais radicais das discussões. Parece que ninguém mais abre mão do seu querer, da sua opinião em prol de um discurso de consenso, de uma sociedade menos dividida, rasgada por dogmas - racionais ou irracionais. Será que estamos entrando, até aqui, numa sociedade binária? Quando é que vamos nos abraçar durante os debates por saber que, no fim, a intenção é que seja o melhor não para uma ou outra pessoa, mas para todos?
[Esse texto fez uma ponte com outro, de Ethan Nadelmann, cientista político e diretor-executivo da ONG norte-americana Drug Policy Alliance, publicado hoje também, no "Prosa". Entre outros argumentos, diz ele: "A proibição das drogas é a maior fonte de renda para o crime organizado, gerando violência e corrupção. Leis criminais mais duras apenas alimentam uma guerra que não pode ser vencida."]
'This is water' [again], by David Foster Wallace
THIS IS WATER - By David Foster Wallace from The Glossary on Vimeo.
Good video to contextualize Wallace famous paranymph speech. [More about the text here, in Portuguese.]
Good video to contextualize Wallace famous paranymph speech. [More about the text here, in Portuguese.]
sexta-feira, 10 de maio de 2013
'Gatsby' and Murakami
Metaphorically speaking, I had placed Gatsby securely on my kamidana, the high shelf that serves as a household shrine to the Shinto gods, and then lived my life glancing up at it from time to time.Great text [fiction? non-fiction?] from Murakami about how to translate properly Fitzgerald's "The great Gatsby" into English.
It remembered me another writer writing about translation: Borges' "Pierre Ménard, autor del Quijote" [English translation, here].
[by Rodrigo.]
Música do momento n. 34: "A little bit more"
Todo o suingue e simpatia de Jamie Lidell, nesse hit do seu excepcional "Multiply" [praticamente poderia destacar qualquer uma das faixas].
quinta-feira, 9 de maio de 2013
'Pólvora e cocaína'
Já houve quem dissesse por aí que o Rio de Janeiro é a cidade das explosões.Lima Barreto, em crônica publicada no "Correio da Noite", no Rio, dia 5 de janeiro de 1915.
Na verdade, não há semana em que os jornais não registrem uma aqui e ali, na parte rural.
A ideia que se faz do Rio é de que é ele um vasto paiol, e vivemos sempre ameaçados de ir pelos ares, como se estivéssemos a bordo de um navio de guerra, ou habitando uma fortaleza cheia de explosivos terríveis.
Certamente que essa pólvora terá toda ela emprego útil; mas, se ela é indispensável para certos fins industriais, convinha que se averiguassem bem as causas das explosões, se são acidentais ou propositais, a fim de que fossem removidas na medida do possível.
Isto, porém, é que não se tem dado e creio que até hoje não têm as autoridades chegado a resultados positivos.
Entretanto, é sabido que certas pólvoras, submetidas a dadas condições, explodem espontaneamente e tem sido essa a explicação para uma série de acidentes bastante dolorosos, a começar pelo do Maine, na baía de Havana, sem esquecer também o do Aquidabã.
Noticiam os jornais que o governo vende, quando avariada, grande quantidade dessas pólvoras.
Tudo está a indicar que o primeiro cuidado do governo devia ser não entregar a particulares tão perigosas pólvoras, que explodem assim sem mais nem menos, pondo pacificas vidas em constante perigo.
Creio que o governo não é assim um negociante ganancioso que vende gêneros que possam trazer a destruição de vidas preciosas; e creio que não é, porquanto anda sempre zangado com os farmacêuticos que vendem cocaína aos suicidas.
Há sempre no Estado curiosas contradições.
Música do momento n. 33: "Keep me there"
Toda a elegância de Nicolas Jaar é expressa nesse disco Space Is Only Noise. Aliás, ele toca em São Paulo dia 25, da D-Edge, junto com o Jamie Lidell. Nada mal, hein?
terça-feira, 7 de maio de 2013
Filosofia ou auto-ajuda?
Qual é a diferença entre Lutero e o Kant?, perguntou Adnet. E ele mesmo respondia: um é iluminista [Kant] e o outro protestante [Lutero]. É uma explicação, digamos, genérica, mas ainda assim uma boa explicação. Hoje, aparentemente, temos uma outra questão tão ou mais complexa: qual é a diferença, atualmente, entre a filosofia e a auto-ajuda?
Essa pergunta pode parecer absurda para os partidário da filosofia, de maneira mais estrita. Como confundir, eles devem pensar, o máximo com o mínimo das inteligências? Como colocar no mesmo saco Sócrates, o homem mais sábio de todos os tempos, e Augusto Cury, autor de, entre outros, "Você é insubstituível" e "Dez leis para ser feliz"? Difícil, bem difícil. Mas não impossível.
Para começar, não cabe ao partidário da filosofia escolher como se dividem as coisas no mundo. Mesmo que ele seja seguidor de Aristóteles, que foi o primeiro a fazer isso, suas atuais sugestões são falhas. Portanto se outro mecanismo de poder, com muito mais força, como é caso do Mercado, junta numa mesma prateleira Nietzsche e "Não se desespere - Provocações filosóficas", não se pode fazer muita coisa, além de tentar analisar.
Não é o caso de se aceitar passivamente o Mercado, esse deus preferido da atualidade, que, contrariando as expectativas, jamais é invisível. Mas não se debater contra uma força muito maior que o indivíduo, que simplesmente ignora as posições pessoais. É uma forma de lutar, mas mais calmamente, criando argumentos que façam entender o processo.
Desde "Mais Platão menos Prozac", talvez o marco mais significativo desse processo, o mercado tenta captar, cooptar, dominar a filosofia. Dar um sentido, um significado, uma razão de ser. Uma resposta para a pergunta dos práticos que sempre inquirem "por que você está estudando isso?". A verdade é que, dentro de uma sociedade gerida por esse deus-Mercado, com os seus próprios mandamentos [1º - Vencerás, 2º - Crescerás, 3º - Lucrarás...], a filosofia não consegue se encaixar. Mas por que, então, sobrevive? Se mesmo Heidegger - o Heidegger! - disse que era o fim da filosofia? Bem, porque, entre outros motivos, esse deus-Mercado não dá conta da vida. A vida é muito maior que qualquer deus, único, pode pensar.
Porém, isso não é o bastante. Se fosse o caso, a filosofia estaria restrita, agora, a um nicho, a um segmento, a uma sociedade quase secreta, sem querer ser secreta. Pessoas que falam línguas estranhas, discutem assuntos bizarros, vivem em um mundo completamente longe da "realidade". É quase isso. Só não é porque o Mercado, e os seus fiéis, viram uma forma de explorar a filosofia.
E voltamos à pergunta inicial: qual é a diferença entre filosofia e auto-ajuda? Durante muito tempo na história da humanidade, eu diria que nenhuma. O que difere, hoje, a filosofia da auto-ajuda foi uma sugestão de Nietzsche, ou seja, ontem em termos históricos, de assassinar Deus [nesse caso, principalmente o cristão, mas, numa segunda interpretação, todos os demais juntos]. Em outras palavras: a auto-ajuda fornece um passo-a-passo do que fazer, do que vestir, comer, como se comportar. É um manual de sobrevivência para um deus específico, no caso, atualmente, o deus-Mercado. E a filosofia, desde muito tempo, a grossíssimo modo, discutiu os limites entre o que devemos fazer, como devemos agir, qual é o papel de cada um dentro de uma organização social.
Para borrar os limites entre um tipo de texto que estabelece esses limites e outro que discute esses limites não é preciso ser muito genial. Transformar Nietzsche em um outro objeto de consumo é fácil. É só dizer para os jovens que ele queria que todo mundo fosse o que quisesse ser, sem respeitar qualquer tipo de limite imposto de fora para dentro [pais, sociedade, enfim, deuses]. Além disso, é cool. Quem que não quer ter como auxílio na argumentação contra os pais um pensador alemão bigodudo do século XIX?
Mastigar essas fronteiras foi o que o deus-Mercado fez. Deu uma "utilidade" para a filosofia. Encaixou-a numa prateleira, rotulou-a para o consumo. Fez com que as pessoas a enxergassem como um guia, que sugerisse os lugares bons para se comer, beber, conhecer.
Se isso é ruim? Não necessariamente. Cada um deve ter a liberdade de escolher os seus próprios deuses, da maneira que quiser - desde que seja uma escolha, no máximo do possível, individual. Mas já não é filosofia. E, como sabemos, a filosofia - como outros campos do pensamento, como a arte, a história, etc. - não consegue ser morta. Ela sempre sobrevive, mesmo que de maneiras bem estranhas.
Essa pergunta pode parecer absurda para os partidário da filosofia, de maneira mais estrita. Como confundir, eles devem pensar, o máximo com o mínimo das inteligências? Como colocar no mesmo saco Sócrates, o homem mais sábio de todos os tempos, e Augusto Cury, autor de, entre outros, "Você é insubstituível" e "Dez leis para ser feliz"? Difícil, bem difícil. Mas não impossível.
Para começar, não cabe ao partidário da filosofia escolher como se dividem as coisas no mundo. Mesmo que ele seja seguidor de Aristóteles, que foi o primeiro a fazer isso, suas atuais sugestões são falhas. Portanto se outro mecanismo de poder, com muito mais força, como é caso do Mercado, junta numa mesma prateleira Nietzsche e "Não se desespere - Provocações filosóficas", não se pode fazer muita coisa, além de tentar analisar.
Não é o caso de se aceitar passivamente o Mercado, esse deus preferido da atualidade, que, contrariando as expectativas, jamais é invisível. Mas não se debater contra uma força muito maior que o indivíduo, que simplesmente ignora as posições pessoais. É uma forma de lutar, mas mais calmamente, criando argumentos que façam entender o processo.
Desde "Mais Platão menos Prozac", talvez o marco mais significativo desse processo, o mercado tenta captar, cooptar, dominar a filosofia. Dar um sentido, um significado, uma razão de ser. Uma resposta para a pergunta dos práticos que sempre inquirem "por que você está estudando isso?". A verdade é que, dentro de uma sociedade gerida por esse deus-Mercado, com os seus próprios mandamentos [1º - Vencerás, 2º - Crescerás, 3º - Lucrarás...], a filosofia não consegue se encaixar. Mas por que, então, sobrevive? Se mesmo Heidegger - o Heidegger! - disse que era o fim da filosofia? Bem, porque, entre outros motivos, esse deus-Mercado não dá conta da vida. A vida é muito maior que qualquer deus, único, pode pensar.
Porém, isso não é o bastante. Se fosse o caso, a filosofia estaria restrita, agora, a um nicho, a um segmento, a uma sociedade quase secreta, sem querer ser secreta. Pessoas que falam línguas estranhas, discutem assuntos bizarros, vivem em um mundo completamente longe da "realidade". É quase isso. Só não é porque o Mercado, e os seus fiéis, viram uma forma de explorar a filosofia.
E voltamos à pergunta inicial: qual é a diferença entre filosofia e auto-ajuda? Durante muito tempo na história da humanidade, eu diria que nenhuma. O que difere, hoje, a filosofia da auto-ajuda foi uma sugestão de Nietzsche, ou seja, ontem em termos históricos, de assassinar Deus [nesse caso, principalmente o cristão, mas, numa segunda interpretação, todos os demais juntos]. Em outras palavras: a auto-ajuda fornece um passo-a-passo do que fazer, do que vestir, comer, como se comportar. É um manual de sobrevivência para um deus específico, no caso, atualmente, o deus-Mercado. E a filosofia, desde muito tempo, a grossíssimo modo, discutiu os limites entre o que devemos fazer, como devemos agir, qual é o papel de cada um dentro de uma organização social.
Para borrar os limites entre um tipo de texto que estabelece esses limites e outro que discute esses limites não é preciso ser muito genial. Transformar Nietzsche em um outro objeto de consumo é fácil. É só dizer para os jovens que ele queria que todo mundo fosse o que quisesse ser, sem respeitar qualquer tipo de limite imposto de fora para dentro [pais, sociedade, enfim, deuses]. Além disso, é cool. Quem que não quer ter como auxílio na argumentação contra os pais um pensador alemão bigodudo do século XIX?
Mastigar essas fronteiras foi o que o deus-Mercado fez. Deu uma "utilidade" para a filosofia. Encaixou-a numa prateleira, rotulou-a para o consumo. Fez com que as pessoas a enxergassem como um guia, que sugerisse os lugares bons para se comer, beber, conhecer.
Se isso é ruim? Não necessariamente. Cada um deve ter a liberdade de escolher os seus próprios deuses, da maneira que quiser - desde que seja uma escolha, no máximo do possível, individual. Mas já não é filosofia. E, como sabemos, a filosofia - como outros campos do pensamento, como a arte, a história, etc. - não consegue ser morta. Ela sempre sobrevive, mesmo que de maneiras bem estranhas.
segunda-feira, 6 de maio de 2013
O fim do furo como fim
Foto de Marcos Estrella, da TV Globo, no meio do temporal |
Não que a instituição do furo tenha se tornado irrelevante, não mesmo. É sempre bom sair do marasmo do jornalismo de release, principalmente quando isso acontece por meio dos recursos antigos, como fontes, investigação, etc. Mas é que esse recurso já não repercute como acontecia. O jornalismo não é mais feito de furos.
Primeiro porque há tantas formas de se informar que o leitor não sabe mais de onde partiu a informação original, no dia-a-dia [se é que um dia ele soube, porque, para saber, ele deveria ler mais de um jornal por dia, o que, suspeito, era incomum]. E porque esse leitor pode ser também um produtor de conteúdo, em um veículo de mídia não tradicional, como, por exemplo, as redes sociais.
É sempre citado o caso da morte de Whitney Houston, cuja informação foi dada primeiro pelos funcionários do hotel onde ela estava hospedada via Twitter [se eu não me engano], depois pelas empresas de mídia tradicionais.
Se a questão for o furo pelo furo, o jornalismo - sério, correto - sempre vai perder. Porque, em vez de publicar uma suposição, ele vai apurar primeiro, com outras fontes, principalmente se for um caso de vida ou morte. E isso leva tempo. E quem não tem essa preocupação, como qualquer leitor comum, vai divulgar a informação ainda no seu formato "boato". Não há como competir nesse caso.
E aí que uma nova-antiga função do jornalismo aparece: credibilidade. Exemplo: Chove nas ruas do Rio. Você pode recorrer às redes sociais para saber o que os seus amigos estão enfrentando, quais lugares você deve evitar, onde está uma banheira, etc. Mas para ter uma noção mais total e confiável, você recorre aos meios mais tradicionais.
O "Guardian", esse jornal que é, provavelmente, a atual vanguarda dos meios de comunicação desse lado do mundo, tem uma outra sugestão: o jornalismo vai se especializar em dados. Como todo mundo produz informação, esse volume vai se agigantar cada vez mais, e o jornalista vai ser aquele que vai peneirar tudo isso, vai descobrir a notícia dentro do turbilhão que nos povoa. Ao chover na rua, além de correr para as ruas, ele corre para a internet, para pesquisar sobre onde as pessoas mais reclamam de poças e alagamentos. E apura com autoridades, manda gente para o lugar, vê em câmeras da prefeitura, descobre se a informação condiz com a sua interpretação ou não.
Eu gosto do jornalismo de outro jeito: é o algo a mais. Além de noticiar que está chovendo - já que isso qualquer um pode fazer - é saber por que tais e tais lugares ainda alagam, desde quando isso acontece e o que as autoridades estão fazendo para resolver o problema numa próxima chuva. É sair do que se chama "factual", do fato em si, para tentar entender o problema, e sugerir soluções para ele.
Porque não é possível ter furos em relação à chuva.
Nietzsche para inglês ler
Hugo Tomlinson, tradutor para o inglês do livro de Deleuze sobre Nietzsche, fala algo razoavelmente surpreendente sobre a recepção do pensador alemão na língua de Shakespeare. Para ele, não há outro idioma em que Nietzsche tenha sido mais mal interpretado.
Principalmente, porque, segundo ele, os dois principais sistemas de pensamento que o alemão combatia eram o racionalismo francês, talvez representado por Descartes, que, também talvez, fosse uma espécie de atualização do "ideal" platônico; e a dialética alemã, que é mais comumente associada a Hegel, mas que na verdade apenas continua de uma forma curiosa a metafórica divisão metafísica da história da filosofia - e de novo estaríamos em Platão.
[Essa divisão leva a pensar que a preocupação metafísica identificada e combatia por Nietzsche, e restaurada por Heidegger, era um foco de estudos alemães. Ou melhor: foi reconhecido como um problema por Nietzsche e então se transformou em uma forma de pensar a trajetória de pensamento - fazendo referência a Aristóteles, claro.]
"Os ingleses tinham às suas disposições teóricas o empirismo e o pragmatismo que significava que o desvio sugerido por Nietzsche não era de grande valor para eles", escreve Tomlinson, falando que a academia não se reconhecia naquilo que o alemão do bigode combatia. Eram questões que, para os adoradores de ales, não faziam muito sentido. "Na Inglaterra, portanto, Nietzsche foi somente uma influência para novelistas, poetas e dramaturgos: foi uma influência prática, emocional, mais que uma influência filosófica, lírica mais que teórica."
O que é curioso e corrobora uma opinião de Antonio Cícero, que além de poeta e letrista, é formado em filosofia, por uma universidade inglesa, exatamente em lógica. Cícero não vê Nietzsche como um filósofo, porque aí ele deveria ter encarado a academia e as suas regras, criado um sistema próprio e sobrevivido - como se sabe, ele não fez nada disso, falhando, inclusive na última parte da equação. Não que os súditos da rainha desmereçam sua importância, mas o colocam numa posição quase inócua de "pensador", como se fosse um franco-atirador, que até acertou alguns alvos, mas que não deve ser enterrado no mesmo panteão que outros filósofos "de verdade".
Por isso tudo, não deve ser uma surpresa o crescimento da lógica da filosofia da linguagem exatamente na Inglaterra, e a cientificação quase positivista, quase binarização do conhecimento capitaneada pelos países de língua inglesa. Um pragmatismo que não aceita muito retruque. E que é visto por Heidegger, pelo que eu entendi, como o motor que afunda a civilização na ideia tecno-científica.
O que nos preocupa, a nós, identificados na história da literatura de maneira bem inteligente por Antônio Candido, como uma espécie de filhos de portugueses e netos de franceses, é que agora, agorinha mesmo, queremos mudar de parentesco. E não é para termos pais chamados Friedrich ou Hannah.
Ps. Não deixa de ser bastante significativo que uma enorme parte do nosso imaginário do que seria o Ocidente, esse lugar mitológico, tenha sido escrito em alemão, francês e inglês. Sem desmerecer espanhóis, italianos, portugueses, e todo o norte europeu, são essas as três línguas mais poderosas deste lado do planeta.
Principalmente, porque, segundo ele, os dois principais sistemas de pensamento que o alemão combatia eram o racionalismo francês, talvez representado por Descartes, que, também talvez, fosse uma espécie de atualização do "ideal" platônico; e a dialética alemã, que é mais comumente associada a Hegel, mas que na verdade apenas continua de uma forma curiosa a metafórica divisão metafísica da história da filosofia - e de novo estaríamos em Platão.
[Essa divisão leva a pensar que a preocupação metafísica identificada e combatia por Nietzsche, e restaurada por Heidegger, era um foco de estudos alemães. Ou melhor: foi reconhecido como um problema por Nietzsche e então se transformou em uma forma de pensar a trajetória de pensamento - fazendo referência a Aristóteles, claro.]
"Os ingleses tinham às suas disposições teóricas o empirismo e o pragmatismo que significava que o desvio sugerido por Nietzsche não era de grande valor para eles", escreve Tomlinson, falando que a academia não se reconhecia naquilo que o alemão do bigode combatia. Eram questões que, para os adoradores de ales, não faziam muito sentido. "Na Inglaterra, portanto, Nietzsche foi somente uma influência para novelistas, poetas e dramaturgos: foi uma influência prática, emocional, mais que uma influência filosófica, lírica mais que teórica."
O que é curioso e corrobora uma opinião de Antonio Cícero, que além de poeta e letrista, é formado em filosofia, por uma universidade inglesa, exatamente em lógica. Cícero não vê Nietzsche como um filósofo, porque aí ele deveria ter encarado a academia e as suas regras, criado um sistema próprio e sobrevivido - como se sabe, ele não fez nada disso, falhando, inclusive na última parte da equação. Não que os súditos da rainha desmereçam sua importância, mas o colocam numa posição quase inócua de "pensador", como se fosse um franco-atirador, que até acertou alguns alvos, mas que não deve ser enterrado no mesmo panteão que outros filósofos "de verdade".
Por isso tudo, não deve ser uma surpresa o crescimento da lógica da filosofia da linguagem exatamente na Inglaterra, e a cientificação quase positivista, quase binarização do conhecimento capitaneada pelos países de língua inglesa. Um pragmatismo que não aceita muito retruque. E que é visto por Heidegger, pelo que eu entendi, como o motor que afunda a civilização na ideia tecno-científica.
O que nos preocupa, a nós, identificados na história da literatura de maneira bem inteligente por Antônio Candido, como uma espécie de filhos de portugueses e netos de franceses, é que agora, agorinha mesmo, queremos mudar de parentesco. E não é para termos pais chamados Friedrich ou Hannah.
Ps. Não deixa de ser bastante significativo que uma enorme parte do nosso imaginário do que seria o Ocidente, esse lugar mitológico, tenha sido escrito em alemão, francês e inglês. Sem desmerecer espanhóis, italianos, portugueses, e todo o norte europeu, são essas as três línguas mais poderosas deste lado do planeta.
Música do momento n. 32: "Jeeper Creeper"
Perdoem-me o alto grau de influência do reggae nessa faixa de Sinkane do disco "Did.You Hear The New Mixtape? (December 2011): B-SIDE", mas é exatamente esse ingrediente que foge das receitas tradicionais que o tornam mais saboroso. Vale falar que o nome do moço Ahmed Gallab, que ele nasceu no Sudão, mas que vive nos EUA desde muito pequeno. Talvez venha daí sua ligação com a percussão, com um som mais tranquilo, mas cool, mas sem perder o suingue jamais. Talvez valha dizer ainda que ele foi baterista do Caribou e do Of Montreal, mas esse condimento pode até mesmo ser desnecessário.
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