sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Documento histórico II

"Peões", de Eduardo Coutinho, que entrevista os rostos desconhecidos que
estavam presentes nas famosas greves do ABC na virada da década de
1970 para 1980, e que projetaram o nome de um sindicalista chamado Lula.

Exposição Antonio Bokel

Amigos fazem a curadoria da exposição de Antonio Bokel, que começa amanhã no Centro municipal de arte Hélio Oiticica. A conferir.

Documento histórico

"Entreatos", de João Moreira Salles, que mostra um pouco dos bastidores
da campanha presidencial de Lula em 2002. Envelhece cada vez melhor.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

O porquê do sucesso dos '50 tons'

Agora que os três livros já foram lançados no Brasil, acho que já posso dar a minha opinião sobre esse fenômeno em "50 tons". Infelizmente tive que ler os dois primeiros volumes para entrevistar a sua autora, E. L. James, e, como forma de introdução a esse texto, tenho que deixar clara a minha opinião: foi a pior experiência literária que eu já tive na vida.

O pessoal do "O que queremos" sugere um resumo do sucesso da trilogia
Os personagens são todos completamente inacreditáveis. Tenho o costume de, ao falar sobre esse assunto, pedir ao interlocutor que descreva o protagonista Christian Grey, principalmente se ele não tiver lido nada sobre o assunto do livro. O resultado é sempre certeiro. Ninguém, até hoje, citou qualidades que ele não tinha. É um self-made man rico, preocupado com o meio ambiente [adorei esse detalhe contemporâneo], bonito, charmoso, misterioso, corajoso, culto, viajado, fala francês, excepcional de cama, pilota helicópteros, faixa preta de taekwondo e, cherry on the top, um grande pianista. Isso, com menos de 30 anos. É praticamente impossível não acertar.

Mas a minha opinião, como se prova sempre, não importa. O sucesso do livro é cada vez maior. As pessoas querem-porque-querem lê-lo e, ao lê-lo, acham que é o livro que mudou a vida delas. Eu não sei a razão exata do sucesso dos "50 tons" - se soubesse, seria contratado pelas editoras com um excelente salário para reproduzir essas vendagens -, mas posso sugerir algumas hipóteses que eu venho matutando sobre esse assunto.

Primeiro, quero dizer que as vendagens do livro se fazem apesar da sua autora. E. L. James me pareceu uma mãe de uma bem tradicional família que caiu de paraquedas no turbilhão de um mercado que, vez por outra, elege um livro para ser o graal. Ela até pode ser extremamente bem treinada para repetir frases para jornalistas - mas isso não me pareceu o caso. Para mim, mesmo que ela tenha sido uma executiva de TV, ela não tinha noção da repercussão que daria aquele livrinho que ela escreveu fazendo paralelos com a série "Crepúsculo", apenas trocando o grande tema do vampiro que não morde - portanto, não penetra - para um homem que tem que um passado tortuoso e extravasa os seus demônios de forma sexual.

Leticce fez um info cruel sobre a relação entre os protagonistas.

Até pelo nível da leitura dela, por ter amado a saga "Crepúsculo", já quarentona, percebemos que ela não é alguém com um nível crítico muito desenvolvido. Não consigo vislumbrá-la maquiavelicamente pensando o que daria certo, ou não, o que faria sucesso, ou não. Novamente, se isso fosse assim tão possível, as pessoas fariam mais vezes. Esse tipo de sucesso é espontâneo, imprevisível, mas não necessariamente sem explicação a posteriori.

E chegamos ao primeiro ponto da provável explicação para esse sucesso: ter sido uma fanfiction. Uma obra que se baseava, abertamente, em outra. E em outra que tinha sido, por si só, um sucesso extravagante. Hoje essa informação é menos divulgada, até porque não é interessante para a editora, por um receio de sofrer um processo de plágio, essa associação, mas, para mim, isso foi o pontapé inicial da escalada do blockbuster.

Num primeiro momento, ter sido um fanfiction que explorava o erótico destacou aquela obra, que ainda nem se chamava "Fifity shades of Grey" [o título, com esse excelente trocadilho, é o melhor do livro, e, claramente não é coisa da autora, mas, provavelmente, da editora], mas "Master of the Universe", do mar de outras ficções de fãs de "Twilight".

No primeiro momento do sucesso na Inglaterra, o "London Evening Standard" colocou um repórter para ler as obras criadas no site de fãs em que apareceu o "Fifity shades...". E o cara disse que uma era pior que a outra. A única com algum início-meio-fim, que ele tenha tido acesso, era mesmo "Fifty shades...". Ou seja, sua autora conseguiu, repetindo uma estrutura razoavelmente pronta, a de "Twilight", trocar os sinais de "puritanismo", que a obra dos vampirinhos passava, para um de "erotismo". Ponto para ela.

A obra cresceu ao ponto de começar a ser comercializada, sob demanda, por uma editora australiana, até que a sua atual editora da Inglaterra a descobriu, repaginou toda a história, reposicionou no mercado, e fez propaganda para ela crescer. O assunto era interessante para os jornalistas: uma fanfiction publicada em livro, a primeira com alguma divulgação, que se baseava em outro sucesso editorial, e que tinha um twist erótico, sado-masô - mas não muito, nada muito exagerado. Consequentemente, foi apelidado de mommy porn, que é uma ótima descrição.

É curioso, vai, admita. Quem não ficaria intrigado com essa história? "Um livro pornô, sado-masô, com os mesmos personagens de 'Twilight'? Quero ler também!" Isso explica, para mim, o fato das vendagens crescerem no primeiro momento. As pessoas ficaram interessadas, queriam saber o que - e o porquê - as outras estavam lendo. Isso acontece de tempos em tempos. Um livro vende porque um livro vende. As pessoas compram porque todo mundo está comprando. É um comportamento de manada, bovino, bem comum. Não espanta.

O que também explica bem o motivo pelo qual as pessoas leram e gostaram da trilogia - que também não era inicialmente uma trilogia. Primeiro, ter uma posição contra a maré só causa problemas. Segundo, esses leitores não são exatamente grandes leitores, portanto a comparação fica prejudicada. Terceiro porque, bem, porque tem essa leve pitada de sacanagem. Imagine a mamãe que nunca pôde ler, ver, ouvir pornografia, porque era feio, sujo, pecado, coisa de puta, ter acesso agora a uma obra que, além de falar de sexo abertamente, é um livro - portanto, num raciocínio torto, algo obviamente culto - e um livro que todo mundo está também lendo - portanto, que pode, que não é nem feio, sujo, pecado, nem coisa de puta. Certeza de dar certo.

Em breve, claro, essa onda vai passar. Assim como passaram as dos elfos, das sociedades secretas, dos bruxinhos, dos vampiros. E logo seremos envolvidos numa próxima moda. 

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

A primeira grande obra do Twitter?

Jennifer Egan está inteirona para a idade [50 anos]
Quando saiu em agosto "Black box", da Jennifer Egan, rolou um [pequeno] alvoroço: seria o primeiro experimento literário de alguém razoavelmente reconhecido no mainstream - se é que há isso na literatura - bancado por uma publicação que é a representação do cool, a "New Yorker", no Twitter. Isso, naquela ferramenta que se vende em 140 caracteres.

As pessoas falavam que, além de ser um experimento, "Black box" era um ótimo conto. Egan tinha explorado o formato de frases curtas, adaptando ao seu estilo [nunca tinha lido nada dela] de descrição na segunda pessoa. Demonstrando a minha agilidade, eu li o texto só agora, da maneira mais "natural" possível, no site que copiou todos os posts publicados. E pude ter a minha própria opinião sobre a questão.

O personagem principal dessa "caixa preta" é uma mulher sem identificação, mas classificada como uma "beauty", que, percebemos logo de cara: é uma espiã. Uma espiã dos EUA do futuro, que protege a soberania de seu país. Só com essa premissa e em 606 tuítes, Egan consegue passar por assuntos bem contemporâneas como robótica, instinto de nacionalidade e a celebrização do joão-ninguém, mas sem deixar de tocar em questões que sempre fizeram e sempre vão fazer parte da humanidade, como família, amor, sexo.

Isso numa narrativa que é, sempre e obrigatoriamente, rápida. Além de incisivamente inteligente. Precisa e enxuta, ela consegue usar o veículo, o meio, a seu favor. Divide pensamentos em dois ou mais tuítes, o que dá, vez por outra, uma sensação de suspense, que vai se revelando à medida que as frases aparecem, desmentindo ou confirmando a anterior. Ou demonstra os vários pontos-de-vista sobre um determinado assunto, a cada tuitada, multifacetando a questão em pauta.

Egan, ou a narradora, ainda se mostra humorada, soltando, sempre que possível a sua opinião sobre assuntos correlacionados à narrativa, como quando ela fala, logo no tuíte 13 que "it is technically impossible for a man to look better in a Speedo than in swim trunks". Ou quando comenta o diálogo que está acontecendo entre a espiã e o homem que a aborda / está sendo abordado: "'Shall we swim together towards those rocks?' may or may not be a question".

Joe Winkler, escrevendo sobre o conto em frases de até 140 caracteres para o HTMLgiant, lembra que Egan não é a primeira nem a última a se adaptar aos meios para tentar produzir novas obras. Ele também cita o movimento inverso, de querer evitar as inovações tecnológicas, de gente como Jonathan Franzen, que vem sendo chamada de neo-ludista.

O que se tira daí é que devemos pensar a obra, apesar do seu formato. Tentar esquecer, à medida do possível, e se for necessário, onde e como ela foi publicada. Se não for possível, saber se a escolha do meio é realmente apropriada ou apenas uma frescura, um chamariz vazio para um texto que poderia existir em qualquer outro lugar, sem perda. Isso, sem qualquer preconceito, de peito aberto, com coragem. Se a humanidade retornar ao grunhido, como profetizou pessimisticamente José Saramago, devemos tentar encontrar o grunhido mais belo entre todos. No caso de "Black box", podemos avaliar que é, sim, uma obra de arte excepcional.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Mano de quem?

O maior mistério da atualidade, na minha humilíssima opinião, é essa saída de Mano Menezes. E, principalmente, a baixa repercussão que o assunto tem rendido. Não seria esse o cargo político mais importante do país? Não foi já dito [quem disse, aliás?] que o posto é tão importante que deveria ser escolhido via eleição popular? Como assim não houve manifestações, protestos em praça pública, passeatas de descontentamento para reclamar dessa saída muito pouco explicada do Mano e, principalmente, por nos deixar órfãos do verdadeiro salvador da pátria, até janeiro?

Na verdade, essa manobra esquisitíssima apenas reforça a imagem de uma confederação de futebol cada vez mais anacrônica. Para começar, a informação da saída de Mano, num momento em que todos os que assistem a futebol concordavam que a seleção dava sinais de ter finalmente encontrado um rumo para o time, um caminho, foi dada pelo André Sanchez, que eu ainda não entendi muito bem que papel tem na CBF - aparentemente, chefe de seleções, seja lá o que isso quer dizer na prática. O vice-presidente para assuntos gerais, Marco Polo Del Nero, só se pronunciou depois, dizendo que era tudo coisa do Marin. E José Maria Marin, presidente da CBF, falou muito mal sobre o assunto.

A história piora. Em vários lugares, saiu a informação de que Sanchez, que é filiado ao PT e amigo pessoal de Lula, seria o único interlocutor da CBF com a presidência da República. O motivo não é o fato de Marin roubar até medalhas da própria federação que presidia, mas o passado de Marin, que teria, supostamente, ligação com a tortura e morte de Vladimir Herzog [esse link ao menos explica, em parte, a pouca repercussão desse assunto, a meu ver]. Dilma não aceita esse passado de Marin.


E aí, você escolheria esse fulano para ser o
responsável pela Copa do Mundo no Brasil?

Repito para você, caso não tenha percebido: o presidente da CBF e do comitê organizador da Copa de 2014, um dos principais eventos esportivos do mundo, não tem relações com o poder executivo federal. Acho que não precisamos nem imaginar na Copa.

E o caso pode se tornar ainda mais assustador: Sanchez, numa manobra que para mim tem todas as cores da política, veio a público falar exatamente o que Marin não queria: que Felipão será o próximo treinador. E, antes que ele seja demitido por isso, já avisou que vai sair da CBF. Ou seja, fez questão de sujar tudo antes de fechar a porta.

Sanchez está num jogo de só ganhar: ou ele sai como vítima da situação, já que disse que foi voto vencido na saída de Mano, ou consegue impedir que Felipão, que não é a sua indicação, assuma. E caso permaneça na CBF, o que é muito difícil mas não impossível, será porque Marin teve que admitir a sua indispensabilidade - e aí ele se torna mais importante que o próprio presidente. Esse Sanchez puxou mesmo o seu padrinho político.

Ah, mas e o torcedor? Quem se importa com ele, né?

Dedicatórias

— A arte de viver é a arte de acreditar em milagres, disse o poeta italiano Cesare Pavese, e se hoje eu estou aqui é porque ele está certo. Febea foi a pessoa que eu amei mais profundamente em toda a minha vida. E ela está presente aqui, nessas cinco pessoas que fizemos, nossas duas filhas e três netos. Esse é o milagre — declarou Sylvio, lembrando, ao final, uma frase que ouvira do neto quando ele tinha 4 anos, e que levava como mantra de vida: “Vovô, nada é grave.”
Acho que nunca tinha mandado um email elogiando matéria na minha vida. Até ontem. Ontem, eu mandei dois. Curioso. Talvez seja a idade, talvez eu apenas, agora, conheça os autores das reportagens. Uma delas é a sobre dedicatórias, da Mariana Filgueiras, acima destacado em um dos muitos momentos ótimos da reportagem.

A matéria, pessoalmente, me tocou. Pessoalmente porque, por entre outros motivos, eu tenho uma paixão específica sobre esse ato singelo de tornar o livro que se dá em algo pessoal, em um presente, em um objeto único, que se diferencia por completo da sua cópia. Eu até tentei escrever um conto - quando eu ainda escrevia contos - sobre exatamente essa busca pelas pessoas das dedicatórias - ou seja, o foco da reportagem. Além disso, também tinham me sugerido fazer exatamente essa pauta, há umas duas semanas. Exatamente essa. Coincidências.

Eu tinha que elogiar a autora da reportagem porque as histórias contadas são ótimas, ótimas, ótimas.

Vetamos o protesto espontâneo

Central do Brasil dominada [Foto: Genilson Araújo]
Alguma coisa me soa bastante estranha nesse protesto "Veta, Dilma", e nem é o correto uso cada vez mais incomum da vírgula. Não, eu não sei opinar nada sobre essa questão da distribuição dos royalties, não compreendo absolutamente nada disso, não entendi bulhufas do que eu li, e todas as reportagens que eu tive acesso pareciam querer favorecer apenas um lado, o Rio de Janeiro. Portanto não consegui ter uma visão razoavelmente equilibrada sobre esse assunto. Mas o protesto, bem, o protesto tem algo de podre em si.

Fui tomado de surpresa quando na volta à cidade há uma semana, encontrei diversos galhardetes e cartazes espalhados pela cidade anunciando para hoje essa concentração na Cinelândia. Principalmente quando eu vi uma faixa imensa pendurada no prédio da Prefeitura do Rio de Janeiro. Fiquei um tempo sem acreditar. Primeiro imaginei que aquele não era o escritório oficial do prefeito. Depois, que eu estava vendo coisas. Quando percebi que não era uma coisa nem outra, fiquei incomodado.

É lícito o governador convocar a população para um ato em favor dos seus interesses, e argumentando que é algo em prol de toda a população. É legal o prefeito apoiar essa iniciativa. Jogo jogado. Mas, por princípios, acho estranhíssima essa convocação para um "protesto oficial". Não consigo achar normal um "manifestamento" a favor do governo. Além disso, fico confuso quando penso que o governador e o prefeito gostam tanto de apregoar que têm uma relação ótima com a presidenta, mas precisam fazer esse tipo de jogada. Por que, então, arriscar esse capital com essa manobra política?

Se isso não fosse o suficiente para me deixar inquieto, vejo as informações sobre as facilidades providas pelo excelentíssimo senhor governador para tentar encher a praça:

- Trechos de duas das principais avenidas do Centro do Rio, a Presidente Vargas e a Rio Branco, serão interditados;

- A SuperVia, metrô e barcas terão esquema de gratuidades das 13h às 15h para manifestantes que seguirem no sentido Centro. O passageiro não precisará pagar das 20h e 22h na volta;

- Sérgio Cabral e Eduardo Paes decretaram ponto facultativo nas repartições estaduais e municipais a partir das 14h.

Se isso não é usar do poder público em prol do bem privado, mesmo que disfarçado de público, eu não me chamo Sérgio Pédea Paes.

Vi uma dessas artes-de-facebook que compara essa manifestação oficial com as feitas por professores para reivindicar melhorias trabalhistas e demonstrando como há uma diferença da maneira como o processo acontece. Difícil comparativo.

Se isso tudo ainda não fosse o suficiente para eu ficar, no mínimo, constrangido, eu ficaria com a informação - não dos 11 shows que estão programados, nem do fato de terem roubado o slogan de outra manifestação razoavelmente parecida -, mas da presença e apoio da Xuxa ao evento. Não se pode ficar do mesmo lado da rainha dos baixinhos impunemente. 

Espero, realmente, que a manifestação seja um fracasso. E que a Dilma faça o que for melhor para o Rio e para o país.

domingo, 25 de novembro de 2012

Música para domingo de manhã


A versão de Beck para "Everybody's gotta learn sometime", do Korgis, que encerra o "Eternal sunshine of the spotless mind" é mais que incrível.

sábado, 24 de novembro de 2012

Van Gogh no cinema

Se ninguém fez um livro ou filme sobre a vida de Van Gogh [em inglês, dizem "góf", em português, "gogue", mas em holandês é "gór"], deveria. Pelo menos a partir do momento em que ele vai para Arles até a sua morte.
Assim eu comecava um texto em fevereiro, quando voltei de uma viagem a Amsterdã, onde visitara o museu dedicado a Vincent. Na época, por minha incapacidade de pesquisar direito, não encontrei "Lust for life", do diretor Vincente [olhaí] Minnelli, pai de Liza, e cujo nome de batismo é outro: Lester Anthony Minnelli.


Não que eu tenha aprendido a pesquisar, mas tropecei nessa informação ao ler sobre a nova biografia do pintor holandês, cujo processo de tradução nós tivemos o prazer de acompanhar no site que a Denise Bottmann criou - e que ainda é possível visitar. Aliás, uma das grandes polêmicas que esse calhamaço de mais de mil páginas promete se refere ao fim de Van Gogh: ele não teria se matado, mas teria sido assassinado, sem querer, por um garoto - junto do seu irmão - de Auvers.
Van Gogh teria protegido os dois por razões basicamente existenciais, como uma espécie de martírio voluntário naquela situação extremamente difícil e insolúvel em que vivia - pessoal, artística, social, familiar, financeira, física e mental. por convicção e credo próprio, jamais procuraria a morte deliberadamente, como disse certa vez, "mas não tentaria escapar se acontecesse". - escreve Denise.
 De toda forma, o filme de Minnelli é extremamente interessante, para dar um panorama se não completo - que é impossível - bem "verdadeiro" da vida e obra de Van Gogh. Uma de suas vantagens é, com exceção da exagerada atuação de Kirk Douglas [o pai de Michael], que interpreta Vincent, ser completamente atual.

A história, baseada no livro de Irving Stone, o mesmo que também escreveu "The agony and the ecstasy" sobre Michelangelo, envelheceu muito bem. Anthony Quinn, como o másculo Paul Gauguin, é incrível. Lembra bastante o Ernest Hemingway de Corey Stoll, em "Midnight Paris", por exemplo. É dele, certamente, a melhor fala do filme: "Dignity? I'm talking about women, man, women. I like 'em fat and vicious and not too smart. Nothing spiritual, either. If I had to say 'I love you', it'd break my teeth. I don't want to be loved."

Além do ritmo ágil, da sucessão de acontecimentos quase ininterruptos, que - imagino - deve ter assustado os seus contemporâneos, é muito divertido ficar pescando as referências aos mais famosos quadros de Vincent, nas cenas que se passam: a família comendo batatas, o seu quarto e sua casa amarela em Arles, o interior dos bares que ele frequentava, o exterior, os girassóis, os ciprestes, o carteiro, o doutor Gachet, entre muitos outros. Praticamente toda cena, a partir do momento em que Vincent vai morar em Arles, tem uma referência. É quase uma brincadeira à parte.

Ao fim, conseguimos enxergar ao menos uma face desse artista tão curioso que é sempre citado como alguém fora do seu tempo. Mas uma face bem interessante.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

O inglês e as línguas vulgares

Conversando com uma amiga há muitos anos, ela dizia que o inglês era uma das línguas mais complexas e com o vocabulário mais amplo que ela conhecia [ela falava espanhol e italiano, também, e, acho, francês]. Desconfiei na hora: como assim? Uma língua que nem precisa conjugar o verbo?

Claro que anos após essa conversa, e depois de ter morado em Londres, a minha opinião mudou. Não que eles conjuguem os verbos na Inglaterra - hoje, ao menos, é beeem incomum ouvir um "thou hast" - mas a gama de verbos, adjetivos e substantivos, que, aliás, são intercambiáveis, é absolutamente imensa. Tomemos por exemplo um verbo simples, banal, tipo "brew". A tradução mais simples é "fermentação". Mas não dá para traduzir isso. É bem mais. Principalmente porque dá para "brew" o "tea".

Pode-se argumentar que os povos desenvolvem as palavras de acordo com as suas necessidades, como acontece com o sempre citado exemplo da quantidade de tons - e palavras para esses tons - que os inuit conseguem "enxergar" no branco da neve. Ou, demonstrando a importância que essa parte da anatomia tem entre nós, aquela famosa tentativa do primeiro número da revista "Bundas" [link é luxo] de listar todos os sinônimos em português para as nádegas. Ou a quantidade de palavras - todas ligeiramente diferentes entre si - que Pete Brown conseguiu reunir no seu livro "A man walks into a pub". Cada um com as suas prioridades.

O certo, porém, é que, assim como há o Hochdeutsche, há uma outra língua inglesa além daquela falada comumente nos filmes hollywoodianos ou que você aprende no cursinho. Para se ter uma ideia, a wikipedia tem uma página chamada "Simple English" exatamente com uma gramática e um vocabulários mais... simples.

Alberto Manguel - o escritor - também comentou essa, digamos, capacidade de adaptação da língua inglesa atualmente. Ele, que é argentino de nascimento, mas, como filho de diplomata, teve como primeira língua o idioma de Shakespeare, disse que o inglês estaria se comportando não somente como o esperanto, no sentido de ser a língua falada por todos, em todos os lugares, mas também como o latim.

Ele lembrou que o latim foi se "vulgarizando" [na primeira acepção do Houaiss: "relativo ou pertencente à plebe, ao vulgo; popular"] e, como consequência, deu nos nossos conhecidos idiomas do sul da Europa. Somos / falamos a última flor do lácio, não? O que nos leva a pensar quais seriam as consequências dessa "vulgarização" do inglês. Talvez nos EUA já tenhamos um vislumbre disso, com a influência cada vez mais potente do espanhol. Sempre me lembro, nesse caso, da famosa cena de "Blade Runner" [que eu já descrevi, aparentemente, de maneira errada aqui e aqui].

Diálogo em húngaro, alemão, francês...

Outro detalhe que me pareceu interessante na fala de Manguel se refere a afirmação de que uma das características das línguas vivas é exatamente estar sempre em mutação, não poder ser nunca aprisionada, dicionarizada por completo. A única língua que não se modifica é aquela que está exatamente morta. Como o latim, por exemplo. Qual será o futuro do inglês?

A mágica da literatura, segundo Borges e Manguel

Sou um leitor apaixonado por escritores enciclopédicos. Gente que esconde significados ocultos e eu vou atrás, que nem em um jogo de esconde-esconde, tentando achar as pistas para o Graal. Outros que fazem referências a conhecimentos que não são do saber geral - quanto mais obscuro e antigo, melhor. Gente que simplesmente descreve assuntos completamente inúteis, mas com uma quantidade de informação e detalhes que inunda o outro lado da página. Textos que transbordam conhecimento. Autores que se entendem como leitores antes de serem escritores. Não preciso dizer que Borges é o meu autor favorito, né?

Alberto Manguel é outro desses escritores para quem a leitura é mais importante que a escrita. Anteontem, em sua palestra na biblioteca de Botafogo, pudemos ver um autor tranquilo, engraçado, com uma cultura bem acima da média, mesmo entre os escritores, que falou durante quase duas horas basicamente sobre o simples e cada vez mais raro ato de ler.

Manguel, em sua biblioteca que, hoje, tem 40 mil volumes. Na palestra, Manguel
lembrou que Borges era um leitor que não se importava com a fisicalidade dos
livros. Estaria bem adaptado, acredito, aos e-books.
Ele começou fazendo uma justificativa de nossa tradição cultural - no sentido de não ser algo da nossa parte animalesca, mas aprendido - de se ler. Ele explicou que a imaginação é uma das características do humano, que consegue antever ou projetar uma situação que ainda não foi dada ou vivida.

"Para construir a imaginação", ele argumenta, "nós contamos histórias, contos, usando as palavras como raiz, forma para poder passar a experiência para que outra pessoa possa entender", diz ele, o que me fez lembrar que a acepção da palavra "cuento" no espanhol é maior que a que comumente usamos no português-brasileiro. "Cuento" é qualquer história que se conta, mesmo oral ou informalmente.

Mais ou menos por isso que Borges - novamente ele, e ele ainda vai aparecer bastante aqui por vários motivos - acreditava que o "cuento" era a forma original da literatura e, por isso, a que tinha mais chance de sobreviver ao longo dos anos. Ele dizia que podia até ver o romance ou a novela [que são diferentes] acabando, já o conto, não.

Entre muitos momentos incríveis da palestra de Manguel, o que mais me chamou a atenção foi aquele em que ele lembrou da mágica que há na literatura. Uma mágica que cria suas próprias características a partir do universo que o próprio autor, caso tenha essa capacidade, consiga criar. A mágica da ambiguidade, que, ao invés de dificultar a nossa compressão das coisas, alarga o nosso conhecimento, nos faz "entender mais", como Manguel argumentou. Ele citou Borges - outra vez - e o seu ensaio "O falso problema de Ugolino", um de seus "Nove ensaios dantescos" para exemplificar.

Manguel, citando Borges, contextualizou a passagem do canto penúltimo de "A divina comédia": no Inferno, Ugolino de Pisa rói a nuca do arcebispo traidor Ruggieri degli Ubaldini, que o havia encarcerado com os seus filhos. "Ugolino", escreve Borges, "movido pela dor, morde-se as mãos; os filhos creem que o faz pela fome e lhe oferecem a própria carne" com as seguintes palavras:
... tu ne vestistiqueste misere carni, e tu le spoglia 
[na tradução publicada no ensaio:
"Que desta carne, de que nos vestiste,
comesses, que ela à origem voltaria!"]
Segundo Borges, há uma "inutile controversia" para se saber se Ugolino cometeu canibalismo, e, agravante, servindo-se dos próprios filhos, já que Dante é ambíguo nesse sentido. Borges sugere uma resposta: "Dante não quis que pensássemos, mas que suspeitássemos. A incerteza é parte do seu desígnio". Ele supõe ainda que, diferentemente do que se pensa dos autores como os grandes criadores de universos perfeitos e irretocáveis, provavelmente o escritor italiano "não soube mais de Ugolino além do que os seus terceto relatam" [O que me lembra a citação que Manguel diz ter escutado de Borges: "la gran diferencia entre escritores y lectores es que el escritor escribe lo que puede, mientras que el lector lee lo que quiere"]:
No tempo real, na história, cada vez que se depara com diversas alternativas, o homem deve optar por uma e elimina ou perde as outras; mas não no ambíguo tempo da arte, que se parece ao da esperança e ao do esquecimento. Hamlet, nesse tempo, é são e é louco. Na treva de sua Torre da Fome, Ugolino devora e não devora os amados cadáveres, e essa ondulante imprecisão, essa incerteza, é a estranha matéria do que é feito. Assim, com duas possíveis agonias, sonhou-o Dante e assim sonharão as gerações.
Dito isso, fica decretado que Capitu traiu e não traiu Bentinho.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Hipster and the excess of irony

[...] I somehow cannot bear the thought of a friend disliking a gift I’d chosen with sincerity. The simple act of noticing my self-defensive behavior has made me think deeply about how potentially toxic ironic posturing could be.
First, it signals a deep aversion to risk. As a function of fear and pre-emptive shame, ironic living bespeaks cultural numbness, resignation and defeat. If life has become merely a clutter of kitsch objects, an endless series of sarcastic jokes and pop references, a competition to see who can care the least (or, at minimum, a performance of such a competition), it seems we’ve made a collective misstep. Could this be the cause of our emptiness and existential malaise? Or a symptom?
[...]
This ironic ethos can lead to a vacuity and vapidity of the individual and collective psyche.
[...]
Attempts to banish irony have come and gone in past decades. The loosely defined New Sincerity movements in the arts that have sprouted since the 1980s positioned themselves as responses to postmodern cynicism, detachment and meta-referentiality. (New Sincerity has recently been associated with the writing of David Foster Wallace, the films of Wes Anderson and the music of Cat Power.) But these attempts failed to stick, as evidenced by the new age of Deep Irony.
[...]
The ironic life is certainly a provisional answer to the problems of too much comfort, too much history and too many choices, but it is my firm conviction that this mode of living is not viable and conceals within it many social and political risks.
Professor Christy Wampole writes in the "NYT" about how the excess of irony can be too harmful for the society.

Via Tamba.

O trocadilho em "Ulysses"

Um dos aspectos mais citados de "Ulysses" é a capacidade de Joyce em fazer trocadilhos. Muitos passam despercebidos por mim. Não consigo pescar todos, mas fico muito orgulhoso, tal qual uma criança pequena que fez a lição de casa, quando, sozinho, descubro um jogo de palavras escondido por baixo de uma frase aparentemente inócua. É meio infantil, eu sei, mas por que a literatura deve ser sempre adulta?

Angeline Ball interpretou Molly Bloom no versão de Sean Walsh
A última das oportunidades aconteceu com Molly Bloom, a mulher de nosso Ulisses do cotidiano moderno, Leopold. Famosa por, além de ser a protagonista do monólogo que encerra a monumental obra, ser apresentada como uma cantora promíscua que tem um caso com o seu impresário.

Em certo momento, deitada ainda na cama, enquanto Leopold faz o café da manhã, ela pede para ele pegar um livro, sobre o novo show que ela vai apresentar. Eles conversam sobre as músicas e, depois, Leopold pergunta se Molly quer outro livro. A resposta de Molly é essa:

—Yes. Get another of Paul de Kock's. Nice name he has.

Como vocês podem ver, o trocadilho é dos mais simples, banais, fáceis de pescar. A safadinha Molly gosta do nome do escritor francês, que realmente existiu, na virada do século XVIII para o XIX, e cujos livros são descritos como "vulgar but not unmoral", por conta do "Kock", claro. Remete a "cock", que como se sabe é uma gíria para pênis. Caso encerrado. Mas, então, eu descobri que há muito mais trocadilhos nesse simples nome.

Harry Blamires, em seu "The new Bloomsday book", lembra que "Paul de" é sonoramente igual a "Poldy", a maneira como Molly chama Leopold. Ele acrescenta que "Poldy", aliás, é a "desleonização", a retirada do "Leo", portanto da virilidade de Leopold, de seu nome. Como se ela tratasse o marido de maneira quase infantilizada, sem a parte felina, masculina. Combina com essa interpretação o histórico de comportamento do casal.

Eu acrescentaria que "Paul de Kock", ou "Poldy Cock", assim, seria a volta dessa masculinização, o acréscimo desse elemento sexual ao seu marido - no caso, que só acontece pela idealização, ou pela mediação da leitura, nunca "realmente".

Além disso, e numa interpretação já mais problemática e arriscada, podemos ver que não há uma tradução para "Poldy" - a palavra, aparentemente, não existe. Mas me lembra "poultry", que é toda ave doméstica que não "cock" ["galo", numa tradução direta], tipo, "frango". E o dicionário urbano sugere que "Poldy" pode ser visto como um "tipo de sujeito falsa e exageradamente intelectual" ["a garish faux intellectual sort of fellow"], muito parecido como Leopold pode ser descrito, por um lado.

É ele, por exemplo, quem é chamado por Molly para explicar o que seria "Metempsychosis" que, saberemos depois, Molly escuta como "met him pike hoses" - o que numa tradução para lá de livre, e tentando manter a sonoridade - seria "metem a picose", com "picose" fazendo a vez de "pica" [digamos, a tradução da gíria "cock"] + sufixo "ose" [como uma forma de exagerar a palavra]. Aliás, como o último tradutor de "Ulysses" para o português, Caetano Galindo, lembra em sua tese, Molly talvez nunca tenha pronunciado tal palavra dessa forma, já que só ouviremos essa interpretação via lembrança do Poldy Bloom. É um frango, mesmo.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Em defesa das bibliotecas

As bibliotecas transformam o antigo em contemporâneo. O lugar onde vivemos, as pessoas que vemos todos os dias, possuem histórias documentadas, intencional e involuntariamente, em toneladas de papel e tinta, em retratos e fotografias, em vozes gravadas, em papiro e rolos de cera e formatos eletrônicos. De uma biblioteca, pode-se dizer que não tem passado: tudo é presente ou, se preferirmos, tudo, inclusive este momento e este lugar em que nos encontramos, pertence a um passado no qual continuamos a existir.
 Alberto Manguel, o escritor argentino-canadense, escreveu artigo no "Prosa" em defesa das bibliotecas como, aliás, ele deve fazer ao vivo, hoje, às 19h, na Biblioteca Municipal de Botafogo. Isso, no dia em que Marco Lucchesi escreve artigo n'"O Globo" [link é luxo] em que, se eu entendi bem, pede a construção de uma nova Biblioteca Nacional. Só tenho a acrescentar que é me sinto mais feliz em morar num bairro onde há uma biblioteca.

A derradeira entrevista de Heidegger

Na entrevista que Martin Heidegger concedeu à revista "Der Spiegel" em 1966, dez anos, portanto, antes de sua morte, é possível destacar vários aspectos sobre a sua controversa vida e sua até hoje pouco decifrável obra.

Não, esse não é o Cony
O professor americano William J. Richardson, responsável tanto pela tradução para o inglês que eu li quanto por divulgar a obra do alemão nos EUA, sugere por exemplo que essa entrevista é uma espécie de testamento de Heidegger, em que ele se defende de várias acusações que são comumente associadas à sua biografia. Notada e principalmente, a sua ligação com o nazismo.

Também achei curioso, num período histórico [o atual] em que os jornais, e o jornalismo por associação, cai[em] em descrédito, o provável maior filósofo do século XX [na minha humilíssima opinião, claro] ter escolhido esse formato para deixar registrado as suas últimas vontades, e as suas derradeiras opiniões. Tudo bem que era a revista e alemã "Der Spiegel", ou seja, não foi o "Meia hora". Even though. Mas esse detalhe só aparece, provavelmente, para os jornalistas. Os demais mortais nem perceberiam - com bastante razão, eu acrescento timidamente.

Porém, há um aspecto que eu, do alto da minha quase ignorância, gostaria de colocar meus dois tostões sobre. Heidegger aparece em toda a entrevista um pouco contrariado, arredio. Apesar de não termos informações sobre o seu humor, nem uma introdução da própria revista [na versão que eu li, ao menos], é possível ver que há uma contradição constante entre o entrevistador e o filósofo. Como se Heidegger não quisesse, realmente, passar por esse interrogatório, mas engolisse o orgulho pensando em sua posteridade.

Isso se reflete, por exemplo, na sua quase má-vontade [talvez, apenas um comportamento exageradamente prático, o que é, na tradição, deveras germânico] em apontar um papel para a filosofia, demonstrando que ela está ultrapassada e que a cibernética ["Cybernetics"] a teria que / a deveria substituir. Talvez para demonstrar que a filosofia não poderia cair na vala comum tecno-científica das demais áreas do conhecimento em que há um fim claro para toda a sociedade. A filosofia, no olhar de Heidegger, estaria, assim, fora do seu tempo, já que não teria mais importância nem posição dentro dessa sociedade em que tudo converge para uma razão, mas não conseguiria sair de cena. Uma contradição bem interessante a meu ver.

Ele, entretanto, não se vê nem como pessimista - muito menos como otimista, aliás, chamando que ambos os posicionamentos "não iriam muito longe", no que eu só posso concordar, pensando que os dois raciocínios são auto-enganações, máscaras muito parecidas que colocamos para encarar o mundo real como ele é.

Depois de muito pressionado, Heidegger concede - mas pelo lado oposto. Em vez de dizer uma das possibilidades de aplicação da filosofia no mundo atual, ele generaliza [não sem um tom hiperbólico, que pode ser visto como humorado, mas o humor de um filósofo alemão] dizendo que essa inadequação se aplicaria não somente à filosofia mas a todos puros esforço e reflexão humanos ["all purely human reflection and endeavor", na tradução]. E, em seguida, ele solta a bomba que faria qualquer pós-Nietzscheano se arrepiar:
Apenas um deus pode nos salvar. A única possibilidade para nós é que, através do pensamento e da poetização nós preparemos uma prontidão [ou fiquemos prontos, ou nos preparemos, ou preparemos um esquema: "prepare a readiness", na tradução para o inglês] para o aparecimento de um deus, ou para a ausência de um deus em nosso declínio, enquanto à vista do deus ausente, estamos no estado de declínio.
Noves fora o fato de o próprio Heidegger não acreditar em traduções - de nenhum tipo, e ele fala isso também nessa entrevista -, Richardson tenta contextualizar algumas das expressões usadas nessa resposta. Diz Richardson:
"Pensamento" para Heidegger quer dizer mais que uma mera atividade intelectual. Envolve uma autêntica resposta do homem total à revelação do Ser [e esse "Ser", eu acrescento, seria o grande motivo heideggeriano]. Assim, é não-conceitual e não-representativo - uma total aceitação aberta ao Ser. Do mesmo modo, "poetizando" significa mais que o simples escrever "poesia" ou a "arte poética" no sentido mais ordinário. Quer dizer trazer a revelação do ser numa linguagem apropriada.
E, em outra nota, acrescenta:
Sob todas as probabilidades, Heidegger não usa a palavra "deus" aqui em nenhum sentido pessoal / personalista ["personal sense"], mas no sentido que ele dá à palavra [frequentemente na expressão "deus ou os deuses"] nas suas interpretações de [poeta alemão romântico] Hölderlin, i.e., como a concreta manifestação do Ser como o Sagrado.
Ou seja, o pós-Nietzscheano pode ficar um pouco mais tranquilo. Mas não muito. Porque ainda há a possibilidade de interpretação desse deus como uma espécie de substituição do Deus que já conhecemos. Mas me surgiu uma outra possibilidade, ligando a outro filósofo fora da curva da tradição metafísica: Spinoza. Principalmente após uma determinada passagem da mesma entrevista:
Nós não precisamos mesmo de bombas atômicas [para nos desenraizar] - o desenraizamento do homem já é uma realidade. Todas as nossas relações tornaram-se meramente técnicas. Não é mais sobre a terra que o homem vive hoje. [na tradução para o inglês: We do not need atomic bombs at all [to uproot us]— the uprooting of man is already here. All our relationships have become merely technical ones. It is no longer upon an earth that man lives today.]
Ou seja, como se o homem tivesse se deslocado, saído da terra. Terra, eu acrescentaria, poderia ser, na minha interpretação, um sinônimo para natureza, naquele velho e grego sentido de Physis, em que todas as coisas que existem fazem parte dela. Daí eu linkaria com Spinoza que, segundo meus parcos conhecimentos, dizia que deus era um dos nomes para a physis, já que ele seria tudo, a totalidade e nada estaria fora. E sustentaria essa hipótese com o fato de Heidegger ter buscado muito de sua filosofia revisitando os pré-socráticos, onde esse conceito de physis era bastante forte.

Portanto, seguindo essa linha de raciocínio, encontrar esse "deus" seria encontrar essa "natureza", essa "physis", que teríamos perdido em algum lugar, quando começamos a optar por esse mundo tecno-científico [em que cada vez mais vivemos], que estaria, pela primeira vez, fora da physis. Nesse momento, e já há algum tempo, teríamos perdido contato, estaríamos desenraizados, nas palavras de Heidegger. Não sei como isso poderia ser mais atual.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

O modelo privado no transporte coletivo

A experiência concreta que tantas pesquisas já examinaram não cessa de desmentir a aposta na eficiência do mercado e seus imperativos quando se trata de fornecer um serviço, mesmo que seja preciso considerar aspectos específicos de cada caso. Em minha pesquisa sobre as viagens de ônibus constatei, por exemplo, um esquema muito apertado em que o rodoviário tem que se inserir, relacionado à produção do lucro — exigência de um mínimo de passagens vendidas, eliminação das pausas para descanso, não pagamento de hora extra etc. Há também as condições do próprio veículo — com motor dianteiro e manutenção tantas vezes precária — que oferece um ambiente inóspito para o rodoviário e para o passageiro, mesmo que eles consigam muitas vezes animar as viagens, desenvolvendo uma espécie de humor na adversidade. Os Estados Unidos oferecem, surpreendentemente, um exemplo de gestão pública do transporte coletivo municipal em geral bem sucedido, apesar da limitação de muitos sistemas nesse país em que predominam as cidades dependentes do automóvel. Nova York tem o maior e mais eficiente sistema público do país e que se destaca entre os melhores do mundo. Apenas alguns serviços de barca continuam em regime de gestão privada, sendo que as poucas linhas de ônibus concedidas foram encampadas pelo Estado nos primeiros anos deste século.
 - Janice Caiafa, antropóloga, professora da Escola de Comunicação da UFRJ e autora de “Jornadas urbanas: exclusão, trabalho e subjetividade nas viagens de ônibus na cidade do Rio de Janeiro” (FGV Editora) e do inédito “Trilhos da cidade: viajar no metrô do Rio de Janeiro”, a ser publicado em breve pela 7Letras, em entrevista para o "Prosa".

Ler ou improvisar em palestras?

Ontem, antes da palestra de Tim Ingold no belíssimo Solar da Imperatriz, fiquei na dúvida se conseguiria entendê-lo. Inglês e professor da universidade de Aberdeen, ele poderia ter o sotaque carregado, muito influenciado pelo escocês, que é uma atração à parte quando na Escócia. Além disso, era uma palestra de um renomado antropólogo, que poderia usar termos técnicos da área a que eu não estou acostumado. Decidi, por via das dúvidas, pegar o fone de ouvido para a tradução simultânea. Acabei nem usando.

"La condition humaine", de Magritte: um exemplo constante
Ingold tem um inglês claríssimo, com um sotaque quase plain, e usa de um vocabulário ainda mais simples, com metáforas gerais e exemplos quase sempre vindos das artes, o que facilita bastante o diálogo com o público. O seu tema, a imaginação, por exemplo, foi ilustrado por obras de Magritte - um dos meus preferidos - e de Paul Klee.

Toda a sua palestra tentou abordar como é formada a imaginação nos seres humanos. Utilizando de áreas congêneres, o que é, segundo foi dito, uma das grandes contribuições de Ingold, ele foi até à psicologia para achar uma via própria que explique o seu ponto de vista sobre como é formada a imaginação: numa relação ao mesmo tempo distante e participante do meio em que está inserida.

De toda forma, houve um detalhe, colateral, que me chamou mais vezes a atenção que a palestra em si: ele lia o que falava. Sem que eu percebesse, eu acabava completamente concentrado não no contexto geral do que ele falava, mas nas palavras individualmente, sem conseguir, muitas vezes, formar um significado mais completo, complexo. Não adiantou ele usar uma linguagem simples e sem jargões, eu ficava, vez por outra, perdido.

Isso me lembrou um amigo meu que, há muitos e muitos anos, me disse que palestra não podia nunca ser lida. Na época, eu discordei dele, dizendo que isso era irrelevante. Agora, tenho que concordar. Em partes.

Se o texto das palestras não tiver sido escrito para ser lido em voz alta, o resultado, suspeito, será sempre esse. Há duas linguagens aí que cada vez se distanciam: a falada e a escrita. O discurso escrito requer uma atenção e concentração, mas passa o tempo da imersão para o lado do leitor. Ele pode ir e voltar, reler, fazer referências próprias, recorrer a outros livros para exemplificar um tema, entre diversos caminhos propostos.

Já a oralidade também precisa da concentração, mas essa necessidade é imediata - na hora que o palestrante começa a falar, o mundo lá fora se encerra e você deve apenas ouvir e ir processando as informações automaticamente. Para isso, o discurso oral consegue essa atenção por meio de outros recursos próprios, que devem seduzir o interlocutor. Isso vale para tanto para uma conversa simples de elevador - caso seja a intenção, óbvio - como para uma palestra sobre imaginação. O talento vai desde, por exemplo, a piada, a entonação, a troca imediata com o outro, o diálogo, a improvisação, até mesmo o erro, para saber que do outro lado há alguém de carne-e-osso.

Ao ler em voz alta um texto que deveria ser um ensaio, o palestrante mistura esses dois canais e, nesse nosso tempo cada vez disperso, corre o risco de perder conexão com os ouvintes. Como foi o meu caso. Muitas vezes se tem a impressão de que, se eu quisesse ler o que aquele senhor estava falando, eu leria. Eu estava ali para ouvi-lo. Aliás, vários dos convidados tinham ganho o textinho com o conteúdo da palestra. Fiquei imaginando por que eles, então, tinham ido ali, se podiam ficar em casa lendo e refletindo sobre o que aquelas palavras queriam dizer. Talvez para ganhar o papelzinho.

Claro que isso pode ser ajustado. A linguagem falada na televisão, nos programas jornalísticos, por exemplo, é toda escrita. Os apresentadores estão lendo tudo aquilo que eles falam tão casualmente em um teleprompter. Mas isso requer treino e mais treino, de quem escreve as chamadas "cabeças" - o texto lido pelo apresentador - para que ele se pareça cada vez mais com a fala, sem que perca totalmente a sua formalidade - mas uma formalidade sem engessamento, uma formalidade possível; e de quem a lê, para transformar aquelas palavras, aqueles sinais gráficos em sons coloquiais.

Hoje, suspeito que a melhor solução para uma palestra seja a improvisação sobre alguns pontos específicos listados e enumerados anteriormente. Claro que isso requer vários outros recursos, como, por exemplo, a capacidade de improvisar. Improvisar é um recurso bem mais complexo que se parece, como sabem os músicos e os atores que fazem teatro de improvisação. O principal, na minha opinião, porém, é uma constante: a segurança do palestrante. E isso não se aprende: se ganha, se conquista.

Me parece que o meu sentimento não foi único. Ao fim da palestra, entre professores dos cursos de pós-graduação de universidades e institutos públicos, ninguém quis fazer perguntas ou conseguiu concatenar o pensamento - ninguém conseguiu ligá-lo novamente na função ativa - para poder formular uma única questão sobre a palestra para Ingold. Quase um desperdício.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

The double fight against evil


When misfortune overtakes us we can either pass over it so lightly that its cause is removed, or so that the result which it has on our temperament is altered, through a changing, therefore, of the evil into a good, the utility of which is perhaps not Visible until later on. Religion and art (also metaphysical philosophy) work upon the changing of the temperament, partly through the changing of our judgement on events (for instance, with the help of the phrase " whom the Lord loveth He chasteneth "), partly through the awakening of a pleasure in pain, in emotion generally (whence the tragic art takes its starting-point). The more a man is inclined to twist and arrange meanings the less he will grasp the causes of evil and disperse them; the momentary mitigation and influence of a narcotic, as for example in toothache, suffices him even in more serious sufferings. The more the dominion of creeds and all arts dispense with narcotics, the more strictly men attend to the actual removing of the evil, which is certainly bad for writers of tragedy; for the material for tragedy is growing scarcer because the domain of pitiless, inexorable fate is growing ever narrower, —but worse still for the priests, for they have hitherto lived on the narcotisation of human woes. - Nietzsche, "Human, all too human", fragment n. 108.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

O próprio faro

A ansiedade de Thirlwell, percebemos então, vai além de sua declarada ignorância da geografia, do idioma e da cultura que pariram “Animais”. Trata-se da insegurança do crítico que se vê na obrigação de julgar uma obra de arte baseado exclusivamente no próprio faro, sem o conforto dos juízos protocolados por autoridades incontestáveis no cartório do mundo.
Excelente sacada do Sérgio Rodrigues demonstrando como a literatura brasileira é completamente ignorada pelos leitores onde o mercado editorial é realmente pujante, como o de língua inglesa, por exemplo. Mas, talvez, melhor ainda é demonstrar como se comporta o ser humano - seja ele escritor renomado ou qualquer reles mortal - sem um parâmetro claro para poder guiar as suas escolhas. Em outras palavras, tendo que tomar uma decisão e sendo corajoso o suficiente para seguir em frente com ela.

Tática do Cabral

Todas as vezes que eu vejo o nosso excelentíssimo senhor governador, Sérgio Cabral, chamar os policiais de "débeis mentais", "assassinos" e "desastrados", entre outros epítetos carinhosos, tenho uma ânsia de concordar com ele: é isso mesmo! Um absurdo! Queimem a bruxa, queimem!

Geralmente nosso excelentíssimo governador se refere aos policiais com essas simpáticas alcunhas por conta de um crime absurdo cometido por eles. Morte de inocentes, geralmente crianças, por puro despreparo. Ou flagra de tráfico de drogas. Ou algo que gere uma imediata repercussão nas mídias. Ele vem a público e, como representante do próprio público, externa a voz e a fala que o público gostaria de ter. Claro, não passa de publicidade.

Depois de concordar com ele, já de pé, exaltado, dedo em riste, me pego no ato: mas, peraí, não é ele, Cabral, o chefe desses policiais? Não é ele, ao fim, o cara que manda e desmanda nas corporações policiais do estado? Não seria ele, ao longo de um cadeia de raciocínio, a se criticar por conta das atitudes completamente equivocadas desses policiais?

Ontem, foi a vez do digníssimo senhor ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, ter o seu dia de Cabral. Em uma palestra a empresários, ele afirmou que "se fosse para cumprir muitos anos na prisão, em alguns dos nossos presídios, eu preferiria morrer". Disse também que "temos um sistema prisional medieval, que não só desrespeita os direitos humanos como também não possibilita a reinserção."

Fiquei pensando: que bom que o ministro sabe das condições dos nossos presídios. Que bom que ele está reclamando. Que bom que... e novamente caí no: peraí, ele está reclamando para quem? Quem é o responsável pelas nossas prisões medievais? Quem é que pode mudar essa situação?

Lembro há muitos anos [link nesse caso é um luxo] de uma pergunta que deixou o então presidente Fernando Henrique Cardoso completamente fora de prumo: se ele viveria com um salário mínimo por mês. FH, revoltado, respondeu que o repórter estava sendo leviano, que não existia mais família que vivesse com essa renda, apenas, que há sempre mútua cooperação, etc. etc. etc. Mas não respondeu.

Desde então, eu gostaria que alguém fizesse como meta de vida perguntar aos políticos que porventura fosse entrevistar se eles se utilizam dos serviços públicos que eles dispõem para a sociedade. Se eles, quando doentes, vão para o hospital público. Se pegam o ônibus, trem ou metrô para ir trabalhar. Se já tentou chamar a guarda municipal pelo telefone central da prefeitura, sem se identificar.

Na pior das hipóteses, pode acontecer como o prefeito de Caxias, Zito, que vai responder cinicamente que, sim, se utiliza do serviço de limpeza urbana da cidade. O problema, nesse caso, será que você vai descobrir que só ele usa, enquanto o restante do município sofre com o lixo acumulado, e as suas consequências [mal cheiro, doenças, entupimento, enchentes, etc.].

Ao se colocar junto dos principais afetados, Cabral e qualquer outro político agem da maneira mais covarde que um político no cargo executivo pode agir. Retira-se do papel de responsável pelas ações para posar de completamente passivo, como se fosse igualmente uma vítima da situação. Na verdade é ele o principal causador da tragédia.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Original or forgery: what is the point?

The Getty kouros is an over-life-sized statue in the form of a late archaic Greek kouros. The dolomitic marble sculpture was bought by the J. Paul Getty Museum, Malibu, California, in 1985 for $7 million and first exhibited there in October 1986.
Despite initial favourable scientific analysis of the patina and aging of the marble, the question of its authenticity has persisted from the beginning. Subsequent demonstration of an artificial means of creating the de-dolomitization observed on the stone has prompted a number of art historians to revise their opinions of the work. If genuine, it is one of only twelve extant complete kouroi. If fake, it exhibits a high degree of technical and artistic sophistication by an as-yet unidentified forger. Its status remains undetermined: today the museum's label reads "Greek, about 530 B.C., or modern forgery".

Eu sou Ed

Clipe da banda Grave, dirigido pelo meu amigo Thiago Facina.

'Obra de arte de relevância'

Ontem ouvi um pedaço da entrevista de Andrew Keen, aquele do "Culto do amador", muito pequeno para conseguir formular qualquer opinião, mas que me deu uma ideia exatamente contrária à [que eu acho ser a] dele. Um dos pontos do livro dele que eu imagino saber sobre ele, de orelhada, é que com o culto desse artista não-profissional, não teríamos mais obras de arte de relevância como sempre foram criadas. Para ele, é necessário uma profissionalização dos artistas para que consigamos sair do marasmo. Ele cita trocentros exemplos [ontem, eu vi ele citando o "Vertigo", do Hitchcock] para comprovar sua tese. Há uma lógica aí. Que eu discordo.

Minha homenagem aos 'artistas'

Não pelo lado dos meios de produção. Mas do que seria "obra de arte de relevância". A definição de obra de arte é extremamente complicada, e cada vez mais complexa. A sua relevância, então, se torna um dilema, uma dúvida, uma discussão que as melhores cabeças pensantes da universidade ainda não chegam a propostas, quiçá consensos. Geralmente aplicam teorias antigas a novos formatos e, como acontece sempre, o quadro fica meio torto.

Na verdade, o que tem que ser lembrado é que não existe uma obra de arte a priori, ou em princípios. Não existe arte sem que exista uma materialidade, mesmo conceitual. Nos casos mais antigos é mais fácil de se enxergar. Uma escultura de Michelangelo é, primeiro, uma escultura. Depois de Michelangelo. Depois, se o espectador assim o enxergar, uma obra de arte. Portanto, uma obra de arte, na minha opinião, só existe se alguém disser que ela é arte.

Uma vez li um exemplo hipotético bom sobre esse caso. Um quarto fechado, sem que ninguém tenha entrado nunca, mas que contém obras dos maiores pintores do mundo. O autor argumentava que esses quadros eram obras de arte, porque respeitavam tais e tais critérios. Eu discordo.

Seguindo esse raciocínio, não é possível saber o que é uma obra de arte, muito menos de relevância, antes que ela seja feita.

Talvez seja cruel para as pessoas que se autodenominam artistas. Descobrir que se elas não produzem nada [e novamente insisto que isso pode ser até mesmo conceitualmente], elas estão vazias. Não são nada. Ser chamado de artistas, portanto, e na minha opinião, não quer dizer muita coisa. Qualquer um pode se autodenominar.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Elegância tricolor

Pesquisando para uma pauta que envolve, de alguma forma, futebol, acabei me deparando com a informação de que todos os outros tricolores mais assíduos que eu já sabem: o Fluminense pode ser considerado, sim, campeão mundial. Basta levarmos em conta o mesmo critério dado a outros clubes. O Palmeiras, por exemplo. Em 2007, time paulista foi considerado campeão do mundo de 1951 pela Fifa, por ter vencido a Copa Rio. O Fluminense venceu esse mesmo campeonato no ano seguinte.

Na mesma reportagem, já havia a insinuação de que o time das Laranjeiras iria entrar com o processo na federação internacional para ter esse título justamente homologado. Também é dito que o recurso palmeirense demorou seis anos para ser julgado válido, o que nos leva a crer que, caso se continue nessa mesma velocidade, o Fluminense pode [e deve] ser bicampeão mundial em 2013.

Torcedores do Flu registraram o tetra nas
Laranjeiras (Foto: André Casado / Globoesporte.com)
Por que não se fala tanto disso? Tenho uma hipótese. Porque o Fluminense teve mais com o que se preocupar desde então. A partir de 2007, o Fluminense venceu a Copa do Brasil, ganhou dois campeonatos brasileiros e foi terceiro colocado no outro, foi vice na Libertadores, na Sul-Americanca, e ainda levou um carioca de lambuja. Não conseguiu se concentrar nos processos burocráticos extra-campo.

E é exatamente quando isso acontece, quando se preocupa apenas com o que acontece dentro das quatro linhas, que o Fluminense enche os tricolores das maiores glórias. Não é quando os dirigentes viram a mesa, quando estouram champanhe, quando evitam passar pela segunda divisão para voltar à primeira. Mesmo que os demais times também tenham máculas em suas histórias, o Fluminense não poderia ter se apequenado. Não o Fluminense. Não o Fluminense, que fascina pela sua disciplina.

Cair para uma divisão inferior acontece - pode acontecer - com qualquer clube. Faz parte das regras do futebol e, mesmo que isso eventualmente não tenha acontecido com todos, é uma questão de tempo, imagino, para que ocorra. Mas a virada de mesa foi uma vergonha para os tricolores.

Ser tricolor não me dá o direito de ser cego, de torcer pelo time sem considerar todos os seus problemas. Ser crítico faz parte do ato de ser Fluminense. Assim como faz parte, por exemplo, a elegância. Todo tricolor, mesmo o mais precário, o mais pobre, o mais sem dentes, tem essa característica. Se eu não me engano, Nelson já tinha falado sobre isso. Nelson, provavelmente o maior tricolor de todos os tempos.

Nossa elegância independe de qualquer origem e da classe social. Costumo dizer que o homem mais elegante que eu já vi foi negro, favelado, pobre e sambista: Cartola. Era um homem que mesmo sentado no chão de poeira mantinha uma fleugma, uma postura altiva. Que tinha uma fidalguia, mesmo sem ser filho de um ou outro sobrenome importante. Não por acaso, era tricolor. A lista dos elegantes tricolores pode continuar com Fernanda Montenegro, Chico Buarque, Gilberto Gil, e seguir muito adiante. Você vê em todos eles essa confiança em si, esse respirar fundo, essa certeza pessoal, essa calma, essa superioridade.

Mas não é um sentimento de superioridade em relação ao outro, é uma superioridade isolada, individual, sem precisar de uma outra pessoa para se medir. O tricolor seria superior, seria elegante mesmo numa ilha deserta. Não é algo que se aprende, nem um fru-fruzismo. Não é frescura. É requinte, distinção, esmero, graça. Ou você nasce com a elegância ou não.

Não é algo simples de se definir com palavras. É sempre ter a cabeça erguida, mesmo nos momentos mais duros, em paz, em harmonia. Elegância é saber lutar, quando a esperança, a esperança parece desaparecer, e saber que dali, do fundo do poço se pode encontrar as forças para fazer uma virada, mas não uma virada de mesa. É lutar com vigor, raça, com garra, descobrir um time de guerreiros, quando se tem ínfimas possibilidades de salvação, como aconteceu em 2009, e mudar a história de uma geração. Arrancar dali para uma série de títulos.

Elegância é ter orgulho de ser tricolor.

domingo, 11 de novembro de 2012

Telecomunicações: uma série de enganações

Tivemos problemas, sim, para instalar internet e telefone fixo quando morávamos na Inglaterra, mas, depois de instalados, nunca fizemos qualquer reclamação com a empresa, TalkTalk. Jamais ligamos para nos queixar do serviço, nunca ficamos sem banda, e nossa conexão era incrivelmente rápida. Eles entregavam aquilo que prometiam. O que, sabemos, não acontece no Brasil.

Não sei qual é a justificativa oficial das empresas de telecomunicações brasileiras para o péssimo funcionamento dos seus serviços. Mas não conheço ninguém - ninguém - que esteja satisfeito com o que tem. No caso de celular, por exemplo, é extremamente comum os consumidores irem pulando de empresa em empresa e, após um tempo, ficar sem opção. Na internet, com menos frequência, acontece o mesmo.

Fala-se que o consumidor brasileiro somos extremamente passionais na hora de decidir a nossa compra, mas acredito que isso seja fruto do fato de sermos constantemente aviltados, desonrados, humilhados no nosso direito simples de ser bem atendido. Aqui, nunca o cliente tem a razão.

O consumidor nos sentimos enganado a todo momento. Por que o sinal do meu telefone sempre cai? Porque a empresa derruba. De onde vieram tantas ligações na minha conta de celular? Por que a minha internet normalmente não funciona? Somos trapaceados por empresas que prometem o que não podem na tentativa de angariar mais e mais clientes.

Isso me lembra na época das privatizações, onde se argumentava que era necessário tirar da mão do Estado certas empresas porque o governo não teria a agilidade para se adaptar às então novas tecnologias. Mas as empresas que compraram o nosso sistema de telecomunicações estavam preparadas?

Lembram dele?
O processo de privatização foi e é sempre o mesmo. Sucateiam uma empresa para demonstrar como ela não funcionava, como o Estado é ineficiente e, então, a vendem a ridículos preços. Se quiserem um exemplo fora das telecomunicações, pense na Vale. Se quiser fugir do governo Fernando Henrique, grande responsável pela venda de boa parte do patrimônio público, principalmente da parte de telecomunicações com o ministro Sérgio Motta, pense no que está sendo feito, agora, com os aeroportos e a Infraero.

O processo é o mesmo. Deixa-se uma empresa pública sem investimento, para ela ir amargando, afinando, e depois a possibilidade de venda surge como a única capaz de resolver o problema. Curiosamente, o processo também começou com Petrobras, mas o apelo popular foi maior e agora ninguém mais diz que a companhia de petróleo é ineficiente ou não é grande o suficiente para competir no mercado internacional. Ninguém mais a chama de Petrossauro.

Mas é nos serviços, no tratamento diretamente com o cliente final é que vemos como essas empresas privadas não sabem lidar com o público. Já comentei [não lembro onde] que o fato de os transportes públicos em Londres serem públicos, estatais, controlados pela prefeitura é, na minha opinião, o principal motivo para que o serviço funcione. O passageiro não é tratado como um cliente, como é visto pelas empresas concessionárias cariocas, por exemplo, onde há cotas para gratuidades, e para quantidade de pessoas que eles devem pegar a cada rodada. Ele é visto exatamente como ele é: como passageiro, o cara que tem que pegar o ônibus para ir de um lugar a outro. Há uma organização maior, que ultrapassa as barreiras das competições entre empresas. Pensa-se o todo, não em separado.

E, claro, as empresas de telecomunicação também tratam os consumidores como lixo. Onde você olhar vai encontrar informações que essas companhias são as campeãs de reclamações. Porque sem o controle do Estado sobre essas atividades, as empresas vão continuar mentindo, agindo de má-fé, praticando as piores ações, enganando os consumidores. O governo FH até criou a Anatel, mas a única vez que ela praticou algo que fosse de relevância nacional foi neste ano, quando impediu que as empresas de celular vendessem chips.

Em vez de comemorarmos o aumento do número de celulares no Brasil, mais que um por pessoa, proporcionalmente, deveríamos pensar que quantidade não é nada sem qualidade.

ps. Esse post teve patrocínio do vizinho e sua simpática internet aberta.

sábado, 10 de novembro de 2012

Os 3 mil livros da sua vida

“Quantos livros você vai ler em toda a sua vida?”, me perguntou Marcelo Latcher, responsável pelo sebo virtual “Gracilianos do Ramo”, mas que já esteve à frente, ou ao lado, de outras várias livrarias de segunda mão, e com trocadilho, como a Baratos da Ribeiro. A pergunta rolou enquanto conversávamos para a reportagem que eu estava escrevendo para o "Prosa".



“Nunca fiz as contas, para não ficar deprimido”, respondi, tentando evitar que o meu raciocínio caísse nessa matemática que eu sabia que não teria muito um final feliz.

Ele continuou falando sobre outros muito assuntos, demonstrando que era, além de livreiro, um leitor. Coisa incomum, ele brincou, citando, inclusive o livro “Homem sem qualidade”, do Robert Musil [não li, mas ele explica], que tem uma história em que um bibliotecário fica até ofendido quando é perguntado se ele lê o que guarda.

“Minha geração é até culta, gosta de livros”, brinca, mas a sério, demonstrando a diferença do grupo que o antecedeu e o sucedeu, de puros e ótimos comerciantes físico e virtuais, respectivamente. “Achava que o livro era importante, mas não tinha visão empresarial. Às vezes as pessoas pediam ajuda, e eu gostava de ajudar”, explicou a sua decisão de não ter uma loja física, mas de ter participado da criação de várias. “Vender virtualmente é mais legal. Sou até bom de loja, bom de atendimento, mas não sou bom empresário, bom chefe. A vantagem de ser virtual é ser o exército de homem só. ”

Nosso papo fluía, muitas vezes sem qualquer relação com a pauta. "Quando chega a uma idade", disse ele, "quando você descobre o homem que é, você tem dois caminhos: o de tentar mudar, que eu sou contrário, ou o de tentar viver da maneira como você é", filosofou, sem saber que, sem querer, repercutia um raciocínio que eu estava tendo exatamente na mesma semana. "Quero fazer uma camisa com os dizeres 'Hei de vencer mesmo sendo eu mesmo'.”

Em outro momento, o livreiro me perguntou se eu sabia quantos livros eram publicados no Brasil. Eu disse que não sabia, nem tinha ideia. Ele me respondeu que tinha ouvido falar, há uns anos, que seria em torno de dez livros por dia. Fez um silêncio, como se sorrisse, esperando que eu fizesse as contas sozinho. 

Ele voltou ao assunto inicial da nossa conversa: "Se você ler muito, se você for um ótimo leitor, que, em todo momento livre, está lendo, qual é a sua média de leitura?"

"Sei lá, um livro por semana?"

"Isso, eu também acho que se formos ótimos leitores, leitores rápidos, conseguimos uma média de um livro por semana. Se lermos por 60 anos..."

"Três mil livros", respondi, "Conseguiremos ler três mil livros em toda a vida. O mesmo número dos livros que são publicados por mês no Brasil, nessa periferia do mercado editorial", comecei a ficar desesperado, como vamos resolver esse problema? Vamos ser sufocados, afogados num mar de letras e papéis eletrônicos que não nos deixará respirar, vamos morrer de culpa por não conseguir terminar nenhum livro, vamos ficar angustiados... "O que vai acontecer?", perguntei a ele.

Calmamente, como quem já tinha pensado nesse assunto várias e várias vezes, ele me respondeu:

"Será mais uma volta à Grécia. Uns contam aos outros o que leram. Haverá leitores profissionais, como um tipo de serviço. Empresas vão contratar pessoas que leem para os seus funcionários. Alguém que vai conseguir resumir um capítulo em poucas palavras. Haverá uma valorização da atividade de contar, do falar."

Eu fiquei no meu canto, em silêncio, tentando entender o que tinha ouvido. Mas percebi que já estava acontecendo isso, com esses cursos das escolas como a Casa do Saber ou POP. Quando ele, acompanhando o meu raciocínio, continuou:

"Ainda ainda tem muito preconceito contra esses cursos, ainda acham que é algo menor, falta de caráter, que tem que ler livro inteiro. Você lê o livro inteiro se quiser. As pessoas não entendem que você deve ler o livro até entendê-lo", ele para para completar: "Podemos viver as ruínas da cultura. Haver um monte de coisa que você não consegue entender direito. Podemos ter a barbárie cheio de tecnologia em volta. Ter informação e não levar de uma geração a outra." Parou, respirou, e completou: "Mas o preconceito já está diminuindo."

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Fredric Jameson


O tempo presente, sem passado ou futuro, o espaço como prioridade, a imagem como forma principal, a pós-modernidade, não o pós-modernismo, elBulli, derivativos, a crise internacional, o capitalismo no momento atual, o financeiro, a globalização entre outros assuntos nessa palestra de Fredric Jameson.

Via Lu.

'Um Dom para Salvador', de Ed Motta


Em homenagem a Ed Motta, que toca amanhã no Rio os seus melhores discos. Se a minha opinião não vale, segue a de Gilles Peterson:
I’ve picked up on this album recently and it’s an interesting one for me being a jazz musician. Not only has a lot of musical creativity and thought gone in to each composition in regards to chord structures, textures and dynamics but also a great deal of effort has gone in to the finished sound of the record. Dwitza has been mixed in a way that gives the listener a completely live musical experience without physically being at a gig and without it being recorded in a live setting. Essentially it’s a studio album and the thing that makes it interesting is the fact that no effects, i.e. reverb, delay compression limiters etc have been added in the final mix or have they been used for the vocals or other instruments featured. This gives the listener an experience that seems to touch the heart and soul in a very direct and deep level. On listening to the record I can here the many influences, from bebop-inspired jazz melody lines, traditional Brazilian folk elements, funky Latin-based grooves, plenty of hip-shaking samba rhythms and juicy chord voicings that perpetuate his musical experiences.