domingo, 21 de abril de 2013

O Rio virou MAR

O MAR é um museu que nasceu praticamente para falar do maior ativo do Rio: sua paisagem. A primeira parada minha - e, acredito, de todas as pessoas, é exatamente no último andar do prédio "novo", onde há um visual breathtaking de toda a área portuária carioca. Só depois vamos às exposições. Sendo que, ainda assim, a primeira, seguindo esse caminho, no último andar do prédio "velho", é exatamente sobre como a paisagem do Rio foi retratada ao longo dos séculos.

A obra-piada [esse gênero que nasce da "sacadinha" do "artista", que tem uma "boa ideia" e a executa da melhor maneira possível. Mas que ao fim parece sem muita sustança], como dizia, a obra-piada que melhor representa esse processo de curadoria dos registros históricos sobre o Rio é a peça de Marcos Chaves de 1961 "Só vendo a vista" [abaixo].



Neste momento, achei que a grande obra-piada não feita deveria ser: um buraco emoldurado na parede, com o enquadramento da vista. Para dar uma "consciência social", seria interessante também mostrar algum aspecto "humano", ou seja, que houvesse a presença do homem de alguma maneira [hoje é fácil isso], para que a "obra" fosse "viva", se modificasse ao longo dos anos. Fica a sugestão para os artistas.

Nove fora as obras-piadas, é difícil não ficar tocado pela exposição [apenas uma entre várias: dá vontade de ir e voltar diversas vezes ao museu]. Eu diria que 90% dos presentes eram turistas brasileiros que estavam lá para ver outros aspectos do Rio e cumprir uma obrigação social de ver "arte" num "museu". Uns 5% eram de turistas gringos e os demais eram cariocas que passavam horas tentando entender a geografia de uma cidade que não existe mais.

A minha parte preferida foi o século xix, exatamente por esse motivo. Sempre imagino um Rio sem muita contaminação, luxuriante, um Rio completamente verde, com ruas estreitas e de terra batida, como são as vias das cidades pequenas de interior. Os artistas do período, a grande maioria de estrangeiros, ficam nitidamente embasbacados com as paisagens que encontra. São registros e mais registros da Baía de Guanabara, vista de diversos pontos diferentes. Pão de Açúcar. Corcovado. etcetcetc.

Me pergunto nessa hora se as obras são bonitas porque retratam um lugar bonito, ou são bonitas e retratam um lugar bonito e só consigo responder anos depois, quando chego ao modernismo e vejo como o retrato não era mais a intenção dos artistas. Mas que há, mesmo assim, diferenças entre dois artistas, no período em que a intenção era ser o mais próximo da "realidade". Veja o caso de Taunay [lê-se "toné", como descobri ontem], por exemplo.

É dele as três primeiras obras expostas. E, embora seja bastante comum entre os pintores viajantes do século xix retratar, na periferia dos seus retratos, personagens e, em se tratando do Rio, de muitos negros trabalhando enquanto brancos são paparicados, é do francês Taunay a mais incrível crítica que eu vi lá contra o tratamento diferenciado entre pessoas, baseado em cores de pele: "A cascatinha da Tijuca" [não sei a data exata, mas é das primeiras décadas do 1800].


O quadro aparentemente é inócuo, e deve ter sido visto assim pela maioria das pessoas que passou apressada pela sala, com a intenção de cumprir em menor tempo a corrida intramuseus, que acontece ao mesmo em todo mundo onde quer que tenha uma exposição acontecendo. A "cascatinha..." mostra uma paisagem fora das "tradicionais", uma cachoeira no que hoje é o Parque da Tijuca, e pelo que eu entendi, se chama agora Taunay. O francês morava por ali, construiu suas casas, iniciou uma plantação de café, criou os filhos. E quando voltou para a França, deixou como herança para os herdeiros. Era um ambiente que ele conhecia bem.

No alto da obra, vemos a pintura se esfumaçando, com o vapor d'água se misturando com o céu branco, em contraste com os temas e cores terrenos e terrosos e escuros na parte debaixo da tela. E é nessa parte que mora o detalhe, o twist, que faz a obra sair da categoria de boa para a de excelente [veja abaixo].


É na parte inferior, com cores mais avermelhadas, menos etérea, mais terrena, menos religiosa, mais cotidiano, menos idealização, mais "verdade", que aparece um sujeito com casaca e cartola com paleta de cores e um cavalete segurando uma tela. Ele olha para fora do quadro. Ele mira o espectador. Ele quer pintar, está pintando a reação das pessoas que o veem, que ficam impressionados pela cascatinha. Esse pintor é Taunay? Não importa. Seu objetivo é retratar não mais uma paisagem, mas gente, de carne e osso.

Se esse recurso metalinguístico estivesse sozinho já seria o suficiente para alavancar a obra para um patamar que foge da mesmice. Mas há ainda outro elemento que, aí sim, a torna única. Ao lado do pintor, reparem, há dois personagens. Negros. Eles não são mostrados como carregadores, trabalhadores, como homens-animais que servem apenas para dar o seu suor pelo branco, mas como espectadores de uma obra-de-arte. Portanto capazes de sentir, de se emocionarem, de, em suma, serem humanos. Ter a mesma reação que o espectador do lado de fora da tela, provavelmente um branco, que via essa obra. Certamente os negros aparecem com menos espanto que os brancos. Ou seja, Taunay iguala os homens, mostra que não há qualquer diferença entre os espectadores, de qualquer cor. Mexe com a convicção arraigada dos preconceituosos.

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