quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Reflexões sobre Arcade Fire e 'Reflektor'

Agora que já se passaram alguns dias do lançamento extra-oficial do novo disco do Arcade Fire, "Reflektor", já é possível se chegar a uma conclusão direta e pouco surpreendente em se tratando da banda canadense: que disco, meus amigos, que disco!

Seguindo uma tradição recente de fazer um grande suspense para o lançamento, que talvez tenha atingido o seu perigoso ápice com Daft Punk e o "Random access memories", lançado no já longínquo 21 de maio, os não mais tão meninos e nem tão meninas do Arcade Fire também foram divulgando as músicas em conta-gotas, nas últimas semanas.

Daí veio a faixa título, num vídeo dirigido pelo craque Anton Corbijn [que criou a estética de muita banda da década de 1980, de U2 a The Cure] e a excelente "Afterlife", que faz uma homenagem ao Orfeu de Camus, inspirado na peça de Vinicius, entre tantas outras músicas. Mas, de alguma maneira, apesar dessas duas músicas citadas terem clipes interessantes [o de "Afterlife" é lindo], parecia que alguma coisa ali "atrapalhava" a fruição da música. Agora, sem a imagem para "competir", podemos ver que, sim,  Win ButlerRégine Chassagne e cia. acertaram. De novo.



Se colocassem um arma na cabeça para me obrigar a dizer qual é a maior banda da atualidade, diria que é o Radiohead. Mas o Radiohead não é exatamente da minha geração - quero dizer, teria idade para acompanhá-los desde o início, mas eu não tinha idade mental para percebê-los lá pela metade da década de 1990. Já o Arcade Fire é a banda que eu acompanhei desde o primeiro disco. Vi crescer, por assim dizer.

O grupo da francófila Quebec [o que, por si só, já dá um caráter mais global às outras bandas de sua geração] apareceu no meu radar numa segunda onda de bandas independentes do século XXI, após a primeira enxurrada que trouxe, entre outros, Strokes e White Stripes. Eles chegaram a mim com uma outra banda que, para demonstrar como funciona essa questão do hype, eu nem me lembro mais qual era. Não quer dizer que esta segunda banda era ruim, [Foi o Bloc Party? Acho que não, acho que o Bloc Party veio depois, ainda.] mas que o Arcade Fire conseguiu se manter num auge contínuo, como se fosse possível, se renovando sempre, mas sem perder à conexão com eles mesmos. Eu até lembro que eu preferia a outra banda na época, por ser mais rock 'n' roll que o Arcade Fire, mas tudo mudou com um show a que eu assisti deles.

Era o saudoso Tim Festival, por sua vez, já uma mutação do Free Jazz. Eram também as minhas primeiras férias na vida. Para piorar, coincidiam também com um casamento de amigos próximos. Apesar disso tudo, não pestanejei: iria voltar das férias e assistir ao septeto [atualmente; na época, não sei], mesmo que precisasse ir de terno. E assim foi. E não me arrependi. Foi um dos melhores shows da minha vida. Logo de cara, já me fez pensar: "como assim eu ainda preferia a outra banda?". Eles subiram todos ao palco e ficaram em silêncio encarando a plateia por alguns míseros segundos, suficientes para hipnotizar quem estivesse embaixo. Começaram a entrada da música, ainda no escuro, baixinho, calminho, sem nervosismo, mas quando vem o momento "Oooooh, ooooh, oooooh, oooooooh, ooooooh...", as luzes se acenderam numa explosão e, aí, meu amigo, eles já tinham ganham completamente o jogo. Momento arrepio imediato, que só de assistir de novo arrepia novamente. A partir disso, o que fizessem ali - e eles fizeram muito, os caras chegaram a escalar a estrutura do palco! - era extra. O vídeo abaixo não dá nem um triscado do que realmente foi. Mas já dá para sacar:



Desde então, não consegui evitar acompanhar tudo o que eles fizeram. Quando reclamaram da soberba por terem gravado em igrejas, por conta da acústica, seu segundo disco "Neon bible", pensei, após ouvir o resultado, que o mundo, então, precisava de mais soberba - deste tipo de soberba que entrega o que promete. Quando lançaram "The suburbs" não precisei defendê-los de nada porque era um álbum intocável.

Aliás, se há algo que se repete a cada disco com o Arcade Fire é que eles não fazem, quase que como um milagre, música ruim. Não conseguem. Ao ouvir e assistir aos vídeos deste novo "Reflektor" pensei que, finalmente, tinham errado. Não era um alívio, nem uma decepção, era uma aceitação de que ninguém acerta sempre. Nem mesmo o Radiohead.

Mas aí que, talvez, more a grande diferença entre as bandas - além de todas as outras. Enquanto o Radiohead quer sempre experimentar, o Arcade Fire quer fazer canções bonitas. O nível de boniteza em suas músicas é muito, muito alto. Sempre é de uma beleza tão impactante, envolvente, quente, gostosa, feliz. Daí, talvez, a crítica pela soberba em "Neon bible". Pareciam estetas, sem sangue nas veias. Mas se para fazer músicas bonitas assim é preciso ser um pouco divino, e menos humano, eu, um simples ouvinte, autorizo. Que assim seja, então.

Às primeiras audições de "Reflektor", já sem as imagens para desviar meu foco, meu pensamento, minha percepção oscilou entre achar que era o disco mais rock 'n' roll deles, com direito até a riffs de guitarra, e o disco mais de pista, para dançar, com batidas mais retas, linhas de baixo mais evidentes. Como se fossem o elo perdido entre Joy Division e New Order, mas sem as nuvens pretas que cobriam o céu dos ingleses de Manchester. Como poderiam? A resposta para as minhas dúvidas, então, apareceu no nome do imenso [no talento] James Murphy. Ele, o homem por trás de nada menos que LCD Soundsystem, foi o produtor do disco. Tudo agora se explica. Eles são rock E também são dançantes. E também continuam produzindo músicas lindas, lindas, lindas que você não vai acreditar que são possíveis.

O que faz essa beleza toda, na minha humilíssima opinião, é a utilização, sem medo de parecerem grandiosos - e aí, novamente vamos nos aproximando de uma outra característica do Radiohead, que também não tem medo da grandeza - de inúmeros e diferentes instrumentos. Cordas são presença garantida em todos os álbuns, mesmo nesse, mais rock, mais dançante.

Outra vantagem dos canadenses logo de cara é a mistura das vozes masculina inglesa do californiano que cresceu no Texas Win Butler e da feminina francesa quebequense Régine Chassagne. É um contrabalanço entre alto e baixo. Grande e pequeno. Grave e agudo. Força e delicadeza. E as metáforas poderiam continuar. Na música título deste último disco, por exemplo, ela canta em francês um pedaço, e faz o backing vocal para ele. É uma camada perfeita para ele se exercitar.

Na segunda faixa, "We exist", além de barulhinhos eletrônicos, guitarra econômica, um baixo que parece saído de uma música do Michael Jackson, você encontra os violinos, ali. É como se eles juntassem o pueril, do entretenimento, do querer se divertir numa pista, sem se importar com o dia de amanhã, com uma necessidade de tocar mais fundo, com a vontade de emocionar. O final dele, em crescendo, com os violinos sustentando toda a música, é capaz de emocionar e fazer dançar - ao mesmo tempo - o mais duro das pedras.

Mas se você ainda tem espaço para se emocionar um pouco a mais, eles emendam com "Afterlife". Tecladinhos saídos de uma música disco da década de 1990. Bateria seca, simples, nada demais. Entra Win Butler: "Afterlife / oh my god, what awful word". Parece uma música simples, até que, ao fim da primeira estrofe, ele pergunta: "I've gotta know" - e aí começa de verdade. Percebemos que a simplicidade inicial é apenas a cama para a música, o tecladinho jamais vai sumir, mas ele vai ficar embaixo de uma camada de guitarras, de um coro simples, que tornam a música imensa, enorme. "But you say / Oh / When love is gone / Where does it go? /  And you say / Oh / When love is gone/ Where does it go? / And where do we go?  / Where do we go? / Where do we go? / Where do we go?"

"Afterlife" não é exatamente sobre a vida após a morte - ou não apenas. Mas sobre aquele momento em que estamos saindo de um amor e perguntamos: e agora? Como recomeçar? O clipe mostra isso bem.



Bem, poderia falar coisas bonitas de cada uma das canções desse disco, que virou uma pequena obsessão desde que o escutei pela primeira vez. Mas talvez possa resumir dizendo que estou cogitando mudar a resposta para o suposto homem atrás da arma, lá de cima, quando ele me perguntar "qual é a maior banda da atualidade?"

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Questão de signo

Ele é um engenheiro. Trabalha em uma empresa de telecomunicação.
Ela é jornalista, faz, por falta de pessoal, o horóscopo, além da parte da TV.
Os dois têm pouco mais de 20 anos. Recém-formados. Ele um pouco mais velho. Ela, mais bonita.

***

Quando se olharam, quando as suas visões, os seus olhares, quando os os seus olhos, as miradas, se entrecruzaram pela primera vez, fez fogo, viu uma labareda cruzando o glóbulo ocular dela, subiu um arrepio pela espinha dele, que o fez balançar. Ficou sem ar e confuso. Encheu o ar de pulmões. Com sede, queria beber da saliva dela.

***

Ele frequentava a igreja. Lia o horóscopo. Queria acreditar. Tinha explicação para todas as suas dúvidas. Mas as dúvidas continuavam a aparecer. Não cessavam. Arranjava outras explicações. Ela não sabia o que escrevia. Apenas escrevia. Tinha feito, no máximo, um mapa astral. Tinha gostado. Mas, de um modo curioso, até para ela mesma, ela sempre, sempre, lia o que tinha escrito. No dia seguinte, fingia algo, disfarçava, e lia, como se fosse a primeira vez que ela tinha contato com aquelas palavras. E, de certa forma ainda mais estranha, era.

***

Pernas que brilham, pernas, coxas, que não são as mais grossas, são até finas, para os padrões, mas a pele brilha, como se fosse seda – essa metáfora batida, mas que funciona perfeitamente – a textura convida ao toque, os dedos querem afundar, como em uma colcha felpuda nos frios invernos da infância. Coxas que combinavam com o resto do corpo, se encaixavam perfeitamente ao quadril e aos joelhos, mostrando que o todo não sobreviveria sem suas partes.

***

“Momento de balanço na sua vida. Tente não se expor muito” – dizia o seu horóscopo. Libra, ele era de libra. Ela, escorpião. O que ela queria dizer para ele? Qual era o recado que ela estava colocando no horóscopo? O que é “não se expor muito”? Será que ele estaria...

“Hora de grandes transformações em sua vida. Prepare-se para a luta” – dizia o de escorpião. Era obviamente uma mensagem. Ela não estava bem com o relacionamento.

***

“Como assim, você não sabe o que escreveu?”
“Eu apenas escrevo qualquer coisa. Não fico reparando em qual signo isso vai cair. Você sabe que eu não acredito nisso...”
“Mas eu acredito!”

***

Terminaram o relacionamento, que nem tinha começado direito. O que o incomodava não era ela dar recados para ele via a coluna, não era fingir que não sabia de nada, mas a exposição. Como ele iria falar que acreditava em horóscopo e desconsiderar a coluna dela, a principal coluna de horóscopo da cidade? Era muita contradição. Não conseguiu lidar com isso. E cancelou a assinatura do jornal.

***

Ela pediu para mudar de seção, mas a chefe não deixou, alegando que havia recebido muitas cartas de leitores que disseram que a coluna atual era a melhor que o jornal já tinha tido. Para convencê-la, a chefe ainda sugeriu que ela assinasse a coluna. Nada de aumento, porém.

Ela pensou bem e aceitou, com a condição de que ela assinasse a coluna com um pseudônimo. E que fosse um segredo do jornal a identidade de Madame Solobugiavitch.

domingo, 27 de outubro de 2013

Violência nossa do dia a dia

Uma das maiores e mais infundadas teses que se apregoam sobre o brasileiro é que ele é um sujeito pacífico. Talvez porque nos comparemos - sempre - com países que têm comportamento mais bélico, imperialista, e que arranjam guerras para se meter a todo momento. Ou talvez porque também nos medidos com a régua de outras nações em que há protestos e reivindicações diárias, sobre assuntos os mais variados. Talvez nem uma coisa nem outra aconteça com o Brasil, nem com os seus habitantes. Mas isso não impede que sejamos, sim, muito violentos, à nossa maneira.

Briga na cidade
E nem vou entrar no mérito histórico que, na minha opinião, o Luiz Ruffato já fez isso. Mas tentar falar do presente, para que comecemos a observar o óbvio ao nosso redor. Porque basta sairmos de casa que vemos uma cena de pura violência - e nem estou falando da simbólica, porque aí seria ainda mais "fácil" de encontrar. Sempre vemos uma discussão, uma briga, uma confusão no trânsito, um assalto, um pega-ladrão, um policial fazendo nada.

Ontem uma cena me deixou bastante assustado, pela completa gratuidade. Andava na rua da Praia de Botafogo, altura da Farani, quando reparei em um taxista parado para entrar nessa rua, saindo do carro, no meio do trânsito, enquanto o sinal ainda estava vermelho, com uma barra de ferro que seria do tamanho do meu braço. Ele foi em direção a um ônibus do lado dele e, sem qualquer tipo de diálogo, quebrou o espelho lateral. Vi o vidro se despedaçando e ele, então, discutindo alguma coisa com o motorista, como se quisesse dar uma lição no outro. O motorista, a partir daí, esperou o taxista voltar para dentro do carro para jogar o ônibus de uma maneira muito bizarra contra o táxi, que, com o forte impacto, foi lançado para o canteiro central da avenida. Era a vez do motorista tentar dar uma lição no debatedor. Os dois, porém, não conversaram nada. Não vi um diálogo, uma troca - como se isso não adiantasse para nada. Só a porradaria. Em seguida, o sinal abriu e o ônibus zarpou, e o taxista foi atrás.

Eu fiquei pensando coisas banais e egoísticas: era o 512, um dos "meus" ônibus. Eu poderia estar ali dentro. E os passageiros? E se alguém quisesse descer exatamente no próximo ponto, em frente ao Edifício Argentina? E se houver gringos dentro do ônibus que vai para o Pão de Açúcar? E quem se importa com os gringos? E por que deveríamos nos importar mais com eles? Isso aconteceria em outro lugar? Por que acontece aqui? Seria o sentimento de impunidade?

Abandono
Não era o sentimento de impunidade, eu consegui, finalmente, responder a alguma questão. Isso contava, claro, mas era parte, um elemento de uma questão maior. Para mim, essa violência acontece pela completa falta de confiança nas instituições brasileiras. Imagino alguém falando com o motorista: você deve ir à polícia. O motorista iria rir, porque ele não acredita que a polícia poderia resolver esse tipo de situação. A polícia serve para matar pobres em favelas. Ou, você deveria denunciar o taxista para... para quem se denuncia um taxista? Para a prefeitura? Onde? Como? E o que acontece? Alguém já viu algum taxista sendo punido por alguma razão? Aliás, e o motorista de ônibus? O que ele fez para despertar esse sentimento destruidor do taxista? Para quem denunciá-lo? Para a Fetranspor? Para a Rio-Ônibus? Para a própria empresa?

O que acontece é que não confiamos em nenhuma dessas instituições. Nenhuma. Vivemos, desde sempre, ao largo do Estado - não só o governo, mas tudo o que nos envolve - que só aparece para cobrar algo, jamais oferecer conforto ou soluções. É claro que há exceções e eu não quero generalizar nem cair numa reclamação vazia em que o Brasil seria o pior lugar do mundo. Não é nem próximo disso. O que eu estou tentando sustentar é que nossa mentalidade é um pouco a do bangue-bangue: cada um por si, e o Estado - aparentemente - contra todos.

Talvez isso explique por que gostamos das multidões. Carnaval, futebol, praia, réveillon. E talvez isso explique por que quando se junta essa montoeira de gente não ocorrem desgraças. Talvez queiramos fugir desse sentimento individual, isolacionista. Talvez nessas horas, sentimos o prazer de fazer parte de um grupo muito maior, algo tão incomum, e nos sentimos protegidos. Talvez percebemos, inconscientemente, que a massa nos dá um poder que não sabíamos que tínhamos. E as manifestações estão aí para não nos deixar mentir.

Novamente eu penso em Machado de Assis e como ele talvez tenha descrito a alma social desse ser estranho chamado brasileiro ao colocar seu defunto-autor Brás Cubas para dizer que escreveria suas memórias com a “a pena da galhofa e a tinta da melancolia”. Nosso exterior, nosso formato é até festivo, alegre, pacífico, galhofento, portanto. Batucamos em qualquer lugar que dois ou mais brasileiros se encontram. Mas essa pena esconde uma tinta, um conteúdo que, apesar da aparência, é na verdade triste, ensimesmado, introspectivo, e que usa do extravasamento exatamente para não ter contato com o seu interior. Basta ver uma boa tradição das nossas artes e dá para enxergar isso. A própria bossa nova, tão lembrada agora com o centenário de Vinicius. Ou Goeldi [que ilustra esse post]. O resultado, porém, é que a impulsividade da galhofa, quando não utilizada para esses fins alegres, esquenta a melancolia num fogo alto que a transforma certamente em violência. A violência é a nossa melancolia que transbordou.

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É mera coincidência, mas...  "Flamengo, Botafogo e Centro ganham mais policiamento: Em duplas, PMs patrulharão áreas onde roubos de rua registraram aumento nos últimos meses".

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Encontrei isto aqui, perdido nos arquivos deste blog. Achei, novamente, uma coincidência.

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Na tarde em que eu publico isso, outra vez a violência se mostrou presente. No meio da tarde, como está virando rotina aos fins de semana, ouvi um grito de "pega, pega". Me levantei e fui para a janela, quando vi um homem forte batendo como um lutador de mma num garoto magro, negro, que carregava uma bolsa de mulher. O garoto tentava evitar os socos da maneira que conseguia, mas estava acuado. Depois de alguns segundos de socos, o homem olhou para o lado, alguma coisa chamou sua atenção. Foi o suficiente para o menino fugir. O homem foi atrás, mas, logo depois, parou novamente e olhou para trás, e viu um grupo imenso de garotos magros e negros vindo na sua direção, e decidiu voltar. Entrou no seu carro, uma pajero ou cherokee que estava estacionada na avenida, e foi embora. 

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Lembranças

Eu era novinho, tipo 5 anos, e todos os meninos da natação gostavam da mesma menina - mais velha, 8 anos, Cecília, Maria Cecília. Ou estou confundindo? Bem, de toda forma, eu lembro que ela era uma menina que não dava muito papo para ninguém. O que nós, crianças, chamávamos de metida. Nós, meninos, decidimos - não sei por quê - que deveríamos - tínhamos que! - falar com ela, avisá-la, comunicá-la de nosso "amor" por ela. não sei bem o que era isso, e acho que na época ninguém sabia. Mas por algum acaso, decidimos que tínhamos que falar com ela. Tínhamos. E, como todos os outros meninos tinham vergonha - assim como eu - eu resolvi, não me pergunte por quê, ir. Eu tinha que falar com ela. Lembro da cena com perfeição. Do carro da mãe dela, um fusca prateado. Da pedra de brita. Do meu pé ficando sujo. Do calor. Da luz vermelha. Dela, com os pés para o lado de fora do carro. Do seu ar meio esnobe. De querer ficar distante dos outros. De eu chegando perto dela, de todos os meus amiguinhos se escondendo nos outros carros, mas observando o processo todo, eu me aproximando, e não sabendo muito bem o que dizer, e aí falei, simplesmente, "Oi, Cecília, tudo bem?" - ela me ignorou. Ou falou algo muito simples, tipo "oi", e continuou ouvindo música, no rádio do fusca prateado. Eu insisti, disse que tinha que contar algo, ela quase deu de ombros, eu continuei: "É que eu e meus amigos gostamos de você há muito, muito tempo". Lembro até do movimento que eu fiz com as mãos, como se fossem hélices - o que me pareceu na hora, tanto é que eu completei: "Há tanto tempo que parece um ventilador". Ela não riu. Continuou parada, lá. Imóvel. Como se eu não tivesse lá. Eu estava tremendo. Gaguejando. Suando frio. "Bem", disse, "tenho que ir". Saí de lá, como se tivesse tirado uma bigorna de sobre a minha cabeça. Assim que passei pelo primeiro carro, os meninos vieram falar comigo. Queriam saber como tinha sido. Quando lhes contei que ela tinha nos ignorado solenemente, eles ficaram um pouco decepcionados. Eu, ao contrário, estava me sentindo aliviado. Curioso. Como se o simples fato de ter falado com ela - enfrentado esse medo pavoroso que eu tenho, além de ter feito o que eu acho que seria o certo - tivesse me tirado essa bigorna. Hoje, de certa forma, tenho um pouco de orgulho da cena.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Pílulas de filosofia

O elevador apertado e antigo do prédio na Rua Prado Júnior o deixava ainda mais desconfortável. Era como se ficasse mais evidente que ele não tinha onde se esconder. Ficava mais claro que não havia rota de fuga. Se alguém entrasse ali, o enxergaria. Não havia dúvidas. E ele não teria o que dizer, como explicar que ele estava em um prédio em uma rua conhecida por ter puteiros em todos os quitinetes? Nem adiantava tentar começar a dizer que ele não estava ali por isso, para isso, porque ele também não poderia explicar – não tinha como – o que ele estava fazendo, sem cair também no julgamento moral das pessoas. Era errado, era ilegal. Ficava exposto. Ele poderia ir preso. Nilton preferia quando tinha que ir aos morros. Era, ao menos, e por um lado, mais discreto. Apesar de ficar claro para os moradores da favela o que ele estava fazendo ali – já que ele claramente não pertencia ao ambiente – ao menos era improvável – ele sempre imaginou – que encontrasse um conhecido.



Bem, ele achava isso até que o improvável, que sempre dá um jeito de acontecer, aconteceu. Era uma quarta, de noite, estava quente do verão mais quente. Desesperado, em casa, numa ansiedade que não tinha televisão, filme ou caminhada na rua aleatoriamente que diminuísse, que ele subiu o morro. Ele precisava de um pouco, só um pouco nada demais. E aí, ele encontrou a mais improvável das pessoas na mais improvável das situações – que, depois, se mostrou ainda mais improvável.  Era a sua vizinha de porta: uma senhorinha de cabelos azul-claro, que, no prédio, aparentava ter dificuldade de se locomover e, lá no morro, se esgueirava como uma gatuna profissional. Pelo que Nilton pôde perceber, ela também estava tentando se esconder, passar despercebida num ambiente que não era fácil ser discreto. Os dois se viram, fingiram que não se viram, depois admitiram que se viram, e se cumprimentaram, mas não conversaram na hora. Ele subiu, ela desceu, os dois sabiam o que o outro fazia ali, mas passaram em branco.

Meses depois, foi ela, dona Lourdes, quem lhe indicou o endereço de Copacabana, esse endereço, deste elevador que ele sobe agora, assim que começaram as pacificações. Foi ela quem tomou a iniciativa do diálogo, quebrou a falsa moralidade com delicadeza e cuidado, e colocou debaixo da porta de Nilton um bilhete perguntando se ele já sabia onde poderia comprar mais. À negativa de Nilton, ela dizia que já estava velha para continuar se expondo assim e pedia para ele lhe fazer o obséquio de, caso ela lhe entregasse um novo contato, comprar para ela também. Ela lhe entregaria, sempre que necessário, uma lista de compras. Ele, com uma espécie mais sutil de pena, e porque estava sem qualquer contato – e a fissura estava aumentando fortemente –, aquiesceu.

Subia no elevador quase rezando para que ninguém conhecido entrasse ali. Morava perto, no Flamengo, e não seria improvável que alguém pudesse passar por ali. Mas... o que essa outra pessoa estaria fazendo ali?, pensou e isso lhe deu uma espécie de segurança. Por que alguém conhecido estaria subindo um elevador na Prado Júnior? Ao mesmo tempo que esse raciocínio o deixou mais aliviado, pensou que ele poderia ser visto na saída do prédio. Alguém poderia passar em frente. Não adiantava. Nilton estava no grau máximo da fissura: a neurose. Qualquer barulho atraía sua atenção. Qualquer movimento em falso. Imaginou que suas pupilas estivessem dilatadas como as de um gato. Seu coração, em disparada. Décimo-primeiro andar. O elevador faz um “plim” e ele empurra a porta para respirar. Sem perceber, tinha segurado a respiração por todo o trajeto, como se o ar ali dentro fosse contaminado. Era sempre assim quando ia “visitar” o Beto. Sempre ficava nervoso. Não melhorava em nada o fato de metade das lâmpadas do corredor estarem queimadas. O ambiente lúgubre o lembrava que ele estava fazendo algo errado. Que ele poderia ser pego. Que ele deveria se envergonhar.

Um dia encontrou um galã de novelas no hall de entrada do prédio. Um desses de quase 50 anos, que fazem os protagonistas, tem uma família feliz e que você nunca iria desconfiar de encontrar num ambiente como esse. Mas ele estava. E agia como se nada fosse estranho. Quando chegou o elevador ao térreo, Nilton ainda tentou manter a esportiva, entrar no jogo teatral do ator e perguntou se ele – o ator – não iria subir. O ator, sorrindo aquele sorriso que ele já tinha visto num comercial de banda larga, disse que não, que estava bem ali. Certamente também ficou preocupado. Certamente. Será? E se alguém tirasse uma foto dele no prédio? Mas não poderiam associar ele ao prédio. Não dava para enquadrar ele e o prédio. E se desse, ele – o prédio – ficaria muito pequeno. Além disso, o prédio não tem nada demais, exteriormente: como provar que ele estava na Prado Júnior? Enfim, enfim, enfim...



Tocou a campainha e Beto não demorou a recebê-lo.

“Niltinho! Quanto tempo! Tá querendo me deixar pobre? Entra, entra, não fica aí na porta que a gente nem consegue conversar direito.”

Beto era assim, uma tempestade de palavras. Um sujeito estranhamente extrovertido, principalmente para um negócio que, em tese, exigia perfis menos públicos.

“Oi, Beto” – diz apenas, Nilton, quieto, tentando aparecer o mínimo possível.

“Diz aí, Niltinho, quer uma água, uma cerveja, uma provinha, alguma coisa?” – dá uma pausa, meio forçada, para fazer a sua piada de sempre: “Uma maçã? Rá!” – diz e dá a mesma gargalhada de sempre.

“Não, não, Beto, não vou me demorar” – diz apressado Nilton, na tentativa de parar aquele sorriso exagerado.

“Senta aí. Take it easy, tá?” – Beto mostra do sofá – “Mi casa, su casa. Se você não se sentir à vontade aqui, estou ferrado. Não vou me sentir bem” – fala e, de repente, está num monólogo:  “Nilton, um dos meus melhores clientes, Ce n’est pas possible!” – e voltando a falar com Nilton: “Aqui, Niltinho, é tutti buona gente.”

Nilton ficava extremamente entediado com essa exibição gratuita de Beto. Ficou em silêncio, esperando que ele acabasse, e logo Beto foi ao assunto.

“Então, Beto, já que você não está muito para conversa hoje, vamos direto ao assunto: o que vai querer?”
Nilton mostra a lista que dona Lourdes lhe havia entregue, num papel de alta gramatura, dentro de um envelope que parecia, quase, de casamento.

“Essa dona Lourdes... Ela é mó barato, né, Niltinho?”

“Eu... eu não a conheço direito. Ela é minha vizinha, mas nós nunca falamos muito.”

“Sugiro você filar uma das pamonhas que ela faz. São divinas. Ela é do interior de São Paulo. Veio para o Rio quando o marido foi transferido. Desde que o marido morreu, ela virou minha cliente. Cliente preferencial. Sempre pede do melhor. E você? O que vai ser hoje?”

“Eu... eu não sei direito. To meio perdido. O que você me deu na última vez não bateu direito. Fiquei muito agressivo, muito desorientado...”

“Nietzsche? Poisé. Ele tem esses efeitos colaterais, mesmo. Você começa a achar que é o verdadeiro super-homem. Acha que o mundo inteiro tem que se curvar à sua vontade. É complicado. E cria-se um paradoxo: é como se devêssemos tomar doses muito homeopáticas, mas aí, ao ser mais cuidadoso, o efeito de Nietzsche não seria o efeito de Nietzsche: para ser Nietzsche, não pode haver meio termo. É uma bomba.”

“Fiquei muito inseguro, como um adolescente.”

“Imagino, imagino.”

“O que a dona Lourdes pediu dessa vez?”

“Dona Lourdes é uma senhora mais velha, né, gosta dos grandes clássicos: Sócrates, Platão e Aristóteles. Quatro de Sócrates-Platão [os dois vêm juntos, numa embalagem dois em um] e quatro de Aristóteles.”

“Quatro de cada? Quatro?”

“Ela é uma mulher forte, e com bastante tempo livre.”

“Dá até um pouco de inveja.”

“Quer tentar um deles? Tenho aqui um pedacinho de Sócrates – eu considero o máximo, mesmo que tenha algumas ressalvas. Elegante, cínico, ácido, afiado. Para aqueles dias em que você precisa abalar numa balada.”



“Queria algo mais calmo...”

“Hum, mais calmo... aqui... vai ser complicado... mas, deixe-me ver... Que tal, então, algo completamente diferente do de sempre? Que tal um santo Agostinho? Hein? Se não, se achar muito radical, ao menos um escolástico? E aí não temos como fugir: teria que ser são Tomás de Aquino. Hein, que tal? Dão sempre segurança, certeza, verdades, um porto para atracar quando o mar tá tão revolto. Sai muito, sabia? Por mais que, hoje, eles tenham ficado fora de moda, que as pessoas, em geral, não falem muito deles, ainda circulam bem. E, eu acrescentaria: acho que tendem a crescer mais. Aliás, o que acha de Kierkegaard? Segurança, quase contemporâneo, quase vintage. É cool ser retrô, hoje em dia.”

“Acho que não dá... Me disseram que há um problema grave com eles...”

“Que problema?”

“Um problema grave... íntimo...”

“Ah, a impotência? Bem, é verdade. Eles não são muito, assim, potentes. E você, que vem de Nietzsche... é melhor não, mesmo.”

“Descartes, me falaram que Descartes é legal.”

“Hum... eu acho que é muito... como direi... cerebral. Você vai ficar lá, parado, viajando, pensando, dentro da sua cabeça, e não vai fazer nada mais, e se esquece que há um mundo aí fora.” [Silêncio.] “Já sei: Kant!”

“Quem?”

“Kant. Ele vai te mostrar o que você sabe – e o que você não pode saber. E a partir daí, vai ficar muito claro para você o que é categoricamente imperativo.”

“Pô, gostei, hein.”

“Só tem um problema.”

“Qual?”

“Ele é muito crítico.”

“Voltamos à estaca zero.”

Toca o telefone. Beto se levanta.

“Niltinho, dá um minuto? Fica aqui com o cardápio, que eu já volto.”

Nilton começa a ler. Apesar de falastrão, Beto era totalmente organizado. Parecia que Nilton estava fora do país. Galileu: Corpo científico, notas de empirismo, leve traço de experiências em geral, ceticismo profundo, e alto grau de dificuldade em lidar com questões ligadas à autoridade. Heidegger: sentimentos controversos com relação a instituições infinitamente deploráveis, sensação de retorno a um passado remoto, mergulho em busca incessante pelo Ser, raspas do tacho da metafísica, pensamentos autorreferentes sobre o pensamento. Possibilidade de bad trip. Marx: sociabilidade extremada, toques revolucionários de... “Não.” Diógenes: aumento de cinismo a níveis pré-pós-modernidade, antissociablidade exagerada, busca em si pelo homem verdadeiro... Volta Beto.

“Niltinho, é isso aqui, não tenho dúvida” – e lhe entrega o pacote.

“Baruch Spinoza” – lê Nilton.

“Isso. Origem na península ibérica – alguns dizem Portugal, outros Espanha, quem vai saber de verdade? – mas desenvolvido na Holanda. Onde é o melhor para se crescer que a Holanda, hein? Foi proibido entre os judeus, era mal-visto pelos cristão, mas era um gente fina. É ter contato com ele e sentir que tudo faz parte do todo.”

“Interessante... Mas, cara... eu não sei bem  o que eu quero...”

“Aí, complica, Niltinho, aí, complica...”

“Faz o seguinte: me vê 200 gramas daquele Nietzsche, 200 desse Baruch, 200 do Diógenes, gostei dele...”

“... Ótimo, Diógenes é pouco conhecido, mas ótimo. Muitas boas histórias...”

“... E 200 do Kant.”

“Faz o seguinte, leva mais 200 do Heráclito, que está saindo muito pouco nesses dias, que eu te faço um abatimento. E você sabe: aqui, tudo é original, direto da fonte. Nada batizado.”

“Demorô.”

domingo, 20 de outubro de 2013

O enforcado

Seguindo a indicação de Dorrit Harazim, n'O Globo de hoje, fui ler o texto de George Orwell, antes de ele se chamar George Orwell [era ainda apenas Eric Blair], intitulado "A hanging". Imperdível. Aqui todo. Um trecho, abaixo:
It is curious, but till that moment I had never realized what it means to destroy a healthy, conscious man. When I saw the prisoner step aside to avoid the puddle, I saw the mystery, the unspeakable wrongness, of cutting a life short when it is in full tide. This man was not dying, he was alive just as we were alive. All the organs of his body were working--bowels digesting food, skin renewing itself, nails growing, tissues forming--all toiling away in solemn foolery. His nails would still be growing when he stood on the drop, when he was falling through the air with a tenth of a second to live. His eyes saw the yellow gravel and the grey walls, and his brain still remembered, foresaw, reasoned--reasoned even about puddles. He and we were a party of men walking together, seeing, hearing, feeling, understanding the same world; and in two minutes, with a sudden snap, one of us would be gone--one mind less, one world less.

sábado, 19 de outubro de 2013

A ginga brasileira em "O drible"

Existe uma possibilidade de explicação totalizante do que-quer-que-seja, como acredita Murilo Filho - e todos, até a sua geração? Provavelmente não. Provavelmente o que podemos fazer é tentar, por meio de uma alegoria, explicar um aspecto qualquer do-que-quer-que-seja e, a partir disso, a partir desse lampejo, dessa faísca, esperar um fogo do saber, que não pode ser contado, comunicado, compartilhado, se alastrar por dentro de si, e repentinamente, sem que se pensasse possível, se sabe, se tem o conhecimento - mesmo que ele não possa ser apreendido dentro da cabeça, porque o apreender seria colocá-lo em palavras, ou seja, englobá-lo, encapsulá-lo, em outras palavras, totalizá-lo, e, aí, se perderia novamente. Apenas se sabe. É carnal, ultrapassa a fronteira do puro racional e se espalha pelo corpo todo.

Por que essa introdução empolada? Para tentar explicar que livro [!], de que tamanho que é "O drible", novo livro de Sérgio Rodrigues - e "pai" do personagem supracitado Murilo Filho, apesar de "pai", neste livro, não ter uma acepção fácil. Sérgio escolhe o futebol para tentar não explicar, porque aí cairíamos na desgraça da totalização, mas "pensar" o Brasil, mais especificamente no século XX, na segunda metade deste século tão estranho. Pensar o Brasil - adentrando alguns dos seus meandros, das suas principais qualidades e mais difíceis defeitos. Que país construímos, como nós nos identificamos, o que vemos, quando olhamos para o espelho.

São dois os personagens principais: Murilo Filho e Murilo Neto, pai e filho, sendo que há um antagonista claro, Peralvo, um personagem que permeia toda a obra e é quase a personificação, quase a humanização do que é o Brasil [se isso fosse possível]: o filho de uma mãe de santo com um europeu, que se cruzaram, não se sabe muito bem como, em uma cidade ínfima no interior de Minas Gerais. Um menino que demora a falar, como um Brasil que demorou a ser visto até como uma terra a ser explorada, e que começa a se comunicar exatamente numa derrota, quando o Brasil perde para o Uruguai em 1950. Traça ali o seu destino: seria jogador de futebol.

O futebol, nesta obra, é mais que um pano de fundo: a linguagem está encharcada dele.
Esse drible do Pelé no Mazurkiewicz é
importantíssimo no livro [ver aqui]
Aparece até mesmo em sua ausência: se Murilo Filho é um cronista esportivo da grande geração brasileira de cronistas que povoou nossas redações, dos anos 1950 até, no máximo, 1990, entre Nelson Rodrigues e Paulo Mendes Campos, para ficar em dois exemplos citados, Murilo Neto ignora o esporte, mas sua fixação com a cultura pop dos anos 1970 é interpretada como um paralelo ao do pai pelo futebol: são colecionadores de lembranças. São arquivistas de emoções passadas. Murilo Filho despreza o filho, desde pequeno, mas ele tenta, de todas as maneiras, chamar a atenção do pai - inclusive, tentando jogar bola. Infrutiferamente.

Esse é o esqueleto da obra. Encarnando esse organismo, está o desbunde de uma geração que se descobria no fim da década de 1950 e início da seguinte, pela primeira vez talvez na vida, talvez na história, livre; o baque e a violência com o golpe de 1964; a repressão que se transformou em uma máquina de sangue, e que acabou não apenas com utopias, mas com vontades e coragens; e os anos anestesiados de 1980, que estávamos aprendendo novamente a escutar nossa voz - talvez ainda não tenhamos aprendido, talvez não aprendamos nunca, talvez aprender seja uma constante que nunca termina. Há a música da bossa nova e o rock brasil. A literatura de Nelson e Machado de Assis. Mas, sobretudo, há o futebol.

O livro mostra o cotidiano das relações entre jogadores, jornalistas, dirigentes inescrupulosos [um certo sr. Miranda, do Vasco], massagistas pais de santo, olheiros, e toda a fauna que gravita em torno, e dentro, das quatro linhas. Narra também partidas épicas em estádios esquecidos, que têm sabor de lenda, em que Peralvo marca dez gols, sozinho, em um único tempo, e é perseguido por matadores ainda dentro do campo. Ou quando Peralvo joga possuído por uma entidade de outro mundo contra Pelé.

Além de todas as possibilidades interpretativas, há ainda a forma: vários estilos e vozes narrativas, que mudam o ponto de vista a toda hora, deixando a leitura mais dinâmica, e quase de acordo com as mudanças do estilo do próprio Murilo Filho [aliás, uma homenagem clara ao Mário Filho, que é, entre outras tantas coisas, autor de "O negro no futebol brasileiro"]. Começa com uma conversa entre pai e filho, sendo que só o pai fala, num tom de diálogo sem resposta, mais ou menos o que acontece em "Grande Sertão: Veredas", passa por um realismo fantástico, em que Peralvo é capaz de enxergar auras e antecipar em cerca de um segundo o mundo - uma grande vantagem para um jogador de futebol -, resvala numa literatura pop, tipo Nick Horby, volta para o diálogo rosiano, e termina num monólogo interior de Murilo Neto. Se isso não bastasse, há um humor entremeando todo o livro, e uma ação que empurra para frente o leitor, e o faz cair no muito conhecido - e pouco experienciado - paradoxo do livro que você não quer que acabe, mas também não quer parar de ler.

O autor, o autor
São diversas passagens que dariam interpretações imensas, que poderiam conjecturar sobre cada um dos elementos, como os seres que são conjurados a Peralvo por sua mãe: Oxóssi, Dom Sebastião, o Judeu Errante, Olorum, Seu Sete, o Enforcado, Joana D'Arc. Todos eles têm explicações prováveis no próprio texto. Todos eles contêm segredos que podem ser desdobrados e que dariam outras histórias.

Até mesmo o que, em uma primeira interpretação, poderia ser visto como o ponto fraco do livro, o suicídio da mãe de Murilo Neto, esposa de Murilo Filho, - já que é um assunto muito distante do ambiente do livro, parecendo gratuito - consegue ter uma explicação, ao fim, que remonta à história de nossa literatura, e que passa, novamente, por Nelson, Machado, de uma maneira bem real por Euclides da Cunha e, o autor não coloca, mas eu acrescentaria, Jorge Amado.

Ao fim, ficamos com a certeza de que Sérgio conseguiu trazer o futebol para explicar a vida, já que o inverso, como Murilo Filho explica, não é possível. "Há entre os dois uma simetria, um descompasso no qual não me surpreenderia que coubesse toda a tragédia da existência." Não poderia ser mais preciso.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

A questão das biografias: uma terceira via

Em vez de tomar partidos, o historiador Ronaldo Vainfas escolheu uma terceira via para se discutir a polêmica das biografias. Tive a sorte de entrevistá-lo, para sair desse FlaxFlu. Um trecho polêmico:
acho que qualquer indivíduo tem o direito de aceitar ou não virar tema de livro. É uma questão de privacidade. O que não pode é aceitar ser biografado e interferir no trabalho do biógrafo para construir uma auto-imagem que lhe convenha. Já no caso dos mortos, acho um absurdo que as famílias se metam nisso. A legislação que delega às famílias, por exemplo, o direito de acesso à documentação pública é um desatino. Pior ainda é processar editoras ou autores que publicam passagens da vida do biografado que, no entender dos parentes, atenta contra a honra e a memória do personagem. No caso da biografia dos personagens contemporâneos já mortos, este problema é tremendo. Se a família do biografado não autoriza ou não facilita a documentação, o livro não sai. Por que isto ocorre? Porque os familiares querem "preservar a memória" edificante do biografado, como se alguém fosse santo, ou então querem tirar proveito financeiro do autor ou da editora.
Mais aqui

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Brasil x Uruguai: o nosso maior clássico

No primeiro - e excepcional - capítulo do novo livro de Sérgio Rodrigues, "O drible" (que será lançado na noite desta quinta-feira no Shopping Leblon), um dos personagens, que ainda não está totalmente exposto, fala sobre uma das cenas mais famosas da Copa de 1970, da Seleção, e, talvez, de toda a história do futebol: o não-gol de Pelé contra o goleiro uruguaio Mazurkiewicz, em que o nosso camisa 10 dá um drible da vaca, deixa passar a bola por um lado do guarda-balisa e chega nela pelo outro e chuta para a meta - mas erra, milimetricamente. Realmente é um lance impressionante [como se pode ver abaixo] - e a narração no livro desse lance não fica muito atrás de sua origem.


O personagem que narra o drible explica o seu fascínio por este momento específico: "Pelé desafiou Deus e perdeu. Imagine se não perdesse. Se não perdesse, nunca mais que a humanidade dormia tranquila. Pelé desafiou Deus e perdeu, mas que desafio soberbo. Esse gol que ele não fez não é só o maior momento da história do Pelé, é também o maior momento da história do futebol."

Ao ler essa frase, e todo o capítulo, fiquei pensando que, talvez, nosso maior adversário, nosso maior rival, não seja a Argentina. A Argentina talvez seja famosa hoje em dia porque teve Maradona, que os nossos vizinhos insistem em dizer que era maior que Pelé. Nossa questão com eles, tendo a sugerir, é mais de aversão, por conta do que nós consideramos como soberba. Todavia, não consigo lembrar um jogo tão importante que tenhamos disputado com eles. Já contra o Uruguai... Há, ao menos para a minha geração, três marcos históricos, três pontos que nós lembramos e somos lembrados sempre, como aqueles em que nós nos construímos. E em todos eles há ligação com o Uruguai.

O primeiro, e o mais óbvio, seria o Maracanazo. O maior estádio do mundo. Um time até então imbatível. Uma torcida de milhares de pessoas. Apenas a necessidade de um empate. E aí...


Esse primeiro momento marca o que foi chamado por Nelson Rodrigues de "complexo de vira-lata", nossa pré-história, aquele momento que nós éramos cidadãos de segunda-classe, nós não éramos nós mesmos. Ainda não tínhamos descoberto nossa brasilidade, nosso jeito de ser e agir. O Maracanazo é quase a demonstração prática de que "não vamos dar certo". Não adianta ser o melhor, temos que ganhar. O 2x1 para eles, de virada, foi, provavelmente, a maior humilhação que nossa seleção tomou.

Já o segundo momento seria exatamente esse jogo nas semifinais da Copa de 1970, o tal "maior momento da história do futebol", como descreve o personagem do Sérgio. É o ápice da superação desse complexo de inferioridade, o momento em que o futebol virou uma das nossas principais características, nossa principal afirmação, nossa identidade. O processo que tinha se iniciado em 1958, com a primeira conquista, chegava ao cume na melhor das copas, vencida pelo melhor dos times. Vencemos a partida contra o Uruguai por 3x1, em um jogo em que Pelé não marcou na copa do México. Não precisava. Já tinha se imortalizado.

Depois de 1970, o Brasil entrou num jejum de títulos mundiais que durou 24 anos. É uma fase de depressão, quase revisitando o momento "vira-lata". Era a ressaca de uma ditadura que aterrorizou os brasileiros de diversas maneiras por 21 anos. Não podíamos mais ser nós mesmos, porque isso era ser contra o que se determinou ser Brasil.

Já na década de 1990, após passar por Sarney e Collor, o Brasil começava a se reerguer. E, para ir para a Copa dos EUA, em 1994, teria que enfrentar, pela última rodada das eliminatórias exatamente ele, o nosso maior adversário, Uruguai, em uma outra oportunidade. Mas por que esse jogo deve figurar como um dos mais importantes do Brasil de todos os tempos? Talvez não seja exatamente um clássico no mesmo nível dos anteriores, já que, para começar, nem de Copa era. Mas para mim, para a minha geração, esse jogo representou exatamente a volta da esperança. Uma ideia de que podíamos, de novo, ganhar uma copa, não era mais algo tão inacreditável.


Além disso, esse jogo "final" foi aquele em que Romário, finalmente, tinha sido convocado para a seleção, após uma campanha imensa que só faltou o presidente Itamar Franco se meter. Foi o jogo que fez Parreira aceitar que Romário era imprescindível. Que ele era um supercraque indiscutível. E foi importante para ele, Romário, mostrar para o técnico que não era tão indisciplinado, como sua fama o anunciava.

A partida foi eletrizante. Para os brasileiros, principalmente. Foi o típico jogo de um time só. Era ataque contra defesa. Nossa superioridade, nossa vontade, não deixaram o drama de 43 anos antes se instalar novamente no Maracanã. Romário também contribuiu. Sempre foi um perigo, conseguindo meter uma bola no travessão logo de cara. Mas o gol, apesar da grande pressão brasileira, não saiu no primeiro tempo.

Na metade final, o gol ainda fez um pouco de doce. Mas era questão de tempo, mesmo. E saiu numa jogada que, apesar dos oficiais 1,68 m de Romário, acontecia com razoável frequência: um gol de cabeça do Baixinho. Por fim, para fechar o caixão, uma jogada que, por uma dessas coincidências que o Deus do futebol gosta de aprontar, lembra bastante o de Pelé, 23 anos antes.

Romário é lançado e sai correndo. Está cara a cara com o goleiro Siboldi, exatamente como Pelé estava com Mazurkiewicz no México. Romário joga o corpo para dar o drible da vaca, assim como Pelé havia feito, mas, 23 anos depois, o guarda-metas uruguaio já esperava essa reação e vai se encaminhando para, esquecendo a bola, fazer a falta no atacante brasileiro; Romário, por sua vez, também, já esperava a reação à sua ação, e consegue entortar o corpo para o lado oposto de onde tinha ameaçado primeiramente ir e, em vez de fazer o drible em que ele passa por um lado e a bola pelo outro do arqueiro, decide continuar seguindo a bola, driblando o goleiro pela obviedade. Assim, ele alcança a bola e, diferentemente de Pelé, faz o gol.

Poderíamos gastar páginas e mais páginas sobre a discussão do que é mais importante, o drible ou o gol. Se foi mais importante Romário ter feito um lance menos bonito, mas mais eficiente, ou a jogada Pelé foi tão perfeita que ele quase errou ao fim, só para dar um caráter de incompletude, mais ou menos como Michelangelo afirmava sobre suas esculturas que ele deixava sem terminar. Melhor que essa discussão quantitativa, é pensar como a história de um lance pôde enriquecer o outro e que, sem querer comparar os gênios da bola, estamos falando de jogadores fora-de-série, que conseguiam tomar decisões em milissegundos, "tão rápidas são essas operações mentais, chamamos de instinto", como escreve Sérgio, via seu personagem, no livro. Um privilégio para nós brasileiros que ambos tenham vestido a Canarinho.

Em nosso principal clássico, portanto, nos jogos mais marcantes - para mim - estamos vencendo. De 2 x 1. Nesse caso, porém, o juiz nunca vai apitar o fim da partida.

Buraco existencial

O consultório pareceria comum para quem não fosse muito detalhista. Não era o caso de Mário. Um grande sofá dividido entre pessoas com cara de poucos amigos. Um quadro na parede de uma gravura com um anjo apoiando o rosto na mão e olhando para o horizonte. Uma atendente atrás da mesa que parecia entediada. Um atraso de horas para ser atendido. Mas as semelhanças acabavam no primeiro parágrafo.



Se dizem que o psicólogo é aquele que observa os homens que observam a mulher bonita que passa, Mário era aquele que observava o psicólogo, os homens que observam a mulher bonita que passa e certamente a mulher bonita que passa. Não era muito de falar, mas compensava essa sua falha moderna por um olhar muito atento ao que existia ao seu redor. Ele começou a notar alguns ruídos nesse cenário tão familiar. Primeiro, a atendente não estava se lixando as unhas. Ou lendo alguma revista de fofoca. Sua cara de tédio era acompanhada da leitura de um livro – ele conseguia vislumbrar. Ela estava segurando o livro de uma maneira que ele não conseguia enxergar o título até que... ela mudou de página e ele percebeu que era um desses novos autores gringos que são incensados como a grande novidade e que ele, ao tentar lê-los, percebe que a insônia é pretensão de quem fica querendo parecer preocupado.

Outro detalhe intrigante foi o cesto de revistas. Para começar, não era de vime. E, novamente, nada de fofocas, nem publicações semanais da direita, que não diz seu nome. Havia “Piauí”, “Bravo” [a última edição, inclusive] e até, perdida, um exemplar de “Revista de História da Biblioteca Nacional”. Na capa, “Sexo e poder no Brasil”. Olhou ao seu redor, assustado. As pessoas – os doentes, os pacientes – não pareciam estar muito confortáveis naquele ambiente – pudera, ninguém fica, mesmo, satisfeito de visitar um médico. Mas elas também liam as revistas. Mário trocou a perna cruzada e começou a acariciar a própria barba.

Perdido em suas confabulações – ele também era conhecido por se desligar da realidade e mergulhar completamente em pensamentos que o levavam para lugares muito distantes – ele não percebeu quando o seu nome foi chamado pela atendente: “Mário Arruda? Mário Arruda?” Só despertou quando o paciente que estava sendo atendido passou na sua frente. Era muito ruído para um momento único e nem Mário, o desligado, conseguiu passar incólume. “Sim?”, responde ele, como se não soubesse o que estava fazendo ali. À sua frente, está a atendente, uma moça morena, de quase 40 anos, um pouco roliça demais, com cara de tédio ainda maior que quando lia o livro, apontando o consultório: “Você pode entrar, já.” – Cara-de-pau, ele pensa, ao ouvir o “já”, mas não diz nada – “Obrigado”, responde.

O consultório, em si, não tinha, igualmente, nada demais – mesmo. Mário ficou esquadrinhando, para tentar enfim descobrir algo que o denunciasse como um charlatão para o conselho médico, algo como um livro de Eduardo Galeano, uma reprodução do Diego Rivera ou um CD do Ibrahim Ferrer. Nada. Era tudo feito na cor branco-médico, o mais clean possível. Sobre a mesa, um corpo humano de brinquedo, em miniatura, que lhe lembrou Eva, a mulher gigante, que existia nos parques de diversão de sua infância. Um relógio. Um computador. Um receituário. Uma tampa de vidro. Uma mesa de madeira escura, meio vagabunda, que destoava completamente do ambiente. Um médico, atrás da mesa, forçando um sorriso para tentar ser cordial. Estranho, muito estranho.



“Pois não?” – o médico estava ali tentando criar o primeiro contato, a primeira esfera de intimidade.

“Bem, doutor Ernesto, eu... eu nem sei bem por onde começar...”

“Comece pelo início.”

Mário dá uma olhada para ele, quase de reprovação, mas o médico parecia que tinha falado a frase anterior com a maior espontaneidade que possuía. Mário resolveu relevar.

“É que... está doendo tudo.” Ficou em silêncio, como se isso já resolvesse sua questão, como se, então, a partir de então, o médico já soubesse o que deveria fazer.

“Doendo tudo...?” – ele faz um movimento com as mãos como se mostrasse o quanto essa frase não queria dizer absolutamente nada. “Você poderia ser mais específico?”

“Dói tudo. Às vezes é aqui” – e aponta para o estômago – “Uma acidez que não tem tamanho. Queima tudo, tudo. Como se eu tivesse engolido Nero ainda vivo, na sua fase mais piromaníaca, ou simplesmente comido duas pimentas Jalapeño no café da manhã.”

“Sei”, diz, enigmaticamente, o doutor, anotando algo em seu bloco. Quando Mário fica em silêncio, ele o incentiva: “O que mais?”

“Em outras vezes eu fico sem respiração. Sem ar, como dizem. Tento puxar o ar e é como se eu não tivesse força para isso. Ou como se não houvesse mais ar no mundo. Como se eu estivesse vivendo constantemente numa estação espacial, sem os privilégios de poder flutuar ou a pressurização constante.”

“Entendi” – agora ele já olha diretamente para Mário. “Só isso?”

“Não. Tem aqui, também” e aponta para o meio do peito. “Em alguns momentos, o meu coração parece disparar como se fosse o cavalo do J. Ricardo em dia de Grande Prêmio. Em outros, parece que é a reencarnação de Macunaíma e fica dizendo apenas ‘Ai, que preguiça’, de tão lento. Não se decide. E eu vou para cima e para baixo, sem qualquer aviso, como se eu trafegasse normalmente numa montanha-russa e epiléptica como Dostoiévski à guisa de vida.”

O médico voltou a escrever: “À guisa de vida... OK. Vamos dar uma olhada?”

Os dois vão para a maca, que fica ao lado da mesa, mas com uma divisória de hospital improvisada para dar mais privacidade para os pacientes. “Alguma coisa a mais?” – pergunta enquanto Mário está se deitando.

“Tiro a camisa?”

“Pode tirar.”

Um silêncio, antes que Mário continuasse.

“E uma tristeza imensa. Uma vontade de fazer nada. Um apenas quero ligar a TV e ficar mudando de canal a cada cinco segundos.”

O médico dá umas pancadas com os dedos no abdômen de Mário. Faz um “hum” que ecoa por alguns segundos. Ausculta o coração. Pede para respirar fundo e, antes dele expelir o ar, já está pedindo para inspirar novamente, e fica meio confuso – é para inspirar fundo ou o mínimo? Diz outro “hum”. Olha as pupilas. “Hum.” Pede para abrir a boca e usa um palito de sorvete. “Hum.” Coloca uma luz no ouvido. Tira pressão. “Hum.” Vê os reflexos dos joelhos – quase nulos em alguns momentos, chutes dignos do Roberto Carlos – o jogador – em outros. “Hum.”

“Tá ok. Pode vestir a camisa”, diz, enquanto volta para a sua mesa.

Mário demora 36 segundos a mais e volta em seguida.

“Buraco existencial”, diz o doutor, à queima-roupa, antes que Mário pudesse se sentar confortavelmente.

“Oi?”

“Isso, buraco existencial. Você sofre do que chamamos de ‘a crise do buraco existencial’.”

“Mas... o que é isso? Tem cura?”

“É uma doença crônica, que existe há muito tempo. Hipócrates nunca falou sobre isso porque, acreditamos, ele também sofreu do problema. Mas vemos essa síndrome – é uma síndrome – aparecer de tempos em tempos, com mais ou menos intensidade. Há picos em momentos de grande agitação, de grande insegurança, de grandes acontecimentos.”

“Então, não tem cura?”

“Eu percebi logo que era isso na hora que eu bati no seu abdômen. Percebi um som oco, típico da ausência de algo que deveria estar ali e não estava. Isso acarreta exatamente os sintomas que você tem apresentado. Na ausência da existência, o baço acaba produzindo a bílis negra, fria e seca, e que controla o humor melancólico. Quando você falou que ficava desanimado ao mesmo tempo que inquieto, achei tudo muito complexo. Indicava que poderia ser isso. Mas quando ouvi a ausência, soube que faltava aí uma existência. O baço está nitidamente sobrecarregado.”



”Doutor? E a cura?”

“Não se inquiete. É possível conviver com esse problema. Ninguém até hoje...”

“Cura, doutor Ernesto? Há cura?”

“Não. Quer dizer. Há tratamentos.”

“Que tipo de tratamento?”

 “O transplante de existência.”

“Como assim?”

“Bem, geralmente se pega um homem ou mulher – até agora, o mais comum, até por questões históricas, foi aparecer mais em homem, mas isso é uma tendência que não se confirma mais – bem, se pega um homem ou mulher e você tira um pedaço da existência deles e transplanta para o paciente que sofre de Buraco da existência. O bom é que, assim como o fígado, a existência cresce sozinha, se se adaptar bem ao novo hospedeiro. Assim, dá para transplantar uma existência para várias pessoas. O procedimento é até razoavelmente comum. Mas pode acarretar em alguns efeitos colaterais.”

“Efeitos colaterais? Tipo o quê?”

“Bem, com a existência de outra pessoa, você acaba sem a própria falta de existência, que era a sua existência, de alguma maneira, entende?”

“Mais ou menos. Estou confuso.”

“Bem. É confuso mesmo. Imagine que o Buraco da existência seja a sua forma de existir. Se você preencher esse buraco, você não é mais você.”

“Mas eu sou, então, um buraco?”

“Eu prefiro o verbo ‘estar’. Você está em um buraco.”

Mário se encosta na cadeira. O diagnóstico era, de certa forma, pior que o câncer. Ao menos, com o câncer ele teria alguma coisa. Coisa demais, aliás. No caso, faltava algo a ele. E não era como não ter o rim, por exemplo, que você normalmente tem dois e um pode compensar o outro. Era a própria existência que lhe tinha escolhido como incapaz de recebê-lo, a si próprio.

“Vamos fazer o seguinte”, disse o médico, “Vou lhe passar um remédio, paliativo, para este momento. Vamos marcar um segundo encontro, daqui a uma semana. E aí, você pensa melhor sobre o transplante. Temos ótimas existências no mercado, hoje em dia. Você pode escolher entre várias profissões e ideais. De esportistas, engenheiros, artistas, médicos, por que não?, políticos, advogados, arquitetos - empresário, empresário tá saindo bem. As opções vão de anarquistas a neoliberais.”

“Mercado?”

“Sim, infelizmente isso tem um custo e nenhum plano de saúde cobre. Infelizmente.” – O médico entrega a Mário uma receita em que ele pôde enxergar escrito “Sentidorol  - gotas – 30, pela manhã, ao acordar”. Mário se levanta e vai em direção a porta, em silêncio, atordoado. O médico o acompanha, segura a maçaneta e, antes de abrir a porta, lhe diz:

“Não é o fim do mundo. Você, afinal, existe.”

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Antidepressivos: a força

Desde que a lei n. 13.564 entrou em vigor, há duas semanas, já foram retirados de circulação 565 deprimidos em todo o país, segundo dados oficiais do governo federal. Tudo para cumprir a meta do novo presidente da República que batalhou pela sua concretização, para colocar em prática seu slogan que diz que país feliz é país sem deprimidos.  Desde então, a depressão, vista há muito como um problema de saúde pública do mundo contemporâneo, e que atinge um número cada vez maior de pessoas, está sendo tratada como uma contravenção penal, como é, por exemplo, o jogo do bicho.

O doente é retirado do convívio social e isolado em um dos 20 resorts por todo o país que foram desapropriados no início do ano e, após leilões em lote, concedidos para iniciativa privada em esquema PPP. Eles são classificados em quatro estilos (beach, jungle, country, adventure) para atender as demandas do programa. Nesses rebatizados e remodelados centros de tratamento, os doentes são submetidos a sessões ininterruptas do que se convencionou chamar de “alegria e felicidade”, acompanhados de médicos, psicólogos, líderes religiosos e psiquiatras, além de profissionais mais especializados, como animadores, dançarinos e recreadores, que ministram as sessões em questão. Como pena, os detidos são obrigados a passar por diversas atividades que incentivem a interação social.



Claro que a medida não passou a vigorar sem polêmica. Os maiores críticos da proposta são os ex-donos dos resorts, que ganharam uma indenização que eles chamam de simbólicas. E não adiantou o governo tentar explicar que era uma medida em caráter de urgência, de saúde pública, que tinha impacto em todo o país, e que beneficiaria diretamente, segundo as contas dos ministérios da Saúde e da Justiça, as cerca de 13 milhões de pessoas que são diagnosticados como deprimidos – isso, sem contar com os beneficiados indiretos. A associação que representa os ex-donos de resort já informou que vai entrar na justiça para reaver os imóveis ou, ao menos, aumentar os valores passados.

A indústria farmacêutica foi outra que também apresentou queixa para a central que está coordenando todas as ações. Como, pelos critérios estabelecidos pela lei, quem tomar antidepressivo deve ser levado para uma dessas detenções, começou a circular um mercado ainda mais negro que o anterior de medicamentos de tarja preta. Estão acontecendo adulterações e fabricações caseiras de remédios – o que é proibido por lei (outra lei). A lei, argumenta a indústria farmacêutica, é muito dura: em um de seus artigos, é considerado contraventor quem tomar frequentemente – mais de três vezes na semana – qualquer tipo de remédio para dormir.

E não adiantou o governo fazer campanha em todas as mídias, mostrando imagens de todos os deprimidos se “divertindo” [termo usado] nos resorts-prisão: aprendendo a surfar [na versão beach], usando arco e flecha [na versão adventure], andando de cavalo [nos country], praticando arvorismo [na jungle] etc.. Sempre haverá reclamações de que os deprimidos não estão autorizados a sair do local e que são obrigados a passsar pela “diversão”. Pais e familiares de alguns internos costumam de dizer que, mesmo com o esforço do governo, os deprimidos não se “divertem”.

O dia a dia de um deprimido nesses lugares é agitado. Não há muito rotina, exatamente porque rotina faz parte de um cotidiano considerado pelos critérios do programa de reabilitação apresentado como “chato”. A única regra portanto é: não se pode parar quieto. Eles têm exatas oito horas de sono, em um quarto coletivo – porque não é permitido também o isolamento. Nas 16 horas que ficam acordados, são obrigados a participar das sessões de “alegria e felicidade”. Todas as atividades são ao ar livre, com a exceção de quando chove – aí, vão a lugares o mais distante possível da chuva, para que ela não contamine os doentes. Também são incentivadas a prática religiosa, mas sempre das igrejas cadastradas, que recebem o selo de “animação”, fornecido pelo Ministério do Esporte e Religião.


Não é permitido, porém, ao deprimido enquanto em tratamento ficar em nenhum momento consigo mesmo, seja rezando, orando, meditando, refletindo, pensando, imaginando, ou mesmo praticando atividades solitárias ou que requerem alguma concentração, como ler ou jogar xadrez, por exemplo.

São feitas festas durante todo o dia, de diferentes tipos, para que o deprimido possa ter opções variadas e nunca se entediar, mas há certas tendências, que já podem ser mapeadas. Nas praias do Nordeste, há bastante axé e forró eletrônico. No Sul, rock. São Paulo, capital e interior, sertanejo universitário. Rio, pagode. São músicas leves, felizes, animadas, que têm a intenção de, segundo os criadores do programa, “levantar o astral”.

Infelizmente, já houve óbitos nos centros de detenção. Em alguns resorts de praia, apesar do número não ser oficial, houve ao menos cinco afogados. Especula-se que tenham sido casos de deprimidos que tentaram escapar dos resorts. Em um resort adventure, houve um caso de morte no tobogã: a menina de 19 anos F. G. quebrou o pescoço na descida. Na Jungle, um garoto conseguiu fugir para o meio da floresta, mas acabou morrendo, ao ficar perdido. Na Country, um rapaz morreu em um acidente com a corda do arreio dos cavalos, que se enrolou no pescoço dele.


Mesmo com a polêmica, o governo informou que vai continuar a investir no programa de recuperação. O presidente disse que quer que o país seja o primeiro do mundo a erradicar essa doença epidêmica, acabando com a proliferação e a contaminação dos casos. Para isso, o presidente, e seu grupo de assessores, estuda inclusive modificar o tratamento de água para acrescentar, além de flúor e cloro, uma dose de antidepressivo também.

O que querem os Black Blocs?

Capa de "O Globo" de hoje: polícia diz que manifestação ontem no Centro do Rio de Janeiro tinha 7 mil participantes. Sindicato dos professores contou 100 mil.

Além de demonstrar pontapés homéricos de ambos os lados e um serviço de propaganda disfarçada que quase nos deixa na curiosa situação de fazer uma média aritmética [havia, então, 53,5 mil manifestantes], a contagem de público - já um clássico da polêmica há gerações - serve também como metáfora da forma como nós estamos encarando as manifestações deste estranho 2013. Exageros para ambos os lados. Ao chutes. Um brincadeira de polícia & bandido em que os sinais estão trocados: a polícia é que é ruim. Como se cada um dos lados usasse o outro para justificar seus atos extremos.


Agora, isso aqui de cima - registrado ontem, na Rua de Santana, não pode acontecer. Parece que o policial vai preso

Quero sugerir uma hipótese: acreditar, teoricamente, em um dos lado, sem censuras. Quero ver aonde isso nos leva. Escolho o lado da polícia-bandida-governo-mídias-tradicionais: os protestos são sempre pacíficos, mas há um grupo de mascarados infiltrados que praticam atos de vandalismo, quebrando patrimônio público e privado [essa frase, ou variações muito sutis dela, está em praticamente todos os vídeos dos telejornais da Globo sobre os protestos a que eu assisti].

Comecemos: há, então, vândalos - essa categoria estranha, amorfa. Gente que quer causar a destruição parcial ou total de algo. Gente que quer enfrentar a polícia. Mas, aqui, já, me surgem problemas - e que eu acho estranhíssimo que não surjam para ninguém mais. Eu começo a me perguntar: por quê? Por que eles querem causar a destruição? Por que eles querem enfrentar a polícia? Por quê? Ninguém se faz essas perguntas?

Vamos começar a especular, a partir do que é possível um sujeito mediano ter lido. Não é curioso que não tenha havido qualquer estrago ao Theatro Municipal, à Biblioteca Nacional, ou ao Museu Nacional de Belas Artes, que ficam, todos, ao redor da Câmara dos Vereadores, na Cinelândia, epicentro de todas as manifestações, bloco de chegada de todas as passeatas, e foco de todos os protestos? Não é curioso, no mínimo, que os quebra-quebra tenham como alvo prédios simbólicos, como a própria Câmara, ou a Assembleia dos deputados estaduais, ou ainda bancos? Na pior das hipóteses, houve saque em lojas de produtos de consumo: TVs, bolsas, telefones celulares. Mas são casos de muito menor alcance - até mesmo porque as mídias tradicionais não deram tanta atenção a isso, e seria uma ótima pedida para se falar bastante. Não quer representar alguma coisa o fato de os protestos terem começado, lá no já longínquo junho, por conta dos péssimos meios de transporte, os manifestantes mais exaltados tacarem fogo em ônibus?

O que querem, afinal, os tais black blocs? Dizer, aliás, que eles são um grupo uníssono já é errar de primeira. Dizer que eles querem a mesma coisa, idem. Dizer que eles acertam sempre - igualmente. Mas - novamente caio no mesmo problema - por que eles saem de casa, se fantasiam de vingadores mascarados, e enfrentam a polícia que é, nitidamente, mais preparada e covarde que eles? Por que se expor assim, e ainda ter a chance de ir preso? Por quê?

Novamente, vamos às especulações: querem o anarquismo. Querem uma sociedade mais justa. Querem proteger os demais manifestantes. Querem ser uma vanguarda incendiária. São sádicos.

Para todas essas questões, há formas mais inteligentes de tratar o problema - se isso for realmente um problema - do que a que foi tratada até agora. Aumentar a violência contra eles só vai fazer nascer mais black blocs. Veja o caso da repressão violenta [e corrupta] ao crime organizado, que a polícia pratica desde sempre aonde nos levou: uma sociedade ainda mais violenta.

Por que, em vez de apenas negá-los como uma espécie de câncer no tecido tão em funcionamento das manifestações, que basta ser extirpado para que tudo funcione perfeitamente, não tentar entendê-los? Não é descobrir suas reivindicações, porque talvez eles nem as tenham, mas ouvi-los. Descobrir o que os leva a sair de casa, por que eles têm tanta vontade, tanta raiva assim.

De toda forma, há, ao menos, um resultado infinitamente positivo nas atitudes desse "bando de mascarados". Agora, eles é que são o problema. Antes de junho, as manifestações eram vistas - pelos governos, mídia, enfim, o status quo - como um problema em si. Certamente avançamos.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

'El golem' - Jorge Luis Borges

Si (como afirma el griego en el Cratilo)
el nombre es arquetipo de la cosa
en las letras de 'rosa' está la rosa
y todo el Nilo en la palabra 'Nilo'.

Y, hecho de consonantes y vocales,
habrá un terrible Nombre, que la esencia
cifre de Dios y que la Omnipotencia
guarde en letras y sílabas cabales.

Adán y las estrellas lo supieron
en el Jardín. La herrumbre del pecado
(dicen los cabalistas) lo ha borrado
y las generaciones lo perdieron.

Los artificios y el candor del hombre
no tienen fin. Sabemos que hubo un día
en que el pueblo de Dios buscaba el Nombre
en las vigilias de la judería.

No a la manera de otras que una vaga
sombra insinúan en la vaga historia,
aún está verde y viva la memoria
de Judá León, que era rabino en Praga.

Sediento de saber lo que Dios sabe,
Judá León se dio a permutaciones
de letras y a complejas variaciones
y al fin pronunció el Nombre que es la Clave,

la Puerta, el Eco, el Huésped y el Palacio,
sobre un muñeco que con torpes manos
labró, para enseñarle los arcanos
de las Letras, del Tiempo y del Espacio.

El simulacro alzó los soñolientos
párpados y vio formas y colores
que no entendió, perdidos en rumores
y ensayó temerosos movimientos.

Gradualmente se vio (como nosotros)
aprisionado en esta red sonora
de Antes, Después, Ayer, Mientras, Ahora,
Derecha, Izquierda, Yo, Tú, Aquellos, Otros.

(El cabalista que ofició de numen
a la vasta criatura apodó Golem;
estas verdades las refiere Scholem
en un docto lugar de su volumen.)

El rabí le explicaba el universo
"esto es mi pie; esto el tuyo, esto la soga."
y logró, al cabo de años, que el perverso
barriera bien o mal la sinagoga.

Tal vez hubo un error en la grafía
o en la articulación del Sacro Nombre;
a pesar de tan alta hechicería,
no aprendió a hablar el aprendiz de hombre.

Sus ojos, menos de hombre que de perro
y harto menos de perro que de cosa,
seguían al rabí por la dudosa
penumbra de las piezas del encierro.

Algo anormal y tosco hubo en el Golem,
ya que a su paso el gato del rabino
se escondía. (Ese gato no está en Scholem
pero, a través del tiempo, lo adivino.)

Elevando a su Dios manos filiales,
las devociones de su Dios copiaba
o, estúpido y sonriente, se ahuecaba
en cóncavas zalemas orientales.

El rabí lo miraba con ternura
y con algún horror. '¿Cómo' (se dijo)
'pude engendrar este penoso hijo
y la inacción dejé, que es la cordura?'

'¿Por qué di en agregar a la infinita
serie un símbolo más? ¿Por qué a la vana
madeja que en lo eterno se devana,
di otra causa, otro efecto y otra cuita?'

En la hora de angustia y de luz vaga,
en su Golem los ojos detenía.
¿Quién nos dirá las cosas que sentía
Dios, al mirar a su rabino en Praga?

É proibido portar mochila nas costas


Agora é lei. Ou melhor, é lei desde 2011, como diz seu enunciado - que faço questão de repetir: é "Proibido portar mochila nas costas neste elevador - Lei municipal n. 5292 de 11 de julho de 2011". Mas não só os elevadores devem portar esse aviso: "os carros do metrô e os ônibus, os prédios comerciais e de serviços e de uso misto, edificações dos poderes públicos, as lojas de departamento e os shopping-centers deverão fixar cartazes com informação sobre a forma mais correta de se transportar mochilas ou os chamados backpackers". Quem não exibir esse aviso fica sujeito "ao pagamento de multa de R$ 1.000,00 (mil reais)".

Admito que fiquei surpreso com esse aviso no elevador da firma. A primeira reação, talvez mais instintiva de quem se sente sempre oprimido pelo Estado, foi: e quem vai coibir isso? Será que teremos guardas municipais andando nos elevadores para verificar quem está usando - ou não - a mochila no lugar certo Além disso, o caso piora [ou melhora, sei lá] quando se descobre que não há punição prevista em lei - nesta lei, ao menos - para quem descumprir a ordem e andar com mochila nas costas. E aí? O que acontece se eu for flagrado? Também fiquei na dúvida: a minha bolsa é do tipo carteiro: será que ela se encaixa na denominação "mochila ou os chamados backpackers"? Provavelmente não, mas vai dizer isso para o guarda que quer multar.

Depois desse primeiro movimento, caí na realidade: quem ou por que legislamos sobre esse tipo de assunto? Com uma pequena pesquisa na internet, descobri que o assunto já foi comentado por outras pessoas. E que o autor da lei é o ex-vereador Roberto Monteiro [PCdoB], vice na corrida para as próximas eleições presidenciais do Vasco [o que é uma ótima posição a se ocupar no Vasco - por uma questão de lógica, o segundo lugar deveria assumir o cargo no clube]. Mas não há uma linha, no texto de lei, sobre a razão de se legislar sobre este assunto. 

Podemos, então, especular: porque muita gente anda com as mochilas nas costas, em espaços mínimos. Claro. Mas, imaginem: como colocar um guarda - que a lei não prevê - nesse espaço mínimo para coibir a quebra da lei? Lá no da firma, ele não caberia, se viesse na sua versão Darth Vader. Aliás, se é uma lei para ganhar espaço, vão colocar mais um sujeito na cabine para conferir seu cumprimento? Não é o cúmulo do contrassenso? Aliás, a Guarda Municipal pode multar? Não é só a PM?

E, agora sem ironia: por que, realmente, devemos legislar sobre esse assunto? Será que devemos desconfiar, tanto assim, do bom senso dos cidadãos? Nosso povo não era majoritariamente de bem? O que aconteceu com a solidariedade do carioca? Onde está a simpatia, a bem-aventurança, o savoir-vivre daquele que pega qualquer transporte em público diariamente? Deve ter se perdido no primeiro ônibus, metrô ou trem lotado.

Por fim caí em mim ao perceber que a Câmara dos Vereadores da segunda maior cidade do país existe exatamente para isso: para criar leis inúteis, que não podem ser aplicadas, ou para fazer homenagens a figuras esdrúxulas, ou inventar datas em homenagem ao combate aos ratos - entre outros dias importantes do nosso calendário. Ou para aprovar, sem qualquer tipo de discussão, os projetos encaminhados pelo excelentíssimo senhor prefeito.

Alguém falou em crise na educação, aí? Ou CPI dos transportes?