quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Joyce e Nietzsche

Ainda no primeiro capítulo de "Ulysses", que ficou apelidado de "Telemachus" pela sua correspondência com a "Odisseia", há algumas citações a Nietzsche. Curiosamente. Porque não há [para os leigos, entre os quais me incluo] uma ligação direta entre Joyce e o pensador alemão. Geralmente associam o escritor irlandês a Vico, e só.

Uma das citações é curiosa exatamente porque reproduz um raciocínio comum no início do século XX, quando a obra foi escrita, e muito em voga ainda hoje, por conta, acredito, da ligação da irmã de Nietzsche com o nazismo. A de que Nietzsche queria propor que os "super-homens" se aproveitassem dos "homens-demasiadamente-humanos". O que, na minha interpretação, nunca foi verdade.

Stephen Dedalus, alter ego de Joyce, entretanto, é dos que, aparentemente, não viam essa relação entre dominantes e dominados. Quando Buck Mulligan, seu "amigo", rico, com quem divide a casa nas Martello towers, pede a ele "twopence [...] for a pint", como se o explorasse, Dedalus responde cheio de humor, cheio de wit com uma frase, e duas paráfrases:

" - He who stealeth from the poor lendeth to the Lord - Thus spake Zarathustra" [na minha edição eletrônica, página 18].

As Martello Towers realmente existem, como,
aliás, várias outras partes citadas no livro

[A primeira paráfrase é a citação à passagem bíblica dos Provérbios, 19:17: "He that hath pity upon the poor lendeth unto the Lord", que pode ser traduzida como "Aquele que tem pena do pobre empresta ao Senhor"; e a segunda, a obra mais conhecida de Nietzsche.]

***

Comecei a ler "Ulysses". A partir de agora, vou tentar postar textos sobre a obra para registrar a tentativa de completar essa... odisseia. Estou contando com o apoio de dois livros, além do dicionário de inglês do próprio leitor-digital: o glossário-enciclopédico "Ulysses annotated - notes from James Joyce's Ulysses", de Don Gifford, com Robert J. Seidman; e, como o nome indica, o guia "The new Bloomsday book - a guide through Ulysses", de Harry Blamires. Essa combinação de fontes me faz crer que esse formato poderia ser o ensinado às "novas gerações leem". É mais horizontal, correlacional, ligado, se utilizando de diversos livros e fontes ao mesmo tempo, além de fazer anotações, marcando as passagens que mais interessam.

Espero, com isso, não afugentar os meus dois únicos leitores.

Dia D, de Drummond

Como eu já escrevi, e reescrevi, sobre o meu poema preferido de Drummond, deixo uma outra homenagem singela a nosso poeta-mor, em seu Dia D.

A indiferença em nossos tempos

Algumas pessoas são assertivas, seguras de suas ações quando se trata de questões idealistas:

- sabem que não se deve dar dinheiro para o mendigo. Têm sempre uma resposta-pronta para usar nessa hora. Dizem que isso só atrapalha, que o melhor é ensinar a pescar, não dar o peixe. O mesmo argumento, inclusive, é usado para os casos das bolsas governamentais.

- falam que participar de qualquer tipo de "corrente" [ainda se usa "corrente"? ou eu deveria atualizar o termo para "meme"?] nas redes sociais, como a que tentava alertar para os problemas enfrentados pelos índios Guarani-Kaiowá, não ajuda em nada os envolvidos diretamente no problema. Em geral, generalizam todos os casos e os chamam de ativistas de sofá, o que fora do Brasil se chama slacktivism [algo como "ativismo preguiçoso"].

Em ambos os casos, a resposta é via de regra uma só: essas atitudes aliviam a tensão e a culpa [católica*] de quem a pratica. Não é em nenhum momento, ou relativamente é muito pouco, benéfica a quem a recebe.

Normalmente quem critica quem participa dessas ondas-internéticas também não ajuda diretamente aos necessitados.

Outras pessoas são práticas:

- "é tudo igual", é a resposta padrão de quem comenta algo sobre política, principalmente quando aparece informação ligando um partido ou um político que era visto como sério a um escândalo de corrupção. Às vezes isso acontece mesmo quando não há corrupção. Às vezes, isso acontece apenas quando o partido/político apenas quer exercer o seu dever de conversar com todos os espectros políticos que o cercam. O julgamento é imediato.

Claro que estou falando sobre o caso do prefeito de Macapá, do
Psol, que falou que vai conversar com o senador Sarney.

Em todos os casos apresentados, me sinto estranho, fora do meu tempo. Talvez idealista. Eu não sei ao certo se não dar o dinheiro para o mendigo é o melhor para resolver o problema, imediato. Eu também concordo, e não teria como não concordar, que o melhor seria ensinar a pescar, dar independência a essa pessoa. Mas... e naquela hora? Se a situação é extrema as atitudes não devem ser mais maleáveis? Ou devemos tentar ensinar alguém a pescar, mesmo que ela esteja em estado de inanição, ou completamente perdido?

No segundo caso, há muita discussão sobre esse ativismo de sofá. Gente pró e pró e contra e contra, como manda uma sociedade multifacetada. Nesse caso, os formatos como os grupos pró [um infográfico e um blog] e contra [dois artigos] se posicionam mostram bastante sobre como esse pode ser, também, uma questão geracional. Também essas críticas ao tal sofativista me leva à pergunta: é melhor fazer nada a fazer pouco?

Por fim, o terceiro caso, me faz pensar que esse raciocínio serve, muitas vezes, como uma desculpa pessoal,  para as opções mais pragmáticas, ou um apequenamento político: se todos são iguais, votarei naquele que é melhor para mim, pessoalmente, sem pensar no bem coletivo. É desmerecer a política, no que ela tem de melhor, que é a tentativa de pensar o todo, não as partes.

A indiferença, que às vezes esbarra no cinismo, às vezes na frieza, e outras no orgulho, é, a meu ver, o resultado de decepções, muitas vezes, por anos de crença ideais fracassados, por muito tempo sentido como desperdiçado, ao se tentar fazer algo para "mudar a realidade". Geralmente, essa atitude vem com justificativas: "eu já fiz muito. Eu já tentei. Eu já participei de não sei quantas manifestações. Manifestações de verdade. Já levei cassetada de policial, já respirei muito gás lacrimogênio. Para quê? Para os mesmos políticos corruptos continuarem onde estão." É verdade. É difícil manter a "esperança" quando parece que no Brasil tudo muda para ficar igual.

Mas, por outro lado, fico imaginando que essa "crença", essa esperança depositada em uma mudança radical, essa ruptura ao passado, é algo quase messiânico. Querem uma revolução, uma mudança completa do status quo, de uma hora para outra. Quase imposta. Como se repentinamente um grande messias aparecesse e, vupt!, tudo mudasse. Talvez se esqueçam, ou ignorem, que, enquanto estivermos em uma democracia, as mudanças serão lentas, graduais e constantes. Não necessariamente para melhor, não necessariamente para pior. Porque enquanto você quer virar para a esquerda, outras trocentas pessoas querem embicar à direita. E, assim, há a necessidade de negociações, de se aceitar as outras vozes. Porque, quem disse que você é o certo e dono das verdades para resolver todas as questões? Grandes transformações, grandes mudanças só acontecem, fora do âmbito religioso, em uma ditadura. E, como aprendemos nas nossas duas experiências do século XX, elas não funcionam muito bem.


* os termos "culpa" e "católica" hoje são quase sempre unidos, como se não existisse culpa sem ser a católica.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Arquivo brasileiro na Inglaterra

Dois Pedros I. O primeiro está sentido, machucado, confuso. O pedaço de papel ordinário data de 22 de maio de 1828, pouco depois da morte da sua primeira esposa, a imperatriz Leopoldina. A letra é trêmula, nervosa, quase indecifrável – mesmo para paleógrafos. Pede à marquesa de Santos que saia da cidade. Explica que é pelo “bem do meu negócio do casamento”, do novo, em vista. Seu raciocínio, assim como a caligrafia, não é claro. Roga que ela “não ouça conselhos” de quem quer “a perdição”, que “faça o que lhe digo pois lhe falo sério e como quem lhe [tem] amizade e lhe tem [indecifrável] afeição”. 
O outro, de cerca de um ano mais tarde, é um Pedro seguro, diplomata, estadista. Mas ainda assim emotivo, destilando uma raiva latente a cada parágrafo. Tenta convencer seu interlocutor por meio de argumentos cordiais, em vez de usar a razão, cartesiana. A letra é claríssima, calma. O tom, quase fraterno. Uma conversa entre amigos – entre “irmão e primo”, como nota o cabeçalho. Desta vez, o papel é oficial, a carta ainda conserva a cera do selo real. É dirigida a “sua magestade el rey da Gram-Bretanha e Irlanda do Norte”. Pedro quer a ajuda de George IV para resolver o imbróglio em Portugal. Ele abdicara do trono em favor de sua filha Maria II, mas, como se sabe, Miguel, irmão de Pedro, achou melhor continuar no poder, recusando-se a “publicar e cumprir o meu real decreto de 3 de março de 1828, pelo qual ordenei que aquele reino fosse governado em nome de minha muito amada e querida filha”. 
Ambas as cartas se encontram no arquivo da British Library, a biblioteca nacional britânica, que guarda inúmeros documentos sobre o Brasil. Há papéis e mais papéis sobre diversos momentos de nossa História em que os ingleses tiveram participação direta ou indireta. A vinda da família real portuguesa para o Brasil. A Independência. O tráfico negreiro. A Lei Aberdeen. A questão Christie. E outros menos óbvios, como uma série de documentos chamados de British Guiana Papers, que abordam a Amazônia no início do século XVII. [...]
 Esse é o início de uma reportagem desse que vos escreve na "Revista de História". Além da reportagem, eles publicaram na íntegra essa citada segunda carta de Pedro I, que não era conhecida por dois dos maiores pesquisadores sobre o nosso primeiro imperador. [Ao lado, gravura inglesa de 1849 que mostra um navio negreiro brasileiro interceptado por embarcação inglesa no Atlântico]

O livro total de Guimarães Rosa

Foi Mallarmé [não foi?] quem propôs a procura pelo livro de todos os livros, o livro total, o livro que contivesse todos os demais livros. Borges ampliou a metáfora para uma biblioteca, que continha todos os livros existentes e os que ainda existiriam. Esta busca por um livro dos livros, por mais metafórica e indecisa que a ideia seja, aconteceu desde sempre. Pense n'"As mil e uma noites". No "Quixote".

O livro definitivo que contivesse todas as demais histórias é típica dos grandes clássicos. Pense na "Odisseia", na "Divina comédia". Claro que esses livros não abarcavam "todos os temas" que há, mas como toda obra de arte, elas podem ser reinterpretadas de maneiras infinitas, por cada um de seus leitores. O caso acontece, como não deixaria de ser, com "Grande sertão: veredas".

Como começar a falar sobre a obra-prima de Guimarães Rosa? Qual aspecto merece ser destacado em primeiro lugar como o mais importante? São tantas as formas de abordagens que aparentemente qualquer escolha parece apropriada - e injusta ao mesmo tempo.

"Grande sertão: veredas" pode ser descrito [sem ordem] como: uma discussão sobre gêneros [masculino x feminino]; uma crônica histórica-romantizada dos cangaceiros do norte-nordeste de Minas; um exercício extremo de linguagem; uma abordagem filosófica sobre o meio, sobre os extremos. Só para ficar entre as formas mais simplistas, as primeiras visões. Há ainda temas como política da região, as guerras entre bandos, a relação amistosa entre os cangaceiros etc. etc. etc. Qualquer busca um pouquinho mais aprofundada, vê muito mais interpretações.

Até dois terços da obra, Rosa substitui os assuntos numa velocidade que lembra produções mais recentes [depois, dá uma parada, para preparar o grande final]. Anotar todos os assuntos citados daria um trabalho tão grande quanto escrever um outro livro.

O principal gênero da obra é o épico, e aí, talvez, esteja a resposta de todas as nossas perguntas. Porque dentro do épico todos os temas podem ser acomodados, podem encontrar o seu espaço. Rosa narra a jornada dos jagunços pelo sertão, com várias reviravoltas, que catapultam a ação à frente.

Numa segunda parte do livro, após o julgamento feito pelos próprios jagunços - que eu marco como o meio da obra -, o escritor descreve os personagens desse sertão, os homens tremendamente rústicos, cuja dificuldade na comunicação demonstra como vivem longe do ideal civilizatório ocidental. Como o fazendeiro, de quem Riobaldo, o personagem principal, chega a dizer que tem "uma permanência maior, uma marca mais clara", enquanto os jagunços todos são mais pueris, sem tanta identidade, tanta individualidade. O fazendeiro é único, os jagunços se confundem entre si [apesar de Rosa, por meio de seu narrador-personagem, fazer questão de nomeá-los, um a um, às vezes num exercício até meio enfadonho]. É como um censo dos homens dessa região bem central do Brasil. Um retrato desse sertanejo, que é quase uma metonímia do povo brasileiro, e que tende a ser colocado à parte pelas nossas classes dominantes.

Talvez essa seja a principal marca do livro.

Episódio da minissérie de 1985

'All delighted people', by Sufjan Stevens


Another version, and another.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

'This is water', de David Foster Wallace

Sérgio Rodrigues fala do lançamento do segundo livro de David Foster Wallace no Brasil, que recebeu o título de “Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo”. A obra não é a transposição exata do título americano que tem esse ensaio porque há outros que não estão no original, como o texto escolhido pelo Sérgio, "Isto é água", além de outros que foram lançados em outras coletâneas, como o "Pense na lagosta", um dos meus favoritos até o momento.

Quando eu comecei a ler DFW, o professor de literatura e ex-editor que me o indicou falou que era melhor começar pelas narrativas não-ficcionais, porque elas dariam conta de, se não tudo, bastante da proposta estética de Wallace. Parece que tive sorte, entretanto. O que as pessoas geralmente reclamam dele, ou de escritores como ele, é um dos aspectos que mais gosto. Por exemplo: o excesso de referências, sem qualquer preconceito de origem; as interrupções de raciocínio para se começar outro, que parte daquele primeiro raciocínio para um caminho completamente outro; os parênteses explicativos, contextualizantes; os apostos que se ligam a outros assuntos congêneres; e, principalmente, as notas-de-rodapé. Eu adoro notas-de-rodapé. Talvez seja alguém estranho por conta disso, mas não posso lutar contra isso. Tenho que me admitir como tal.

Este "Isto é água" foi um discurso de paraninfo proferido por Wallace na universidade de Kenyon, em 2005. O que mostra que se pode ainda ter grandes discursos de paraninfo - algo que, me parecia, era bastante raro. E que um discurso de paraninfo pode entrar dentro de uma coletânea de textos, mesmo que sejam todos não-ficcionais, expandindo os formatos da "escrita". Porque, aparentemente, todos os textos de DFW, independentemente das suas origens, compartilhavam da sua ética, que se confundia com a sua estética. Como bem ressalta o Sérgio Rodrigues, ele queria ressensibilizar o "leitor anestesiado por males que parecem estar no ar da sociedade pós-industrial: cinismo, individualismo, narcisismo, hedonismo, irresponsabilidade social."

Abaixo, o áudio, em inglês, da parte 1 do discurso em questão. Se preferir, pode lê-lo também.


Relações familiares entre Portugal e Brasil

[...] de certa forma, os portugueses estão familiarizados com a nossa cultura, seja por causa das novelas ou das músicas brasileiras que tocam no rádio de lá. Eles têm essas referências. Mas nós, não. Estamos mais ligados nos Estados Unidos do que em Portugal. Temos uma certa arrogância e uma postura imperialista em relação a Portugal, o que não deixa de ser irônico. - Fernando Caruso, n'"O Globo" de hoje.
Quando leio declarações dessa maneira, sempre me lembro de todas as gafes que eu cometia em Londres quando, ao fazer qualquer comentário depreciativo em relação aos EUA, ser respondido com uma cara, ora irônica, ora agressiva, ora plácida e sincera de "não entendi". A relação EUA-Reino Unido é muito mais franca, aberta e sem ressentimentos que a nossa com Portugal.

A nossa se parece muito mais com a relação dos britânicos com os indianos, com os caribenhos, com os africanos. O curioso é que, ao se ter contato com vários portugueses, você percebe como somos realmente filhos deles. Ou, como diria Manuel Bandeira, netos. Nós dividimos muito mais que a língua, essa nossa pátria em comum, como diria em outro contexto outro poeta, Fernando Pessoa, na pele de Bernardo Soares. Nós dividimos história, hábitos, comportamentos.

Conversava com uma sommelier portuguesa que reclamava exatamente como os portugueses tinham o hábito de valorizar todos os vinhos importados de França e Itália e ignoravam os produzidos em seu próprio país, mesmo que fossem infinitamente melhores. Não pude sentir uma certa familiaridade com essa posição de achar que o que vem de fora é sempre melhor que o que é produzido dentro.

Talvez a relação entre EUA-Reino Unido seja melhor que a nossa porque eles não tiveram uma postura tão acentuada de desnível de forças, uma relação tão clara do que ficou conhecido como colonizador e colonizado. Eles não guardam rancor e um exemplo disso é a quantidade de vezes que ambos os países se meteram em guerras juntos ao redor do mundo. E como os ingleses até hoje agradecem o fato de os norte-americanos terem entrado na Segunda Guerra Mundial. Provavelmente Londres não teria aguentado muito mais tempo.

Já os brasileiros tendemos a culpar todas as nossas mazelas, todos os nossos problemas histórico-sociais à nossa colonização, basicamente extrativista, sem uma preocupação com o país como um ente à parte, mas sempre ligado à metrópole. Por isso, essa nossa ignorância, esse sentimento de não querer fazer parte é muito parecido ao do filho cujo pai o abandonou ao léu e agora, depois de anos, conseguiu se firmar, progredir, mas, magoado, ressentido, não quer ter qualquer tipo de relação com o pai.

Mal sabemos - ou queremos saber -, nós, os filhos [ou netos] que puxamos muito do comportamento do nosso paí [ou avô]. Negar essa herança é, de certa forma, negar a nós próprios, um pedaço significativo do que nós somos, ou nos tornamos, ou estamos nos tornando. Ao não estarmos satisfeitos com o que somos, tentamos nos espelhar em outros países, que "deram certo", à força. Tentamos nos enfiar em outras famílias, quando na verdade, pertencemos a uma já constituída, com todos os seus defeitos - mas quem não os têm? - e, certamente, qualidades [que tentamos nos apropriar sem olhar suas origens].

Acredito que só pudemos nos entender como um país único, com uma identidade própria, mesmo que miscigenada, ou exatamente por isso, quando nos entendemos de onde viemos, de que terra fomos constituídos, quais são nossas origens. Aceitar nossos constituintes não quer dizer nos orgulhar de tudo o que fizemos, passamos, ou fomos forçados, mas saber, adultamente, que, gostemos ou não, somos assim. Irremediavelmente. E só a partir daí podemos ser nós próprios.

How to be served in a pub



Pete Brown explains how things work in a pub in UK.

domingo, 28 de outubro de 2012

As cervejas de trigo, e de outros cereais

Costumo dizer, por minha pequeníssima experiência acumulada, que a primeira cerveja que as pessoas tomam, a primeira cerveja verdadeira, mesmo, aqui, no Brasil, é uma Weiss. Geralmente, era uma Paulaner ou uma Erdinger, as alemães, já que associamos mais facilmente a cultura alemã com o costume de beber cerveja. Hoje em dia, até já vi tomando similares de nível alto, mas brasileiras. Mas é curioso a opção por essa cerveja.

A brauerei [cervejaria] da Paulaner
Uma outra razão para essa opção, a meu ver, é o fato de as outras duas grandes escolas cervejísticas, a belga e a inglesa, não terem tanta tradição no Brasil. O que não deixa de ser curioso, em se conhecendo a influência que os ingleses tiveram aqui. Talvez, porém, a participação alemã tenha sido mais espraiada, menos imposta, e, por isso, tenha acontecido mais naturalmente. Talvez, tenha havido um gap muito grande entre a verdadeira influência direta inglesa no Brasil e o hábito massificado de se tomar cerveja. Talvez as cervejas inglesas não sejam nada apropriadas para o nosso clima. Tudo isso é especulação.

O fato é que, pelo que eu tenho visto, reparado, quando as pessoas se permitem, pela primeira vez, a tomar uma cerveja diferente, elas optam pela cerveja Weiss. Weiss, branco em alemão, se refere ao tamanho do colarinho, da espuma feita por esse tipo de cerveja, que, como todo mundo sabe, é feita de trigo, ou Weizen, como, aliás, algumas cervejas de trigo são igualmente conhecidas.

Isso também ajuda ao bebedor iniciante. Ela vai saber, de cara, de memória, de vista, que ele bebeu algo diferente. É fácil identificar as diferenças. A weiss é mais turva, por exemplo. Além disso, também colabora o fato de a weiss ser bem mais doce. O paladar menos acostumado vai perceber no primeiro gole essa diferença. Se tiver um pouquinho mais de paciência e curiosidade, já pode, na primeira cerveja da vida, perceber os gostos mais associados ao estilo, que é banana e ameixa. Ou seja, é uma experiência fácil, rápida, e que pode ser completa. Não tem como dar errado.

A weiss é bem diferente em diversos aspectos da cerveja de grande circulação, como já vimos, e a sua fabricação também segue uma outra receita, com fermentos e fermentação respeitando outras regras. Mas o principal, o que realmente marca a diferença entre a weiss e as demais cervejas que conhecemos é, a meu ver, o ingrediente principal. Enquanto a maioria das cervejas usa apenas maltes de cevadas [inúmeros tipos, é verdade, mas ainda assim apenas um produto da cevada], na weiss se coloca também o malte de trigo, que apesar de diversas similaridades com a cevada não é igual. Ou seja, a mudança do ingrediente principal faz com que o resultado final seja completamente outro. Não podia ser diferente.

O que demonstra como uma cerveja feita de arroz ou milho é, da mesma maneira, completamente distante das feitas com maltes de cevada. Mas isso nem precisaria ser dito.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Ranking dos discos do Radiohead

Foto do show no Rio
Doug Moore, do site Stereogum, se propôs uma tarefa ingrata: fazer o ranking dos discos do Radiohead. É certo que vai dar errado. Alguém vai discordar [um amigo argumenta que "nem fudendo o 'Hail to the thief' é melhor que o 'In Rainbows'", no que eu assino embaixo, enquanto outro diz: "pra mim os dois tão no mesmo nível"], alguém vai falar que ele é / está totalmente equivocado. Mas o simples ato de tentar avaliá-los, hoje, um a um, já concretizados, merece respeito, mesmo. Mesmo que seja uma proposta inconclusiva, como essa:

After eight albums, Radiohead may be close to the end of their creative arc. The band has expressed growing (and characteristic!) dissatisfaction with the process of writing and recording albums. Said Yorke during the press cycle for The King Of Limbs: “None of us want to go into that creative hoo-hah of a long-play record again … I mean, it’s just become a real drag.” (Then again, The King Of Limbs concludes with Yorke informing the listener that, ”If you think this is over, then you’re wrong.”)
Mas o que não é inconclusivo no mundo?

[via Tamba.]

Início, meio e fim de 'Deus e o diabo na terra do sol'


Por anos, evitei assistir a "Deus e o diabo na terra do sol" [acima, na íntegra] por puro preconceito contra Glauber Rocha. Como todo preconceito, a probabilidade de ele estar completamente errado é muito grande. Eu esperava uma versão sertaneja de "Terra em transe", filme que veio logo depois na filmografia de Glauber, e que eu acho assim-assim. Estava preparado para um estilo à Godard, de conexões sem muitas explicações, cenas perdidas, pontas soltas. O que eu encontrei foi um filme com cabeça-tronco-e-membros. Todos nos lugares que você espera achar.

Melhor que isso. Um filme que, apesar de todas as dificuldades de produção [algumas cenas de violência envelheceram muito mal], é bastante bonito. A cada cena, aparentemente, havia a preocupação de fazer algo belo, algo que passasse mais que o simples registro de atores. Isso sem contar com a edição, principalmente do famoso - e repetido - encontro entre Corisco e Antônio das Mortes [que elegância de Maurício do Valle!]. E a dinâmica dos personagens, que vão entrando e saindo do filme,  aplicando uma velocidade que pode fazer falta aos filmes desse período [década de 1960].

O roteiro faz uma homenagem às tradições nordestinas do cantador, do cordel. Conta com uma versão histórica-ficcional do Nordeste, de uma época que parece parada no tempo, mas que assusta ao nos lembrarmos que aconteceu apenas há pouco mais de cem anos. Há referência a Antônio Conselheiro, Padre Cícero e outros beatos, vistos como salvadores de um povo sofrido. Há citações do império e de como a república tinha acabado com esse sonho de um típico enviado de Deus na terra. Há a lembrança de que os cangaceiros [como o Corisco acima citado] era uma lei dentro de um lugar sem-lei.

Isso tudo sem qualquer benevolência ou maniqueísmo. Ninguém é só Deus ou só o diabo, apesar das interpretações tentarem colocar o profeta negro Sebastião como "Deus" e Corisco como "diabo". Mesmo que sejam, são representações tortas, perdidas dentro de um espaço isolado, psicologicamente modificados, como se estivessem em uma reação química, pelo sol desta terra. Ninguém é só bom ou mau, como, inclusive, é descrito Lampião: um homem grande, mas que era bem pequeno às vezes. Como é todo homem, aliás.

Glauber, me parece, se apropria de inúmeras referências [não pude deixar de pensar em "Grande Sertão: Veredas" nem de "Os sertões", por exemplo, e que, acado de descobrir, foram referências mesmo], deglute tudo, e as retrabalha para criar um filme, um cinema novo, que pensa o seu [nosso] povo, o seu país. Sem preconceito.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Django Unchained e a catarse coletiva


Além de todas as citações cinematográficas, de todos os diálogos geniais, dos roteiros intrincados, das soluções quase miraculosas, da edição que fez história, da música marcante... Além disso tudo, há um elemento em todos [todos?] filmes de Tarantino: a vingança. Sempre há alguém querendo correr atrás de um grande prejuízo para, por meio de uma catarse violenta e bastante sanguinolenta, expurgar esse gosto ruim de ter sido prejudicado no passado. O ápice, claro, são os dois "Kill Bill".

Após isso, parece, Tarantino não tinha mais do que se vingar, em termos pessoais. Ele teve que buscar as grandes culpas da humanidade para, com o seu cinema, tentar vingá-la, ela, a humanidade. Primeiro escolhido foi a Segunda Guerra e o nazismo, em "Bastardos inglórios". Agora, com "Django Unchained" é a questão da escravidão de seres humanos, africanos, levados à força para as Américas. Claro que vamos sair do cinema com a alma lavada, né?

O ato de passar pelo traço de Loredano

Após conferir as cerca de 30 obras - desenhos, às vezes ainda com recados do próprio autor para o eventual espectador - do artista Loredano expostas na Galeria Paulo Fernandes, no Centro do Rio, fiquei imaginando que deveria ser criado um verbo novo: Loredanear. É o ato de uma personalidade [no sentido antigo do termo] passar pela interpretação criativa desse craque do traço.

Lembro que quando eu fazia clipping, há dez anos, uma das minhas principais atividades extra-curriculares era recortar as caricaturas dele e guardar. Até hoje, se ninguém mexeu, eu tenho a de Jorge Luis Borges, que dá para encontrar na internet.


Nele podemos ver uma de suas características mais comuns em outros dos seus desenhos. A diferença entre  os olhos. São assimétricos. Como se ele aproveitasse para descrever dois pedaços da personalidade do retratado. No caso de Borges, ainda ajuda o fato do personagem ter sido cego. Então, os olhos miram lugares diferentes. Ambos parecem amedrontados, mas o da direita, maior, está quase cansado. O da esquerda parece mais com um medo "ativo", de quem quer atacar para se defender. O que contrasta com o nariz, para cima, dando um tom pernóstico, talvez incentivado pelo saber literário quase enciclopédico do escritor. As mãos, sobre a bengala demonstram a fragilidade, novamente, mas uma fragilidade acomodada, de quem sabe que a sua situação é a mesma dos demais seres humanos.

Na exposição, talvez a melhor caricatura seja de Machado de Assis.


Os cabelos estão desgrenhados e a barba falha, dando uma impressão de suor, que nos lembra que ele usava um jaquetão pesado, mesmo no Rio de Janeiro. Os óculos tortos, que mostram os olhos - novamente, os olhos - de diversos ângulos.

Há ainda Drummond com um pescoço descomunal e sem braços, livro sobre o colo, à beira do mar. Mário de Andrade, cujos olhos - olhos - escapam do corpo. Hitchcock com um tesoura no bolso - por quê? Schopenhauer, sem nariz, cabelos esvoaçantes. Freud em três momentos, o mais retratado. Cartum de Bush com o mundo ligado ao seu rabo - literalmente - cuja descrição diz que o desenho foi proibido por Mário Sergio Conti de ser publicado no "J.B." em 2001, mas que acabou, dias depois, nas páginas de "El País".

Fiquei pensando em como chamá-lo. "Caricaturista" é todo aquele que faz caricaturas, como ele. Mas como o termo ficou bastante batido, ele mereceria algo além. Decidi por artista. Reflete bem o poder da sua obra, que dá um prazer apenas de se olhar. Desenhista, quando precisar adjetivá-lo duas vezes num espaço curto.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Questão indígena

Desqualificar os índios, sua cultura e a situação de indignidade na qual vive boa parte das etnias é uma piada clássica em alguns meios, tão recorrente que se tornou quase um clichê. Para parte da elite escolarizada, apesar do esforço empreendido pelos antropólogos, entre eles Lévi-Strauss, as culturas indígenas ainda são vistas como “atrasadas”, numa cadeia evolutiva única e inescapável entre a pedra lascada e o Ipad – e não como uma escolha diversa e um caminho possível. Assim, essa parcela da elite descarta, em nome da ignorância, a imensa riqueza contida na linguagem, no conhecimento e nas visões de mundo das 230 etnias indígenas que ainda sobrevivem por aqui.

Toda a História do Brasil, a partir da “descoberta” e da colonização, é marcada pelo olhar de que o índio é um entrave no caminho do “progresso” ou do “desenvolvimento”. Entrave desde os primórdios – primeiro, porque teve a deselegância de estar aqui antes dos portugueses; em seguida, porque se rebelava ao ser escravizado pelos invasores europeus. A sociedade brasileira se constituiu com essa ideia e ainda que a própria sociedade tenha mudado em muitos aspectos, a concepção do índio como um entrave persiste. E persiste de forma impressionante, não só para uma parte significativa da população, mas para setores do Estado, tanto no governo atual quanto nas gestões passadas.
Eliane Brum, como sempre, organizando nossa revolta em um texto com contextualização histórica que deixa conosco, nós, a sociedade, o sangue pelas mortes de seres humanos que, por acaso, são índios.

Em outro momento, Eliane cita a antropóloga Graciela Chamorro, da Universidade Federal da Grande Dourados, para demonstrar como os índios Guaranis Caiovás encaram a palavra:
“A palavra é a unidade mais densa que explica como se trama a vida para os povos chamados guarani e como eles imaginam o transcendente. As experiências da vida são experiências de palavra. Deus é palavra. (...) O nascimento, como o momento em que a palavra se senta ou provê para si um lugar no corpo da criança. A palavra circula pelo esqueleto humano. Ela é justamente o que nos mantém em pé, que nos humaniza. (...) Na cerimônia de nominação, o xamã revelará o nome da criança, marcando com isso a recepção oficial da nova palavra na comunidade. (...) As crises da vida – doenças, tristezas, inimizades etc. – são explicadas como um afastamento da pessoa de sua palavra divinizadora. Por isso, os rezadores e as rezadoras se esforçam para ‘trazer de volta’, ‘voltar a sentar’ a palavra na pessoa, devolvendo-lhe a saúde.(...) Quando a palavra não tem mais lugar ou assento, a pessoa morre e torna-se um devir, um não-ser, uma palavra-que-não-é-mais. (...) Ñe'ẽ e ayvu podem ser traduzidos tanto como ‘palavra’ como por ‘alma’, com o mesmo significado de ‘minha palavra sou eu’ ou ‘minha alma sou eu’. (...) Assim, alma e palavra podem adjetivar-se mutuamente, podendo-se falar em palavra-alma ou alma-palavra, sendo a alma não uma parte, mas a vida como um todo.”
Muito filósofo da linguagem, a moda entre muitos da área no século XX, daria um braço para desenvolver uma teoria tão completa como essa. Lembrai de Foucault e su'"as palavras e as coisas".

'Midnight's Children' film


Rio, best value destination in 2013, acording to Lonely Planet


If you’ve an unfulfilled plan to visit Rio de Janeiro’s beaches and iconic landmarks then this may be the year to do it. After 2013 the big events come thick and fast – the football World Cup in 2014 (also taking place in cities around Brazil), then the Olympic Games in 2016. One thing’s for sure: big-name events bring fresh development, a boost to infrastructure and, in many cases, higher prices for visitors. Come now to see a city in the process of gearing up to welcome the world, but before the costs of doing so rise. Indeed, if you visit during June you can be among the first to check out the recently upgraded Estádio do Maracanã, the world-famous venue that is slated to host not only the World Cup Final in 2014 but also the opening and closing ceremonies of the Olympics and Paralympics.
[Read about other cities here]

The question among the cariocas is: best value for who?

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Impressionistas: a ressaca, o bucolismo

Após a bonança, sempre vem a tempestade. Ou, a contra-cultura sempre vence. Ou, as gerações sempre tendem a negar a sua anterior. Após a festa de Paris, da exaltação da cidade, da euforia com a urbi et orbi, os pintores franceses da exposição "Impressionismo: Paris e a Modernidade – Obras-Primas do Museu d’Orsay" começaram a se voltar para o campo, para as cenas bucólica, numa espécie de desintoxicação.



Confesso que quadros de paisagens não estão entre os meus favoritos. Tendem a me entediar muito facilmente. Mas "Colheita" de Daubigny consegue ser diferente mesmo retratando o que praticamente todo mundo faz. Vemos gente colhendo algum tipo de cereal, cevada, trigo ou algo do gênero. O campo está com vários lavradores, ao fundo, o trabalho está um pouco adiantado. Mas algo é diferente nesse quadro. É vivo. É brilhante. Talvez o contraste bonito entre o céu azul e o chão amarelo e verde. Talvez os detalhes colocados por Daubigny, com pequenas flores no meio do campo de plantação. Talvez porque seja possível ver esse quadro de diversos ângulos e distâncias possíveis, sempre dando uma sensação completamente nova. Geralmente, me parece, há uma distância ótima de onde se é melhor ver certas peças, mas essa, especificamente, te proporciona vários enfoques. Talvez por suas dimensões, maior que os quadros anteriores, talvez por sua simplicidade. Não sei. Só sei que é um quadro que tranquiliza o espectador.


"O lago das ninfeias, harmonia verde", de Monet, é, provavelmente, o quadro mais bonito de toda a exposição. Mesmo que eles tenham trazido "O salão de dança em Arles", de Van Gogh, esse Monet é o campeão, na minha mais que humilde opinião. É o ápice, quase a definição do que ficou conhecido Impressionismo. De perto, não faz muito sentido. Parece apenas um borrão de cores, com tendência ao verde [brinco que, para diferenciar, basta pensar que Monet é verde, e Renoir, azul]. Ao se distanciar, acontece a mágica. A ponte parece se destacar do quadro. As ninfeias, essas plantas aquáticas, parecem flutuar, já que o lago reflete à perfeição, no espaço em que aparece, a vegetação - verde, muito verde - do entorno. Compare com a outra peça citada de Monet para ver como ele caprichou nas cores nesta ocasião. Mas é no reflexo, nesse espelhamento, mais que na técnica utilizada ou nas cores, que, eu acho, mora a genialidade. É ao tirar o seu chão, perder a territorialidade, brincar com os duplos, que vemos a beleza da pintura, que recria o ambiente retratado. Impressionante.

Para uma conferida em outras das obras expostas, veja esse blog aqui.

Impressionistas: A festa em Paris

O auge da pujança econômica e consequentemente [ousado eu?] artística da França é retratada na mostra "Impressionismo: Paris e a Modernidade – Obras-Primas do Museu d’Orsay" na área "Paris é uma festa". Não é o maior espaço - este, provavelmente, dedicado aos retratos, - mas o momento em que Paris começa a se firmar como o lugar onde as celebrações acontecem. Onde há cabarés, teatros, bares, cafés, bailes, sua noite.

Degas e suas bailarinas estão representados, numa peça que não faz jus à produção do artista. Na coleção, dois quadros se destacam, na minha humilíssima opinião. A primeira é "Cena de festa no Moulin Rouge", do italiano Giovanni Boldini [o único, que eu tenha reparado, não-francês da mostra].


Baldini traz o seu olho para o centro do quadro e o leva para trás, numa abertura quase triangular da imagem. No primeiro plano, vemos a cortesã, querendo um chamego com o moço que toma a sua bebidinha. Ela está muito bem vestida, com um bracelete que chega a enlouquecer as mulheres. No lado direito de quem olha, há um sujeito cortado, como se não tivesse chegado a tempo de sair na imagem. Logo atrás do casal do primeiro plano, outra moçoila se oferece a um digníssimo senhor de cartola. Ao lado esquerdo, a imagem vai se confundindo com a fumaça, sumindo aos poucos. No todo, o tom vermelho, carregado, que lembra que estamos no mais famoso cabaré de Paris.


Em "A garçonete com cervejas", do Manet, podemos ver como eram essas moças que trabalhavam enquanto a grande maioria estava se divertindo. Ela não tem o rosto tão bonito, é mais cheinho, dá para ver uma dobrinha no queixo. A pele é escura, mostrando que não é da classe dominante. O cabelo desgrenhado, de quem está correndo para carregar mais um pedido. Na orelha, um brinco, de quem não se esqueceu da vaidade, mesmo com todos os problemas. Na mão esquerda, duas ou mais canecas de cerveja, como faria uma típica garçonete da Oktoberfest. À sua frente, um homem fuma um cachimbo, a fumaça sobe vagarosa. Um sujeito de cartola, uma mulher com um cabelo armado, alguém no palco. Ninguém repara nela, além do pintor. E ela devolve o olhar, calmo, tranquilo, curiosa por saber que alguém está reparando nela.

[Continua aqui.]

Impressionistas: a contextualização histórica

A exposição "Impressionismo: Paris e a Modernidade – Obras-Primas do Museu d’Orsay", que abre hoje no CCBB ao público, é dividida em várias salas temáticas. Em primeiro lugar, há a tentativa de contextualizar para os contemporâneos a Paris do século XIX. Há uma surpresa ao ver a provável mais charmosa cidade do mundo sendo retratada sem qualquer glamour, com homens carregando carvão de um barco no meio do Sena para a sua beira.

Acho que esses pintores são os que mais sofrem com a reprodução das suas telas; por
isso, inclusive, vale muito a visita à exposição, para ver como a obra é "viva", é "pulsante".
Em "Os carvoeiros ou Os descarregadores de carvão", de Monet, vemos os homens trabalhando maquinalmente, um atrás do outro, repetindo como em uma linha de trabalho, um ato sem qualquer participação mais profunda. O Sena, então, é quase sem cor. O fundo, simples. A cor, cinza, tendendo ao cinza, ao opaco. O cenário é triste, de pessoas que têm que ralar muito para poder simplesmente sobreviver.

A exposição continua, quase cronologicamente, mostrando como Montmartre, que seria um dos bairros preferidos pelos pintores da geração seguinte, era uma área quase rural nessa época. Depois, mostra, como, com o período de bonança econômica, talvez causado por essa revolução industrial mostrado na primeira parte, os pintores puderam se dedicar à burguesia que se estabelecia, e tudo à sua volta. Há retratos individuais, de famílias, ou mesmo de prostitutas.


"Mulher com jabô branco", do Renoir, é um desses retratos, que me chamou a atenção por um aspecto que antecipa outro grande pintor. O rosto redondo, quase sem expressão. Quieto, calmo. Mas o que me chama a atenção é a escolha desse verde, amarronzado, talvez amarelado de fundo. Essa blusa escura, onde se destacam a rosa, clássica, e o jabô, quase esfumaçante.

Junto com "O armário de roupas brancas", de Vuillar [acima], não consigo deixar de pensar em Klimt. Neste "... armário...", vemos que Vuillar tira ainda mais o foco do desenho, da nitidez. Sua pinceladas são mais grossas, suas cores se sobressaem em estampas que repetem temas. Estamos mais perto da abstração. 

'Expectation', da série de mosaicos Stoclet Frieze, de Klimt

Ok, Ok, talvez eu tenha exagerado um pouco. Klimt, se foi influenciado por esses dois artistas, retransforma essas referências de uma maneira a que pouco se enxergar da origem - como, aliás, fazem todos os grandes artistas com a tradição.

[Continua...]

Exposição do CCBB: muito mais que impressionistas

A exposição que abre ao público hoje no CCBB do Rio, e que já passou pelo de São Paulo arrastando multidões, não deveria ficar conhecida - como já está sendo chamada em todos os lugares - por "Impressionista".

Porque, na verdade, há impressionistas, vários, mas não apenas. A exposição, como o nome oficial explica perfeitamente ["Impressionismo: Paris e a Modernidade – Obras-Primas do Museu d’Orsay"], é um pequeno, e ótimo, apanhado de obras deste museu que, apesar de não ser o mais famoso da capital francesa, é, provavelmente, o mais charmoso.

E, como o nome também demonstra, mostra essa cidade, tão retratada pelos pintores do século XIX, o período de foco desse grupo que transitou antes, durante e depois da onda impressionista. Exatamente, no momento em que a modernidade estava se concretizando - ou seja, se tornando uma realidade.

Essa é, porém, a única ressalva a ser feita na exposição. Com um tamanho perfeito [nem muito grande, nem muito pequena], ela consegue uma média altíssima entre obras acima-da-média e outras na média. É chato e complicado afirmar isso, mas nem todas as obras que estão em um grande museu são boas, admitamos. Geralmente a curadoria tende a priorizar outros aspectos que não só e necessariamente a qualidade, como História, acervo, obras raras, autoria, ou argumentos muito mais relativos, subjetivos, como a preferência de cada um.

"Jovens meninas ao piano", do Renoir, é uma obra que deve agradar as meninas
mais delicadas, mas que os meninos tenderão a achar muito açucarada. E bastante
copiada - o que desgasta, infelizmente, o original igualmente. Quantas vezes vocês
 viram obras que remetem a temas parecidos com esse?

Nesta exposição, entretanto, mesmo as obras de artistas menos conhecidos [como o italiano Boldini, ou os franceses Daubigny ou Vuillard], ou de temas menos óbvios [como a industrialização francesa] têm um impacto incomum. Separei algumas obras que são, para mim, as mais... hum... impressionantes, e que eu vou postar ao longo do dia, em outros posts. São elas: "Mulher com jabô branco", de Renoir, que aliás, se casa, na minha cabeça louca, com "O armário de roupas brancas", de Vuillard, e que vai dar em Klimt. Tudo exposto de Toulouse-Lautrec [um dia vou escrever só sobre ele]. "Cena de festa no Moulin Rouge", de Boldini e "A garçonete com cerveja", de Manet. E "A colheita" de Daubigny além de, é claro, "O lago das ninfeias - harmonia verde", de Monet.

Não me surpreenderá se a expectativa do museu, de bater o seu recorde de público por dia, for alcançada. É totalmente merecida.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Deu no 'New York Times': Tim Maia

Like many Brazilians, Maia, who would have turned 70 last month, had a mixed racial background: his grandfathers were Portuguese and Italian, his grandmothers of African and Amerindian descent. But from the moment he first heard the music of Little Richard as a teenager, he chose to identify himself as black, and his most significant contribution to his country’s culture was to bring black American pop styles — first soul, then disco and funk — into the Brazilian mainstream.
Este perfil de Tim Maia para "The New York Times", assinado pelo famoso Larry Rohter, é "velho" para os padrões da internet. Todo mundo já deve ter lido. Mas vai que alguém seja atrasado, como eu.

Essa fase de Sebastião Maia produziu um dos meus discos preferidos, ever


O Fim do Livro e a sua repercussão

Uma das grandes bolas-dentro do "Fim", Fim de Semana do Livro no Porto [os outros posts sobre o evento aqui e aqui], foi tentar conversar, debater, discutir o que é ser carioca hoje em dia. Houve mesa sobre futebol, samba e boteco, cenários que são bastante associados ao Rio, mas que muitas vezes são ignorados pelos próprios cariocas por repetir um lugar-comum sobre o morador da cidade. Qual é o limite entre o clichê e a identidade?

De toda forma, talvez por ter acontecido num ponto tão representativo da História do Rio de Janeiro, o Morro da Conceição, o Fim também, talvez sem querer, mostrou que ainda temos muito problemas graves a enfrentar.

"Panorama da Cidade do Rio de Janeiro, Vista do Terraço do Morro da
Conceição",  de Thomas Ender, em 1817. A obra reproduz a paisagem vista a
 partir do  Palácio  Episcopal, na parte mais alta da Rua Major Daemon [foto CC]

Entre um debate e outro, não pude deixar de escutar a conversa entre duas mulheres, uma por volta das 40, 45 anos, e outra em torno dos 30. A mais nova contava à mais velha os problema que ela enfrentava com o filho, de 14 anos. A mãe, solteira, dizia em tom de lamento que não conseguia controlar o garoto. Poderia ser algo corriqueiro, um embate entre gerações tão comum, mas o caso era diferente, mais grave, porque o menino era violento. Já tinha quebrado propositalmente vários objetos da casa em discussões. Não adiantou a mãe explicar ao garoto que o filho mais novo - irmão dele, portanto - estava dormindo. O garoto não se importava.

A mãe ainda contou da noite que o menino passou fora de casa, chegando às 7 da manhã, bêbado. Ela ficou desesperada, tentou ir à polícia, mas descobriu que qualquer sumiço de menores de idade só pode ser comunicado após 24 horas do desaparecimento. Ela também lembrou das vezes que o garoto brigou com parentes, que tentaram lhe dar conselhos.

A mulher parecia perdida. Falou que trabalhava com crianças, e que as crianças a adoravam. Disse que o filho fica ainda mais agitado quando não fumava maconha. Com apenas 14 anos, o menino já parecia viciado, pela descrição da própria mãe. Ela disse que já tentou pressioná-lo, dizendo que não iria bancar o vício do menino. Já tentou assustá-lo, lembrando que quem não tem dinheiro para pagar a droga começa a fazer pequenos serviços para o "dono da boca". Ela chegou a comentar que não tinha qualquer preconceito com os rapazes do "movimento", cumprimentando a todos, mas que não queria o filho lá, por motivos óbvios. Lembrou de vários casos de meninos que fizeram futebol num projeto comunitário que estão ou presos ou trabalhando para o "movimento". E, claro, não queria o filho tivesse esse mesmo futuro.

Mas não sabia o que fazer para controlar o garoto. Estava perdida. Sem opção. Impotente. Contou que já tinha batido no garoto. Colocado o menino várias vezes de castigo, mas nada. A única resposta do menino foi: não adiantava, porque ele iria fazer tudo de novo.

O voto em Obama

Perhaps inevitably, the President has disappointed some of his most ardent supporters. Part of their disappointment is a reflection of the fantastical expectations that attached to him. Some, quite reasonably, are disappointed in his policy failures (on Guantánamo, climate change, and gun control); others question the morality of the persistent use of predator drones. And, of course, 2012 offers nothing like the ecstasy of taking part in a historical advance: the reëlection of the first African-American President does not inspire the same level of communal pride. But the reëlection of a President who has been progressive, competent, rational, decent, and, at times, visionary is a serious matter. The President has achieved a run of ambitious legislative, social, and foreign-policy successes that relieved a large measure of the human suffering and national shame inflicted by the Bush Administration. Obama has renewed the honor of the office he holds.
A revista americana "New Yorker" diz por que apóia Obama nessa eleição, em que ele concorre à reeleição. Barack deve ter gostado.

Confira o resto aqui.

O Fim do Livro e as suas discussões - 2

O segundo momento do "Fim", Fim de Semana do Livro no Porto, que ecoou na minha cabeça [oca] [se quiser ler o primeiro, basta clicar aqui], não foi a representante da Kobo, a simpaticíssima Camila Cabete, falando sobre como somos imigrantes digitais, por isso, sempre nos sentindo em constante adaptação, deslocados do nosso ambiente original. Nem a sua lembrança de que eles, da Kobo, terão por volta de 3 milhões de e-livros no Brasil, por terem se associado à Livraria Cultura.

Nem a lembrança, já em outra mesa, de que talvez estejamos nos esquecendo de que esses e-livros não se utilizam de todos os recursos disponíveis em um leitor de obras eletrônicas, e, principalmente, de um tablete digital. E que caso comecemos a produzir esse objeto ainda sem nome que vai comungar texto, som e imagens [não necessariamente nessa ordem], e que foi apelidado por uma palestrante de "pós-livro", as editoras, atualmente, não estão preparadas para disputar mercado com outras indústrias, como a do cinema e de games.

Foi algo menos prático, menos informação para ganhar dinheiro e mais para, hum, pensar. Foi algo mais [com o perdão da palavra] filosófico. Mesmo que a palestrante fosse uma antropóloga. Mirian Goldenberg foi a escolhida para fechar o ciclo de palestras do Fim - em outras palavras, para ser o fim do Fim. E ela decidiu falar sobre um temas que lhe são mais caros: Leila Diniz.

A professora Mirian indicou e eu confirmo o filme do Domingos
Oliveira sobre Leila Diniz: "Todas as mulheres do mundo"

Uma das questões mais interessantes levantadas pela professora foi o caso de Leila, apesar de ter se transformado em um mito, não ter sido uma personagem política, nos sentidos mais estritos do termo, em sua época. Não era feminista - e, como Mirian lembrou, era até meio mal vista pelo grupo por "gostar demais de homens" -, não militava em grupos de esquerda - apesar de se relacionar bastante com o grupo - nem era uma panfletária, que queria impor suas ideias sobre os outros. Por que, então, ela se transformou nesse ícone, nesse exemplo, nesse fim para onde todos gostariam de convergir? Porque era alguém que queria apenas ser ela mesma, e nada além. E foi isso, essa informação aparentemente simples, que me chamou bastante a atenção.

Há personagens que, apenas por serem elas mesmas, conseguirem descobrir quem são e terem a coragem de seguir em frente, apesar de todas as demais críticas e censuras - e imaginem um país como o Brasil, em pleno regime militar - se tornam faróis para as demais pessoas. Como se houvesse um misto de inveja com admiração [talvez toda inveja tenha um pouco de admiração, não?] daquele ser que conseguiu sair das regras impostas, ou autoimpostas e seguir adiante.

Isso é muito facilmente identificado com gays que, após anos de negação, conseguem reunir forças para "sair do armário". Percebemos que eles ficam, de uma hora para outra, mais leves, mais tranquilos, mais felizes, por serem, simplesmente, eles mesmos. Isso acontece, obviamente, em diversos outros aspectos. Os filhos que têm que lutar para sair da barra da saia dos pais. A mulher ou o homem que fica se prendendo ao casamento para manter as aparências. Quem não larga aquele emprego, por exemplo, com medo de não conseguir um outro para se sustentar. Etc., etc., etc..

O processo, claro, não é nem um pouco simples. Como saber, ou ter uma noção bastante forte, sobre quem é você? Ou sobre aquilo que você quer, realmente? Ou, para usar uma linguagem mais filosófica: quem é o seu ser? E "ser", nesse caso, é quase um sinônimo para muita gente boa que pensou esse assunto, de "estar". Não é algo imutável, algo que te torna a mesma pessoa aos 20, aos 40, ou aos 60. Porque isso seria, claro, outra prisão. É descobrir esse ser a cada momento, a cada instante, e saber para onde ele aponta. É escutar a voz interna, o sopro que nos remete a ir em direção a algo, é conhecer o nosso querer, a cada vez que ele quiser. E, à medida que não atrapalhar a convivência em sociedade, praticá-lo com o maior gozo possível.

Ser você mesmo, sem olhar a quem. Ou, como diz um verso do poema lido por Mirian, escrito por Drummond em homenagem a Leila Diniz no dia em que ela morreu, num acidente de avião, na Índia, quando voltava da Austrália: "A arte de ser, sem esconder o ser".

Toda essa história me lembrou aquele famoso - e repetido - poema do Paulo Leminski, "Incenso fosse música":
isso de querer
ser exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além
Confesso que acredito bastante nisso.

domingo, 21 de outubro de 2012

O Fim do livro e as suas discussões - 1

Infelizmente não pude assistir a tudo o que eu queria no "Fim", Fim de Semana do Livro no Porto [cujo nome/apelido os organizadores insistiam em lembrar que era no sentido de finalidade, portanto, ler, não no de acabar]. Do que eu vi, poderia destacar vários pontos altos, mas dois, que não necessariamente são os mais altos, continuam a ecoar na minha cabeça.

Ronaldo Lemos
O primeiro, logo na palestra inaugural, com Fábio Fernandes e Ronaldo Lemos. Com estilos bem contrastantes, Fábio mais caótico e informal, Ronaldo mais acadêmico sem soar nunca chato, os dois foram bem convergentes em suas falas, que formaram uma espécie de bate-papo sobre como a questão digital estaria influenciando na produção cultural atual.

Houve uma fala específica de Lemos que relembrou um trecho do artigo de semana passada de Hermano Vianna n'"O Globo", e ressoou dentro da minha cabeça. Os dois - Lemos e Vianna - lembraram em suas respectivas participações da supremacia do texto escrito sobre qualquer outro formato de texto na nossa tradição [é só lembrar do currículo escolar], mas disseram que essa opção, se já um dia refletiu a realidade, não mais está de acordo com o mundo lá / aqui fora.

"Será que esse arranjo acadêmico tem futuro longo?", escreve Hermano, "Nada contra livros ou escritores. Apenas sinto falta de ênfase na educação de outros sentidos, sobretudo o visual. Além disso, advogo que, há décadas, as escolas já deveriam ter disciplinas para estimular o olhar crítico e a produção dos alunos nas chamadas novas mídias, tarefa urgente."

Sem qualquer tom de lamúria, Lemos também confirmou que hoje as pessoas preferem cada vez mais uma imagem do que o texto [o que, aliás, me lembrou Debord, e, claro, e principalmente, Millôr], e citou como argumento a valorização, por exemplo, de uma rede social como o Instagram pelo próprio Facebook.

Por mais que eu seja alguém que valorize mais o texto à imagem, tendo a achar que as pessoas podem valorizar o que elas preferirem. Mas, ao mesmo tempo, essa história me conectou diretamente, e sem querer, ao Nilson Lage, um professor polêmico de Jornalismo, aposentado compulsoriamente [segundo a sua descrição do Twitter] na UFRJ e na UFSC [links e memória estão ainda mais conectados do que nunca, como se verá]. Recordo de uma palestra sua, há mais de década, em que ele defendia que devêssemos estudar - bem e bastante - o português única e exclusivamente para que tivéssemos a ferramenta necessária para entrar contato com os textos mais antigos e com a literatura produzida em outras épocas. Enfim, com a História.

Ou seja, de certa forma, o texto é um dos principais, e em alguns casos, o único, para se lidar com o passado. Ainda não temos a capacidade de sintetizar imagens diretamente de memórias. Teremos que recorrer a documentos antigos - na maioria dos casos, textos escritos - para produzir essas imagens que serão usados no futuro para lembrar do nosso passado. Ou simplesmente teremos um corte abrupto e ignoraremos o nosso passado.

Eu acho que esse esquecimento completo e generalizado bastante improvável. Já algo proporcional, com um apagamento crescente ad infinitum da memória [mas que nunca chega, paradoxalmente, ao todo], eu vejo como totalmente viável. E, para gente como eu, assustador.

É só pensarmos que, hoje em dia, já terceirizamos nossa memória pessoal para o Google. Recorremos ao buscador para lembrarmos de detalhes da nossa própria biografia, ou de assuntos que nos são caros, por exemplo. E que o próprio Google, numa tentativa de ser uma espécie de repositório único da informação do mundo, quer digitalizar os livros existentes [ver aqui, aqui e aqui, por exemplo].

A história, como aliás outros fatores da vida como a arte, será um luxo, a meu ver. Um penduricalho que vai te transportar instantaneamente para um grupo diferenciado, que não terá, entretanto, qualquer vantagem por conta desse "privilégio". Todo mundo poderá acessar a memória coletiva. Só não sabemos o que isso vai nos custar.

[O segundo ponto será publicado outrora.]

Brian Eno - OiR, Lapa

Muita gente que parece ser fã do Roxy Music [muita gente é um exagero, mas a maioria da minoria]. Gringos. Gente com câmeras. Todos desconfortavelmente. Alguns sentamos no chão, ao lado das caixas de som - que faziam um círculo à Stonehenge. Outros ficaram em pé, mesmo. A coluna, em ambos os casos, sofreu. Era antes do show, show no sentido mais amplo que a palavra pode ter.

Do lado de fora, um garoto joga bola, sozinho, com uma garrafa de plástico de cachaça. Em certo momento, um dos gringos, puxando um carrinho com, aparentemente, equipamentos de música, chuta a "bola". Será Brian Eno?

Logo em seguida, chegam bancos. Vão para o meio do círculo. Fico na primeira fileira. Começa pontualissimamente no horário. Não é legal ficar na primeira fileira, você aparece em todas as fotos tiradas da plateia.



Parece Angelo Badalamenti. "Duna". Se misturou com o som do alredor - avião, circo, bateria, flash, foto, foto, foto. Parece Brian Eno.

Imagens com texturas, como aliás, a música dele. Encaixe perfeito entre som e imagem. Contemplação.

Pessoas desistindo, falando ao telefone. "Nada acontece". Tirando fotos. Trilha sonora para um filme sem roteiro, sem atores, sem proposta além da pura imagem e do som.

Uma proposta includente, que adiciona o que quem quiser adicionar. Um garoto passa brincando de dançar balé. Um rapaz reclamando da foto dele. Tira outra. As imagens se agarram à paisagem, grudam organicamente. A música ocupa os espaços sonoros, transforma o ruído, ordena o barulho.

Várias cores cítricas, elementos de figuração, como bonequinhos ou círculos. Explosões. Remete ao primitivismo, mas numa versão do século XXI. Temas que se repetem.

Em certo momento, é possível duvidar que os arcos já tenham sido brancos. Ocupação do espaço público. Gente falando: "Não tá mudando". Outro "Não vejo mudar". Fez-se a mágica.

É algo que não é utilitário, não serve para nada, apenas é.

Mensagens chegando, fotos diminuindo de quantidade. Uma mulher se abraça a uma pilastra dos arcos, posando. Citações à década de 1980 nas imagens. A onda, agora, é posar às pilastras.

Um cara começa a vender cerveja no meio do círculo. Um helicóptero. O barulho quase abafa por completo a música, que consegue, ainda assim, se sobressair. Brian Eno toca ou é uma base gravada?

Não existe fim assim como não houve começo.

[Mais sobre o projeto "77 milhões de pinturas, do artista Brian Eno, que acontece hoje novamente na Lapa, aqui.]

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Em homenagem a Vinicius

Hoje, Vinicius de Moraes faria 99 anos. Deixo registrado um esboço de samba [quem diria] carnavalesco [quem diria 2] que faz citações ao poeta:

Vinicianas

Enquanto houver peixinhos a nadar / nesse mar
Você vai continuar a me amar / m'amar
Então a tristeza vai ter fim / malandrim
E a folia vai começar / arlequim

Vou dar muitos beijinhos na sua boca / me provoca
Porque você é a mais bonita carioca / não retoca
Mesmo paulista, gringa ou na pipoca / que beijoca
É hora de sair da sua oca / sai minhoca!

Nosso amor é eterno enquanto eu duro / todo puro
A água de beber é de Iemanjá / vai tocar?
E não adianta dançar nem kuduro / eu te juro
São Jorge, me dê cana para tomar! / e sambar!

Mas pra fazer um samba com alegria / simpatia
É só olhar a coisa mais linda / que assedia!

E quando acabar o carnaval / ilegal!
Vamos começar tudo de novo / não faz mal!

A responsabilidade do jornalista

O jornalista, muitas vezes, nos esquecemos da responsabilidade que temos com o nosso trabalho. Se uma pessoa qualquer pede para não aparecer num texto, não quer publicidade, não adianta você escrever sem nomeá-la ou nem mesmo localizá-la. Ela tem o direito de não aparecer, não virar personagem, nem ter a sua história sendo contada, mesmo anonimamente. Tem o direito de se manter longe dos holofotes, ainda mais se o caso envolve sua própria segurança.

O jornalista, às vezes, pensamos que a história é tão boa que merece ser contada, independentemente das suas consequências, num exercício vergonhoso de prepotência. Às vezes, achamos que controlamos esses resultados, o ambiente em que essa informação pode se propagar, como se tivéssemos um dom semidivino. Na verdade, somos uma pecinha mínima e completamente substituível na grande engrenagem de alimentação das notícias.

O jornalismo em si não deveria ser nada, nadinha, além de mostrar a história. O jornalista pode e deve existir, se incluir no relato, dar a sua opinião, mostrar toda a sua habilidade ao trabalhar o texto, como se fosse um artesão das palavras. Mas ele não pode nem deve ser mais importante que a notícia. Sem a notícia, sem o fato, sem a história, o jornalista não existe. Ele pode dourar a pílula, pode fazer diversos salamaleques, mas sem o que falar, vai se repetir, tornar ao mesmo lugar.

Às vezes, abordar determinado assunto envolve riscos, de perder o emprego, de segurança. E não adianta argumentar que é um caso público: se envolve perigo, o jornalismo vem em segundo lugar. O jornalismo é uma ferramenta importantíssima nos regimes democráticos. Mas não é indispensável. Não chega a ser um luxo, mas é algo que não faria falta num primeiro momento pós-apocalipse.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Cerveja ruim: o mal que entra pela boca

Amigos e conhecidos vieram me avisar na minha volta que havia uma "contra-reforma" em ação no Rio [não sei se em outros lugares]. Após o crescimento do interesse há uns anos por cervejas-cervejas, aquelas cujos ingredientes são decentes, não milho, no último ano, houve um processo inverso: a tentativa de "desburocratizar" o sagrado ato de tomar despreocupadamente a cervejinha.

"Deixe a frescura dos copos com os vinhos", me disse um. "Cuidado com o que você fala por aí", me falou outra. "Eu quero apenas tomar um chope", lembrou um terceiro.

Um dos fatores que sempre me interessou em cerveja foi exatamente essa aparente sem-cerimonice. Qualquer um pode tomar uma cerveja em qualquer lugar, de qualquer jeito, despreocupadamente. Havia uma informalidade brasileira nesse aspecto que era mais agradável que o esnobismo francês importado e associado ao vinho.

Todavia, a cerimônia existe, se você reparar bem. Até para uma questão de sobrevivência do tipo mais vendido desse refrigerante-alcoólico-sabor-cerveja. Há o boteco. A mesa de ferro. O copo-americano. A camisinha. E se alguém vender uma dessas marcas mais conhecidas a mais de dois graus centígrados, o bebedor reclama. Reclama porque está quente. Porque quente é ruim - o gosto das cervejas-água é horrível. Horrível porque os ingredientes usados são de péssima qualidade.

E isso é o que me choca. Reclama-se das músicas tocadas, dos filmes vistos, dos livros publicados, mas quando o assunto é o paladar, esse outro sentido, não se pode falar nada. Deve-se aceitar o gosto ruim das cervejas-águas sem nem pestanejar. E não conheço nenhum caso de alguém que tenha provado uma cerveja-cerveja e ficado incólume. A primeira reação é quase sempre a mesma. Admite que foi enganado até aquele momento.

Na Inglaterra, com uma oferta boa de cervejas-cervejas, raramente há uma discussão sobre o tema, apesar do crescimento do que eles chamam de "continental lagers" num país onde a tradição das "real ales" é quase uma obrigação. Ou seja, cada um toma o que quiser, sem qualquer pressão, sem qualquer intimação.

O que proponho não é "enfrescurar" o ato de beber cerveja. Beba-a do jeito que quiser, à temperatura que quiser, com o copo que quiser. Mas alocar uma preocupação semelhante dada a outros aspectos da vida àquilo que entra pela boca, que passa pelo "gosto". Em relação à cerveja eu sou radical.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Aliás... quem nunca?

[Daqui.]

Ou:
[Daqui.]

E ainda isso aqui.

[...Ou de como estamos completamente distantes da realidade em nossa volta.]

O nascimento da crença no jornalismo

Sempre tive dificuldade de me aceitar como jornalista. Via a profissão, via de regra, como uma versão um pouco mais glamourosa do apertador de parafusos, ou do fabricante de salsichas [talvez mais da última que da primeira]. Tentava evitar esse assunto e jamais tive orgulho do que eu fazia. Depois dessa passagem londrina, esse pensamento mudou. Agora, eu decidi que quero ser jornalista.

Houve três razões principais, e talvez mais uma secundária, para essa mudança radical de posição. Primeiro, foi o contato cotidiano com os jornais londrinos. A lista de regionais é imensa, mas a que mais me chama a atenção é a de circulação nacional. Entre esses tantos, de tão diferentes vertentes, tive mais contato com dois, especificamente: "London Evening Standard" e "The Guardian".

O primeiro é um tabloide, de direita, grátis, de grande circulação, distribuído principalmente em lugares muito movimentados, como saídas do metrô, e que não se furtou de estampar na capa a poucas semanas da eleição para prefeito de Londres o apoio ao candidato conservador à reeleição, Boris Johnson*. O segundo provavelmente dispensa apresentações, principalmente por ser um dos jornais mais abertos à internet no mundo, grande exemplo para outros veículos de como se portar nesses tempos nebulosos. Liberal, apóia posições que os leitores mais sensatos de outros países leem com uma ponta de inveja.

Se o "Guardian" é bastante conhecido, e justifica sozinho a sua [minha] leitura, explicar por que eu gostava de ler o outro é mais instigante, mostra o quanto ainda devemos aprender até termos uma sociedade aberta à diversidade de opiniões.

O "Standard", como os entregadores o chamam, me interessava por, entre as inúmeras reportagens do varejão, designar um espaço bastante significativo para gente como o crítico de arte Brian Sewell. Sewell é um sujeito polêmico, nitidamente arredio à arte conceitual, do nível Damien Hirst ou Turner Prize. Valoriza o artista como uma espécie de artesão, com inclinações além da materialidade da obra, e, além disso, tem um conhecimento histórico que embasbaca o leitor desprevenido. Para se ter a noção do que ele representou para mim, imagine um jornal popular tipo o "Extra" discutindo com informações aprofundadas todas as quintas a última exposição do MAM, por exemplo. É mais ou menos isso que o "Standard" faz. Como se demonstrasse que a arte, entre outros assuntos mais densos, não precisa - nem pode - ser elitista.

Jeff Daniels é o protagonista de 'Newsroom'
A segunda questão foi de caráter do entretenimento. Assistir a "Newsroom", a série americana que trata de um telejornal, foi, além de muito divertido, empolgante. Apesar dos momentos mela-cuecas, fez bem ao ego perceber que o jornalista não precisa fingir ser um espelho que tenta refletir, sem sucesso, o que ele viu, ou pior, a "realidade", sem se colocar em nenhum momento na notícia. Ele deve, ao contrário, se posicionar, e, explicando isso ao seu leitor/espectador, dar o seu ponto-de-vista sobre o assunto. É claro que, às vezes, e na tentativa de sempre fazer o certo, ele pode exagerar - e a série mostra momentos que o exagero é desastroso. Mas o erro não está descartado em nenhum formato. Neste, ao menos, vemos como o jornalismo pode ser mais emotivo, mais pessoal, mais humano.

Por fim, a descoberta de um autor, via os seus ensaios, que já é mais que um queridinho entre os escritores e gente ligada à literatura no Brasil: David Foster Wallace. "Consider the lobster", o tal livro em questão, mostra como o jornalismo pode ser veículo para uma série de indagações sobre assuntos diversos. Mesmo as pautas mais banais, como, no caso dele, uma visita ao "Oscar" da indústria pornô nos EUA, ou a uma feira de lagostas, que dá o título ao livro, mostra que ele pode abordar temas como sexualidade ou a dor. Tudo com um texto inteligente, com uma série quase infinita de referências, uma quantidade absurda de citações, um gama incrível de informação, e sem perder o humor jamais. Virou exemplo, para todo o sempre.

Terminemos pela causa secundária que me levou a ter fé, talvez pela primeira vez, no jornalismo. Não sei se foi coincidência, mas o fato de, nesse período, eu ter conseguido fazer matérias com mais calma, com apurações mais demoradas, mergulhos mais profundos nos assuntos pesquisados, estudar com mais segurança o tema que seria abordado, ter liberdade maior para escrever da maneira como eu queria, me deu ânimo. Fiquei empolgado, me sentia feliz com o resultado, tinha, afinal, orgulho. Não posso negar que a combinação de tais fatores foram importantes para essa mudança da minha atitude, principalmente porque eu pude colocar em prática tudo o que eu tinha vivenciado nesse ano, nas minhas leituras e no dia-a-dia. Agora, de volta à "realidade", vamos ver se ou até quando isso dura.

* Foi deveras curioso para um jornalista brasileiro perceber que, após a eleição de Johnson, o "Standard" foi o jornal escolhido pelo prefeito para encartar um panfletinho promocional para divulgar os eventos culturais durante as Olimpíadas de 2012. A coincidência nesse caso fica afetada.

ps. Talvez o tempo do jornalismo em papel do "Guardian" esteja curto. Ou não.