segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Huascarán

O céu estava branco e os primeiros flocos de neve já gelavam seu rosto. À sua frente, o Huascarán, com suas duas pontas, e seus 6768 metros. Era a primeira vez que o via. João estava com medo. Não sabia muito bem do quê. Ficou parado em frente a uma das pequenas lagoas, imobilizado, e só saiu do transe hipnótico quando uma senhora vestida com roupas que pareciam ter séculos de existência trouxe um bebê lhama para ele segurar e tirar fotos, em troca de um trocado. Ele não queria segurar lhama alguma. Não estava feliz. Não queria compartilhar nada, não queria interagir. Estava com medo, um medo que não sabia dizer bem o que era.

Atrás dele, estava o guia. “Me llamo Pablo”, ele disse secamente, em uma das poucas vezes que abriu a boca para se comunicar. Era um índio, baixo, atarracado, forte, com o rosto largo e nenhum sorriso, que parecia estar totalmente à vontade apenas por estar ali. Assim que a mulher com o lhama apareceu e insistiu, falando um espanhol muito quebrado, Pablo disse algo para a mulher, em quéchua, em um tom mais grosseiro que o normal, e ela saiu, sem se virar. Ele mascava algo e entregou para João, “És para el soroche”, umas raspas do que parecia ser uma raiz, enrolada em uma folha que ele reconheceu ser de coca. João pegou sem pensar muito aquela combinação e colocou na boca.



Não sabia bem o que fazer. Por que ele tinha chegado ali? Tentou fazer o percurso mental: foi uma prima, meio maluquinha, que tinha ido antes para o Peru e dito que Cuzco era ótimo, mas que ela tinha gostado mesmo foi de conhecer Huaraz, Chavin de Huántar e, principalmente, o Huascarán. As fotos dela eram incríveis. Além de ela ser uma ótima fotógrafa, o céu estava azul. Bem diferente do que ele via agora. A prima, empolgadíssima, disse que era ali que se conhecia os verdadeiros peruanos, não na versão para a exportação que todo mundo conhece quando vai visitar as ruínas de Machu Picchu. Nada disso o empolgou. Ele só ficou com vontade de ir quando ela disse que Huascarán era o quarto ponto culminante da América do Sul e que tinha sido muito difícil para ela subir. Mesmo com o tempo bom, havia muito vento, a temperatura estava muito baixa e, principalmente, a altitude, com o ar rarefeito, fez com que ela vomitasse muito ao chegar no ponto culminante. Mas, para ela, que adorava se meter nessas hippongagens, já tinha tomado chá de santo Daime e não se sabe mais de quais outros santos, esse processo serviu como uma espécie de purificação. “Mudou a minha vida”, disse ela, séria, olhando para ele, após mostrar as fotos no computador.

João não queria mudar de vida. Estava satisfeito com o esquema que montou para si, de acordar ao meio-dia, investir na bolsa pela tarde-noite, e varar a madrugada jogando pôquer valendo dinheiro pela internet. Estava bom assim, não tinha o que reclamar. Já tinha comprado um apartamento, seu carro era do ano, saía aos fins de semana com os amigos de infância, com quem nunca perdeu contato. Ao ouvi-la, ele queria, ele ficou tentado, ficou com vontade de enfrentar a quarta montanha mais alta do continente.  Mas por quê? Por que ele queria enfrentá-la? Ele agora se pergunta olhando para a montanha, logo à frente dele, com o medo subindo junto com o frio, por suas pernas em direção ao coração. Ele não era um homem de se questionar muito. Muito menos de viajar para lugares não urbanos. Só tinha saído do Brasil para ir aos EUA, Argentina, e na Europa fez as capitais mais famosas: Paris, Londres, Roma. Viajava sempre para o Nordeste do Brasil e gostava muito de praias. O lugar menos óbvio a que tinha ido era o Pantanal e Bonito. Por que, então, resolveu ir para uma cidade praticamente desconhecida no interior do Peru para subir uma montanha? Ele, que jamais tinha feito uma trilha na vida?

“Vamos nos quedar un poco acá, ¿si?”, ele pediu para Pablo, que, fez uma cara de contrariado, mas, sem demorar um segundo, se sentou no chão de grama úmida e gelada.

Tinha chegado via Lima e, depois de três dias na capital, sem achar particularmente nenhuma graça na cidade que vive quase sempre nublada, foi para Huaraz, onde fica o parque nacional de Huascarán. Ele tinha vindo para cá, ele acredita, porque queria fazer algo diferente. Estava entediado com o seu cotidiano. Estava? Acha que estava. Mas ele gosta do cotidiano, mas se entediou. Começara a malhar numa academia e também decidira correr na praia, na tentativa de aumentar sua endorfina, e foi nessa época, em que ele estava experimentando esse novo formato de vida, que ouviu a história da prima. Ele queria fazer algo diferente do que ele tinha feito sempre. Tentou arranjar companhia entre os amigos e os que não olharam para ele com cara de surpresa e reprovação disseram que não conseguiriam tirar férias em tão poucos meses, como ele havia planejado. Iria sozinho, então. Como tudo o que fez na vida, até ali. Lembra-se de estar empolgado com a viagem. Estava empolgado com a viagem. Ele, que conseguiu comprar o apartamento com 28 anos, com o dinheiro do próprio suor, com sua inteligência matemática, como dizia, com apenas sua visão empresarial e seu faro para negócios e jogadas, não seria parado por uma montanha, mesmo que ela tivesse mais de 6 mil metros.  Lembrou-se do pai, fiscal da receita. Sempre fora contra a sua vida, o seu estilo de vida. Quando começou a viver do jeito que vive e gosta de viver, o pai lhe disse que não daria um centavo para ele, se ele não optasse por uma profissão de verdade. A mãe ficou dividida, mas não conseguiu convencer o pai a mudar de ideia. João, para começar nessa nova carreira, nessa fase da vida, teve que fazer algumas concessões. Vendeu o carro que tinha, parou de sair, de viajar, parou tudo. E investiu na bolsa. Todo dia, o dia todo, loucamente. Depois, percebeu que o pôquer poderia ser mais que um hobby, e fazia jornadas duplas. Houve semanas que ele praticamente não dormiu, trocando de mercado, indo de Shangai, para Hong Kong, depois Tóquio, Nova York, Londres, Paris, Frankfurt, aí ia para o pôquer e acordava em Shangai novamente e o ciclo continuava. Investia em petróleo, commodities, novas empresas de tecnologia, blue chips. Sua carteira era variada, mas sua atitude era bem agressiva. Foram seis anos de luta, de trabalho profundo para se estabelecer, após a faculdade de administração que largou faltando apenas o trabalho final. Ele tinha orgulho de ter dado certo. De poder mostrar para o pai que ele deu certo. A mãe ajudou. Deu uma grana para alugar o primeiro apartamento. Emprestava o próprio carro, quando ele precisava. O início foi complicado, mas ele agora se sente orgulhoso de ter vencido. Sim. Nunca chegou a discutir de verdade com o pai, mas guardou uma mágoa forte dele.  Como se o pai não tivesse estado lá quando ele mais precisava. O pai ainda não entende como o filho, já com 35 anos, quer continuar numa vida tão insegura, sem qualquer garantia. E como ele vai se aposentar? Como ele vai criar os filhos? Aliás, nunca vai se casar? A mãe, sem que nem o filho nem o pai saibam, paga escondido um plano de saúde para João. Não aguentaria ver o filho num hospital público, caso algo de errado – bate na madeira – acontecesse. Então, o que mudou dentro dele? Por que esse medo, agora, ao ver os cumes brancos da montanha? Onde está a empolgação que ele tinha, de mostrar que ele poderia enfrentar qualquer problema?

No dia anterior, tinha ido conhecer Chavin de Huántar. Ficou, pela primeira vez na viagem, impressionado. Algo dentro dele tinha se movimentado. Conseguiu visualizar, enquanto o guia da excursão que ele tinha contratado falava, o encontro de civilizações, de peregrinos com locais há milênios naquele descampado. Conseguiu ver o sacerdote que exercia também o poder político discursando e dizendo que eles deveriam fazer sacrifícios aos deuses em prol de boas colheitas e para afugentar os maus espíritos. Viu o homem jovem subindo os degraus da pirâmide em direção ao sacerdote para tomar um chá de cacto de são Pedro, enquanto inúmeros músicos tocam instrumentos rústicos, que imitam o som dos ventos, dos animais, da vida. O homem que é colocado dentro da pirâmide – e João também entra na pirâmide e está quase em transe com a descrição – e segue pelos corredores estreitos, úmidos e frios, com pouquíssima ventilação, e iluminação precária, mas que as pupilas dilatadas pelo chá o fazem enxergar razoavelmente bem. Escuta os sons de jaguares, do lado de fora, e continua, assustado, com medo do que vai encontrar, mas sabendo que ele tem que se sacrificar pelo seu povo, para que todos pudessem viver melhor, vai tateando as paredes, evitando os buracos no chão, percebendo que os caminhos são labirínticos, que ele já perdeu a noção de para onde deve seguir, todos os lados parecem o mesmo lado, e com esses sons, ele não consegue se concentrar direito, ele deve ir, mas está apavorado – e se encontrar com algum deus? E se o deus o matar? – ele tem que continuar, mas para onde? Deve ir, vai, anda, continua, a música e os jaguares na cabeça, ele está perdido, continua, está desesperado, começa a rezar baixinho, repetir palavras pedindo proteção, quando encontra o monolito de cinco metros de altura: É deus, deus, deus! Volta correndo, tropeçando, gritando, caindo no chão, até que é derrubado por um buraco que ele não viu e, sem que tivesse tempo de saber o que estava acontecendo, sua cabeça é decepada. Lá fora, o sacerdote mostra a cabeça para a multidão que esperava  ansiosamente por isso e festeja. Eles continuam protegidos, os deuses estavam saciados.



“No podemos demorar mucho”, diz Pablo, já de pé, impaciente, olhando para o lago, de costas para João.

“Solamente un poco más, Pablo”, comenta João, “por favor”. 

Abraça os próprios joelhos trazendo as pernas para o encontro do corpo. Sente uma ternura imensa pelo homem sacrificado que nem sabia que existia dentro dele. Pobre homem, diz de si para si. Enquanto Pablo joga pedrinhas no lago, percebe que não queria fazer nada. Não queria subir a montanha, não queria descer o que já tinha subido. Queria ficar apenas parado. Ficar ali, com esse nada, esse vazio que tinha dentro de si. Isso era ele. Não o homem que investia na bolsa, jogava cartas na madrugada, como forma de ganhar mais dinheiro. Era esse homem ali, parado, isolado do mundo, perdido, se não fosse esse índio que quer abandoná-lo.

Quanto mais ele ficava parado, mais ele queria ficar parado. Mais ele se sentia com frio. Pablo se afastou, foi para perto do lago, deixando sua sensação de solidão infinita ainda maior. Sua cabeça começou um caminho de desligar-se. Ele ficou com vontade de deitar, apenas dormir um pouco, só para descansar. Depois ele veria o que iria fazer. Colocou a mochila do lado e deitou, enrolado nas próprias pernas, ali.

Acordou com Pablo à sua frente, nervoso como ele imaginou que o índio não poderia ficar: “¡Levantate, hombre, levantate!”, gritava Pablo, enquanto dava tapas na cara de João, que tinha desligado completamente. Quando conseguiu se sentar, Pablo puxou uma garrafa térmica, que João nem tinha percebido que existia, abriu, colocou o líquido num copo plástico e esticou a mão: “¡Bebe!” João, sem pensar muito tomou o chá, que percebeu ser de coca. “Esto és el soroche”, disse Pablo, enquanto insistia para João tomar todo o chá, que parecia de hortelã.

“Vamos volver” “Não”, “Não”, ele disse e já não se importava de fingir falar espanhol. Tinha que seguir adiante, tinha que subir até o cume, tinha que completar a caminhada. Os dois ficaram se encarando, sem falar nada. Era a primeira vez que Pablo o olhava não com um olhar de condescendência, nem de tédio, mas de uma mistura de revolta com respeito.

“Tu estás mal, Joan-o, tienes que volver.”

“Você pode voltar, se quiser, eu tenho que continuar.”

“¿Se quedó loco, Joan-o? Estabas dormindo hace dos minutos. ¿Que piensas que va a lograr con eso?”

“Pablo”, falou e esperou o ar entrar, inflar o pulmão, e sair antes de continuar. “Eu vou subir.”

Terminou de dizer e começou a caminhar em direção ao Huascarán. Estava determinado. Não importava o que acontecesse. Ele iria subir. Vislumbrava a trilha. Ele iria conseguir subir. Não deve ser tão difícil, o pensamento ocorreu na sua cabeça, como se fosse ele tentando se convencer de que tinha sido a escolha certa. Foi a única escolha possível, disse para si mesmo, como se tentasse abafar as vozes que pudessem acordar e duvidar de si mesmo. Ele tinha que seguir. Não iria se perguntar as razões, os motivos, os quereres, as vontades, ele simplesmente tinha que seguir porque tinha que seguir porque tinha que seguir. Iria subir nem que ele congelasse. Nem que ele ficasse preso lá em cima. Nem que ele virasse um fóssil. Não vou pensar nisso, tentou novamente controlar o raciocínio que insistia em amedrontá-lo, como se estivesse boicotando sua caminhada, como se duvidasse da própria capacidade. Ele tinha que continuar. Começou a repetir mentalmente:  Tenho que ir, tenho que ir, tenho que ir. Um passo depois do outro, um passo e outro.

Pablo deixou João seguir uns 100 metros na esperança que ele desistisse e voltasse. A nevasca aumentava de intensidade. Os flocos cresciam. João pisa em falso, escorrega e quase cai no chão. Chega a colocar o joelho direito no chão, e impede a queda com a mão direita. Pablo balança a cabeça de um lado para outro, contrariado de uma maneira que ele não era nem pelo próprio filho. Esse brasileiro quer se matar? Ele pensou em quéchua. Por que isso acontece comigo? Por que eu não pego os turistas mais comuns? Se ele morrer, não vai ser bom. Eu vou ser amaldiçoado. Eu vou ser preso. Para sempre o espírito dele vai frequentar os meus sonhos. Nunca mais vou dormir direito. Espírito de louco. Ele é capaz de fazer tudo. Será que ele consegue? -  Sem perceber, Pablo já estava, balançando a cabeça, seguindo João.

A neve começa a se acumular no casaco de João, que tenta espantá-la, como se fosse bichos. Percebe, então, que o seu casaco não é tão impermeável quanto imagina. O bicho vai penetrando entre as fibras que, desgastadas, permitem o ataque. O chão é de cascalho grosso, que faz os pés afundarem, e perde o apoio. Vai se sentindo úmido. O ar rarefeito atrapalha sua respiração. Caminha vagarosamente, respira pela boca. Ofega. Para, coloca as mão na cintura, olha para o alto. Sente a pressão baixando, força a inspiração. Segura o ar dentro dos pulmões. Tenho que continuar. Tenho que continuar. Pega uma barra de cereal, come, mesmo sem fome. Come a segunda. Bebe água. Chega Pablo. Os dois se entreolham, em silêncio. Ficam assim. João nitidamente cansado, Pablo inteiro, como se caminhasse no calçadão de Copacabana. Entrega a João dois bastões de caminhada e uma banana.

“¡Vamos!”, diz o índio e segue em frente. João vai atrás, agora com os bastões.



Após a parte com o cascalho mais fino, começa, verdadeiramente, a subida. Não é excepcionalmente íngreme, o que o faz pensar sobre o quão alto ele está. É um caminho cheio de chicanas, com pedras maiores, e não muito bem assentadas. Estão inseguras. A cada passo, João testa o peso antes de colocar todo o corpo, com medo de escorregar. Isso faz com que ele, que já não caminhava em uma frequência rápida, demore ainda mais. Pablo anda um pouco e para, para esperá-lo. Não parece ansioso, mas um pouco entediado, como sempre. Está preocupado, à sua maneira. Está, de certa forma, se sentindo conectado com aquele homem, estranho, tão diferente de si. Acha curiosa a força de vontade do brasileiro. Por que ele quer ver isso aqui em cima? O que tem de tão incrível? Lembra que vinha para Huascarán desde que era muito jovem, rapazinho. Vinha com as lhamas de uma fazenda, onde ele trabalhava como pastor. Gostava do lugar por sua tranquilidade. Agora, tinha muita gente.

Em uma pisada errada, João quase escorrega. Muitas pedras se soltam e caem. Ele olha para baixo e vê que já subiu bastante. Parecia que não tinha andado quase nada, mas já tinha percorrido um bom espaço. Fica empolgado, mas a empolgação dura pouco: olha para cima e percebe o quanto ainda tem que percorrer. Quanto mais ele anda, mais ele descobre caminhos que ainda não conseguia enxergar e que agora vai ter que andar. Respira fundo, toma outro gole d’água. Resolve comer a banana. Pede para Pablo esperar um pouco. Se senta em uma pedra ao lado da trillha. O corpo já está molhado, numa mistura de suor com a neve que cai. Não sente frio. Parece que há uma usina dentro de si, queimando lenha em quantidades imensas e fazendo uma caldeira ferver. Depois de comer a banana, se sente melhor.

“Vamos?” – e parte na frente. Pablo dá um riso e vai atrás.

Não demora muito e o índio o ultrapassa novamente, quase como se não fizesse esforço. João está sentindo os joelhos  doer - “rodillas”, a palavra surge, sem querer, em sua cabeça. Como ele se lembrou dessa palavra? Nunca estudou verdadeiramente o espanhol, apenas no colégio, em umas aulas a que ele não gostava de assistir. A professora era uma mulher de uns 30 e muitos anos, que nunca tinha sido bonita, mas que estava especialmente acabada. Parecia ter engordado recentemente, os cabelos sem vida, o rosto sem cor, os lábios tristes, os olhos cansados. A turma implicava com ela bastante. Não era uma turma fácil – João nunca foi de se deixar mandar, sempre organizou o grupo da balbúrdia – mas implicavam especificamente com essa professora. Qual era o nome dela? Um dia, a algazarra estava tão grande, que a professora, num ataque de raiva, sem perceber o que estava fazendo gritou um “¡Carajo!”. A turma se silenciou imediatamente, olhando para ela. Nunca um professor tinha dito um palavrão em sala, assim. Ainda mais um palavrão de cunho sexual, e pior: que não era dito em tom de humor, ao contrário. Os alunos olhavam a professora, que os olhava de volta, em silêncio. Estavam todos estupefatos. Todos pensavam a mesma coisa, aparentemente. João, ao menos, estava muito surpreendido com muitas coisas. Entre elas, que aquela professora pudesse falar um palavrão. Que ela fosse capaz de dizer “carajo”. Ela parecia encalhada. Mas não deveria ser. Por outro lado, ele também pensou que essa era uma ótima oportunidade de fazer uma denúncia contra ela para a coordenadora pedagógica. Mas ele não poderia ir direto. Se não, a denúncia não teria tanta força. Ele era apenas um aluno indisciplinado, com péssimas notas, que estava reclamando de uma professora, que nunca teve qualquer reclamação. Qual era a chance de isso dar certo? O plano surgiu inteiro em sua cabeça: ele iria falar com a Rafaela, que era amiga da representante da turma. A Rafaela gostava dele, e ele a ignorava completamente. Nesse caso, ele iria pedir um favor para ela. Saberia que ela faria o que ele quisesse. Daí, ele iria dizer que eles eram menores, não poderiam ser expostos a esse tipo de palavreado. Era hipócrita, claro. Ele mesmo era o maior desbocado do mundo, mas valia a pena jogar com o regulamento, para que essa professora – qual era o nome dela? – fosse tirada. Por que ele implicava tanto com ela? A professora, depois de uns instantes em silêncio, voltou a si: “Vocês sabem que em espanhol essa palavra que eu usei não é palavrão, não sabem?” João ficou impressionado. Era muita cara-de-pau da professora. Começou, muito de leve, a gostar dela. Resolveu levantar a poeira. “Professora, mas para a gente é, sim.” O resto da turma começa a cochichar entre si, o tumulto volta a se instalar, a professora está nitidamente perdendo o controle de si. Começa a chorar baixinho, os olhos se avermelhando, o rosto pegando fogo, até que ela sai de sala, batendo a porta com delicadeza. Por que eu estou lembrando disso agora?

Os dois chegam em um momento em que a subida é bem mais íngreme. Uma área que não dava para ser vista lá de baixo. João desperta dos seus pensamento nessa hora. Sente-se decepcionado. Sente-se fraco. “Retroceder nunca, render-se jamais”, lembra do filme do Van Damme. Uma porcaria. O primeiro filme que o Van Damme tinha feito – ele tinha feito pontas em outros filmes, mas nenhum com essa projeção. João tinha visto primeiro “O grande dragão branco”. Em “Retroceder...”, Van Damme faz o capanga do vilão. Ele, depois, só fez mais um vilão em toda a sua carreira. Ou em todos os outros filmes que João acompanhou. Por que ele tinha gostado tanto de Van Damme? Gostava muito de “O grande dragão...”. Um clássico da “Sessão da tarde”.

As pedras são mais altas que o seu próprio joelho. Pablo pega os bastões de volta e dá a mão para puxar João nas pedras maiores. Ele diz que esta é a pior parte e João agradece, intimamente, que ele estava conseguindo passar pela pior parte. Já não se sentia mal. Apenas cansado. Um cansaço imenso, que o abraçava como um urso. E como vamos voltar? Nunca se pensa na volta, durante a ida. Lembrou desse conselho de um amigo ainda dos tempos da faculdade, que morava longe. Para baixo todo santo ajuda. Sua mãe sempre usava todos os ditados e bordões que pudesse usar. Gostava especificamente dos envolvendo, direta ou indiretamente, culinária. Meter o  pé na jaca. Mamão com açúcar. Sopa no mel. Quer moleza, senta no pudim. Senta no pudim.

“¡Cuidado!”

As pedras estavam escorregadias. Parecia que ele estava andando sobre o gelo. E, na verdade, estava mesmo. Todo o seu entorno estava branco. A neve agora já tinha tomado tudo. Estava difícil até olhar para cima, com a intensidade da nevasca. Nunca tinha visto tanta neve na vida. Era como se estivesse sendo metralhado por infinitas armas que disparam flocos de gelo.

Depois da parte de pedregulho, pararam novamente para descansar. João vê Pablo abrindo a boca e colocando a língua para fora, para beber a água do gelo derretido. Ele faz igual. Percebe que não funciona muito bem. Quando abaixa a cabeça, percebe que Pablo o observa rindo, rindo, que vai crescendo até uma gargalhada. João não imagina que Pablo pudesse rir. Nem imagina o que era assim tão engraçado, mas não se importa de ser o motivo da piada. Após gargalhar, o índio se vira e começa a andar.

“Falta pouco?”

O índio balança a cabeça, misteriosamente.

Ao menos, planície. Os dois estão andando sobre a neve, que afunda os tênis de João que, claro, não são impermeáveis e ficam molhados rapidamente. Pablo se distancia, como ele não fez em nenhum momento até então e logo João o perde de vista. A visibilidade é muito ruim. Não dá para enxergar um palmo na frente dos olhos – João pensa na mãe, para logo a imagem cair na do Mestre dos magos – ele sempre sumia nas horas decisivas. Seria Pablo uma versão peruana do Mestre dos magos? Mais calado, mais taciturno, tão enigmático quanto. Para um pouco. Para onde ir? A trilha não é clara. Sente um pânico se instalando dentro de si. Não fique em pânico – repete para si mesmo, sem falar nada. Não entre em pânico agora. Agora, não. Antes que ele se desesperasse, porém, enxerga a trilha deixada pelas pegadas de Pablo. Suspira metaforicamente, aliviado. Dá uma corridinha, para tentar alcançar Pablo e, antes de ele perceber, já está lá: Huascarán. O lago que fica no centro, entre os dois cumes da montanha. A visibilidade é horrível e João não consegue ver quase nada. Pablo está lá, debaixo de uma rocha, comendo algo que João não consegue identificar o que é. Vai para perto do índio, se senta. E olha para frente. Fica um pouco decepcionado. É isso? O que ele via não lembrava em nada as fotos da prima. Aquela lagoa, ali, parada, era a mesma. Mas na foto da prima parecia a afirmação da força do mundo. O sol, o céu azul, a claridade. Emanava felicidade. Ali, a mesma lagoa, os mesmos picos pareciam o fim – ou o início do mundo. Ou o lugar onde o fim e o começo se encontravam. O vácuo, que puxava toda a luz do mundo. Como se o caos ainda estivesse instalado, estivesse puxando o mundo como o redemoinho, e após uma digestão, devolvesse um novo mundo a partir dele. Estava tão escuro, tão nevando, tão branco. Parecia que havia um túnel que ligaria esse mundo com um outro, um outro qualquer, um próximo mundo, um mundo paralelo, algo diferente, outro – e a sua entrada era o epicentro da tempestade. Era ali, logo acima do cume que estava mais longe de si. Era naquele ponto escuro, nebuloso, indecifrável. Era um lugar onde a luz não penetrava, onde, apesar de estar no alto, mais próximo do sol, parecia que nunca tinha recebido um raio de quentura na vida. Era a tristeza absoluta. Era o fim, o fim.



João está completamente encharcado, mas ainda sem frio. Calmo como talvez nunca tenha estado. Como se ali, no fim de todas as coisas que ele conhecia na vida, os problemas dele tivessem perdido importância. Ali, naquele lugar horrível, que suga todas as energias do mundo, que impede do ar de existir, ele percebeu que não havia diferença entre ele existir ou não. Diante dessa imensidão, desse buraco negro infinito, ele se tornava completamente desimportante. O mundo era desimportante. O mundo existia apesar dele, apesar de todo o restante da humanidade. Não havia nada nem ninguém que pudesse controlar aquela força, que arrastaria até o mais forte dos homens.

Essa ideia não trouxe um desespero, ou uma impotência para João. Ao contrário: lhe deu liberdade. Lhe proporcionou uma certeza de que ele poderia tentar fazer, ser qualquer coisa. Ele percebeu seu tamanho, sua pequeneza, e isso o fez saber também seus limites. O jogo estava claro para ele. Sabia que jamais sentiria essa mesma sensação novamente. Jamais conseguiria ver o início e o fim do mundo ao mesmo tempo. E foi a única coisa que ele queria guardar para si. Esse abismo, esse sublime, que o tomava por em cada recanto do próprio corpo, como se fosse um líquido viscoso dentro de um recipiente vazio com várias reentrâncias. Virou-se para Pablo e falou: “¿Vamos volver?”

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