segunda-feira, 1 de abril de 2013

Só é possível sonhando

Em uma palestra dentro de um festival de música, no meio da parte verde da Inglaterra, num fim de semana chuvoso e lamacento do ano passado, vimos uma apresentação da escritora norueguesa-americana Siri Hustvedt [foto ao lado], quase que sem-querer. Foi uma surpresa incrível. Além de ser inteligente, a moça que já veio ao Brasil algumas vezes por conta, principal e infelizmente, de ser a senhora Paul Auster, é extremamente comunicativa. Algo bem difícil em se considerando alguém cujo conteúdo é razoavelmente complexo, e em se levando em conta que estávamos em um festival de música.

Em um dos pontos mais interessantes de sua apresentação, Hustvedt leu um ensaio que eu, agora, ano depois, acredito ser "Sleeping / Not sleeping", do seu livro "Living, thinking, looking". Todo o texto é incrível, mas lembro que o argumento que mais me chamou foi a informação de que quem sonha dorme melhor.

[Re]Lendo agora, eu pego um pouco mais de detalhes sobre o assunto: "Dreamless sleep gave Descartes a further problem", ela escreve, "It followed from his cogito ergo sum that the apparent thoughtlessness of deep imageless sleep would mean an end to human existence". Logo em seguida, afirma: "John Locke found this ridiculous and came to opposite conclusion: dreamless sleep is not part of the self, because there is nothing to remember, and personal identity is part of the memories".

Eu não encontrei exatamente a passagem em que ela fala sobre como quem sonha dorme melhor. Talvez tenha sido uma intervenção no meio da leitura, dando mais informações sobre a pesquisa que ela fez para escrever o ensaio. Talvez eu tenha entendido errado. Talvez eu quisesse entender errado.

No texto, ela escreve como nos registros históricos médicos há casos de pessoas que ficam dias sem dormir mas começam, mesmo acordados, a sonhar. Como se o sonho fosse necessário, fosse algo que não conseguíssemos evitar. Na minha interpretação e com as minhas palavras: como se a "não-realidade" fosse tão importante quanto a "realidade". Como se nossa mente precisasse ser entretida, precisasse se desligar, precisasse simplesmente ser conduzida por caminhos não-racionais. O mesmo processo, por exemplo, que acontece durante a vigília com as narrativas. Narrativas, esse nome contemporâneo para os mitos, que vão desde as criações literárias até as religiões.

Sem querer lembrei disso no mesmo dia em que vi "Life of Pi", o filme do Ang Lee sobre o livro do Yann Martel. Fazendo spoiler, um dos grandes temas do livro é como a narrativa fantástica - mais "narrativa" no sentido de ser mais "imaginativa" - é mais atraente e interessante que a narrativa dita "realista", em que os fatos são narrados "referencialmente". Daí, o narrador sugere, o sucesso e a necessidade das religiões. Ele mesmo, um indiano de nascimento, seguia três diferentes: hinduísmo, catolicismo e islamismo.

Também é curioso ter lembrado disso um dia antes de ler a coluna do Daniel Galera n'O Globo em que ele fala sobre a possibilidade de não haver qualquer sentido para o mundo, para a sua existência. Ser tudo completamente aleatório.
Há ideias para todos os gostos [no livro "Why does the world existe?", de Jim Holt]: universos múltiplos, universos que brotam do vácuo, universos regidos pelo bem, pela simplicidade, pela mediocridade, defesas variadas da existência de um Deus criador. É tudo infinitamente fascinante e digno de reflexão. Todavia, há uma alternativa que não interessa muito ao autor: a ideia de que o universo não teve início, ele existe e pronto, sempre existiu e sempre existirá, o fato bruto. Holt não tem problemas com a possibilidade de um universo sem propósito nem sentido, mas sustenta que um universo sem explicação seria intolerável para uma espécie racional como a nossa, citando o filósofo Arthur Lovejoy, para quem tal mundo “não teria estabilidade nem seria digno de confiança”, pois “a incerteza contaminaria o todo; tudo (exceto talvez o autocontraditório) poderia existir e tudo poderia acontecer, e nenhuma coisa seria em si mais provável que outra”.
Galera responde exatamente concordando com essa ideia:
Intolerável? Se dispensamos o tipo de atenção seletiva que faz coisas como o ego e o horóscopo parecerem convincentes, se encaramos o mundo sem o retrospecto de nossas narrativas pessoais, um universo que simplesmente existe me dá a impressão de exigir a mesma medida de crença e razão que os outros. Nem mais nem menos. E para alguns gostos, longe de ser intolerável, talvez esta seja a hipótese mais bela e confortante.
Para mim, é cada vez mais claro que precisamos de alguma paixão - e aí entra a categoria narrativa, no sentido da mitologia, por exemplo - para nos guiar à frente. Não é uma explicação para as coisas, não é a razão de tudo, não é uma tentativa científica para se sentir mais à vontade. Mas uma crença, algo irracional - uma paixão? um amor? um deus? um vício? - que nos instigue, nos faça caminhar, no tire do marasmo, da imobilidade. Porque se pararmos para pensar, não há qualquer motivo para continuar caminhando.

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